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Concílios ecumênicos

Sumário

1 O que são?

2 História

3 Ecumenicidade, as igrejas e a participação dos leigos

4 A Doutrina atual

5 Referências bibliográficas

1 que são?

 A realização de grandes assembleias de bispos é uma prática que atravessa a milenar história da Igreja, animando-a constantemente. Os concílios nasceram espontaneamente, influenciados pelos modelos do sinédrio hebraico e do senado romano. Tudo indica que os encontros de bispos de uma mesma região, sancionando a designação de um novo bispo feita pela comunidade local através da consagração, estão no núcleo desta práxis que já germinava desde o século II.

A periodicidade dos concílios não é regular, e pode dar a impressão de algo aleatório. A razão de sua convocação é a resolução de problemas doutrinários, como o enfrentamento das heresias, a necessidade urgente de reformas, os desafios à autoridade da igreja ou a reflexão e deliberação sobre outros temas significativos em determinados períodos históricos. É nos concílios que a Igreja reflete sobre si, ao se voltar para as questões que afetam a sua vida. Em geral, eles marcam os seus momentos mais significativos de vida eclesial. Também deve-se levar em consideração seu longo tempo de preparação e, principalmente, o de sua aplicação e recepção (ALBERIGO, 1997, p.5). Em todo concílio, a Igreja estuda como resolver os seus problemas, estabelece princípios ou normas, e organiza a sua implementação.

Com base nesta história da práxis conciliar, o papa Paulo VI se dirigiu aos participantes do Concílio Vaticano II dizendo:

A vós, Veneráveis Irmãos, pertencerá indicar-nos as medidas para purificar e rejuvenescer a face da santa Igreja. Mas novamente vos manifestamos o nosso propósito de favorecer tal reforma: quantas vezes nos séculos passados este intento aparece associado à história dos Concílios! Pois seja-o uma vez mais, e desta não já para extirpar na Igreja determinadas heresias e desordens gerais que, graças a Deus, agora não existem, mas para infundir novo vigor espiritual ao Corpo Místico de Cristo, como organização visível, purificando-o dos defeitos de muitos dos seus membros e estimulando-o a novas virtudes (PAULO VI, 1964, n.22).

2 História

Nos registros históricos, sínodo e concílio frequentemente se referem ao mesmo tipo de encontro. A Igreja Católica tem uma lista dos 21 concílios considerados gerais ou ecumênicos. O concílio que com frequência é tido como modelo não faz parte dessa lista. É o “Concílio de Jerusalém”, que reuniu Pedro, Tiago, Paulo, Barnabé e outros no ano 49 ou 50. Menos de duas décadas após a ressurreição de Jesus, os cristãos se depararam com a questão: alguém deve ser judeu para que possa se tornar cristão? Alguns defendiam com veemência que sim, outros que não. Para resolver a controvérsia, “decidiram que Paulo, Barnabé e alguns outros fossem a Jerusalém, para tratar dessa questão com os apóstolos e os anciãos. Providos e encaminhados pela comunidade (…)” (At 15,2-3). Este procedimento constantemente se repete. Líderes de diversos lugares se dirigem a um mesmo local, como representantes de suas comunidades, para discutirem um problema que afeta a todos em busca de soluções.

Séculos mais tarde, a controvérsia ariana, disseminada no Oriente, provocou o primeiro sínodo ecumênico de Niceia (325), que foi reconhecido como primeiro concílio ecumênico. Esse e os demais concílios ecumênicos, até o oitavo, em 869, foram convocados pelo imperador e tiveram as suas sessões sob a proteção e a vigilância do Império Romano, que havia se tornado cristão. As suas decisões tornam-se leis imperiais. Durante o primeiro milênio, imperadores e uma imperatriz convocaram e algumas vezes presidiram alguns concílios. Na maioria das vezes o fizeram com o conhecimento e as bênçãos do papa. Geralmente, os bispos presidiam as sessões. O bispo de Roma não participou pessoalmente de nenhum dos primeiros concílios, mas os seus representantes gozavam de uma posição de privilégio e subscreviam em primeiro lugar as atas. Nos quatro primeiros concílios ecumênicos foi formulada a doutrina trinitária e cristológica. Eles consolidaram e fortaleceram a fé da Igreja nascente, em uma relação dialética com a cultura clássica. Foram comparados por São Gregório Magno (†604) aos quatro Evangelhos, mas não equiparados a eles em autoridade (JEDIN, 1970, p.242).

De um modo geral, os primeiros concílios foram convocados para estabelecer regras doutrinárias visando combater heresias. Depois do cisma do Oriente, no século XI, os concílios gerais se tornaram ocidentais e papais. Eram convocados pelo bispo de Roma, presididos pessoalmente por ele ou por seus representantes, e por ele confirmados. Estes concílios gerais se empenharam na regulamentação da societas christiana do Ocidente. Trento e Vaticano I optaram por defender o catolicismo romano das teses dos reformadores e das ameaças da cultura secularizada, gerando sobretudo uma teologia anti, isto é, de oposição. Os dois concílios do Vaticano têm ênfases bem distintas: o primeiro define a infalibilidade papal; o segundo se caracteriza por um destacado empenho pastoral, entendido como superação do longo período em que a Igreja se opôs à sociedade e multiplicou condenações. O Concílio Vaticano II se absteve não só de anátemas, mas também de definições. Ele prescindiu do binômio doutrina-disciplina e buscou uma atualização global da Igreja (aggiornamento), em resposta aos sinais dos tempos e às grandes transformações da sociedade contemporânea (ALBERIGO, 1997, p.7-8).

Alguns concílios retomaram temas ou problemas abordados pelo concílio anterior, procurando resolvê-los inteiramente. Os oito primeiros concílios, de Niceia I (325) até Constantinopla IV (869-870), foram convocados em uma sequência relativamente rápida, porque o credo e as afirmações fundamentais da fé enunciados por um concílio frequentemente levantavam novas questões, que não poderiam deixar de ser enfrentadas. Alguns concílios seguiram-se quase imediatamente, um após o outro, para abordar um mesmo problema persistente. Quatro concílios lateranenses foram convocados nos anos de 1123, 1139, 1179 e 1215 para reformar a Igreja (BELLITTO, 2010, p.15-6). Em outras ocasiões, um concílio concluía os trabalhos iniciados pelo anterior, que por dificuldades das circunstâncias não puderam prosseguir. Esta relativa continuidade existe entre os concílios Lateranense V e Trento, e entre Vaticano I e Vaticano II.

À primeira vista, o número de 21 concílios nos dá a impressão equivocada de que os concílios gerais costumavam se reunir uma vez a cada século, ao longo de dois mil anos de história do cristianismo. De fato, a frequência com que os concílios gerais se reuniram foi esporádica ou em bloco, com longos períodos de tempo em que nenhum deles se reuniu. Os concílios gerais podiam durar apenas uma semana, como o de Latrão II (1139), ou até três anos e meio ininterruptos, como o de Constança (1414-1418). Porém, uma duração maior não significa necessariamente uma maior importância ou mais realizações. O Concílio de Latrão IV durou apenas vinte dias, e foi o mais notável dos concílios medievais reformadores. O Concílio Vaticano II se reuniu ao todo por 281 dias, divididos em quatro temporadas de outono. No entanto, como em todos os concílios, boa parte dos trabalhos se deu nos bastidores, nas comissões preparatórias antes ou depois das sessões plenárias. O Concílio de Latrão V se reuniu por quase cinco anos completos (1512-1517), mas muito pouco realizou (BELLITTO, 2010, p.25-6).

3 Ecumenicidade, as igrejas e a participação dos leigos

 Tecnicamente, um concílio ecumênico é aquele que reúne representantes da Igreja do mundo inteiro. Baseados nessa definição, os sete primeiros concílios principais são considerados ecumênicos, conforme se autonomeou o Concílio de Calcedônia em 451. Aos sete primeiros concílios, de Niceia em 325 ao de Niceia II em 787, quase sempre compareceram bispos das partes oriental e ocidental do Império Romano, na época considerado o mundo inteiro, de onde vem o nome “ecumênico”. Mas apenas poucos bispos ocidentais participaram. O concílio de Niceia I, por exemplo, contou com a participação de 220 bispos, mas apenas alguns dentre eles eram do Ocidente. O Concílio de Constantinopla I (381) teve apenas bispos orientais. Esses foram majoritários nos Concílios de Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553) e Constantinopla III (680-681).

As igrejas ortodoxas consideram apenas os primeiros sete concílios como ecumênicos, ao contrário dos 21 reconhecidos pela Igreja Católica como gerais ou ecumênicos. O Concílio de Latrão I (1123), o primeiro após o cisma do Oriente, se autonomeou geral, pois nenhum bispo oriental dele participou. Já o Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445) se autonomeou ecumênico, pois nessa ocasião os bispos ocidentais e orientais trataram da reunificação da Igreja (BELLITTO, 2010, p.22-3).

Os leigos participaram nos atos oficiais de numerosos concílios ecumênicos. O imperador Constantino abriu o Concílio de Niceia com um discurso em latim. Os comissários imperiais vigiaram sobre a ordem externa. Na Idade Média e no Concílio de Trento, estiveram presentes príncipes seculares ou foram representados pelos seus embaixadores. A função do imperador romano nos antigos concílios foi externa, de tutela da ordem. Na Idade Média e no Concílio Tridentino, os leigos são os representantes das potências seculares, cuja colaboração aparece necessária para os trabalhos que se referem à ordem pública e às matérias mistas. No Vaticano I, não foram feitos convites aos governos.

Algumas questões vêm à tona: os leigos, com base no sacerdócio universal e na sua colaboração no apostolado, poderiam ou deveriam ser ao menos ouvidos sobre temas que lhes dizem respeito, como apostolado dos leigos ou matrimônio? Os leigos, uma vez convidados, deveriam ser admitidos como peritos ou como membros com direito a voto? Não há fundamento para que os leigos não possam ser ouvidos nos temas que lhes dizem respeito, como são ouvidos sacerdotes especialistas em teologia ou direito canônico, mesmo não sendo membros do concílio com direito a voto. Um passo para a solução foi dado por Paulo VI, ao admitir leigos qualificados como auditores nas Congregações Gerais a partir da II Sessão do Concílio Vaticano II.

Os concílios sempre zelaram pela unidade da Igreja, mas nem sempre a puderam realizar. Após o primeiro e quarto concílios ecumênicos, seguiram longas disputas. Tanto o cisma do Oriente quanto a divisão da Igreja no século XVI ocorreram sem que os concílios pudessem impedir. No Concílio de Lião II e no de Ferrara-Florença, a união com os orientais foi oficialmente restaurada, mas não se efetivou porque em ambos os casos se baseava em motivos políticos, sem que fossem vencidas as resistências internas na Igreja grega. O Concílio de Trento não pôde ser um concílio de união, pois quando se reuniu a ruptura eclesial já era uma realidade. As negociações com os protestantes alemães (1551-1552) mostraram que as concepções sobre autoridade e estrutura dos concílios ecumênicos eram muito divergentes. Na véspera do Concílio Vaticano I, o apelo de Pio IX aos protestantes para retornarem à Igreja Católica foi rejeitado. Ao se preparar o Concílio Vaticano II, foi fundado um secretariado para a união dos cristãos, com resultados positivos no próprio Concílio e nos passos para reaproximação das igrejas (JEDIN, 1970, p.249-50).

4 A Doutrina atual

As principais tradições do cristianismo têm concepções diferentes sobre a autoridade conciliar, a organização interna do concílio e o efeito de suas decisões. Como foi dito, os cristãos ortodoxos só reconhecem os primeiros sete concílios e têm dificuldade em admitir um novo sínodo pan-ortodoxo. A tradição reformada ocidental tem posições oscilantes, tanto sobre os concílios passados, quanto sobre um futuro concílio ecumênico. A tradição católico-romana acentuou a referência ao papa, sobretudo a partir da alta Idade Média, a quem cabe a direção do concílio, incluindo convocação, determinação do regulamento, funcionamento diário, transferência e encerramento. O caminhar da história parece mostrar uma progressiva redução da ecumenicidade dos concílios: de universais a ocidentais, do primeiro para o segundo milênio; de ocidentais a romanos, da primeira para a segunda metade do segundo milênio (ALBERIGO, 1997, p.9). A reaproximação e o diálogo ecumênico a partir do Vaticano II podem resultar, futuramente, em uma reversão desta tendência.

Na Igreja Católica, o papel dos concílios ecumênicos está relacionado ao colégio dos bispos e sua cabeça, isto é, ao grupo estável e permanente formado pelos bispos e seu chefe, o bispo de Roma. Segundo o Concílio Vaticano II:

A natureza colegial da ordem episcopal, claramente comprovada pelos Concílios ecumênicos celebrados no decurso dos séculos, manifesta-se já na disciplina primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e da paz; e também na reunião de Concílios, nos quais se decidiram em comum coisas importantes, depois de ponderada a decisão pelo parecer de muitos; o mesmo é claramente demonstrado pelos Concílios Ecumênicos, celebrados no decurso dos séculos. […] O supremo poder sobre a Igreja universal, que este colégio tem, exerce-se solenemente no Concílio Ecumênico. Nunca se dá um Concílio Ecumênico sem que seja como tal confirmado ou pelo menos aceito pelo sucessor de Pedro; e é prerrogativa do Romano Pontífice convocar estes Concílios, presidi-los e confirmá-los (LG n.22).

Os concílios ecumênicos guardam e desenvolvem o depositum fidei. Este “precioso depósito” da doutrina da fé que foi confiado (1 Tm 6,20; 2 Tm 1,14), não é um simples catálogo de artigos ou um inventário de coisas justapostas. Mas, dada a natureza da mensagem da revelação e do acontecimento salvífico de Cristo, trata-se da totalidade das riquezas e dos bens da salvação entregues à Igreja. Ela os comunica aos crentes, atualizando seus conteúdos com notável prudência, a fim de tornar inteligível, crível e fecundo o patrimônio imutável desta verdade, ao mesmo tempo em que vai ao encontro das exigências e das interrogações dos homens e dos tempos (POZZO, acesso em 21 dez 2014). Os concílios ecumênicos também adaptam o exercício do oficio sacerdotal e pastoral, bem como a legislação da Igreja, às diversas exigências dos tempos. Quanto maior for esta adaptação tanto mais será a sua eficácia e importância na história.

Com relação à sua interpretação, a perda dos protocolos dos trabalhos conciliares, no caso de Niceia, a precariedade dos mesmos nos concílios medievais, e mesmo a sua longa indisponibilidade, no caso do Concílio de Trento, fortaleceram uma hermenêutica que prescindiu do contexto histórico das decisões e também da natureza do evento conciliar que as expressou. Houve um encastelamento em uma interpretação jurídico-formal, por longo tempo patrocinada pela congregação romana responsável pelos concílios (ALBERIGO, 1997, p.10). A assistência do Espírito Santo, sobre a qual se apoia a inerrância do concílio ecumênico em questão de fé e de costumes, não deve ser confundida com a inspiração da Sagrada Escritura. Entre os teólogo se discute se essa assistência deve ser entendida só de modo negativo, como preservação do erro, ou como positiva cooperação. Esta última posição corresponde melhor ao pensamento dos antigos concílios (JEDIN, 1970, p.248-50).

Luís Corrêa Lima,SJ. PUC Rio. Texto original português.

 5 Referências bibliográficas

 ALBERIGO, G. (org.). História dos concílios ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1997.

BELLITTO, C. M. História dos 21 Concílios da Igreja: de Niceia ao Vaticano II. São Paulo: Loyola, 2010.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática lumen gentium sobre a igreja (LG). Roma, 1964. Disponível em: www.vatican.va. Acesso em: 21 dez 2014.

JUDIN, H. Concílio. In: FRIES, H. (org.). Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. v. I. São Paulo: Loyola, 1970. p.242-51.

PAULO VI. Carta encíclica ecclesiam suam. Roma, 1964. Disponível em: www.vatican.va. Acesso em: 20 dez 2014.

POZZO, G. Depositum fidei. Disponível em: www.mercaba.org/VocTEO/D/depositum_fidei.htm. Acesso em: 21 dez 2014.

A história dos vencidos: indígenas e afrodescendentes

Sumário

1 Uma História “vista de baixo”

2 Por uma historiografia advocatória dos “excluídos da história”

3 “História” indígena: memória e etno-história

4 Os afrodescendentes e seus territórios

5 Referências bibliográficas

1 Uma História “vista de baixo”

Em outubro de 2014, o Papa Francisco fez um discurso histórico para os participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares. Ali, assim se expressou sobre o “protagonismo histórico dos pobres” ou dos “excluídos da história”: “(…) Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! (…) Vocês sentem que os pobres já não esperam e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer”.

De fato, a historiografia tem se debruçado sobre estes “protagonistas anônimos da história” (VAINFAS, 2002) há bem pouco tempo. Em 1988, a historiadora francesa Michelle Perrot reuniu uma série de artigos escritos, entre as décadas de 1970 e 1980, e produziu uma obra sob o título de Os excluídos da história. Mulheres, prisioneiros e operários eram considerados como objetos fundamentais para a análise. Da mesma forma, em 1985, foi publicado History from bellow: studies in popular protest and popular ideology (KRANTZ, 1988) que homenageava George Rudé, um dos pioneiros historiadores na investigação exaustiva das formas de protesto de trabalhadores rurais e urbanos. Os autores procuravam afirmar a importância de indivíduos que permaneceram por décadas esquecidos e levantar as questões possíveis, apresentando resultados de pesquisas e mostrando as profícuas interlocuções teórico-metodológicas de seu tempo. O cotidiano de pessoas comuns, os sistemas de valores e costumes identitários, as solidariedades e conflitos existentes, assim como as suas diferenças, eram cada vez mais investigados. Reivindicava-se um espaço que estava inexplorado na produção acadêmica. Segundo Jim Sharpe, esta perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores ansiosos por ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres cuja experiência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na “correnteza” da história. (SHARPE, 1992, p.41)

Entre os historiadores da Igreja, especialmente na América Latina e Caribe, este “objeto” de pesquisa – os “excluídos da história” – também ganhou força nos anos de 1970 com o projeto de se escrever uma História da Igreja na América Latina “a partir do povo”, empreendimento este dirigido por Enrique Dussel e a equipe da CEHILA (Comissão de Estudos em História da Igreja na América Latina). O critério fundamental, o lugar hermenêutico por excelência da história da Igreja, adotado por esta equipe, era o “pobre”. Todo o juízo interpretativo dos fatos que manifestam a realidade sobre a Igreja se efetuaria desde a sua relação com sua missão essencial: evangelizar os pobres.

2 Por uma historiografia advocatória dos “excluídos da história”

Durante anos membro da equipe de CEHILA-Brasil, o missiólogo Paulo Suess (1994), num célebre artigo, apresentou algumas exigências para uma “História dos Outros escrita por nós” e para uma “História dos Outros contada por eles”, tendo a categoria “alteridade” como ponto central.

Quem é o outro? O outro aqui são de fato os chamados “excluídos” não só da história, mas muitas vezes do próprio sistema social. A categoria da alteridade (o outro), isoladamente, não é o suficiente para caracterizar a questão. Para os povos indígenas, o colonizador também era um outro. Neste contexto, segundo Suess, não interessa o outro em si, independentemente de sua condição social, mas o outro enquanto “excluído da história”. Interessa a questão social no interior da questão cultural. A categoria da alteridade acrescenta ao “excluído” genérico algo essencial, sua condição cultural que lhe confere identidade e o situa no espaço geográfico e no tempo histórico. Na história da humanidade, a alteridade é anterior à exclusão social, embora na história do indivíduo e de grupos sociais ambos possam coincidir.

