Sumário
1 Signo, símbolo, linguagem, corpo
2 Referências Bibliográficas
1 Signo, símbolo, linguagem, corpo
“Isoladas/ as palavras são mudas./ Homem, mulher,/ amor/, é som em linha reta/ e a Terra é redonda;/o som se perde em nada./ As palavras sobrevivem unidas umas às outras numa força de ponte para alcançar o ritmo no horizonte” Estes versos do poema A palavra é carente, de Lupe Cotrim Garaude, podem ser uma boa introdução, em linguagem simbólica, para compreender os sacramentos como “símbolos”.
Por sua atividade simbólica o ser humano configura o mundo e, ao mesmo tempo, é configurado por ela. O símbolo se distingue do simples sinal ou signo, ou seja, da mera ação significativa das palavras enquanto usadas para designar os diversos objetos do mundo. A palavra grega symbolon literalmente significa pôr junto, reunir. Próprio do símbolo é reunir, pôr em comum, criar comunhão. A palavra “rosa” designa um objeto da natureza. A rosa oferecida como presente à pessoa amada torna-se símbolo. A significação do símbolo não reside isoladamente na rosa, nem no gesto de entregar a rosa, nem na pessoa que a oferece ou a recebe, mas na atividade mediante a qual os seres humanos intercambiam um objeto, uma palavra, ou um gesto e desse modo se relacionam, manifestam seus sentimentos recíprocos, ao mesmo em tempo que descobrem sua identidade. Ou seja, na linguagem. A ordem simbólica é o meio pelo qual as pessoas se encontram e se revelam e assim se constroem e constroem o seu mundo. É nessa ordem que o vocábulo como signo dos objetos se torna símbolo, palavra que une e comunica as pessoas.
A ação simbólica faz parte da linguagem, entendida não como mero instrumento para designar os objetos, mas como meio ou ambiente no qual a pessoa humana se descobre, se constrói e acontece. A linguagem põe em jogo a pessoa humana enquanto corpo ‒ o “eu-corpo” ‒ o eu que somente enquanto corporeidade pode relacionar-se com os outros e com Deus. O corpo é o lugar da articulação simbólica, diferenciada segundo as orientações do desejo, do tríplice corpo ‒ social, ancestral e cósmico ‒ que constitui o ser humano como sujeito. No corpo se articulam o eu e o outro, a natureza a cultura, o desejo e a palavra. Para a fé cristã, o corpo de Cristo na tríplice dimensão ‒ terrena, eclesial e celeste ‒ é o lugar da manifestação da Palavra eterna de Deus, que, por nós e por nossa salvação, se fez carne em Jesus Cristo.
Os sacramentos só podem ser bem compreendidos quando pensados como ações ou intercâmbios simbólicos que envolvem sempre o eu-corpo do homem, o corpo eclesial e o corpo de Cristo em sua relação com o universo. Os sacramentos são ações litúrgicas da Igreja, A assembleia litúrgica, enquanto personificação da Igreja, corpo de Cristo, em um lugar e um tempo determinados, é o sujeito primordial dos sacramentos. Cada um dos sacramentos envolve e manifesta a ação sacramental da Igreja, sacramento fundamental (Grund-sakrament) que, por sua vez, reenvia ao Uhr-sakrament ou proto-sacramento: o Cristo, a palavra de Deus feita carne (TABORDA, 2005, p.73 nota 56).
Enquanto sacramento da união dos homens entre si e com Deus, toda a ação da Igreja é sacramental, mediante o culto espiritual que consiste em apresentar a Deus o próprio corpo como sacrifício vivo e espiritual para o serviço dos irmãos (cf. Rm 12, 1ss.), seguindo o exemplo de Cristo que se ofereceu por nós na cruz. As ações sacramentais do culto cristão, encontram seu sentido, seu acabamento e sua verificação no viver dos cristãos ao serviço dos irmãos na vida cotidiana. Elas fazem que “o viver para” os irmãos seja recebido gratuitamente de Deus como dom e graça ao mostrá-lo ritualmente, porque o sacramento como símbolo não remete a algo exterior a si mesmo, mas introduz numa ordem da qual ele faz parte: a vida no corpo de Cristo. Os sacramentos celebrados na liturgia são, por isso, momentos culminantes da vida cristã, enquanto vida em Cristo para o serviço do mundo. Introduzem, no Mistério Pascal, o Mistério do corpo de Cristo, morto na cruz e ressuscitado por nós e para nossa salvação, mediante o dom do Espírito que faz parte desse Mistério.