Para Paulo Suess, ao assumir o passado de um povo ou grupo social a partir de sua perspectiva própria, a historiografia pode ser “boa notícia”, e assim colaborar na viabilidade do projeto de vida do respectivo grupo. Mas ela pode também se tornar “má notícia” ao reduzir o passado desse povo a uma pré-história, uma etnografia ou arqueologia. O prejuízo deste procedimento está no encolhimento da perspectiva utópica ou no bloqueio total do inédito-viável do respectivo grupo. O passado “nanico” se projeta sobre o futuro. O passado estrangulado enforca o futuro.

Alteridade e exclusão dos colonizados não garantem necessariamente o acesso correto à própria história. A história de um povo ou grupo social, de uma certa forma, é sempre contada por outros, não somente na sequência das gerações, diacronicamente, mas também sincronicamente. A história do genocídio dos Nambikwara e Yanomani é contada pelos sobreviventes, por outros, vizinhos, testemunhas que se fazem “voz dos sem voz”.

Mas também o outro, ao contar a história de seu próprio povo, não escapa da ambiguidade representativa, advocatória e interesseira do porta-voz. O outro pode ser dominador interno de sua “tribo” ou instrumento de dominação de forças externas. O outro pode ser representante apenas de si mesmo, e não de seu povo. A alteridade em si não legitima o discurso historiográfico, como tampouco o legitima a solidariedade em si. Também frente ao outro/excluído é preciso perguntar em nome de quem fala e quais são os interesses que representa. O referencial da alteridade étnico-cultural (negro, índio, mestiço) não garante a “história verdadeira”. Tampouco o fato de que alguém escreve sobre sua própria classe social ou a participação no próprio evento relatado garantem a “verdadeira história”. Um guarani não escreve a história do povo guarani necessariamente melhor que um não guarani. Daí surge a questão: o que um guarani excluído precisa para ser um historiador confiável da história de seu povo, se nem sua etnicidade, nem sua pobreza, nem seu testemunho ocular fornecem uma garantia suficiente para tal empreendimento? Ele precisa, além das ferramentas heurísticas do historiador, responder com lealdade, perspicácia e astúcia à confiança e delegação de seu povo. Lealdade significa devolução daquela história ao povo que fortalece seu projeto histórico. A “verdadeira” história, na perspectiva de uma hermenêutica a partir do outro/excluído, é sempre aquela que, a partir do passado, fortalece o projeto histórico do respectivo povo e grupo social. O “projeto de vida” fornece a chave de leitura e articulação das fontes históricas. Nestas condições, o guarani excluído tem múltiplas vantagens sobre o “intelectual orgânico”, comprometido com o lugar e a perspectiva do outro/excluído, sem participar realmente de suas condições de etnia. A partilha da vida concreta ultrapassa a inteligência solidária.

A prática do historiador não é uma prática neutra, como todos sabem, ou meramente técnica. O historiador é um inventor e um agente de mudança. Como um escultor, o historiador tem a possibilidade de esculpir estátuas muito diferentes da “pedra bruta” que surge das fontes históricas. A historiografia advocatória, ao escovar a história “oficial” a contrapelo, é intencionalmente uma história antissistêmica. Como um advogado que defende um “marginal” com os instrumentais do sistema central/dominante, também uma historiografia advocatória pode defender os “excluídos” da história oficial no interior das estruturas e com o instrumental do sistema historiográfico dominante.

Para que a historiografia solidária possa permanecer fiel a seu propósito, sem dupla lealdade, ela há de aferir – e não apenas pressupor – permanentemente a simetria de sua prática e perspectiva profissional com o projeto de vida dos outros e excluídos.

3 “História” indígena: memória e etno-história

A historiografia solidária precisa encontrar-se com a etno-história; o futuro historiográfico destes “temas emergentes” está na capacidade de levantar, acompanhar e articular a multiplicidade de fatos contraditórios e projetos de vida de nosso continente pluriétnico. Uma historiografia latino-americana e caribenha advocatória não pode imitar os padrões evolucionistas – do inferior ao superior, do atraso ao progresso, do nomadismo às altas culturas –, nem reproduzir dicotomias calcificadas (pré-história X história; mito X racionalidade; tempo circular X tempo linear) da ilustração europeia.

Deste modo, quem for trabalhar com a etno-história precisa estar atento a algumas condições fundamentais. Conforme Patrick Menget (1999), no Brasil, por exemplo, nas três últimas décadas, a maioria das reivindicações indígenas esteve voltada a princípio para a salvaguarda ou a recuperação de territórios de ocupação antiga ou recente. Para estabelecer o fundamento dessas reivindicações, o Estado ordena o levantamento necessário sobre a duração da posse das terras pelos índios, mas os peritos defrontam-se com uma dificuldade inesperada, na medida em que seus interlocutores não dispõem de referências cronológicas imediatamente transponíveis à nossa história. Para os índios, a entrada em nossa história representa, para além dos choques tantas vezes descritos, a violência de um despojamento de seu passado diante das versões canônicas da história dos conquistadores. Não existe nenhuma possibilidade documentária de se escrever uma “história oficial” dos indígenas em função, em primeiro lugar, da ausência de testemunhos antigos, e ainda mais porque as sociedades da floresta não fundam sua razão de ser numa acumulação orientada de acontecimentos que parte de um ponto de origem e chega até o presente, não estratificam seu passado de acordo com a ordem das sucessões genealógicas e, em termos gerais, não ordenam seus relatos das coisas passadas segundo uma cronologia, nem mesmo relativa. Nessas sociedades, a relação com o passado é tradicionalmente muito distante do que chamamos de “consciência histórica”, embora o desenvolvimento e a intensificação das relações com a sociedade brasileira tenham suscitado uma tomada de consciência crescente em relação à história que os rodeia e à categorização “étnica” que os particulariza. O que Terence Turner sustenta a propósito dos Kayapó, recentes protagonistas de conflitos pela terra, vale, em diversos graus, para o conjunto dos demais povos da floresta: “Se, originalmente, viam sua sociedade como uma criação do tempo mitológico, os Kayapó estão aprendendo a se pensar como agentes de sua própria história. Essa nova visão não substitui a antiga, mas coexiste com ela (…)” (CUNHA & CASTRO, 1993, p.59).

De qualquer modo, segundo Menget, as características fundamentais das sociedades indígenas, por oposição à maioria dos discursos vinculados às lutas atuais pelo reconhecimento do direito à existência no Estado-nação moderno, apontam para uma historicidade distinta.

Se é verdade que o exercício da reconstrução da história indígena de acordo com os cânones da história documentária e monumental é uma necessidade política atual, e muitas vezes a única resposta honesta do pesquisador a uma demanda das comunidades indígenas, no essencial ela continua sendo, entretanto, uma reorganização de um máximo de elementos da memória de uma sociedade de acordo com referências externas e com uma lógica que lhe é estranha, em que o marco cronológico define, na e pela duração, o núcleo central da identidade. Chamar de “história indígena” tais produtos é perfeitamente legítimo e pode até refletir fielmente a posição de certos líderes e das comunidades excluídas, mas serve apenas para encobrir a miséria caso se trate de compreender o modo próprio de organização do saber do passado nas culturas indígenas.

Poderia ser tentador, à custa no entanto de uma violenta simplificação, reduzir a memória “cosmológica” ou cosmogônica que o ritual atualiza e que os mitos não se cansam de repetir aos assuntos internos do grupo, e a, ou as memórias “históricas”, ou em via de historicização, às relações com a sociedade moderna que o rodeiam: seria congelar a mitologia num corpus inalterável, uma “bíblia” indígena piamente escrita pelo etno-historiador. Da mesma maneira como não existem, na realidade, dois setores sem comunicação na economia mundial, também a economia narrativa não pode separar as histórias dos primeiros tempos do relato dos acontecimentos recentemente vividos.

Os mitos estão longe de serem imutáveis, mas se transformam à medida que os indígenas estendem o círculo de suas relações e que aumentam a intensidade e a violência do contato com os brancos, redefinindo o lugar e o papel desses.

Desta forma, conclui Menget, é incontestavelmente necessário, para o exercício dos direitos legítimos dos indígenas, que os etno-historiadores forneçam a eles as armas para resistirem. Mas hoje pede-se também aos indígenas que se afirmem reescrevendo seu passado, como se sua sobrevivência, após o que para eles foram séculos de ferro e fogo, não fosse a prova notável de sua resiliência, de sua resistência e de sua vontade de viver.

4 Os afrodescendentes e seus territórios

Para José Oscar Beozzo (1987), a presença de populações negras na América Latina e Caribe não configura apenas um fato histórico a ser alinhado ao lado de outros, como a presença indígena e a presença europeia. A transferência forçada de milhões de africanos para a América, sob o regime do trabalho escravo, impôs à formação social latino-americana em diversas áreas um novo caráter, não apenas colonial, mas também escravista. Os índios também conheceram o trabalho forçado e a escravidão, mas não da maneira como sociedades inteiras no Caribe, no sul dos Estados Unidos e no Brasil estiveram organizadas a partir da escravidão africana e em vista de sua manutenção e de sua reprodução como sociedades escravistas.

Do ponto de vista de uma História do Cristianismo, não é a mesma coisa estudar o anúncio evangélico a populações indígenas, em que missionários lutavam por sua liberdade, e a forçada integração do negro escravo em sociedades que se diziam cristãs, onde as autoridades eclesiásticas, e as próprias ordens religiosas, possuíam e exploravam escravos africanos. Para uma História do Cristianismo na América Latina e Caribe é, pois, crucial abrir o debate teórico, metodológico, mas também prático e pastoral acerca do passado e do presente das populações de origem africana e de sua experiência religiosa no interior das comunidades cristãs, na resistência e renascimento de seus cultos, no lento tecer das influências mútuas entre cristianismo e religiões africanas.

A incorporação do horizonte indígena e, em menor escala, do horizonte negro na investigação da História da Igreja, a aceitação de que aqui se forjou uma religião fortemente mestiça, simbolizada na Virgem indígena de Guadalupe, na Virgem morena de Lujan, na Argentina, ou na Virgem negra de Aparecida, no Brasil, não resolve questões cruciais como o papel da Igreja na integração da mão de obra indígena e africana no processo produtivo, ou a coexistência, no processo evangelizador, da luta pela liberdade do índio e da aceitação da escravização do africano, ou ainda a relação entre a dominação cultural branca e cristã e a sobrevivência dos cultos indígenas e afro-americanos.

Deste modo, a par do renascimento dos movimentos negros na sociedade, do ímpeto das religiões afro-brasileiras, do multiplicar-se dos estudos históricos e sociais sobre a escravidão e sobre o negro na sociedade, também no seio da Igreja Católica renasceu a preocupação pastoral com este segmento numeroso, no conjunto, e majoritário nos setores populares da população. Ela brota tanto das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em cujo interior passou-se a debater a situação religiosa e social do negro, quanto dos grupos de APNs (Agentes de Pastorais Negros) organizados em paróquias e dioceses. Em nível regional e nacional, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tem convocado encontros e reuniões que vão revelando o necessário, mas difícil caminho da reconversão da Igreja do Brasil. Reconversão em direção a estas maiorias silenciosas e historicamente oprimidas numa Igreja racial e culturalmente europeia nos seus quadros dirigentes e em sua mentalidade. Apesar disso, nos últimos anos tem crescido muito o número de bispos afrodescendentes e que anualmente, durante a Assembleia Geral da CNBB, presidem e concelebram uma missa em memória do povo negro.

Além disso, não podemos esquecer que também os afrodescendentes, como os indígenas, vêm se esforçando para a salvaguarda de seus territórios tradicionais: os quilombos. Nos estudos das comunidades quilombolas por toda a América, em seus três continentes, evidenciou-se que, tão logo puseram os pés no Novo Mundo, os africanos que conseguiram, fugiram para o interior, para os “sertões”, onde passaram a conviver com as sociedades indígenas que habitavam as áreas em que se fixaram. Como discutido por Richard Price (1996), os que se recusaram à escravidão e à perda de sua condição de ser humano, ao passarem a ser tratados como propriedade de alguém, buscaram e encontraram lugares que estivessem em áreas que não fossem disputadas nem pelos indígenas e nem pelos colonizadores. Assim, buscaram construir barreiras estruturais que impedissem o contato da sociedade escravista com os agrupamentos que se formaram, mas que não obstaculizavam os contatos seus com as populações urbanas ou rurais. As barreiras estruturais eram naturais, tais como lugares alagados ou com infestação de malária, serras íngremes, interiores de florestas fechadas, vãos e furnas, entre outros ambientes similares. E as barreiras sociais eram lugares com nenhum valor econômico e, por isso, abandonadas, por algum motivo, e que se tornaram, dessa maneira, “terra de ninguém”. Cabe salientar que esse processo inicial de “isolamento” foi transformado em processo de “invisibilização” durante o sistema escravista e os quilombos passaram ser fixados nas proximidades de fazendas, vilas e cidades, conforme apresentado por Almeida (2002). Mas a barreira estrutural permaneceu como uma estratégia recorrentemente atualizada.

Com o fim do sistema escravista, muitos quilombos (mocambos ou calhambos) receberam número considerável de libertos, propiciando a constituição de outros pequenos agrupamentos na área de seu entorno pela existência de terra pública não ocupada (devoluta). Dessa forma, os afrodescendentes constituíram as comunidades que atualmente reivindicam o direito constitucional de serem remanescentes de quilombos e terem seus territórios regularizados fundiariamente.

Toda essa população afrodescendente, que se invisibilizou e ficou invisível, permaneceu e permanece lutando para manter sua liberdade e dignidade humana, mesmo após cem anos do fim da escravidão.

Sérgio Ricardo Coutinho. IESB. Texto original português.

 5 Referências bibliográficas

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VAINFAS, R. Os Protagonistas Anônimos da História: Micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

 Para saber mais

 LEÓN-PORTILLA, Miguel. Visión de los vencidos, México: Ed. Universidad Nacional Autónoma de México, 2008.

RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Oprimidos pero no vencidos: Luchas del campesinado aymara y qhechwa de Bolivia, 1900-1980. Genebra: UNRISD, 1986.

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Revelação

Sumário

1 O Significado de Revelação e de Revelação divina

1.1 A partir da história das culturas, das filosofias e das religiões

1.2 O caminho salvífico da Revelação de Deus

2 A Teologia e a Revelação

2.1 A interpretação teológica da Revelação

2.2 O ensinamento do Concílios Ecumênicos Vaticano I e II

3 A atualidade da Revelação como núcleo da existência cristã

3.1 A tradição cristã hoje, da Revelação ao dogma

3.2 A missão comunicadora da Igreja

4 Referências Bibliográficas

1 Significado de Revelação e de Revelação divina

 “Revelação” é a denominação que se dá ao ato de desvendar, de tornar claro e compreensível alguma coisa, por meio de uma comunicação. A palavra provém do termo latino revelatio que, etimologicamente, se refere à ação de “retirar o véu” de algo ou de alguém e, assim, desvendar o que anteriormente estava escondido.

A revelação de uma pessoa a outra coincide com o ato de se dar a conhecer. De modo geral, Revelação divina é a experiência de aquisição de um conhecimento transmitido ao homem por Deus. Essa transmissão ao homem se dá numa comunicação em que Deus não comunica coisas, mas é a si próprio que ele comunica, daí a Teologia valer-se da bela expressão: “autocomunicação” de Deus, com a qual perseguimos o misterioso conteúdo da Revelação, que é o próprio Deus.

Nesse sentido, o cristianismo entende que Deus, revelando-se através da Palavra e dos acontecimentos da história, dá-se a conhecer, manifesta-se. Por outro lado, a questão filosófica do significado de revelação passa pela experiência radical de como o homem pode perceber o infinito em sua finitude.

Para compreender o mistério da Revelação divina é preciso perceber que, além de historicamente humana, a autocomunicação de Deus se volta para a intercomunicação entre os homens, porque somente nela e através dela o homem pode exercer a sua liberdade de acatar, ou não, essa comunicação que lhe é feita sob a forma de uma oferta (RAHNER, 1989, p.233).

Os séculos vividos pelo cristianismo nos dão conta que a experiência de fé não somente é histórica, como exige do crente a percepção de sua condição de “criatura”, o que somente tem sentido se a considerarmos na relação originária com Deus como Pai e, portanto, Criador. Com isso, ressalva-se que na teologia cristã, entre os termos criatura e Criador, coloca-se um outro: o termo “relação”, relação essa que se dá num encontro entre pessoas, encontro esse que chamamos espiritual (RAHNER, 1989, p.96).

O encontro não é espiritual quando se fala de Deus, mas quando se tenta ouvir Deus que fala na narração, que conta o modo como ele age e o modo como alguém age, em relação a Ele. Deus não entra, pois, na relação de encontro espiritual objetivado como um tema sobre o qual duas pessoas falam, trocando ideias. O encontro é espiritual quando Deus acontece, como aquele em que duas pessoas se encontram e escutam precisamente através das palavras que uma diz à outra (MORO, 2006, p. 23-40).

Se estamos afirmando que a Revelação cristã se dá na história e num encontro humano, os cristãos devem admitir que esse encontro é permitido a todo e a qualquer homem, seja qual for o caldo de cultura em que ele esteja mergulhado e, além disso, seja lá qual for o fundamento de sua própria fé.

1.1 A partir da história das culturas, das filosofias e das religiões

A Ciência da Religião não comprova a existência de uma revelação primitiva, o que não permite encaixar todas as noções de revelação como meras filosofias, inclusive porque a fenomenologia das religiões confirma a revelação como parte da autocompreensão de todas as religiões que se tomam por criações divinas, e não se aceitam como meras construções humanas. Nesse sentido, a Metafísica, que já é uma Filosofia da Religião deve reconhecer Deus como aquele que é livre e desconhecido e “deve compreender a pessoa humana como o ser que vive na história e nela ouve uma eventual revelação deste desconhecido livre” (RAHNER, 1941, p.8).

No islamismo, o conteúdo da Revelação é o inescrutável desígnio de Deus, que governa todas as realidades do mundo, e que se desvela como mandamentos. Não há, entretanto, a promessa de uma participação na vida divina, o que dá aos cristãos as bases de uma história da salvação.

Se observarmos o mundo Oriental asiático, representado pelos adeptos dos sistemas filosóficos e religiosos da Índia, veremos que o Todo não é outra coisa que o Eu plenamente realizado. Ao falar do Absoluto, que alguns chamam Deus, outros o Si, ou o Todo, ou o Ser, Ramakrishna dizia: “Não há nenhuma diferença se chamais Tu ou se pensais Eu ou Ele”. Já no Ocidente, representado pela Teologia católica e protestante europeia, concebemos Deus como o Tu do homem (ROUGEMONT, 1957, p.17).

Curioso observar que na religião africana o mundo visível e o invisível (dos antepassados mortos) se apresentam numa unidade em que o elemento central é a vida em toda sua amplitude, daí decorrendo que a ética valoriza o que traz mais vida, como a fertilidade, a solidariedade clânica, o respeito à natureza, com destaque importante ao papel desempenhado pelos ritos, por meio dos quais se dá e se recebe a vida (MIRANDA, 1998, p.89).