Para tentar compreender a eficácia divina dos sacramentos, a teologia escolástica lançou mão das categorias filosóficas de causalidade eficiente e causalidade instrumental. O Verbo encarnado ‒ afirmava-se ‒ age mediante os sacramentos, de modo semelhante ao artífice que esculpe uma estátua servindo-se de instrumentos apropriados. A afirmação era verdadeira e útil para afirmar que a eficácia do sacramento provém de ser Deus o seu autor. Tomás de Aquino construiu uma reflexão muito rica sobre os sacramentos, servindo-se da analogia com os conceitos de causalidade emprestados da filosofia, embora não deduzindo-a deles, senão dos dados da revelação em Cristo. Mas a utilização de causalidades que dificilmente escapam a representações de tipo produtivista não chega a tocar o mais essencial do agir sacramental, a ordem simbólica. Não é de estranhar que a teologia posterior, presa àqueles conceitos, não conseguisse desenvolver a forma específica do agir sacramental, como linguagem e corpo humanos assumidos por Deus em Jesus Cristo para se relacionar conosco. Consequência desse tipo de reflexão, aliada a outras conjunturas históricas, foi uma visão do agir dos sacramentos, em não poucos setores da Igreja, de forma quase mágica. Não foi o fato de pensar os sacramentos a partir da causalidade eficiente o que os expôs a serem considerados como ações mágicas (Tomás de Aquino não caiu na armadilha), mas o fato de a teologia posterior e a prática sacramental não se deixarem guiar constantemente pela revelação divina em Jesus Cristo.
A teologia busca, hoje, no modo de agir simbólico um instrumental epistemológico mais apropriado para compreender o agir divino mediante os sacramentos. Não com a pretensão de deduzir o agir sacramental de uma noção previa do símbolo. Construir-se-ia, por esse caminho, uma nova escolástica incapaz de dar razão da prática sacramental. Mas olhando, com ajuda da reflexão sobre a linguagem e o corpo como lugares privilegiados das relações entre os humanos, a revelação singular e escandalosa de Deus no Mistério Pascal, para reencontrar o sentido dos sacramentos que a Igreja recebe do Cristo na tradição litúrgica.
O corpo de Cristo, morto na cruz, ressuscitado e exaltado por Deus por mérito dessa mesma morte, fonte do Espírito que suscita para Cristo o corpo eclesial, é o fundamento dos sacramentos. Sacramentos do amor “trinitário de Deus”, eles nos introduzem na ordem simbólica criada pelo Mistério Pascal, sacramento da humanidade de Deus. O modo do agir simbólico nos ajuda a pensar esse agir divino, sem a pretensão de desvelar o Mistério santo do próprio Deus, revelado no Mistério Pascal, ao permitir-nos articular os dados da Revelação com nossa experiência cotidiana de ser no mundo em relação de alteridade com todos os humanos.
O símbolo age significando e pelo mesmo ato de significar que conduz à comunhão entre as pessoas, envolvendo, mediante a corporeidade, a verdade do ser: ser para, ser em relação. Um exemplo fácil de compreender: o abraço da mãe a uma criança, enquanto envolve todo o seu afeto, entregando-se a ela sem reservas, dá a esta a consciência de ser querida e cria laços imperecíveis. O gesto aparentemente idêntico de alguém que, pretendendo abusar de uma criança, tenta iludi-la para conseguir seu perverso propósito, produzirá um efeito desastroso, deixando marcas indeléveis por toda a sua vida, porque o gesto significou uma coisa estranha, não fazia parte de uma ordem simbólica verdadeira.
A morte do Cristo na cruz, coroando toda uma vida de doação incondicional a quantos se encontraram com ele, contemplada no interior da tradição de fé de Israel e à luz da fé cristã, revela o amor de Deus não apenas aos discípulos do Nazareno, mas aos homens e mulheres de todos os tempos. Amor divino que, no corpo do Filho, se entrega incondicionalmente a todos os humanos para que no Filho e com o Filho renasçam para uma vida nova e imperecível.
Compreender o gesto de Cristo na cruz como gesto de amor do Pai para a humanidade toda, simbolizado nos sacramentos, requer um processo lento e progressivo de comunhão, como o que deve haver entre mãe e filho para que seu abraço se torne símbolo de amor. A prática da Igreja e o surgimento progressivo dos sacramentos mostram bem isso. Os sacramentos nascem em torno à mesa em que se celebra a memória da entrega de Cristo por nós, e são sempre acompanhados do sacramento da Palavra que os torna significativos, até o ponto de revelar, na morte de um judeu crucificado, o dom ‒ a autocomunicação ‒ do próprio Deus à humanidade. Para compreender isso não basta narrar os eventos da vida de Jesus. Era necessário escutar o próprio Deus dizendo neles o seu amor por Israel e por toda a humanidade. Compreende-se por que a memória da entrega de Jesus na cruz, celebrada na liturgia, foi sempre precedida pela leitura das Escrituras judaicas e por que são lidas também as cartas dos apóstolos. Os apóstolos, iluminados pela memória de Jesus, viram-se obrigados a reinterpretar as escrituras antigas ao se deparar com pessoas que não eram judias e procuravam em Jesus a salvação. Como Deus poderia agir por meio de Jesus se a sua memória não se tornasse significativa para os que participavam das celebrações da Igreja?