Na medida em que o conhecimento racional se torna predominante, a Revelação vai se tornando menos enfatizada nas demais religiões. Não obstante, desde os mais arcaicos estágios de consciência religiosa, há no homem um desejo de experimentar o fundamento primordial do mundo. Este desejo surge em ondas que partem do primeiro princípio e se apresentam como algo compreensível, e mais raramente como um ser pessoal. Esse princípio é também a meta de toda a indução, de onde se extraem os fatos conhecidos, e é o que dá sentido a tudo.

Destas concepções de Deus resultam opções radicalmente diferentes, e aqui “entra em questão o jogo do mito: nós e o outro” (LIBÂNIO, 2014, p.25). Também aqui desponta a grande questão filosófica do nosso tempo, ou seja, a crise da identidade ou do tempo em que reina o que Bruno Forte chama de “a provação da diferença, a inquietude da alteridade, em que o que nos inquieta é o outro, que nos faz indagar: onde e como o outro se apresenta”. E nesta questão do outro está embutido o tema da Revelação, como “o tema do outro e da responsabilidade para com os outros, expressa na conjugação suprema entre ‘resistência e revelação’” (FORTE, 2010, p.11).

É importante observar que muitas insatisfações e sofrimentos levam o ser humano às religiões. Embora as experiências salvíficas, ou significativas, experimentadas nas diversas religiões sejam distintas, as religiões podem oferecer sentido ao que muitas vezes se apresenta ao homem como ‘sem-sentido’. Ao relatar as suas experiências, “o homem ‘sente’ esta sintonia com o outro, tornando possível ‘pôr-se de algum modo no lugar do outro’¨ (MIRANDA, 1998, p.88-90).

1.2 O caminho salvífico da Revelação de Deus

Os cristãos sempre tentaram dizer por meio de fórmulas breves, até numa única palavra, o essencial daquilo que os anima. Nesse sentido encontramos as palavras caminho, mistério, doutrina, tradição, sendo que o termo Evangelho, palavra preferida de Jesus de Nazaré e dos primeiros cristãos, é o mais marcante, posto que anuncia a boa nova. Desde o século II, o termo Evangelho designa os quatro relatos canônicos que retraçam o itinerário daquele que o anunciou em primeiro lugar (THEOBALD, 2002, p.15).

Já a ideia de revelação é usada para exprimir a relação entre Deus e o homem, considerando que Deus não revela nada do que podemos ou poderemos um dia saber por nós mesmos: há uma única coisa a dizer-nos, um único mistério a revelar-nos: é Ele mesmo e Ele mesmo como destino da humanidade. Nesse sentido, o termo revelação se tornou palavra-chave para dizer o essencial da tradição cristã, ao vincular revelação e fé, o que se dá na escuta de Deus.

Essa escuta implica na postura cristã de ouvinte da Revelação e nos remete às Escrituras, ao Antigo e ao Novo Testamentos, na medida em que eles nos apontam o Deus que revela sua bondade e misericórdia e, nesse sentido, as Escrituras podem ser vistas como Revelação divina. É a Revelação de Deus, em autocomunicação, através de palavras (Dei Verbum, n.2, 8, 9, 25).

O AT afirma que o homem somente pode conhecer Deus quando Ele se deixa ser conhecido, ou seja, quando Ele decide revelar-se (Dt 4, 32-34). Ressalte-se que no AT revelação não é um substantivo, mas um verbo, representado por “divulgar”, “anunciar” e “apresentar”, não se restringindo à Revelação divina, mas indicando também a ação de divulgar e conhecer nas relações humanas.

Assim, na tradição bíblica, o véu posto sobre o rosto (Ex 34, 32-35) e sobre os povos (Is 25, 7) indica que a experiência de revelação se situa primeiramente no interior da relação humana e na história, de tal modo que a própria história se torna o local da decisão humana, em que o homem deve responder, aceitar a proposta do caminho oferecido por Deus, agradecer a ajuda de Deus e servir, na história da salvação, como já afirmado acima.

A história humana somente passa a ser entendida como história da salvação quando a experiência da palavra de Deus entra em cena como palavra em ação, como Palavra que dá vida, numa história que é interpretada da parte de Deus pelos profetas e pela lei (Gn 1; Salmos 147,15-18; Dt 8,3, Salmos 106, 9; 107, 20; Is 50, 2; Jr 18,18; Dt 1,1-18). De acordo com o AT, Deus se revela na história como uma promessa para os homens de todas as nações, revelando a meta do homem e a de sua história, ao mostrá-lo a si mesmo como peça ativa na história.

No NT, o conceito de revelação difere em Paulo e em João. São Paulo descreve “revelação” com os verbos “revelar” e “manifestar”, que também se usam no AT. Além disso, ele usa o substantivo “mistério”, que vem da literatura sapiencial e apocalíptica do judaísmo. Já a teologia de São João, embora permeada pela noção de revelação, não utiliza o substantivo “revelação” e o verbo “revelar” apenas aparece uma vez, quando ele cita o AT (Jo 12, 38), o que, somado à ausência do termo “mistério” e o uso de “manifestar”, indica uma opção pelo vocabulário helenista. O ponto de partida é ainda judaico – a invisibilidade total de Deus –, mas o propósito é enfatizar que Deus é apenas visível e alcançável na encarnação, nas palavras e na vida de Jesus, tornando clara a distinção entre a revelação no Novo e no Antigo Testamentos.

Observe-se que o cumprimento de todas as promessas da Revelação em Cristo não faz de Jesus o meio de um ciclo de compreensão linear do tempo na história da Revelação, nem absorve escatologicamente a história da humanidade na historicidade de uma decisão definitiva de fé. Tais noções correspondem mais a uma pré-compreensão filosófica, não fazendo justiça à compreensão bíblica da história da Revelação.

A doutrina do NT é que Jesus, a Revelação de Deus à luz das promessas do AT, é antecipação de todas as promessas na história da salvação. Nos eventos dessa história, o ato salvífico definitivo da ressurreição de Jesus, em antecipação à realização da futura ressurreição dos fiéis, não diminui o valor do tempo presente. Na verdade, propicia uma abertura ao futuro que jorra a partir do cumprimento de um passado de promessas.

A ressurreição de Jesus é a autorrevelação do desejo do Deus vivo de que o homem deve ter vida. Deus se revela na história que se desenvolve entre a palavra da promessa e que une passado e presente na abertura ao futuro definitivo, numa salutar participação do homem na vida de Deus. É nesse sentido que Lucas periodiza o tempo como uma “história da salvação”, com:

1) o tempo da promessa (o Antigo Testamento);

2) o tempo do cumprimento da promessa (a atuação de Jesus); e

3) o tempo da vida dos cristãos no mundo, reunidos na Igreja e animados pelo Espírito Santo.

2 A Teologia e a Revelação

O tema da Revelação é tratado na Teologia que chamamos de “Fundamental”, vocábulo em que a etimologia fala de fundamento e, como sabemos, “a metáfora do fundamento indica precisamente a natureza estável, imutável da realidade. Fundamento não muda. Se isso acontecesse, o prédio cairia” (LIBANIO, 2014, p.17).

Por isso, a teologia procura falar de verdades reveladas por Deus e ensinadas pela Igreja como eternas, definitivas, inalteráveis, no desafio que nos vem do mundo em constantes mudanças, e onde se vai construir a Teologia que possa dar respostas ao homem, a partir da própria Revelação.

Na história e na tradição recentes, o Concílio Ecumênico Vaticano II nos recorda que a postura da Igreja e dos fiéis é a de ouvintes da Revelação e, por conseguinte, devemos agir com a humildade de quem admite que o seu conhecimento é parcial, acatando a presença de noções não cristãs de revelação onde quer que elas indiquem e promovam a paz entre todos os homens (Lumen Gentium, n.13-17; Nostra Aetate, passim).

2.1 A interpretação teológica da Revelação

A Teologia deve ser pensada como reflexão sobre a fé, onde a Revelação de Deus tem força desmitologizante, ou seja, apresenta Deus como fonte da verdade, da justiça, da solidariedade e do amor. Devemos estar alertas quanto aos contextos culturais de mitos e antimitos, que escondem e camuflam as realidades básicas da fé e, não raro, movem interesses opostos ao projeto salvador de Deus, vez que, ao lado dos mitos surgem também os ídolos que se batem fortemente contra a fé cristã (LIBANIO, 2014, p.41).

A Teologia parte da premissa que a Palavra é insubstituível à revelação pessoal e histórica de Deus e que atinge em primeiro lugar a singularidade espiritual do homem. Isto significa que, por sua transcendência, Deus nos concede a possibilidade de ouvi-lo e de acolhê-lo na fé, esperança e caridade. E é por meio desse agir que Deus não rebaixa o homem à condição de mera criatura finita. Ao contrário, é dirigindo a nós a Palavra que toca o homem como manifestação de si mesmo, numa relação – entre Deus que se achega e o homem que nele se aconchega – que se torna Revelação de Deus, na medida em que o que Deus manifesta na Revelação é a si próprio (se autocomunica).

A proximidade e a constância desta manifestação divina levam o homem a admitir que Deus não se afasta de nós nem quando acertamos nosso caminho, nem quando erramos. É esta proximidade absoluta de Deus que gera a indulgência de um Deus que está sempre pronto para perdoar. Por isso podemos dizer que Deus é quem, em sua indulgente proximidade, se entrega ao homem como a plenitude da absoluta ilimitação transcendental, como quem quer mostrar a imagem do Deus invisível, que São Paulo ensinou (Col 1,15).

Esse Deus que quer se revelar, e se revela à sua criatura em palavras, permite dizer-se ao homem de modo absoluto. Absoluto, que “parece relativizar-se a si mesmo, pois só o relativo se relaciona; parece sair de si, despojar-se, esvaziar-se de si, desapropriar-se e deformar-se nessa relação em que o imutável e eterno, o Logos, se faz carne” (MORO, 2003, p.370).

Há, pois, duas relações: a do homem em seu mundo e com seus pares e a do homem com Deus, o que pode ser dito como uma relação que consiste no acolhimento da autocomunicação que Deus faz ao homem, e a desafiante comunicação dessa relação aos homens de todos os tempos. A bimilenar prática cristã, de levar o cristianismo aos “confins do mundo”, implica compreender que somente foi possível exercer esse ardor missionário “comunicante” porque há um Deus pessoal que desde sempre e para sempre se comunica e renova sua autocomunicação, como diz santo Inácio, numa eterna relação com “todos e com cada um de nós em particular”.

2.2 O ensinamento sobre Revelação nos Concílios Ecumênicos Vaticano I e II

A Igreja, que se pretende sempre ativa no mundo, somente assim permanecerá se retomar o seu próprio caminho e perceber os pontos de onde devem partir as novas discussões que vão buscar superar antigos desafios. Vejamos um exemplo que põe em questão a autocomunicação de Deus e admite a Revelação como ponto de partida para o Ecumenismo, o diálogo inter-religioso e com a cultura.

Na teologia escolástica surgiu a questão da doutrina do Concílio Vaticano I (Dei Filius, Cap. II), segundo a qual se pode conhecer a Deus pela chamada “luz natural da razão humana”. A questão é se há oposição entre o Deus da razão e o Deus da revelação, ou seja: se esse conhecimento também se refere a Deus – não só enquanto fundamento originário do mundo – como criador do mundo em sentido estrito, ou a nossa condição de criatura também é parte dos dados que se podem conhecer pela luz da razão natural.

Acompanhando a história da Igreja, vemos que o Concílio Vaticano I não responde a essa questão, na verdade ensina que Deus é criador de todas as coisas, que ele as criou e continua criando do nada, mas nada diz sobre se esta afirmação é meramente filosófica ou se somente pode ser feita no interior da Revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de Deus (RAHNER, 1989, p.97). Esta questão veio a ser superada no Concílio Vaticano II, com a Dei verbum, que assim aclarou, em seu Cap. I, 6: “Pela Revelação divina quis Deus manifestar e comunicar a si mesmo e aos decretos eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens, ‘para fazê-los participar dos bens divinos, que superam inteiramente a capacidade da mente humana’”.

É importante reiterar que a questão se coloca dogmaticamente diante do que é fundamental para uma teologia aberta ao diálogo ecumênico, à união entre os cristãos. Segundo testemunhas, antes da abertura do Concílio, a Revelação já era considerada tema central, tanto na doutrina católica como no movimento ecumênico, posto que a relação entre Escritura e Tradição constituía o objeto principal do desentendimento de católicos e protestantes. O “esquema” preparado antes do Concílio dividiu a assembleia e os relatos nos dão conta de que este foi o momento de maior crise no Concílio. “Uma verdadeira guerra e começaram a circular contra-projetos assinados por teólogos de proa, como K. Rahner e Y. Congar, até que, em abril de 1964, o esquema ganhou nova redação, com tonalidade mais bíblica” (SESBOÜE, 2002, p.419-22).

Observe-se no exemplo dado que a solução trazida pela Dei Verbum, no que respeita a Revelação mais como um ato de comunicação de Deus por ele mesmo, mediante, sobretudo, Jesus Cristo, do que um conjunto de “verdades” transmitidas, cumpre exatamente a previsão em que Rahner diz que o Vaticano II teve este papel de “começo do começo”, em que pela primeira vez a Igreja católica se coloca como uma igreja para o mundo, assumindo a multiplicidade de culturas e, consequentemente, de teologias, no caso, todas as teologias cristãs.

Ressalte-se, ainda, que o conceito de autocomunicação de Deus não é apenas uma das questões que o Concílio Ecumênico Vaticano II superou, mas nele está a condição de possibilidade necessária a que todas as igrejas cristãs possam, com este fundamento teológico, partir para a grande aventura que nos aguarda na “Teologia do Futuro”, que hoje se vislumbra no diálogo crescente não apenas entre as igrejas cristãs, mas também entre as igrejas não cristãs, por atender uma necessidade decorrente do estreitamento das relações humanas.

3 A atualidade da Revelação como núcleo da existência cristã

O desejo salvífico universal de Deus é a base do cristianismo que caracteriza Deus como saindo de si mesmo para se entregar a um outro, a fim de fazê-lo participar de sua felicidade. A expressão máxima dessa autocomunicação divina se dá na encarnação do Filho de Deus.

Naturalmente sabemos disso pela Revelação de Deus em Jesus Cristo, que nos manifestou o Mistério como Pai e a força interior que age em nós como o Espírito, pois a ação salvífica divina atinge o núcleo da nossa pessoa, onde as faculdades se encontram ainda numa unidade. Inteligência, liberdade, afetividade, fantasia, memória, assim integradas no mais profundo da pessoa, recebem o impacto da ação salvífica (MIRANDA, 2006, p.268).

O impacto da ação salvífica, com que Deus deixa transparecer algo de si, é experimentada pelo homem que a exibe como uma marca em sua vida. Por isso, Rahner não se cansou de afirmar que a existência cristã, marcada pelo impacto desta ação salvífica, abarca toda a nossa existência construindo, assim, a nossa própria identidade (RAHNER, 1989, p.12).

Esta nossa identidade é traduzida hodiernamente no conceito de dignidade humana, que para os cristãos é imanente ao homem, assim universalizando a igualdade entre os homens sobre a face da Terra, todos nós, os filhos de Deus. Ressalte-se que este conceito nos foi ofertado por Jesus de Nazaré, Palavra de Deus aceita e vivida na comunidade que chamamos Igreja, conforme o testemunho de fé que recebemos e transmitimos desde os apóstolos de Cristo.

Nesse sentido, a Revelação é trabalhada como “projeto salvífico de Deus no meio dos homens, reafirmando-lhes a dignidade humana. Nesse contexto, nenhuma realidade humana lhe soa alheia ou estranha e os valores éticos e cristãos se relacionam mutuamente” (LIBANIO, 2014, p.51).

Mergulhados na cultura plural de nossos dias, sabemos que pertence à natureza humana inquirir e questionar as realidades fundamentais da vida. As ciências surgem para responder às angustiantes interrogações do coração humano. Os filósofos resumem essas indagações em algumas formulações: por que existem coisas e não o nada? (Leibniz, Heidegger). No AT, Moisés perguntou a Deus: ¨Qual é o seu nome?¨ (Ex. 3,13). Na Igreja, a apologética tradicional perguntava como falar de Deus num mundo racionalista? Deísta? Ateu? Este questionar continua presente, por isso as tarefas da Teologia que pensa a Revelação não cessaram. Mudaram. Seguem reais e urgentes (LIBANIO, 2014, p.67).

3.1 A tradição cristã hoje, da Revelação ao dogma

Nesse contexto cristão, devemos observar a relação entre Revelação e a atuação efetiva do Espírito Santo ao longo da história da Igreja, ou seja, entre a tradição da “Verdade eterna” e a possibilidade de uma melhor expressão dessa mesma Verdade, o que alguns autores chamam de “evolução do dogma”. Esta é das tarefas mais árduas enfrentadas nos últimos dois milênios pela Igreja católica, na luta de usar de palavras que sempre e melhor tentem expressar o conteúdo do dogma, ou seja, o conteúdo revelado, que é Deus.

Nesse sentido, contamos com a ação do Espírito Santo, ação essa que tem como âmbito privilegiado a própria Igreja, como afirma santo Irineu, já por volta do ano 180 de nossa era: “Onde está a Igreja, aí está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda a graça. E o Espírito é Verdade” (IRINEU, 1995, p.359).

A tarefa de expressar a Verdade eterna implica a noção de “tradição” para todos os tempos, considerando que o cristianismo é uma religião de revelação, baseada num evento histórico salvífico: a vida, o agir e a morte de Jesus de Nazaré que afirmamos, na fé, ter sido ressuscitado por Deus. O Concílio Ecumênico Vaticano II ensina que a Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que é e tudo em que crê, sendo nela que se desenvolve a tradição dos apóstolos, graças ao Espírito Santo (Dei Verbum, n.8).

A questão que se põe é quanto ao conteúdo da tradição, porque a fé cristã deve ser capaz de expressar o evento histórico (e salvífico) Jesus Cristo de modo a tornar acessível a Revelação de Deus a todos os homens, em todos os tempos. Já no primeiro século, essa questão levou a Igreja primitiva a escrever os Evangelhos. O passar dos séculos apresentou novas dificuldades diante da experiência cultural de cada tempo. Por isso a história em que se desvela a “evolução do dogma” é a história da progressiva manifestação do mistério que chega ao homem pelo poder do Espírito Santo.

Num conhecimento dessa natureza, devemos seguir um princípio, uma vez que a Verdade revelada é sempre a mesma e expressa algo que a Igreja se apossa como parte da Revelação a ela confiada, como objeto de sua fé incondicional. Esse princípio limita o conteúdo do dogma porque exclui objetivações de sentimentos, atitudes e mentalidades mutáveis e que se prendem a uma determinada época histórica e não a outra. O risco que existe em o homem adotar essas proposições que são frutos de sua época é o de incidir num erro que o desvie da verdade.

Por outro lado, o homem, ao falar, jamais alcança as consequências reais que se deduzem de suas palavras, porque tudo o que dizemos jamais corresponde à expressão plena do que realmente queremos dizer. Mas quando Deus fala não sucede o mesmo. Por isso, Deus mesmo diz o que só na história viva do que foi dito se desvela como dito, ou seja, não é o que Deus pronunciou em seu sentido proposicional imediato, mas o que comunicou e, por isso, pode ser crido como saber seu.

Daí o núcleo central do cristianismo, quando afirma a Revelação como evento salvífico, implica uma “comunicação de Verdades” que, na história da salvação, alcançou em Cristo seu ponto máximo, incapaz de ser superado. Por isso, o cristianismo não é uma fase da história substituível por outra; o cristianismo é o evento que aponta para a eternidade autêntica, que permanece no mais além do Deus de toda Revelação.

3.2 A missão comunicadora da fé da Igreja

Depois da Segunda Guerra Mundial, surge na França a “Nova Teologia” propugnando a “volta às fontes”, a aplicação dos métodos histórico-críticos, colocando a Teologia próxima da vida das pessoas, numa revolução de valores que defende a evolução do dogma. A Nova Teologia busca contato com a vida, intenta participar dela e explicá-la. Integra teologia e espiritualidade. (LIBANIO, 2014, p.74).

Este contexto reflete o novo clima de pensar a Revelação, já não a partir do conceito abstrato de revelação nem do deus da filosofia, mas de percorrer o fato da Revelação ao longo da história, caracterizando a religião do AT pela afirmação de uma intervenção de Deus na história, devida unicamente à sua livre decisão. Concebemos essa intervenção divina como o encontro de alguém com alguém: de alguém que fala com alguém que ouve e responde. Dirige-se Deus ao homem como um senhor a seu servo, interpela-o, e o homem que ouve a Deus responde pela fé e pela obediência. O fato e o conteúdo dessa comunicação nós o chamamos de Revelação (LAUTURRELLE, 1992, p.13).

Em síntese, a teologia necessita lidar com a Revelação (autocomunicação de Deus) de modo reflexivo para ser entendida pela mente humana, o que exige uma compreensão de ser e de homem, o que é filosofia. Por isso, a mediação teológica da Revelação ocorre por meio da filosofia, e a filosofia e a teologia constituem um todo na apropriação receptiva-reflexiva da palavra da Revelação (METZ apud DONCEEL, 1969, p.6).

Nesse sentido, a Revelação marca o entrelaçamento de temas e a complexidade da realidade do cristianismo, acompanhando a trama que envolve Deus, o homem e a realidade criada. Apesar das dificuldades, é este caminho que ilumina tanto a nossa experiência de Deus quanto a nossa vivência cristã. Penetrar nesta trama de reflexões significa entender a nossa relação com Deus, o significado que podemos atribuir ao mundo, à história e ao tempo.

Isto reforça o entendimento de que a autocomunicação de Deus é um processo que acompanha a história humana, no que chamamos de história da salvação; e Revelação é onde se dá, histórica e progressivamente, a experiência dessa autocomunicação. A prioridade que devemos dar à comunicação dos dados da fé estará para sempre relacionada ao fato de que a “Boa Nova” deve ser ouvida e entendida, de modo a propiciar que seu ouvinte faça das experiências ali relatadas com o Senhor experiência real desse mesmo ouvinte, experiência essa que o transformará de mero ouvinte em alguém que se relacione com nosso Senhor Jesus Cristo, de modo único, pessoal e irrepetível.

Se afastarmos a compreensão dos Evangelhos desse modo existencial de vida, eles jamais propiciarão o evento que culmina na apropriação dessa experiência à existência do homem como um todo. O cristianismo é dinâmico e assim tem se mantido já por quase dois milênios, acompanhando a visão de mundo do homem, que sempre surge com novas questões particulares que a universalidade do cristianismo não pôde nem quer desprezar.

Sabemos que se a existência cristã não pode ser vivida na interioridade de cada homem, ela se dá no acolhimento amoroso de um convite (autocomunicação) de Deus, convite esse que, quando acolhido, perpassa todas as instâncias de nossa realidade numa oblação que transforma a totalidade da vida do homem no que chamamos de existência cristã, e que não é mais possível de ser renegada por um ato de liberdade plena do próprio homem. Doloroso, mas é pertinente recordar que essa postura, no extremo, é o que chamamos de martírio, sinalizado pelo papa Francisco como mais frequente hoje do que nos inícios do Cristianismo.

Jussara Filgueiras Dias Santos Linhares. FAJE. Texto original português.

 4 Referências bibliográficas

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 Para saber mais

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SCHILLEBEECKX, E. História humana: revelação de Deus. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2003.

Sacramentos, centro da liturgia

Sumário

 1 A renovação conciliar da Liturgia

2 Os sete sacramentos

3 A eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor, sacramento dos sacramentos

4 Iniciação cristã pelo batismo e a unção com o santo crisma

5 Os outros sacramentos

6 Resumindo

7 Referências bibliográficas

 1 A renovação conciliar da Liturgia

 O que é a liturgia? O Concílio Vaticano II, sabiamente, não propõe uma definição da liturgia. Definir significa delimitar a partir de conceitos, e como delimitar as insondáveis riquezas do mistério de Cristo, que é o mistério de nossa salvação celebrado na Liturgia? Mas ‒ ao mostrar, desde diversos ângulos, como a liturgia torna presente no mundo, mediante a Igreja, o mistério de Cristo ‒ o Concílio abre um caminho fecundo à teologia dos sacramentos, apresentados na Constituição dogmática Sacrosanctum Concilium como o núcleo da liturgia. O caminho que deve ser procurado na tradição eclesial da própria prática litúrgica, em sua rica diversidade. Afirma-se no documento conciliar que pela liturgia, principalmente no divino Sacrifício da eucaristia, “se atua a obra de nossa Redenção”, com uma expressão tirada dos próprios textos litúrgicos, a oração sobre as oferendas do segundo domingo depois de Pentecostes do antigo Missal. A Liturgia ‒ afirma também a Constituição ‒ é “o cume para o se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” (SC n.10).

Ao apresentar os sacramentos como centro da Liturgia, caracterizada como fonte e cume da vida eclesial, o Concílio indica à Teologia o ponto de partida da reflexão sobre os sacramentos: o mistério pascal de Cristo celebrado na própria tradição litúrgica. Superam-se, assim, as limitações da apresentação dos sacramentos a partir de conceitos da filosofia escolástica e devolve-se à liturgia a sua grandeza e a sua relevância teológica. Consequentemente, a SC determina que a Liturgia seja estudada, nas faculdades de Teologia e nos seminários, como uma das disciplinas mais importantes “tanto no aspecto teológico e histórico, quanto espiritual, pastoral e jurídico” (n.16). Determinação óbvia da compreensão da Liturgia em consonância com a mais antiga tradição. Segundo o conhecido aforismo dos Pais da Igreja: a eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a eucaristia.

Até um passado relativamente recente, em muitas faculdades de Teologia e seminários, a disciplina da Liturgia limitava-se ao estudo das rubricas e os sacramentos eram estudados sem muita relação com a forma concreta da celebração do mistério de Cristo na liturgia. O tratado dogmático dos sacramentos era introduzido por uma noção comum de sacramento, que, embora analógica, tendia a ocultar a singularidade da manifestação do mistério celebrada em cada sacramento.

A reforma litúrgica promovida pela Sacrosantum Concílium tende a aproximar as liturgias do Ocidente e do Oriente, devendo-se isso, em parte, à presença no Concílio de Bispos orientais. Enquanto nas Igrejas de rito latino os sacramentos se compreendem a partir da noção de sacramento, no oriente se mantém o termo mais bíblico mysterium, que os relaciona mais intuitivamente com o mistério do Cristo.

A partir do Concílio de Trento, no ocidente o cristão aprendia no catecismo que os sacramentos eram sete e tanto a prática litúrgica como a reflexão foram influenciadas pela forma fragmentada de vê-los. Se alguém perguntasse a um cristão dos primeiros séculos pelos “sete sacramentos” esse ficaria surpreso e não saberia como responder. Falaria, porém, com entusiasmo dos santos mistérios, celebrados de forma eminente na ceia do Senhor, como presença viva e atuante do mistério de Cristo, e do batismo que esteve unido desde muito cedo à unção com o myron ou santo crisma. Em torno a eles, outros muitos ritos, de forma diversa, celebravam esse único mistério.

O termo latino sacramentum, contudo, não é senão a tradução do termo grego mystērion, cujo sentido original é o de consagração, e aproxima-se, assim, do sentido de mystērion. Tendo, porém, um aspecto mais estático, irá acentuando, no ocidente cristão, o aspecto jurídico, embora somente nos século XII e XIII, por influência da filosofia aristotélica, esse aspecto se tornasse predominante. Os sacramentos foram definidos como sinais exteriores da santificação interior realizada por Cristo. A definição é correta, mas só revelará o sentido profundo do sacramento quando sinal for entendido como símbolo, criador de comunhão e for melhor articulada a relação entre símbolo e sacramento, o que só acontecerá com o desenvolvimento da filosofia da linguagem e do corpo como lugar das relações inter-humanas.

 2 Os sete sacramentos

 A definição dos sete sacramentos teve o mérito de destacar, dentre as muitas ações sacramentais da Igreja, as mais importantes para a vida cristã e para a missão da Igreja. Em contrapartida, trouxe o inconveniente de desvalorizar algumas ações litúrgicas em que se manifesta a ação de Cristo na vida cristã. Essas foram denominadas, com um adjetivo substantivado, “sacramentais”, em contraposição aos “sacramentos”. Inconveniente maior foi reduzir a um denominador comum os sete sacramentos, na tentativa de encontrar uma definição de sacramento.

O que está na base da apresentação conciliar dos sacramentos é que a totalidade da ação da Igreja é compreendida como sacramental (Lumen gentium n.1): “A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”. O Vaticano II afasta-se da apresentação preponderantemente jurídica dos sacramentos ao afastar-se da visão da Igreja como sociedade perfeita, vendo-a preferentemente como mystērion ou sacramento.

O que significa isso? Significa que a Igreja não oferece ao mundo uma salvação da qual seria a autora e que poderia reivindicar como própria, mas que todas as suas palavras, gestos e ações querem manifestar e tornar presente a ação de outro: o Cristo, que viveu, morreu e ressuscitou para a salvação do mundo, ou seja, o mistério pascal. A Igreja realiza a missão de ser o Sacramento do Cristo não apenas com os sete sacramentos, mas com toda a sua vida. Quando isso não acontece, a Igreja trai sua missão. Por isso deve reconhecer-se santa e pecadora, necessitada em cada instante de receber o perdão e a santificação do Cristo, para ser seu sacramento.

No entanto, a tradição da Igreja, no ocidente, reservou a designação de sacramentos às ações sacramentais que são a fonte e manifestação privilegiada do agir da Igreja como sacramento de Cristo. Nem tudo é liturgia afirmou o Concílio. Mas a liturgia mostra que toda a ação de Igreja nasce da liturgia. O trabalho cristão pela justiça nasce da “vida em Cristo” que nos é dada pelo batismo e celebramos na eucaristia. Se a celebração da eucaristia não conduz ao viver cotidiano em comunhão fraterna deixa de ser a mesa do Senhor, como sugere a censura de Paulo aos Coríntios pelo modo como se comportavam em algumas das suas celebrações (Cf. 1 Cor 11, 19 s). Por aí se vê a complexidade da compreensão dos sacramentos e a impossibilidade de classificá-los a partir de uma noção prévia de sacramento.

 As ambiguidades começam ao aplicar-se aos sacramentos, por um lado, as categorias aristotélicas do hilemorfismo e, por outro, os conceitos de causa eficiente e principal ou instrumental, que dificilmente escapam de representações produtivistas e objetivantes. Sob o viés do hilemorfismo, a palavra de Cristo é considerada a forma do sacramento que unida à matéria (o elemento visível: água, pão etc.) o constitui como sinal da salvação. Do ponto de vista da causalidade, Deus é afirmado como agente principal do sacramento, sendo o ministro seu instrumento. Não que isso seja falso. Mas é uma explicação exterior ao mistério, que não é outro senão o mistério pascal que se torna presente no memorial que a Igreja faz dele.

As ambiguidades aumentaram ao querer distinguir as ações sagradas “instituídas” por Cristo (os sete sacramentos) de outras que seriam criadas pela Igreja. Na “instituição por Cristo”, buscavam alguns uma ação do Jesus histórico, o que levou à dissidência luterana nesse ponto e a admitir só dois sacramentos: a eucaristia e o batismo – do qual, no entanto, não se pode afirmar a instituição por Jesus em sua vida terrena. Em realidade, na teologia dos grandes escolásticos, pense-se em Tomás de Aquino ‒ ao dizer que os sacramentos são instituídos ‒, afirma-se que Cristo é o autor, “autor” no sentido de “ator”, dos sacramentos, aquele que realiza a ação salvífica visibilizada pelo sinal sacramental. A igreja não inventa os sacramentos, como não inventa nenhuma ação que pretenda tornar presente a ação salvadora de Cristo: os recebe do Cristo na missão de ser sacramento do mistério pascal do Cristo.

Relativiza-se assim (não se suprime), a distinção dos sete sacramentos de outras muitas ações de Cristo pelo caráter de instituídos por Cristo, e também a procedência da eficácia das ações dos sacramentos em relação a outras ações da Igreja que celebram e manifestam na liturgia sua missão de ser sacramento da salvação. A eficácia das primeiras era chamada ex opere operato e a das últimas ex opere operantis Ecclesiae, distinções válidas no interior do sistema escolástico, expostas à deturpação quando não se domina a terminologia do sistema. A noção de ex opere operato mostra que a eficácia do sacramento procede do fato de ser ação de Cristo. Mal entendida, abriu as portas a sacramentalismo, com a concepção da eficácia quase-mágica dos sacramentos, esquecendo que também os sacramentais recebem sua eficácia do fato de serem ações de Cristo e que, tanto uns como os outros, são sinais do agir do Cristo e exigem a vivência da fé no seio da Igreja. Exigem sempre dois atores: Deus agindo por seu filho Jesus Cristo e a Igreja movida pela fé, dom do Espírito.

A fragilidade das sutis distinções da escolástica torna-se evidente quando a teologia, ajudada pela hermenêutica bíblica, compreende não ser possível distinguir os sacramentos de outras ações de Cristo a partir de um ato instituinte de Jesus, no tempo da sua vida mortal, e que a eficácia ex opere operato é propriedade da graça divina e consequentemente de toda ação de Cristo mediante a sua Igreja. Mais ainda, é propriedade de toda ação divina para salvação da humanidade presente no mundo desde a sua origem, dentro ou fora da Igreja. E todas elas postulam do homem a livre acolhida do dom divino.

Essas distinções surgiram ao tentar explicar os sacramentos com ajuda da causalidade eficiente (principal ou instrumental), deixando na sombra que os sacramentos, os mystēria da terminologia grega, mais enraizada na linguagem bíblica, são ações sagradas simbólicas, que agem mediante o mesmo ato de simbolizar. Em outras palavras: são sacramento e memorial do mistério do Cristo, “o segredo (mystērion) escondido por séculos e gerações, e agora revelado aos seus santos (…) que é Cristo para vós, esperança da glória” (Cl 1, 26s).

 3 A eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor, sacramento dos sacramentos

 A constituição Sacrosanctum Concilium situa-se nessa perspectiva: a liturgia é presença e revelação do Mystērion que é o próprio Cristo. Ao tratar dos sacramentos, a SC começa pela eucaristia e só depois fala dos outros sacramentos, principiando pelo batismo que, com o santo Crisma, inicia a vida cristã introduzindo o catecúmeno na assembleia litúrgica, mediante a participação progressiva na celebração eucarística (a liturgia da palavra é parte constitutiva desta), até a plena participação “pela comunhão do corpo e sangue do Senhor”.

A eucaristia, conforme a visão dos primeiros séculos, que permanece até hoje viva na Igreja ‒ embora de maneira mais acentuada talvez na Igreja oriental ‒, não é um mystērion na Igreja (um dos sete sacramentos), mas o mystērion ou sacramento da mesma Igreja. É o mystērion dos mystēria, o sacramento dos sacramentos. Isso significa que todos os outros sacramentos estão ordenados à eucaristia e encontram nela sua plenitude. Em consequência, todo sacramento é sempre um evento da Igreja, na Igreja e para a Igreja, aspectos ocultados tanto pela prática sacramental da igreja latina, quanto pela teologia dos sacramentos anteriores ao Concílio, que a reforma litúrgica tenta reestabelecer, embora ainda reste um longo e árduo caminho a percorrer.

Mérito da reforma conciliar foi pôr em evidência essa conexão íntima de todos os sacramentos com a eucaristia. Os novos rituais recomendam, por exemplo, a celebração do batismo na assembleia eucarística e preveem também uma forma de celebração da unção dos enfermos dentro da missa. As ordenações, a confirmação e, com frequência, o matrimônio já vinham celebrando-se tradicionalmente dessa forma. A penitência é o único sacramento cuja celebração dentro da eucaristia, estranhamente, não é prevista pelos novos rituais. Na antiguidade, a penitência realizava-se como longo processo de conversão que começava pela exclusão da comunhão (eclesial e eucarística) e terminava pela imposição das mãos do bispo. Desde o século IV esta reconciliatio altaris tinha lugar no contexto da celebração eucarística da quinta-feira santa.

Dizer que o sacramento é uma ação simbólica, que age significando, implica afirmar que a Palavra bíblica proclamada na celebração dos sacramentos tem caráter sacramental, faz parte constitutiva do sacramento e que sua acolhida na fé (só possível como dom do Espírito) é um dos meios pelo qual Deus age mediante o sacramento. Claro que isso implica estender o caráter de sacramento ao conjunto dos ritos que formam sua celebração e não reduzi-lo às palavras que a teologia clássica considerava como a “matéria e forma” do sacramento, exigidos pelo direito para a validez. Esta forma de conceber os sacramentos deve ser superada e a melhor maneira de compreender a razão disso é pensar o sacramento como mystērion: memorial sacramental do mistério de Cristo para a salvação do mundo confiado à Igreja. Os escritos dos Pais da Igreja sobre os sacramentos testemunham essa concepção ampla e o cuidado que se tinha para que todo o ritual fosse revelador do mistério celebrado.

Compreende-se facilmente agora o que significa afirmar que os sacramentos são instituídos por Cristo, embora não seja possível encontrar atos instituintes de Jesus na sua vida terrena determinando-lhes o ritual. Na atual hermenêutica da Escritura, nem o batismo pode ser reconduzido a uma instituição verbal do Cristo e na gênese da eucaristia pós-pascal não deve ser procurada apenas a última ceia. A Ceia não é a primeira de uma série de eucaristias, mas o fundamento de sua instituição, junto com: 1) a experiência das frequentes refeições de Jesus com os discípulos, abertas aos pecadores e publicanos, como sinal da abertura da mesa messiânica a todos e, sobretudo, 2) a experiência pós-pascal da presença do Ressuscitado na assembleia dos discípulos reunidos em seu nome, em virtude da promessa da ceia.

Os sacramentos vão nascendo da obediência da Igreja pós-pascal ao testamento do Cristo na Ceia. Num gesto simbólico, enraizado na celebração da páscoa judaica e levando-a à plenitude, Jesus, obediente à vontade do Pai, entrega aos discípulos a sua morte, acolhida livremente como gesto derradeiro do seu amor. Com o gesto da ceia, Jesus dá sentido à morte violenta, absurda e sem-sentido, que lhe é injustamente imposta, e pede aos discípulos que façam, em sua memória, o que ele fez: viver para os demais até a entrega da própria vida se for preciso. O mandato dado na Ceia é mais que repetir um ritual. É imitar a entrega do Senhor na cruz em favor da humanidade. Da obediência criativa, inspirada pelo espírito dos discípulos de Jesus, irão surgindo na Igreja os sacramentos como celebrações da memória do mistério pascal.

Comecemos pelo sacramento dos sacramentos. A Igreja faz a eucaristia por mandato do Senhor. Não a inventa. Celebra a eucaristia por fidelidade ao testamento de Jesus na última ceia: amar como o seu Senhor, até a entrega da vida se for preciso. O desenvolvimento progressivo e diferenciado do ritual é gerado pelo cuidado de reencontrar, em cada celebração, o significado que Jesus deu ao gesto do pão e do vinho: como sacramentos da sua entrega na cruz. O ritual expressará que comunhão no sacramento da entrega do Cristo na cruz faz da Igreja o corpo de Cristo pela ação do Espírito. E o suplicará, de diversas formas nas orações eucarísticas.