Pensar um sacramento implica pensar o seu ritual como verdadeiro intercâmbio simbólico entre Deus e o ouvinte da sua Palavra, que é tocado por ele como gesto divino de salvação. A ação sacramental não pode ser reduzida ao que a escolástica considerava a matéria e a forma, sob pena de cair no sacramentalismo mágico. Para agir mediante o sacramento, o rito litúrgico deve introduzir quem o recebe, de forma real, na ordem simbólica do Mistério Pascal, como transparece da prática litúrgica. Essa manifesta melhor o sentido dos sacramentos do que uma reflexão teológica que não se deixa guiar pela própria celebração. Todo o ritual da celebração dos sacramentos faz parte deles e não pode ser considerado como acessório dispensável sem negar a sua essência, que é serem ações simbólicas cujos atores são o próprio Deus a Igreja. Recupera-se assim, na reflexão teológica, a sacramentalidade da liturgia da Palavra, esquecida durante séculos pela teologia sacramental, como protestou Lutero. A proclamação da palavra acompanha sempre o gesto sacramental e faz parte dele, não podendo ser compreendia como uma palavra humana, preparatória ou explicativa do gesto sacramental, mas como Palavra do próprio Deus e do seu Filho Jesus Cristo na comunhão criada pelo Espírito na ação litúrgica.
A renovação conciliar da Liturgia, que ainda deverá percorrer um longo e árduo caminho, não é inovação. Ela devolverá progressivamente aos sacramentos o seu lugar originário, a Liturgia da assembleia dominical que celebra a Páscoa do Senhor. Assim, transparecerão como momentos culminantes do encontro dos homens com o Deus que vem ao seu encontro em Jesus Cristo, no corpo eclesial que o Espírito dá ao Senhor ressuscitado.
Isso, porém, não se tornará transparente em um mundo onde uma infinidade de seres humanos é vítima da violência e da injustiça, se as comunidades não vivem o que celebram: Deus revelado, proclamado e cultuado em um crucificado, vítima da violência do mundo por ter anunciado a escandalosa notícia que a invocação do verdadeiro Deus só pode nascer da procura do seu rosto nos pobres e nos excluídos pelos poderes do mundo. Excluídos até pelas religiões, quando são construídas à imagem dos poderes mundanos. Rosto de Deus revelado escandalosamente num homem declarado maldito em nome da religião (cf. Gal 3,10-13)! Por isso o sacramento, enquanto introdução do homem na ordem simbólica pela qual Deus, por pura graça, entra em relação com todos os humanos no Crucificado, só pode ser compreendido por quem, seguindo o caminho de Jesus, estiver disposto a perder a vida por amor aos irmãos.
E aqui surge um paradoxo da fé cristã. Os sacramentos, que criam a identidade cristã de quantos os celebram e recebem por eles a vida verdadeira como dom de Deus, obrigam o cristão a afirmar que o dom recebido não é privilégio que o separa dos outros, senão missão de anunciar para todos, como boa notícia, o amor divino, experimentado no crucificado como amor a todos os humanos, sem fronteiras de religião. Explicar isso, sem relativizar o Mistério divino revelado em Cristo, e sem negar a presença de Deus nos caminhos das religiões, implicaria desenvolver complexas reflexões de Cristologia e Soteriologia. Mas é pertinente dizer, numa simples introdução ao sacramento como símbolo, que a celebração dos sacramentos, para ser significativa para os cristãos no mundo da comunicação globalizada, deve também tornar transparente esse aspecto mediante o próprio ritual.
Juan Ruiz de Gopegui , SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.
2 Referências bibliográficas
BIRMELLÉ, André. La articulation entre Écriture et sacraments dans la lturgie lutherienne. In: BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.
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______. Les sacrements. Parole de Dieu au risque du corps. Paris: L’Atelier, 1997.
KUBICKI, Judith M. Les symboles sacramentels en un temps de violence et de rupture. Un peuple façonné par l’espérance et la vision eschatologique. In: BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.
TABORDA, Francisco, Mistério – Símbolo – Mistério. Ensaio de compreensão da lógica interna da teologia de Karl Rahner. In: OLIVEIRA, Pedro Rubens F. ; TABORDA, Francisco (orgs.). Karl Rahner 100 anos. Teologia, Filosofia e Experiência espiritual. São Paulo: Loyola, 2005.