Reduzir ou mesmo apenas focar o sacramento da eucaristia na transformação do pão e do vinho no corpo e sangue sacramentais de Cristo deturpa o gesto de Jesus na Ceia. Oculta a missão da Igreja de ser, com toda sua vida, sacramento do Cristo para a salvação da humanidade. Isto foi, sem dúvida, em maior ou menor grau, uma das consequências da teologia dos sacramentos que não se deixou guiar totalmente pela própria tradição das práticas litúrgicas na sua rica variedade eclesial.

Quando se compreende a ação sacramental da eucaristia a partir da sua celebração e não mediante teologias e práticas litúrgicas redutoras, ao querer determinar o mínimo essencial para a validade do sacramento, as palavras precisas que realizam o sacramento e o momento exato em que isso acontece, superam-se muitas dificuldades e controvérsias entre oriente e ocidente. Pense-se na dilatada controvérsia entre as igrejas do oriente e ocidente, de saber se são as palavras da instituição ou a epiclese as que consagram.

A prática litúrgica mostra que o sacramento da eucaristia é constituído pela ação do Cristo, presente como anfitrião da Ceia desde o começo e ao longo de toda a celebração, em diálogo com a assembleia, convidando-a a acolher o dom se sua vida “por nós e para nossa salvação”, que culminou na Cruz, e a deixar-se transformar pela comunhão do sacramento do seu corpo e do seu sangue entregues na cruz por amor de todos. Eternizado na ressurreição, o gesto de Cristo na ceia, consumado na cruz, se torna presente em cada assembleia litúrgica, para fazer da Igreja o seu corpo, pelo Espírito que jorra da Cruz. A oração eucarística é uma ação de graças mediante o memorial da ação redentora de Cristo, acolhido na fé. Uma fé que deve ir crescendo no desenrolar da vida pela ação do sacramento e, por isso, a proclamação da Palavra divina, “a memória dos atos e palavras de Jesus (Justino), e a escuta amorosa dessa Palavra foram, desde as origens, momentos constitutivos do sacramento da eucaristia, e não apenas preâmbulos, cf. IGMR n.8. Não se pode negar o caráter sacramental a toda a celebração.

Isso vale analogicamente para o batismo e para os outros sacramentos. Todos são sacramentos do mistério pascal nas diversas circunstâncias, ministérios e missões da Igreja. Símbolos da missão a ela confiada pelo Senhor, de ser seu sacramento em todas as conjunturas da vida.

 4 Iniciação cristã pelo batismo e a unção com o santo crisma

 A partir desse princípio é fácil compreender o batismo, na diversidade de suas configurações históricas. O batismo na água desde as origens é acompanhado da unção com o santo Crisma, e ordenado à eucaristia, configurando-se assim como sacramento da iniciação à vida na comunidade cristã. No catecumenato antigo, que inspirou o rito atual do batismo de adultos, era celebrado em etapas sucessivas após a liturgia da Palavra da celebração eucarística. Essa forma tradicional da celebração mostra claramente que a eucaristia é o sacramento dos sacramentos. Ela não pode ser simplesmente catalogada como um a mais entre os sete sacramentos, nem sequer como um entre os sacramentos de iniciação.

Os atores que configuram e constituem a “ação sacramental” do batismo ‒ como acontece em todos os sacramentos ‒ são sempre o Cristo e a Igreja, presencializada pela assembleia litúrgica, mesmo quando o sacramento visa a conferir um dom, uma missão, um serviço a um ou vários membros da assembleia. A celebração do batismo na missa da comunidade paroquial torna transparente o sentido do batismo de uma criança nascida no seio de uma família cristã. Cristo a acolhe enquanto criança, no mesmo ato da comunidade que a acolhe e compromete-se em iniciá-la progressivamente à própria vida de fé.

A unção com o santo crisma manifesta e confere o dom do Espírito, que mediante a catequese, iniciada na família e continuada na comunidade, irá configurando, progressivamente, o pensar e o agir da criança à vida da Igreja enquanto corpo de Cristo. Para isso a catequese, desde seus começos, configurou-se como história de Jesus, como mostram os quatro evangelhos. Com que argumentos se negaria o caráter e a eficácia sacramentais a essa unção que segue o batismo, acompanhada das palavras do ritual que explicitam seu sentido e seu alcance? “Pelo batismo, Deus Pai te libertou do pecado e te fez renascer pela água e pelo Espírito Santo. Fazes agora parte do povo de Deus. Que ele te consagre com o óleo santo, para que, como membro do Cristo sacerdote, profeta e rei, continues no seu povo até a vida eterna”.

Segundo a prática atual do rito latino, na adolescência ou na idade adulta, celebra-se o sacramento da confirmação. Mas isso não esvazia de maneira alguma, antes confirma, a validade da unção recebida na infância e seu caráter de sacramento. Ao confirmar o cristão, ao chegar à idade adulta, a fé recebida na infância, Deus confirma o dom, agora melhor compreendido. Aparece, assim, a relativa liberdade da Igreja na configuração dos sacramentos a partir da obediência ao mandato de configurar sua vida pelo mistério pascal. Abre-se, ao mesmo tempo, um caminho para o diálogo ecumênico entre as Igrejas e suas diferentes prática sacramentais.

A participação na mesa eucarística pela comunhão do corpo e sangue do Senhor deveria acontecer logo que a criança for capaz de distinguir o pão eucarístico do pão comum ‒ permito-me emprestar uma expressão de Pio X ‒, sem esperar à conclusão de uma determinada etapa da catequese. Comungando ela ira aprendendo com Jesus, que entregou sua vida por nós, a sair do egoísmo e viver para os demais. Isso deveria ser óbvio para todo discípulo daquele que corrigiu severamente os discípulos que queriam impedir que as crianças chegassem perto dele. Uma assembleia que põe barreiras às crianças em suas celebrações não se configura como Igreja de Jesus.

A prática diversa da Igreja oriental de dar a comunhão às crianças mostra, de outra forma, a eficácia do sacramento por ser ação de Cristo em diálogo com a fé da comunidade que acolhe no colo as crianças.

 5 Os outros sacramentos

 Os outros sacramentos que completam o número de sete, segundo a definição de Trento, são: a ordenação, o matrimônio, a penitência e a unção dos enfermos. Quando a Igreja, em Trento, os define como as sete ações sacramentais baseia-se, em primeiro lugar, na prática eclesial recebida da tradição. As razões que na época se davam para a definição dos sete sacramentos podem ser questionadas. A teologia atual mostra a importância desses sacramentos pelo fato deles manifestarem a sacramentalidade da Igreja como sacramento de Cristo, por sua importância para a edificação da Igreja e para a vivência do ser cristão em momentos essenciais da vida. Não podem ser compreendidos a partir de um conceito unívoco de sacramento. Aqui apresentaremos brevissimamente sua relação com a sacramentalidade da Igreja manifestada plenamente na eucaristia.

A “ordenação” relaciona-se imediatamente com a eucaristia e se ordena a ela. A eucaristia é celebrada por toda a assembleia litúrgica, mas nem ela, nem qualquer um dos seus membros, a poderia celebrar sem a presidência do Cristo. O ministério ordenado manifesta que todo o poder de celebrar a ceia do Senhor procede do Cristo.

O sacramento do “matrimônio” faz que a união conjugal do homem e da mulher, renascidos no batismo para a nova vida do Ressuscitado, seja imagem da união do Cristo e da Igreja. Ao mesmo tempo manifesta na menor comunidade dos discípulos, a família cristã, que Cristo é a rocha sobre a qual se edifica a Igreja.

A unção dos enfermos mostra a presença especial de Jesus na situação crucial da doença, que mesmo não sendo muito grave, coloca o ser humano diante da sua condição mortal. Como não sentir, nesse momento, a necessidade da presença da oração da Igreja e do apoio acolhedor de seus braços, sacramento dos braços abertos na cruz do próprio Cristo?

A necessidade de um sacramento para a reconciliação foi inspirada pelo Espírito à Igreja, perante a situação de cristãos que tendo recebido no batismo o dom inestimável do perdão divino e a vida nova em Cristo o rejeitaram pelo pecado, às vezes até negação da fé, e sentiram-se na iminência de cair no desespero, rejeitados por Deus e pela Igreja de Cristo. Por isso, o sacramento nasce como reconciliação com Deus, que passa pela reconciliação com a Igreja. Mais tarde, o sacramento da reconciliação foi configurando-se de formas muito diversas.

A sacramentalidade de alguns dos ritos sacramentais, que passaram na Igreja por configurações históricas, só pode ser compreendida no estudo histórico e teológico de cada um deles. A sua celebração apresenta problemas especiais para que, como postula a SC (n.34), “os ritos resplandeçam de nobre simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade e evitem as repetições inúteis, sejam acomodados à compreensão dos fiéis e, em geral, não careçam de muitas explicações”.

Em todos os sacramentos deveria ser transparente que se celebra o mistério pascal, que os atores são sempre Cristo e a Igreja e que se ordenam à eucaristia. Na implementação da reforma litúrgica, que desde os seus começos se apresentou conflitiva após séculos de rigidez ritual, a Sacrosanctum Concilium afirma prudentemente, para não dizer condescendentemente, que na celebração dos sacramentos se prefira a celebração comunitária. Nesse mesmo espírito, os rituais recomendam a celebração dos sacramentos na eucaristia dominical da comunidade. Se a prática se tornar comum, ir-se-ão abrindo caminhos surpreendentes para sua compreensão. Claro que isto exigirá uma renovação dos ministérios para que toda comunidade possa celebrar facilmente a eucaristia.

 6 Resumindo

Se quer-se recuperar a riqueza da teologia contida na própria tradição litúrgica das ações sacramentais que concretizam a ação da Igreja enquanto sacramento do Cristo, deve-se obedecer aos seguintes princípios:

1) Toda ação litúrgica é de alguma forma ação sacramental enquanto ação de Cristo realizada mediante a sua Igreja para a edificação do seu corpo, para anunciar e tornar presente a salvação em todas as realidades da história humana.

2) A teologia deve abandonar definitivamente a explicação os sacramentos a partir de uma previa noção genérica do sacramento aplicada a cada um deles, mesmo com a ressalva de ser aplicação analógica.

3) Para melhor compreensão dos sacramentos, é conveniente começar, como faz a SC, pela eucaristia, memorial do mistério da morte e ressurreição do Senhor, o mistério dos mistérios ou o sacramento dos sacramentos, por ser o sacramento da própria Igreja e conter, como dizia Tomás de Aquino, totum mysterium nostrae salutis, “a totalidade do mistério da salvação” ou, como afirmavam os Pais, porque a eucaristia faz a Igreja.

Juan Ruiz de Gopegui, SJ. FAJE. Texto original português.

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RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulus, 1989. p.476-97. A vida sacramental.

SEGUNDO, Juan Luis. Teología abierta para el laico adulto, IV. Los Sacramentos hoy. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1971.

RUIZ DE COPEGUI, Juan A. Eukharistia, Verdade e caminho da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.

TABORDA, Francisco. O memorial da Páscoa do Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.

A Bíblia na América Latina

Sumário

1 Memórias da caminhada

1.1 Tradições resgatadas: indígenas e africanas

1.2 Heranças estrangeiras: catolicismos e protestantismos

1.3 Afirmação continental: legado estrangeiro e movimento latino-americano

2 Leituras evangélicas e leituras católicas

2.1 A Bíblia e as igrejas evangélicas pentecostais na América Latina

2.2 A descoberta da Bíblia pela Igreja Católica depois do Concílio Vaticano II

3 Leituras populares e leituras eruditas

3.1 As duas realidades: livro mágico e livro libertador

3.2 As duas sabedorias: expressões populares e pesquisas universitárias

4 A leitura da Bíblia nas comunidades

4.1 Realidade, comunidade e Bíblia

4.2 Método sócio-histórico

4.3 Leitura a partir de novos sujeitos

5 Referências bibliográficas

1 Memórias da caminhada

1.1 Tradições resgatadas: indígenas e africanas

Os habitantes originais destas terras e as populações africanas escravizadas tiveram suas tradições suplantadas, com relação a seus mitos, ritos, cantos, contos, danças, ética e divindades. Nisso se incluem as palavras sagradas, que fazem parte da tradição de tantos povos que construíram a grande pátria latino-americana.

No contato com a Bíblia cristã, não raro as experiências foram traumáticas. Alguns textos bíblicos serviram para libertá-los, a maioria, porém, foi utilizada para justificar a pacificação e a escravidão (SILVA, 1994, p.26-59).

Em tempos mais recentes, há renovado interesse tanto pelas tradições indígenas quanto pelas afrodescendentes. Merecem destaque os diálogos entre suas falas sagradas e a Bíblia cristã. “A palavra se fez índia”, estabelece o diálogo entre a Bíblia e as tradições indígenas da América Latina (JIMÉNEZ, 1997). “Raízes afro-asiáticas no mundo bíblico” destaca a presença de povos afro-asiáticos na própria Bíblia (MENA LÓPEZ, 2006).

1.2 Heranças estrangeiras: catolicismos e protestantismos

A Bíblia Sagrada chegou à América Latina com as caravelas dos primeiros colonizadores, e seguiu, principalmente, em mãos de missionários franciscanos, jesuítas e de outras congregações religiosas. O catolicismo romano que se implantou hegemonicamente nas colônias trouxe as marcas das nações de origem, quer espanhola, quer portuguesa, com suas características específicas. De modo geral, valorizava-se mais a pregação em torno à Bíblia do que propriamente a leitura do texto bíblico. O princípio hermenêutico católico buscou manter o equilíbrio entre Escritura, Tradição e Magistério, posteriormente explicitado no documento Dei Verbum, do Concílio Vaticano II.

O protestantismo teve diversas entradas na América Latina, priorizando a divulgação da Bíblia, com o princípio da livre interpretação e da crítica exegética. Inicialmente, o protestantismo de imigração trouxe a Bíblia junto com a própria tradição eclesiástica reformada. Em seguida, o protestantismo de missão empenhou-se em divulgar o livro bíblico junto aos habitantes do novo Continente. A partir de cada movimento missionário, as igrejas adquiriram formas latino-americanas, manifestadas recentemente nas diversas igrejas e movimentos.

No movimento de expansão missionária, teve grande influência o protestantismo norte-americano sobre o sul do Continente. Motivados pela ideia da América Latina como terra de missão, sociedades missionárias protestantes envidaram esforços no sentido de evangelizar essas nações nos séculos XIX e XX. A presença da Bíblia, naturalmente, foi substancial nesse movimento, com tendência geralmente pentecostal (PIEDRA, 2006).

1.3 Afirmação continental: legado estrangeiro e movimento latino-americano

Historicamente, a América Latina deu largos passos em vista de uma hermenêutica própria da Bíblia, sobretudo com relação às tradições das igrejas. No universo católico, isso se notabilizou nos documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, com a emblemática “evangélica opção preferencial pelos pobres”. Também se caracteriza pelo método ver, julgar e agir e pelo espaço criado pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), mas, sobretudo, pelo protagonismo de novos sujeitos da leitura, a partir das diversas realidades do povo pobre (RICHARD, 2005, p.11-9).

No mundo evangélico, a centralidade da Bíblia se destaca em igrejas, movimentos e intervenções sociais. Fiéis a esse princípio da Reforma, as igrejas evangélicas convivem, de maneira multiforme, com diversas linhas teológicas interpretativas. O liberalismo mantém a leitura crítica da Bíblia; o fundamentalismo identifica a palavra da Bíblia com a Palavra de Deus; a neo-ortodoxia ou teologia dialética afirma a comunicação de Deus pela Bíblia, apesar das falhas que essa pode conter; o evangelismo, com o método histórico-gramatical, afirma a inspiração pelo Espírito Santo, no que diz respeito à salvação; a Teologia da Libertação prioriza os aspectos sociopolíticos e econômicos a partir da realidade do povo (BAILÃO, 2013, p.246-56).

O recente movimento bíblico latino-americano, em seu conjunto, se caracteriza pela proposta de leitura ecumênica da Bíblia, numa tentativa de reunir forças em vista de uma nova hermenêutica.

2 Leituras evangélicas e leituras católicas

 2.1 A Bíblia e as igrejas evangélicas pentecostais na América Latina

 As igrejas evangélicas pentecostais, de maneira geral, se firmaram, na América Latina, sobre a centralidade da Bíblia. “Os pentecostais constituem comunidades bibliocêntricas e bibliocráticas em que o Livro sagrado é regra de fé e conduta e fonte última de autoridade e legitimação” (BENATTE, 2012, p.26).

  Popularizou-se, no último século, o estereótipo do crente que carrega a Bíblia debaixo do braço e argumenta com cadeia de versículos citados de cor. Essas pessoas, denominadas crentes, são, em sua origem, protestantes populares, também denominados evangélicos, ou ainda carismáticos, em geral reconhecidos como pentecostais e, mais recentemente, como neopentecostais. A leitura que fazem da Bíblia, porém, vai muito além do estereótipo popularizado. Essa leitura da Bíblia é feita a partir dos problemas concretos da vida, em especial no combate aos vícios, como álcool, fumo, jogatina e drogas. Indivíduos, famílias e comunidades são recuperados de dependências diversas, graças à força da palavra que liberta dos vícios (PIXLEY, 1991, p.90).

  O dom das línguas, conhecido como glossolalia e o batismo no Espírito provocam a transformação da pessoa, pela busca da vontade de Deus através dos textos das Escrituras Sagradas.

Pela leitura da Bíblia, numerosa população iletrada se apossa da palavra, que lhe permite expressar a sua voz e afirmar os seus direitos. População pobre e marginalizada, por sua vez, é incluída na sociedade, passando gradativamente por transformações sociais e culturais.

A Bíblia dá acesso à participação nos ministérios, mesmo de pessoas leigas e analfabetas. Nessa quebra do clericalismo e do monopólio da palavra, pessoas comuns, em sua simplicidade, exercem ministérios diversos a serviço da igreja e da sociedade.

O respeito à Bíblia leva à interpretação literal, frequentemente taxada de fundamentalismo. Mas, se por um lado há um apego à palavra tal qual foi escrita, há, por outro lado, a abertura para novas interpretações, com as reinterpretações da Bíblia para as novas situações históricas.

 2.2 A descoberta da Bíblia pela Igreja Católica depois do Concílio Vaticano II

 “Nos documentos da Igreja Católica sobre a leitura da Bíblia percebe-se uma evolução. Do temor diante dos métodos histórico-críticos, pelo perigo que poderiam representar à fé, passa-se a reconhecer a sua importância para a correta interpretação e o anúncio da fé” (GARMUS, 2013, p.244).

A evolução relativa à compreensão da Bíblia pela Igreja Católica, expressa nos documentos universais, começa pela Encíclica Providentissimus Deus (1893) e ganha destaque na Divino Afflante Spiritu (1943). Mas o auge dessa mudança acontece no Concílio Vaticano II, com a Constituição Apostólica Dei Verbum (1965). Seguiram-se importantes documentos como A interpretação da Bíblia na Igreja (1993) da Pontifícia Comissão Bíblica, e a exortação apostólica Verbum Domini (2008). Hoje, reconhecidamente, a Bíblia fundamenta toda a ação evangelizadora da Igreja, como afirma a exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco (2013).

Os documentos mais recentes são divulgados nos diversos países do continente latino-americano, com traduções e adaptações populares. Esse reconhecimento da centralidade da Palavra de Deus na vida e missão da Igreja se faz sentir nas conferências do Episcopado Latino Americano. E se alastra pelas dioceses, paróquias e comunidades, com publicações, congressos, comissões, campanhas, escolas, grupos de reflexão, círculos bíblicos e tantas outras iniciativas. Particular destaque merece a divulgação do texto bíblico, com novas edições, traduções e comentários.

Caracteriza a leitura católica da Bíblia a compreensão segundo a qual a palavra de Deus é mais ampla do que a Bíblia. “A Bíblia não é idêntica à palavra de Deus; a palavra de Deus abrange mais do que a Bíblia, é analógica” (KONINGS, 2012, p.240). Isso leva à compreensão de que Deus pode se revelar de outros modos, para além da sua palavra escrita. Essa manifestação divina pode acontecer de maneira natural, na criação, de maneira profética, na história, e de maneira definitiva, na pessoa de Jesus Cristo.

Outra convicção católica é a relação entre Escritura, Tradição e Magistério. Tradição oral e Palavra escrita provêm da mesma fonte e confluem para o mesmo fim, enquanto o Magistério vivo da Igreja, a serviço da Palavra, deve auscultar, guardar e expor essa mesma Palavra (Dei Verbum, n.9 e 10).

3 Leituras populares e leituras eruditas

3.1 As duas realidades: livro mágico e livro libertador

A Bíblia é vista, popularmente, como um livro que possui força e poder em si mesmo, independente de sua leitura ou interpretação. Ela é uma espécie de objeto mágico, numa visão de tendência fundamentalista.

A Bíblia tem poder em si mesma, pois alivia angústias, cura doenças, opera milagres. Ela funciona como talismã ou como calmante, por sua força mágica. Serve para abençoar, como para amaldiçoar e para jurar, com as mãos sobre ela, embora ela mesma proíba o juramento (Mt 5,34).

Nessa visão, a Bíblia é usada como horóscopo, como anestésico, ou como enfeite de estante, e até mesmo como receita para emagrecer. Permite o repouso que relaxa e restaura as forças. Trata-se da interpretação com tendência mais carismática.

Na outra mão, a Bíblia é utilizada como livro libertador. Esse ângulo de análise é aplicado principalmente pela Teologia da Libertação. Desse ponto de vista, ela é mais um estopim revolucionário. Dessa forma a leem grupos de sem-terra, negros, indígenas, mulheres, homossexuais e lésbicas, favelados, ecologistas, operários, pescadores e outras categorias sociais.

É aliada em grandes questões, tais como a luta pela justiça, a defesa da vida, o combate às drogas, os direitos de minorias etc.

Esse método de leitura parte da observação, análise e atuação sobre a realidade, pelo método ver, julgar e agir; considera a Bíblia intrinsecamente ligada à realidade do povo, pela chamada leitura popular da Bíblia; integra a leitura sociológica da Bíblia, pelo modelo conflitual (FERREIRA, 2012, p.14-7). Surgem daí leituras diversas, de acordo com o olhar hermenêutico aplicado – indígena, negritude, feminismo, gênero, etnia, geração. Esta leitura da Bíblia, na ótica da libertação, é feita intencionalmente pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), além de outros setores das igrejas e da sociedade.

3.2 As duas sabedorias: expressões populares e pesquisas universitárias

A Bíblia é, de um ponto de vista, um livro de origem popular. Do mesmo ponto de vista, ela também inspira setores populares. Na América Latina, como em outros Continentes, a Bíblia é, de longe, o livro mais divulgado de todos os tempos. Isso significa que ela está nas mãos do povo, não só como texto escrito, mas também como referencial para ditos e provérbios, para expressões artísticas, como pintura, literatura e cinema. Isso sem contar, evidentemente, com o seu uso mais difundido nas igrejas, seja como texto litúrgico, seja como livro de orações e de catequese, seja, enfim, como inspiradora de toda ação pastoral.

Para exemplificar a maneira como a Bíblia perpassa a cultura popular, seguem algumas expressões de uso corrente, sendo por vezes cópias literais, outras vezes adaptações e outras ainda criações livres. Algumas fazem parte da cultura popular, de tal forma que nem são reconhecidas como bíblicas.

“A costela de Adão” tem reflexos na “cara metade”. “Comer a maçã” reporta ao fruto proibido do paraíso terrestre. A chuva muito abundante é “um dilúvio”. A confusão vira “torre de Babel”. Há o “tempo das vacas magras” como há o “das vacas gordas”. A resignação é “paciência de Jó”, que de fato não era assim tão paciente. Enfim, não se deve “chorar as cebolas do Egito”.

Pelas vias do Novo Testamento, quem não quer pagar as contas diz “não ser o Cristo”. O incrédulo total é o “Tomé”, pois só acredita vendo e metendo o dedo na ferida. Se o lugar for realmente difícil é lá “onde Judas perdeu as botas”. Quem sofre demais “vai vivendo o seu calvário”, ou “carregando a sua cruz”. Há ainda “o bom ladrão”. Para distinguir bem as coisas, é preciso “dar a César o que é de César”. Diz-se também que é preciso “separar o joio do trigo”. Para tirar o corpo fora, basta dizer “lavo minhas mãos”. Se a decepção for muito grande, a pessoa pode “cair do cavalo”. Com relação ao fim do mundo, dizia-se “mil chegará, dois mil não passará”.

Mas a Bíblia é também fonte de pesquisas acadêmicas e científicas. Nos cursos de Teologia, naturalmente, a Bíblia sempre ocupa um lugar central. Há instituições dedicadas prioritariamente ao seu estudo, a exemplo do ISEDET, na Argentina e da UBILA, na Costa Rica. Também não faltam, em diversos países da América Latina, associações de biblistas, com congressos e publicações científicas.

Diversos cursos de especialização lato sensu promovem o estudo da Bíblia, inclusive com reconhecimento pelos órgãos federais. A pesquisa bíblica, entretanto, ultrapassa os muros dos seminários, e se situa também nas universidades, em cursos de Ciências da Religião e de Teologia. Vários cursos de pós-graduação stricto sensu possuem linhas de pesquisa sobre literatura sagrada, para formação em nível de mestrado e doutorado, incluindo instituições públicas federais.

No âmbito das pesquisas acadêmicas, a área denominada mais comumente de Literatura Sagrada, ao invés de Bíblia, amplia-se para a leitura de outras “bíblias”, isto é, para os livros sagrados de outras religiões da humanidade. Dissertações e teses discutem desde os detalhes da exegese do texto bíblico original até as suas aplicações hermenêuticas nas diversas situações do continente.

O desafio de confrontar Bíblia e ciência tem hoje novos enfoques. O interesse pela Bíblia provém, por vezes, de outras áreas, como saúde, direito, ciências exatas, além das ciências humanas. Em vista disso, o âmbito dos estudos inclui, mais explicitamente, contribuições de outras áreas, como literatura, história, sociologia, antropologia e filosofia.

No âmbito das publicações, merecem destaque alguns projetos de âmbito continental.

A RIBLA (Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana) é uma revista de hermenêutica bíblica, parte da experiência cristã radicada na Bíblia e estabelece um elo de interligação da diversidade cultural latino-americana e caribenha. É uma revista ecumênica, tanto na autoria dos artigos, quanto na ótica de sua redação.

A “Bibliografia Bíblica Latino-Americana” é um projeto que visa reunir as publicações da área bíblica da América Latina e do Caribe, junto à Umesp (Universidade Metodista de São Paulo), para disponibilizar o elenco dessas publicações, acompanhado de breve resumo de cada uma.

O “Comentário Bíblico Latino-americano” é uma proposta de comentar todos os livros da Bíblia na ótica das comunidades dos pobres na América Latina, com enfoque ecumênico, prático e pastoral.

No campo acadêmico, destacam-se publicações de leituras eruditas da Bíblia, em suas diversas formas. Há edições do texto bíblico, assim como traduções diversas, incluindo versões para línguas indígenas. Os manuais de exegese abordam desde a crítica textual até as variadas aplicações hermenêuticas. Podem-se consultar dicionários bíblicos, concordâncias e atlas produzidos na ótica latino-americana.

4 A Leitura da Bíblia nas comunidades

4.1 Realidade, comunidade e Bíblia

A leitura da Bíblia inspira toda a ação pastoral das igrejas, mas, na realidade latino-americana, ela anima, sobretudo, as Comunidades Eclesiais de Base. Esse processo de formação de pequenas comunidades começa com uma sementeira de Círculos Bíblicos, onde se reúnem pequenos grupos, para ler a Palavra de Deus à luz da realidade vivida no cotidiano.

Esta interpretação da Bíblia envolve três fatores, intimamente entrelaçados. O primeiro é o contexto da realidade vivida pela comunidade, que constitui o pré-texto da leitura. O segundo elemento é a leitura e aprofundamento da Bíblia, enquanto texto, que ilumina essa realidade. O terceiro fator é a comunidade que lê, formando o contexto da leitura da Bíblia (MESTERS, 1983, p.42-7).

Esse triângulo hermenêutico pressupõe, portanto, que a leitura da Bíblia seja sempre ligada aos problemas das comunidades. Pressupõe, portanto, que a Bíblia é o livro segundo, pois o primeiro livro é a realidade vivida, seja a criação, seja a história, ou o dia a dia. Pressupõe, ainda, que a Bíblia provém de um contexto comunitário e foi escrita em vista da formação de vida comunitária. Daí resulta, como consequência, uma leitura engajada e comprometida com a luta pela justiça.

4.2 Método sócio-histórico

Para além dos diversos métodos exegéticos, a leitura bíblica latino-americana privilegia o método que favorece a compreensão dos diversos aspectos da Bíblia, tais como o social, político, econômico e ideológico. Não raro se aplica a leitura sociológica pelo modelo conflitual, para perceber melhor a vontade de Deus em determinada situação.

Sem desprezar a exegese, sobretudo o método histórico-crítico, a leitura feita nas comunidades tende a aplicar os textos diretamente para a vida, com tendência à hermenêutica. Trata-se de uma aplicação dos textos à realidade de pessoas, famílias, igrejas e sociedades, na busca de uma espiritualidade socialmente engajada (REYES ARCHILA, 1997, p.9-37).

4.3 Leitura a partir de novos sujeitos

O livro sagrado é visto a partir de outros ângulos, privilegiando pessoas que permaneciam no anonimato. Trata-se, inicialmente, de uma opção de classe, conforme o eixo econômico-social, na ótica das camadas empobrecidas. Mas também outras categorias sociais buscam identificação e força na palavra de Deus. Pode-se falar então de uma leitura indígena da Bíblia, valorizando o ponto de vista étnico. A mesma chave étnica revela uma leitura a partir da negritude. Especial visibilidade tem alcançado a leitura a partir da mulher, na ótica de gênero.

A visão se expande na ótica de novos sujeitos que se encontram na interpretação da Bíblia. Vale destacar crianças, as preferidas no Reino dos Céus; idosos, pois com eles está a sabedoria; estrangeiros e minorias étnicas; deficientes para serem integrados; pessoas discriminadas por sua orientação sexual; sem-terra e sem-teto, em busca de direitos fundamentais; ecologistas, na defesa do meio ambiente; e tantas outras categorias (RICHTER REIMER; SCHWANTES, 2005).

Valmor da Silva. PUC Goiás. Texto original português.

 5 Referências bibliográficas

BAILÃO, Marcos Paulo Monteiro da Cruz. O lugar da Bíblia na Igreja e no mundo: uma visão protestante. In: MARIANNO, Lília Dias (org.). Bíblia, violência e direitos humanos: contribuições ao V Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. Rio de Janeiro: Eagle Books, 2013, p. 246-56. Livro digital disponível em: www.furnkranz.com

BENATTE, Antonio Paulo. Os pentecostais e a Bíblia no Brasil: aproximações mediante a estética da recepção. Rever, São Paulo, v.12, n.1, p.9-30, jan/jun. 2012.

FERREIRA, Joel Antônio. Transformação social e a literatura bíblica. In: FERREIRA, Joel Antônio; RICHTER REIMER, Ivoni (org.). Transformação social, economia e literatura sagrada: VI Congresso Internacional em Ciências da Religião. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: PUC Goiás, 2012. p.11-31.

GARMUS, Ludovico. A leitura da Bíblia na Igreja Católica: como ler e interpretar a Bíblia na Igreja. In: MARIANNO, Lília Dias (org.). Bíblia, violência e direitos humanos: contribuições ao V Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. Rio de Janeiro: Eagle Books, 2013. p.210-45. Livro digital disponível em: www.furnkranz.com

JIMÉNEZ, Luz (coord.). A palavra se fez índia. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.26, n.1. 1997.

KONINGS, Johan. Interpretar a Bíblia aos cinquenta anos do Concílio Vaticano II. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.44, n.123, p. 237-56, mai/ago. 2012.

MENA LÓPEZ, Maricel (coord.). Raízes afro-asiáticas no mundo bíblico. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.54, n.2. 2006.

MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983.

PIEDRA, Arturo. Evangelização protestante na América Latina: análise das razões que justificaram e promoveram a expansão protestante (1930-1960). São Leopoldo/Quito: Sinodal/CLAI, 2006. v.3.

PIXLEY, Jorge. Um chamado a lançar as redes (o novo protestantismo e a leitura popular da Bíblia). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.10, n.3, p.86-93. 1991.

REYES ARCHILA, Francisco. Hermenêutica e exegese: um diálogo necessário. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.28, n.3, p.9-37. 1997.

RICHARD, Pablo. RIBLA: 19 anos de trabalho e 50 números publicados – síntese de nossos ganhos mais significativos. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.50, n.1, p.11-9. 2005.

RICHTER REIMER, Ivoni; SCHWANTES, Milton (org.) Leituras bíblicas latino-americanas e caribenhas. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, v.50, n.1. 2005.

SILVA, Valmor da. Historia de la lectura de la Biblia en América Latina. La Palabra Hoy, Bogotá, v.19, n.71/72, p.26-59.1994.

Catequese e iniciação cristã

Sumário

1 Fundamento da catequese na iniciação cristã

2 Parte da evangelização e uma de suas formas

3 Origem e lugar dos catecismos

4 Catequese narrativa; iniciação à vida de discípulos de Cristo

5 Resumindo

6 Referências bibliográficas

1 Fundamento da catequese na iniciação cristã

 A catequese nasceu, na Igreja, ligada à iniciação cristã, o que equivale a dizer que nasceu como anúncio do evangelho de Jesus Cristo, ou seja, da boa notícia que é Jesus Cristo (Evangelii Nuntiandi n.7). Anúncio proclamado pelo próprio Deus em seu Filho Jesus Cristo, mediante a totalidade de vida da Igreja, que constitui a tradição da fé. Segundo a Carta de Paulo aos Colossenses, essa proclamação tem como finalidade iniciar uma vida, um caminho – a vida em Cristo: “Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai nele”. O verbo “receber” (paralambanō) junto com o verbo “transmitir” (paradídōmi) são os termos técnicos que designam o processo da tradição da fé. A fé cristã recebida na tradição, constituída por toda a vida da Igreja, é um caminhar, uma forma de vida antes de ser formulada em conceitos. Os primeiros cristãos são chamados “seguidores do caminho” (cf. At 9,2; 24,14). Em At 18, 25 diz-se de Apolo que “era catequizado no caminho do Senhor” (katekhēménos ten hodon tou kyríou)

A catequese, pois, segundo a tradição, consiste em iniciar alguém a seguir o caminho do Senhor, e essa iniciação, não sendo mera instrução, como mostra o catecumenato dos primeiros séculos, mas iniciação à vida na comunidade dos discípulos de Jesus por palavras e atos: participação na liturgia da palavra junto à comunidade reunida aos domingos para a celebração da Ceia, iniciação ao ethos da comunidade pela prática dos mandamentos, levados à plenitude no mandamento de Jesus (amar como ele amou), e outros atos sacramentais: imposição do sinal da cruz, escrutínios, entrega do símbolo dos Apóstolos, celebrados sempre na liturgia da comunidade.

 2 Parte da evangelização e uma de suas formas

 A Igreja, nascida da ação evangelizadora de Jesus e dos Doze (EN n.15) anuncia o evangelho como Jesus, com toda a sua vida. Desde o nascimento da Igreja, a catequese é uma das formas da evangelização e, por isso, partilha com ela a sua caraterística singular, a descentração da palavra da Igreja perante a Palavra de Deus. Somente assim pode nascer a fé como resposta a Deus que se revela (Dei Verbum n.5). É muito provável que essa característica da catequese explique, como sugere Jungmann, o uso do verbo kathēkhein para falar da iniciação cristã, em lugar de verbos como ensinar ou instruir.

Em grego profano, o termo katēkhein, usado raramente, conserva seu primitivo significado de retumbar, ressoar (cf. ēkhos, eco). Não há dúvida que daí deriva o significado corrente do termo catequese no uso eclesiástico: a mensagem de Deus deve soar ou ressoar diante dos ouvidos humanos, segundo as palavras da oração do ofício litúrgico próprio dos Apóstolos, tomadas do salmo 18(19): in omnem terram exivit sonus eorum (sua proclamação saiu por toda a terra). Nas palavras da catequese deve ecoar outra palavra: a Palavra que transcende as palavras humanas e que, no entanto, só nelas pode ser reconhecida.

A resposta da fé cristã nasce do ensinamento do próprio Deus, como resposta à sua Palavra, que se manifesta em Jesus Cristo. Por acaso não disse ele: “Todos serão ensinados por Deus” (Jo 6,45)? A catequese, pondo diante do catecúmeno o ensinamento de Jesus em atos e palavras, ratificado por sua morte e ressurreição, deve conduzi-lo à escuta da Palavra do próprio Deus. “Quem ouve o Pai e aprende vem a mim” continua dizendo Jesus (Jo 6,45), e assim se cumpre a profecia de Isaías (54,13). Esse é o humilde serviço que a catequese pode prestar ao Evangelho. Reside aí a sua grandeza e a sua dificuldade, ao envolver, de forma que seja significativa, em cada época e em cada lugar do vasto mundo, a vida e ação da Igreja enquanto sacramento do Cristo. A catequese deve entender-se, pois, como serviço à Palavra divina em Jesus Cristo, consciente de que a Palavra é mais do que a letra da Bíblia. A Palavra brota dos lábios divinos e ressoa no coração humano mediante o humilde serviço do anúncio do Evangelho, que deve conjugar a palavra normativa da Bíblia, o testemunho da vida eclesial recebido no processo ininterrupto da tradição da fé e a atenção solícita às angústias e esperanças do ouvinte da Palavra, de cuja salvação a própria Igreja é chamada em cada instante a ser sacramento. As dificuldades da catequese só se superam facilmente quando o anúncio do Evangelho é vivido como tarefa de uma comunidade ciente da responsabilidade de sua missão evangelizadora.

A catequese assim entendida é parte da evangelização e uma de suas formas. O alvo da catequese, como o da evangelização, é “anunciar o Mistério de Cristo” (Catechesi tradendae n.5), “expor à luz, diante de todos, qual seja a disposição divina, o Mistério (…) Compreender, com todos os santos, qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade (…) conhecer a caridade de Cristo, que ultrapassa qualquer conhecimento (…) [e entrar em] toda a plenitude de Deus (Ef 3,9.18 s.)” (Catechesi tradendae n.5).

A evangelização é mais ampla do que a catequese, que é uma das suas formas. A Igreja anuncia o Evangelho com toda sua vida ‒ o tríplice serviço da palavra, da liturgia e da caridade ‒ a exemplo do próprio Cristo, que viveu e morreu por nós e por nossa salvação. Paulo diz da eucaristia: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha” (Cor 11,26). A eucaristia é o ponto culminante do anúncio eclesial da boa nova de Deus em Jesus Cristo, porque, segundo o adágio dos pais da Igreja a eucaristia faz a Igreja.

 3 Origem e lugar dos catecismos

 Tudo isto transparece da prática catequética da Igreja primitiva: basta ler as catequeses batismais e mistagógicas de Cirilo de Jerusalém e de Ambrósio para ver como concebiam a catequese. Na medida em que foi decaindo o catecumenato, no regime da cristandade, ao dar por suposto que nascer num país cristão equivalia a viver a fé cristã, a catequese como iniciação à vida segundo o Evangelho foi esvaziando-se. Se, na Idade Média, ao menos nos ambientes verdadeiramente cristãos, continuou a florescer a vida cristã, foi devido, em parte, ao fato de a própria liturgia, a vida familiar e o ambiente cristão da vida social suprirem o que, antes, o catecumenato fazia, enquanto iniciação à vida na comunidade cristã. Mas, com o desconhecimento progressivo da língua da liturgia e a crescente descristianização dos costumes, foi-se sentindo a necessidade de uma reforma concebida como volta ao Evangelho. Muitos movimentos inspirados em Francisco de Assis, a reforma teresiana do Carmelo, a ordem dos Jesuítas com os exercícios espirituais de Inácio e os movimentos de reforma inspirados por Lutero são testemunhos disso. Essa conjuntura explica o surgimento dos catecismos e sua utilidade. Porém, isolados das circunstâncias específicas em que nasceram, eles desvirtuam o sentido da catequese. A visão descontextualizada dos catecismos é responsável até hoje por pensar a catequese como doutrina ou ensino em contraposição ao anúncio do evangelho.

No Novo Testamento não existe esta contraposição. Jesus anuncia a boa nova de Deus tanto quando proclama o sermão da Montanha como quando ensina aos discípulos, quando conversa com as gentes, quando cura um doente ou liberta alguém afligido por um “espírito impuro”. Em Marcos 1,27, este gesto é reconhecido como “ensinamento novo”. Além de proclamar, anunciar, ensinar, o NT utiliza mais de trinta verbos para designar o que hoje se entende por evangelizar (FRIEDRICH, 1969).

O surgimento dos catecismos foi oportuno numa época em que, embora sem ser questionada, a adesão à fé cristã sofria sérias deformações, originadas principalmente da falta de transparência do testemunho da instituição eclesial, cuja missão é ser, com toda a sua vida, sacramento do Cristo. Essa situação lamentável exigia reforma urgente, que, por não ter sido feita a tempo, causou dolorosa divisão entre os cristãos. Tanto no campo católico da reforma, quanto no protestante, os catecismos, conjugados com outras iniciativas, tiveram uma função benéfica, ao mostrar o que se deve crer e como se deve agir e orar para ser discípulo de Cristo. Hoje, num mundo de exacerbado pluralismo de crenças e caminhos religiosos, volta imperiosa a necessidade que tiveram os discípulos do Crucificado: mostrar que, em Jesus Cristo, Deus se revela e oferece a salvação a todo ser humano. Quem não é capaz de viver a vocação cristã como serviço à salvação de todos na pluralidade das opções religiosas não é verdadeiro discípulo do Cristo.

 4 Catequese narrativa; iniciação à vida de discípulos de Cristo

 Os evangelhos mostram que o reconhecimento de Jesus como Filho de Deus só pode acontecer para quem se torna discípulo e se dispõe a segui-lo como caminho de vida. A catequese deve ser sempre um processo de iniciação à vida dos discípulos de Cristo. Deus não pode ser reconhecido em Jesus Cristo, que morreu crucificado por ter dedicado sua vida aos demais, pondo em primeiro lugar os pobres e excluídos, para mostrar que é o caminho para Deus, a não ser por quem a esse caminho abra o coração e ponha nele, como opção preferencial, os pobres e os excluídos, em consonância com a orientação do episcopado latino-americano.

A catequese, por isso, deve ser narrativa, ou seja, deve mostrar ‒ não apenas afirmar ‒ a partir dos atos e palavras de Jesus que, nele, Deus se revela, porque somente assim pode nascer, como opção livre e como dom divino, a obediência da fé. Não se trata apenas de contar a vida de Jesus, mas de mostrar que em Jesus o caminho da fé de Israel, arraigado no caminhar histórico de Israel e de todas as religiões, chega à sua plenitude e revela o caminho salvador de Deus, presente desde sempre de diversas formas (cf. Hb 1,2). Por isso os evangelhos e as cartas dos apóstolos ‒ primeiros subsídios da catequese ‒ mostram, com a insistente repetição da frase “para que se cumpram as Escrituras”, que, em Jesus, chega à plenitude o caminho da autocomunicação divina, não só para Israel, mas para a humanidade. Isso explica também que as Escrituras de Israel falem de personagens como Noé, Abel, Adam, que não são ancestrais do povo, para mostrar, na figura simbólica de Adão (que em hebraico significa homem), que a revelação testemunhada nas páginas do Livro transcende o povo que nelas as consignou.

Eis um desafio da catequese para hoje, quando a pluralidade das culturas e das religiões, na era da comunicação irrestrita e globalizada, apresenta-se diante dos olhos de todo ouvinte da Palavra. Se os cristãos são os seguidores do Caminho, que é Jesus, a Igreja, ao reconhecer seus limites geográficos, históricos e culturais enquanto caminho singular de salvação, deve superar as fronteiras da salvação que anuncia, para que resplandeça a verdade do seu caminho como fonte de vida para todos.

 5 Resumindo

 Resumindo o que foi dito, podem-se enumerar algumas características fundamentais da catequese:

1) A catequese é anúncio do evangelho de Jesus Cristo. Deve aparecer como alegre notícia do amor de Deus, que transcende “os pensamentos humanos” (cf. Mc 8, 27), a tal ponto que se revela no seu Filho condenado a morrer crucificado, denunciando como idolátrica toda ideia do divino oriunda da projeção ao infinito das aspirações humanas de poder e dominação.

2) A catequese deve ser iniciação à vida na comunidade cristã. Por isso não pode ser reduzida à instrução. Sujeito agente da catequese é toda a comunidade. A eucaristia, sem a qual a Igreja não pode existir nem crescer, porque “a eucaristia faz a Igreja”, é lugar eminente de catequese, catequese mistagógica ou de iniciação ao mistério, que é o Cristo revelador de Deus. A eucaristia é o lugar proeminente da formação da comunidade, também dos catequistas, sem que se negue com isso a necessidade de outros subsídios para a formação desses. Consequência óbvia disso é a necessidade de uma mudança nos ministérios, para que toda comunidade tenha possibilidade de celebrar a eucaristia como expressão significante do seu próprio mistério.

3) Em cada circunstância da vida, a reposta da fé – o reconhecimento do Crucificado como salvador e Filho de Deus – apresenta desafios novos, às vezes surpreendentes; por isso, a catequese deverá continuar em outras de suas várias formas: escola dominical da fé para adultos, cursos, retiros espirituais etc. No entanto, no mundo agitado de hoje, em que a sobrevivência própria e a dos filhos é devoradora desumana do tempo dos humanos, a única forma possível de catequese será, para muitos, a catequese mistagógica da eucaristia. Ela será suficiente se a celebração dominical for mais do que mera rotina de cumprimento de um preceito. Eis de novo um desafio para a Igreja e a revisão dos ministérios.

4) Passado o regime da cristandade, a família cristã que batiza uma criança deve se comprometer, com ajuda da comunidade, na educação para iniciação progressiva à vida cristã. Daí a importância da família, que deverá ser ajudada por alguma instância pastoral da comunidade na delicada tarefa de iniciar as crianças na fé cristã, de maneira que o resultado seja a alegria da boa notícia do amor de Deus revelado em Jesus.

5) Por volta dos 5 ou 6 anos de idade deverá começar, na comunidade, a catequese ou catecumenato para as crianças batizadas em tenra idade, que as ajude a continuar a vivência cristã iniciada no seio da família. À semelhança do catecumenato antigo, a catequese não consistirá apenas em ensinamentos. Elemento fundamental será a participação das crianças com os pais na eucaristia dominical, na qual deveriam comungar logo que manifestarem desejo e forem capazes, como dizia Pio X, de distinguir o pão eucarístico do pão comum. Não se pode fazer da eucaristia um prêmio para quem, por determinado tempo, aprendeu o catecismo ou frequentou a catequese. Consequentemente, a catequese não pode ser pensada como “catequese para a primeira comunhão” e deverá continuar durante toda a infância e, em configuração diferente, na adolescência. Pode-se falar em duas fases da catequese.

6) A catequese na adolescência é de suma importância, por ser o período do questionamento da educação recebida dos pais e da crise salutar que, bem orientada, conduzirá a uma opção adulta da fé, à sua confirmação, que poderá ser coroada com o sacramento da confirmação. Por isso, também, não é conveniente definir a catequese desse período como preparação para a confirmação. A catequese ou catecumenato continuado nos seus diversos períodos visa a formar o cristão adulto, capaz de discernir na sua vida o que Deus quer dele. E, por isso, também capaz de decidir quando se encontra disposto para assumir de forma adulta a missão do serviço do evangelho para a salvação do mundo e pedir, à Igreja, o sacramento da confirmação do batismo. Essa visão da catequese, que ganharia ao chamar-se de catecumenato, pode parecer utópica, mas deve ser posta em prática ‒ e já existem experiências nesta direção ‒ pelas comunidades que quiserem superar a constante frustração da ineficácia de tantos caminhos de catequese baseados apenas na transmissão de conhecimentos.

7) Na medida em que o batismo tornar-se uma opção consciente por iniciar os filhos na vivência eclesial da fé cristã, haverá cada vez mais adolescentes, jovens e adultos não batizados que despertarão para a fé cristã e pedirão para serem nela iniciados. Ao lado do catecumenato dos batizados, as paróquias deverão organizar o catecumenato de adultos, que normalmente deverá durar pelo menos um ano. Há experiências bem sucedidas e promissoras na atualidade. O específico do catecumenato, como foi apresentado aqui, é a iniciação à vida na comunidade cristã. Se, nos primeiros tempos da Igreja, o catecumenato configurou-se como preparação à recepção dos sacramentos pascais e se, na Idade Média, em situação de cristandade, a família e a sociedade supriam de alguma forma a função da comunidade, no mundo pluralista de hoje a Igreja deverá encontrar as formas mais condizentes de iniciação à vida cristã. A Igreja recebe de Cristo os sacramentos, ao ser chamada, na Páscoa, a ser sacramento do Cristo. Por isso afirma que os sacramentos são instituídos pelo Senhor, não inventados por ela. Isso, porém, não a dispensa de encontrar as formas de configuração que, em cada época, são significantes da Páscoa do Cristo. E isto vale para a configuração da catequese ou catecumenato para a iniciação cristã. O “Ritual de Iniciação Cristã de Adultos” (RICA) é exemplar, neste sentido, ao permitir e sugerir variedade de formas de adaptação.

Na base de todos esses itens há uma verdade fundamental, fácil de ser esquecida: a catequese deve ter a humildade de permitir a Deus que fale por meio de seu Filho Jesus Cristo, o Crucificado, mediante o dom do Espírito, ao coração do catecúmeno. Somente assim a fé pode ser resposta a Deus que se revela.

Juan Ruiz de Gopegui, SJ. FAJE. Texto original português.

 6 Referências bibliográficas

 CELAM, V Conferencia general del  Episcopado Latinoamericano  y del Caribe. Documento Conclusivo. Discípulos y Misioneros de Jesucristo para que nuestros pueblos en Él tengan vida “Yo soy el Camino, la Verdad y la Vida” (Jn 16,4). Disponível em: http://www.celam.org/aparecida/

CNBB. Catequese Renovada. Doc. n.26 da CNBB. 1983.

______. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015. Documentos CNBB, 94. Brasília: Ed. CNBB, 2011.

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FRIEDRICH, Gerhard, kēryssō. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. Grande Lessico del Nuovo Testamento, v.5, p.441-2. Brescia: Paideia,1969.

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RUIZ DE GOPEGUI, Juan A. Catequese e Comunidade cristã. Perspectiva Teológica, v.37, n.103, p.315-36. 2005

RUIZ DE GOPEGUI, Juan A. Iniciação cristã. Revista de Catequese, n.9, p.3-18. 2000.

A riqueza espiritual das religiões. O que nos ensinam as outras religiões a respeito da espiritualidade?

Sumário

1 Introdução

2 O diálogo da experiência religiosa

2.1 O olhar contemplativo

2.2 O reconhecimento da transcendência

2.3 A dádiva e a sacralidade da vida

2.4 A conexão humanidade/natureza

2.5 O hábito da oração

2.6 A prática das virtudes

2.7 A iniciação e o discipulado progressivo

3 Conclusão

4 Referências bibliográficas

1 Introdução

As religiões preservam um patrimônio espiritual valioso e plural, pois registram um conjunto significativo de experiências, valores, métodos e itinerários espirituais que, no curso dos séculos, têm inspirado milhares de pessoas e comunidades. Ao lado do cristianismo, esse patrimônio compõe o tesouro milenar da experiência religiosa humana, objeto não só de estudo, mas também de diálogo entre os seguidores das diferentes religiões. Com efeito, o diálogo da experiência religiosa é uma via específica do diálogo inter-religioso que tem promovido o encontro, a compreensão recíproca e a convergência das religiões em aspectos comuns, como a valorização da transcendência, a visão sagrada do tempo e do cosmos, o respeito pela pessoa humana, a promoção da justiça, o cuidado ecológico e a paz.

Considerando a abrangência do tema para a História das Religiões, a Teologia e a Espiritualidade Cristã, buscou-se apresentar, aqui, uma seleção de elementos que nos permita perceber e apreciar a riqueza espiritual das religiões, tendo presente nossa identidade cristã. Assim, foram elencados os elementos espirituais que respondam a dois critérios: de um lado, que sejam característicos de um determinado credo, pertencendo à sua herança própria; de outro, que sejam significativos à fé cristã, porque dialogam com as perspectivas teológicas do cristianismo e favorecem o aprofundamento da própria espiritualidade cristã.

Há quem admita que certos elementos da experiência mística das religiões possam ser assumidos seletivamente pela fé cristã, à medida que – respeitado o dado revelado – contribuem para o aprimoramento de métodos e percepções da espiritualidade cristã, como a postura apofática diante do Absoluto (budismo), os métodos de concentração no ato de meditar (hinduísmo), o vínculo com a natureza criada (culto de Orixás) ou o abandono confiante de si mesmo a Deus (Islã Sufi). Outros se posicionam mais no campo da observação que da assunção: estudam e apreciam positivamente os elementos espirituais das religiões, mas assumem somente aqueles típicos da tradição judaica já presentes nas Escrituras, na Liturgia e/ou na tradição Patrística.

Trata-se de um debate em curso, que envolve fenomenólogos, teólogos e missionários cristãos (cf. CUTTAT, 1996; BASSET, 1996; NATALE TERRIN, 2003; DUPUIS, 2004). No passado, os ritos sacramentais assumiram material simbólico dos cultos mediterrâneos, sem perder o sentido pascal; os hesicastas aplicavam disciplina mental e controle da respiração, ao modo oriental, para orar com a mente e o coração; e Santo Agostinho integrou a perspectiva personalista do platonismo em seu caminho de conversão ao Evangelho (cf. CUTTAT, 1996, p.763-73).

Recentemente, tanto o magistério da Igreja quanto a reflexão teológica têm discernido essas questões à luz das seguintes afirmações de fé: a vontade salvífica de Deus é universal e há um só plano redentor para toda a humanidade (Ef 1,9-10; 1Tm 2,4-6); a mediação salvadora de Jesus – o Verbo de Deus – é objetivamente universal, até mesmo para quem não o conhece, nem o professa como Salvador (Jo 1,3-4; Col 1,15-17); o Espírito Santo ilumina a inteligência e suscita a oração autêntica de todos os que buscam Deus com sinceridade, em qualquer cultura e credo (Sab 1,6-7; At 17,27-28); toda pessoa humana é “imago Dei” (imagem e semelhança de Deus) enquanto criatura, já antes do batismo, destinada a conhecer e amar o Criador que a ela se revela (At 17,28; Col 1,15-16); enfim, que há uma Revelação geral de Deus a todos os povos, além da tradição judaico-cristã, pela qual o Verbo se manifesta e estabelece com a humanidade um diálogo de salvação (Mt 2,1-2; Rm 1,19-20); pois “Deus não faz discriminação entre pessoas: pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).

Como se percebe, a explanação desses pontos supera as linhas deste verbete. Para um estudo mais detalhado, leiam-se os documentos: “Diálogo e anúncio” (Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso), “O cristianismo e as religiões” (Comissão Teológica Internacional) e “Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã” (Congregação para a Doutrina da Fé).

 2 O diálogo da experiência religiosa

 Ao lado da convivência cotidiana, da promoção conjunta do bem comum e do intercâmbio teológico, o diálogo inter-religioso se dá também no nível da “experiência religiosa, onde pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto” (Diálogo e anúncio n.42d). É neste nível que se pode indagar, como cristãos, o que as outras religiões podem ensinar a respeito da espiritualidade, no sentido aproximativo esclarecido acima (cf. Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16). Em resposta a isso, propomos aqui sete tópicos de aprendizado dialógico, em que a vivência da espiritualidade cristã se vê positivamente interpelada a desenvolver-se e aprofundar-se, com ênfases distintas e/ou complementares, em face das demais religiões:

 2.1 O olhar contemplativo

Nas diversas culturas, as religiões cultivaram o olhar contemplativo sobre o universo, o devir do tempo, as demais pessoas e as criaturas em geral. Desenvolveu-se, assim, uma abordagem da vida, do tempo e do espaço não restrita ao que se pode medir e explicar por cálculo, mas que descortina uma episteme (modo de conhecer) de estilo conjuntivo e simbólico. O ser humano se percebe pequeno diante da imensidão dos céus, mas intimamente conexo com o mundo, o qual contempla com curiosidade e reverência. Ao observar o céu, intui-se o infinito; ao seguir o fluxo das estações, percebe-se o impulso vital da natureza; ao celebrar nascimentos e mortes, indaga-se sobre o além. A vida revela-se muito mais fluente e complexa do que poderiam explicar as equações da química e da mecânica.

O olhar contemplativo educa-nos a procurar as causas primeiras, o tempo antes do tempo, o começo primordial de todas as coisas, a partir de onde podemos interpretar o presente e vislumbrar o futuro. Assim, as religiões sugerem emblemas do mundo, em símbolos e narrativas que comunicam sentido e educam à contemplação (cf. MAÇANEIRO, 2011, p.111-25). O Hinduísmo entrevê a unidade de todas as coisas por trás da multiplicidade dos fenômenos; o budismo fala da provisoriedade do tempo e do espaço, cuja consistência está além do que podemos enxergar; a cabala judaica descobre uma “cadeia de esferas” (sephirot) interligadas, contendo centelhas divinas que se combinam para criar os corpos, da pequena célula às grandes estrelas; o Islã reverencia a potência criadora da Palavra divina, que fez o mundo visível e o invisível; o culto de Orixás diz que tudo se mantém pela energia (axé), que se direciona ao propósito de manter o equilíbrio humano e cósmico (obá).

Considerando que nós, cristãos, vivemos predominantemente no Ocidente, dominado pela racionalidade analítica e instrumental, aprendemos – com as demais religiões – a preservar e atualizar nosso olhar contemplativo: intuitivo, mas não ingênuo; buscador das causas e aberto ao futuro; em diálogo com as ciências, mas não reduzido à parcela evidente da matéria, capaz de desvendar o sentido profundo dos fenômenos à luz do querer benevolente do Criador (cf. Ef 1,3-10).

 2.2 O reconhecimento da transcendência

As religiões declaram que a realidade vai além do quanto podemos medir, explicar e reproduzir. De fato, mesmo no campo científico, constatam-se ondas magnéticas e variações de energia invisíveis ao olho humano, presentes no arranjo geral do cosmo e da vida planetária. Além disso, as religiões entendem a transcendência como o Todo que contém a parte, ou o sentido último da existência: a ciência mostra o como; as religiões decifram os porquês. Surgem noções como o Tao:

Olha-se e não se vê: chama-se invisível.

Escuta-se e não se ouve: chama-se inaudível.

Toca-se e não se sente: chama-se impalpável.

Essas três coisas não se podem indagar.

Por isso, mescladas, formam juntas uma só coisa.

No alto não é claro,

Abaixo não é escuro.

É inesgotável e não pode ser nomeado.

Remonta-se ao não-ser das coisas.

Chama-se forma sem forma; figura sem figura.

Não se pode compreender: é mistério.

Quem o encara, não vê seu rosto.

Quem o segue, não vê suas costas. (Tao-te-ching: Capítulo IV, 1.5.3)

 O Tao não tem definição: é uma intuição que afirma a Unidade que integra todos os seres e todos os fenômenos, anterior às distinções que percebemos. Pois para o taoísmo, bem como para o hinduísmo e o budismo, a realidade não se define pelas formas aparentes; nem mesmo a Divindade é um Ser ao modo dos demais seres: forma e figura se desfazem, apontando para um Absoluto que se mostra e se esconde ao mesmo tempo, fugindo de nossas representações. Com outra abordagem, o judaísmo e o Islã se concentram nos atributos positivos do ser, inclusive de Deus, declarando-o Santo, Justo, Onisciente e Eterno. E, contudo, Deus abarca “o manifesto e o oculto” (Alcorão 57,3).

Aprendemos, assim, a equilibrar mística e teologia, intuição e conceito, para não sermos reféns de nossas representações. Afinal, a verdade da fé professada não está apenas no termo das formulações doutrinais, mas no sentido que os conceitos preservam. Em última instância, a doutrina deve converter-se em caridade, na relação com Deus e os semelhantes (cf. Lc 10,29-37; 1Jo 3,16-18). De outro modo, Deus seria apenas uma fórmula professada, enquanto que é mais que isto: é Amor (cf. 1Jo 4,7-10). A linguagem das outras religiões nos alerta sobre o valor da analogia e do símbolo, em relação aos termos e formulações, em vista de uma espiritualidade que equilibre afeto e inteligência, saber e sabor, adoração e solidariedade. A síntese desses aspectos certamente favorece uma espiritualidade cristã mais integral, respeitosa do mistério e disposta aos novos aprendizados do Espírito Santo, o mestre interior (cf. Rm 8,26-27).

 2.3 A dádiva e a sacralidade da vida

Todos os elementos vitais são acolhidos como dádiva, pelas religiões: a água, o solo, o ar, os grãos, os fármacos, as fontes naturais de energia e a identidade genética dos organismos. Nada disso pode ser produzido pelo engenho humano de uma forma absolutamente nova: nossa ciência se limita a classificar e recombinar os componentes. Reconhecendo o valor desses bens naturais, as religiões celebram a vida como dádiva e reverenciam a Divindade que a criou e a confiou aos nossos cuidados:

Dono do mundo diante dos deuses,

Senhor de altíssima casa na corte do céu.

Arrasador que fere à direita.

Arrasador que fere à esquerda. (Hino a Ogum: Culto de Orixás)

 Que o céu se alegre! Que a terra exulte!

Estronde o mar e tudo o que ele contém!

Que o campo exulte, e o que nele existe!

As árvores da selva gritem de alegria,

diante de Adonai – pois Ele vem! (Salmo 96,11-13: Judaísmo)

 Disse o Senhor Krishna:

Eu forneço calor e retenho a chuva.

Sou a imortalidade e a morte personificada.

Tanto o espírito quanto a matéria estão em mim. (Bhagavad-Gita 9,19: Hinduísmo)

 Foi Allah quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras;

e seus desígnios se cumprem, nos céus e na terra,

para que saibais que Deus é onipotente:

Ele tudo abrange com sua onisciência. (Alcorão 65,12: Islã)

 As religiões nos falam da dádiva e do culto de louvor pela vida recebida. O hinduísmo nos recorda a dimensão cósmica da existência, maior que o pequenino planeta Terra com seus habitantes e sua tecnologia tão pretensiosa. O culto dos Orixás aponta para o poder tremendo da Divindade, percebida na energia ígnea que tudo derrete (Ogum) e na força das águas abissais (Ocum): este poder encanta e faz tremer! Assim, a dádiva é acompanhada de reverência e respeito, redimensionando nossas pretensões de domínio e exploração da Natureza. Acolhendo a sabedoria das religiões, nós cristãos festejamos o Deus Criador recitando a mesma bênção proclamada por Israel: “Bendito sejais, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pelo fruto da videira! Bendito sejais vós, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pelo fruto da terra!” (berakhá judaica, retomada na apresentação das oferendas do Rito Eucarístico). A dádiva é reconhecida, e a ação de graças se prolonga na vida preservada e partilhada.

 2.4 A conexão humanidade/natureza

Herdeiros do método científico cartesiano e afoitos em consumir, nós cristãos aderimos quase sem notar ao jogo financeiro que transforma a natureza em mercadoria. Mas no princípio não era assim, pois a Sagrada Escritura propõe o mundo como pomar a ser cultivado, declarando o ser humano guardião e jardineiro dos bens naturais (cf. Gn 2,8.15). Algo semelhante lemos no Alcorão: “Allah vos constituiu seus vice-regentes na terra” (Sura 6,165), pois “assim se comportam os servos do Misericordioso: eles pisam a terra com humildade” (Alcorão 25,63).

Tanto cientistas quanto teólogos admitem que o Ocidente tenha um déficit de espiritualidade em comparação com o Oriente, no que se refere, sobretudo, à natureza (cf. NATALE TERRIN, 2003, p.89-90). Somos mais consumidores do que cultivadores; exploramos muito e reciclamos pouco; acumulamos mais do que partilhamos. A crise de recursos naturais, as anomalias climáticas e a pouca distribuição de alimentos estão aí, alertando sobre uma espiritualidade desatenta às conexões entre humanidade e meio-ambiente.

Neste sentido, a releitura ecológica da Bíblia e a elaboração de uma Teologia da Criação mais dinâmica podem dialogar com a abordagem conectiva da cosmovisão hinduísta e africana. Para o hinduísmo, tudo está ligado a tudo na constituição do cosmos, que é movido pelos princípios de geração e degeneração, ganho e perda de energia, nascimentos e mortes, personificados pelas divindades Vishnu e Shiva, respectivamente. O ser humano não se encontra fora deste movimento, mas dentro, ao lado das demais criaturas, embora se distinga delas pela racionalidade. Já o culto de Orixás vai às raízes da vida, da saúde e da fecundidade, conectando as habilidades humanas de plantar, caçar, forjar metais e preparar remédio à sabedoria dos deuses e ancestrais.

Para o cristianismo, dialogar com estas perspectivas não significa negligenciar as fontes bíblicas, nem disfarçar algum tipo de panteísmo, mas acolher enfoques que otimizam ainda mais nossa confissão cristã no Deus Criador. Assim, nossas releituras de Teologia da Criação poderão dialogar com as ciências e também com as demais religiões, em vista da preservação da vida humana e planetária. Do ponto de vista da conexão humanidade/natureza podemos desenvolver melhor a Pneumatologia, tratando da ação do Espírito Santo na criação, como elo das criaturas entre si e destas com o Criador (cf. Gn 1,2; Sab 7,22 – 8,1; Rm 8,22-23). Do ponto de vista do cultivo, da geração e da cura, podemos valorizar o corpo como locus da experiência de Deus, integrando a dimensão terapêutica na compreensão de salvação integral do cristianismo (cf. Mt 10,1; Lc 7,24-37; Rm 8,18-25; Tg 5,13-16). “Ou acaso não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo?” (1Cor 6,19).

 2.5 O hábito da oração

A oração é uma constante nas religiões. Embora tenha diferentes sentidos e modalidades – como disciplina mental para o budismo zen, ou união amorosa com o divino para o Islã Sufi – todas as religiões a valorizam. Trata-se de uma prática progressiva e habitual, rumo à excelência: oração apaziguadora, transformadora e frutuosa. Enquanto o hinduísmo védico acentua a oração litúrgica acompanhada de oferendas, o hinduísmo devocional se concentra na recordação amorosa da Personalidade Divina (Krishna) através dos mantras e do afeto cordial. O budismo monástico, por sua vez, desenvolveu métodos e ritos comunitários de oração, sem descuidar da subjetividade espiritual de cada monge, cuja contemplação atinge níveis notáveis de sintonia psicossomática: a oração budista segue estrita disciplina mental, supera o nível das palavras e conceitos, pacifica as atividades mentais e desenvolve a consciência corporal, com técnicas de respiração. No judaísmo, temos a poesia dramática dos salmos (tehilim) e as orações feitas na sinagoga ou em família (kidushim).

Como ocorre no cristianismo, encontramos nas religiões diferentes graus oracionais: desde as orações mais comuns até as formas elevadas de contemplação. A cabala judaica desenvolveu a oração solidária e zelosa, pela qual o fiel (hassid) se associa à graça redentora que envolve todos os homens, ciente de que a centelha divina que nele arde o aproxima de Deus e das demais criaturas. A prece do hassid vai da alegria à compunção com lágrimas! (cf. SHOLEM, 1993, p.333-56). Já os sufis muçulmanos usam do canto e da dança para orar juntos, rodopiando em sintonia com a órbita dos astros: movem-se em círculo (sema), ouvindo músicas cadenciadas pela recordação dos Nomes de Deus (zikr), em atitude de total abandono a Allah (cf. NATALE TERRIN, 2003, p.112-22; KÜNG, 2010, p.381-93).

Desses exemplos, aprendemos a valorizar a oração e a desenvolver métodos que a façam mais habitual e frutuosa. Também nós, cristãos, concebemos a oração como exercício integrador para a pessoa, no diálogo amoroso com Deus, na forma de louvor, petição, agradecimento ou adoração. Preservadas as distinções, admitimos que a disciplina zen e a dedicação sufi à oração nos levam a avaliar a qualidade da nossa própria oração, já que temos tantos meios e itinerários para cumpri-la: invocação do Nome de Jesus, recitação dos salmos, rosário ocidental e bizantino, contemplação dos ícones, oração de quietude, contemplação dos mistérios de Jesus no Evangelho, leitura orante da Bíblia (lectio divina), via sacra e oração litúrgica. Um dos desafios, além da disciplina que gera o hábito, é integrar mente e coração numa oração menos formalista e mais cordial, que seja verdadeiramente mistagógica: enraizada na Palavra de Deus, animada pelo Espírito Santo, integrada à experiência sacramental, inserida no cotidiano de cada cristão, significativa para o sujeito e animadora da caridade fraterna.

 2.6 A prática das virtudes

As virtudes fazem do sujeito humano um forte – como ensina a raiz latina da palavra virtus (= força). Forte é o labor do solo. Forte é o amor dos genitores. Forte é a alegria dos jovens. Forte é o sacrifício oferecido. Forte é a dignidade dos anciãos. Forte é o cavar poços. Forte é a forja do metal. Forte é a paz sobre a guerra. Forte é a compreensão. Forte é a sabedoria. Forte é a palavra proferida. Forte é a piedade sobre a impiedade. Forte é o caminhar no deserto. Forte é a récita das Escrituras. Forte é a oblação. Forte é a memória celebrada. Forte é a gratidão. Forte é a compaixão. Forte é a prece. Forte é a virtude. Forte é o virtuoso” (MAÇANEIRO, 2011, p.135-6).

 Todas essas nuances da virtude são ensinadas pelas religiões:

Fala a verdade. Segue o caminho da retidão. Não negligencies a recitação das lições [os Vedas]. Depois de trazer a riqueza apreciada pelo teu mestre, não cortes os laços. Não negligencies a verdade. Não negligencies a religião [o Dharma]. Não negligencies o bem-estar de teu corpo. Não negligencies a fortuna e a riqueza. Não negligencies o estudo e o ensinamento dos textos sagrados. Não negligencies os rituais para honrar os deuses ancestrais. Considera tua mãe como um deus; considera teu pai como um deus; considera teu mestre como um deus; considera os hóspedes como um deus. Pratica as ações que não merecem censura, e não outras. Leva em consideração apenas o bem que vês nos outros (…). Partilha com fé; não partilhes sem fé. Dá com generosidade; dá com modéstia; dá com temor; dá com pleno conhecimento e compaixão. (Taittirya Upanishad 1. 11. 1-3: Hinduísmo)

Quem faz surgir o amor — sem medidas, cuidadoso (…) — mostrando amor a um ser vivo que seja, sem malícia, já passa com isto a ser virtuoso. Compassivo em espírito com todos os seres, alcança ricos méritos. Aqueles que, depois de vencer a terra com todas as suas multidões, se fazem sábios e reis, e oferecem sacrifícios, não possuem uma décima parte do valor de um ânimo amável e bondoso. Quem não mata, nem faz matar; quem não oprime, nem permite opressão, mostra amor a todos os seres e não teme de ninguém a inimizade. (Itivutaka, 27: Budismo)

O espírito de Adonai repousa sobre mim, porque Adonai me ungiu. Enviou-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão encarcerados; enviou-me a proclamar um ano aceitável para o Senhor. (Isaías 61,1-2: Judaísmo)

 A piedade não consiste em voltar a face ao Oriente ou ao Ocidente. Piedoso é aquele que crê em Allah, no juízo, nos anjos, no Livro e nos profetas; que, por amor a Deus, dá de seus bens aos parentes, aos órfãos, aos necessitados, aos peregrinos e aos mendigos; é aquele que resgata os escravos, recita as preces e paga o tributo dos pobres; que cumpre suas obrigações, suportando adversidades, infortúnios e perigos. Assim são os crentes e piedosos (Alcorão 2,177: Islã).

 Vê-se claramente a distinção entre pio (justo e misericordioso) e ímpio (injusto e perverso). Neste sentido, as religiões convergem nas virtudes evangélicas e reforçam a convicção cristã na caridade ativa e profética, em vista do Reino de Deus no mundo. Esta convergência de valores e atitudes consolida uma espiritualidade centrada no amor, e favorece a ação conjunta das religiões em benefício da justiça e da paz:

Pois o diálogo inter-religioso, além de seu caráter teológico, tem significado especial na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã. (Documento de Aparecida n.239)

 2.7 A iniciação e o discipulado progressivo

Quando se trata de espiritualidade, as religiões alertam sobre os riscos do individualismo e das pretensões desmedidas de quem pensa poder avançar sozinho. Daí os graus de iniciação e os estágios a serem percorridos pelo neófito (discípulo iniciante) sob a assistência de um mistagogo (mestre iniciador). O hinduísmo védico valoriza a disciplina mental e corporal, com uma série de passos: abstinências (yama), observâncias ascéticas (niyama), posições do corpo (asana), controle da respiração (pranayama), controle dos sentidos (pratyahara), treino da concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase contemplativo (samadhi). Esses passos são acompanhados pelo estudo das Escrituras (Vedas), para que o discípulo reconheça sua condição humana, supere a ignorância e os vícios, treine as virtudes e atinja o estado de libertação, imerso no Uno cósmico-divino (moksha). Já o hinduísmo devocional se concentra no conhecimento e adoração de Krishna, professado como divindade pessoal e misericordiosa: “Eu sou a meta, o sustentador, a testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente eterna” (Bhagavad-Gita 9,18). Enquanto o hinduísmo védico se volta ao Uno cósmico impessoal, o hinduísmo devocional adora Krishna como divindade pessoal, próxima e benevolente: Amado, Amigo e Companheiro. O discipulado segue um processo educativo, para aprimorar os bons hábitos, a não violência e o amor por todas as criaturas vivas (ahimsa), a veracidade de pensamentos, palavras e ações (satya), a pureza mental e corporal (shauca), a misericórdia (daya), com o estudo simultâneo das Escrituras (Bhagavad-Gita). A finalidade é superar o egocentrismo, e disciplinar a inteligência e os afetos na adoração a Krishna, mediante a via unitiva: “Não posso adorar-te em teu templo, nem invocar-te diante de teus símbolos, nem oferecer-te flores molhadas de orvalho, porque tu mesmo habitas o coração das flores. Como posso juntar minhas mãos e inclinar-me em tua honra? Tudo isto é, de fato, um culto imperfeito, porque tu, Senhor, habitas em mim” (Tayumana Swami, séc. XVII, apud ACHARUPARAMBIL, 1984, p.560).

Em outras coordenadas culturais, o culto de Orixás pratica um longo período de iniciação, ritmado por semanas de aprendizado e retiro. O neófito dispõe seu tempo e sua atenção à eleição por parte dos Orixás: são eles que escolhem o iniciante para determinados ofícios religiosos, a serviço do culto e da comunidade. Treina-se o respeito, a abnegação, a atenção e o conhecimento das narrativas ancestrais. Como não há escrituras, é de suma importância executar os ritos com precisão e transmitir os conteúdos essenciais na língua litúrgica (yorubá), através da relação direta com os mestres. Após a primeira iniciação, o adepto vai da função de auxiliar de culto (ogan) até o sacerdócio ancestral, exercido por homens (babalorixás) ou mulheres (yalorixás). No culto africano original havia inclusive o ofício de mestre-iniciador (babalaô), que interpretava os oráculos e transmitia a sabedoria às novas gerações (cf. GONÇALVES DA SILVA, 1994).

No campo das religiões abraâmicas, a cabala judaica observa a iniciação tradicional com circuncisão (milá), maturidade (bar-mitzva) e banhos de purificação (mikve), acompanhada do estudo da Lei (Torá), dos Profetas (Nebiim) e dos Escritos Sapienciais (Ketuvim). Há valorização do vínculo com a comunidade, sob a guia de um mestre carinhosamente chamado de rebbe (= meu estimado mestre). Na fase adulta, abre-se novo ciclo, com o estudo das doutrinas cabalísticas sobre Deus, a Criação, a Aliança, o Messias e a Redenção, conforme as diferentes escolas de ensino. Entram em cena, então, novos textos a serem lidos e comentados, como o Sefer Yetsira (Livro da Criação) e o Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor). Na prática, a fase adulta do discipulado ultrapassa a idade de quarenta anos, num percurso contínuo de estudos e aprimoramento, com os seguintes focos: a oração em estado de união com Deus (kavana); o mistério do Messias (mashiah); a celebração semanal do sábado, compreendido em sentido místico (shabat); a santidade moral, pessoal e comunitária (tzedaká). Em suma, todas as religiões valorizam a iniciação e o discipulado, tendendo à formação continuada de seus adeptos num caminho de aprimoramento espiritual.

Temos aqui outro aspecto interessante para o cristianismo: não fixar-se em estágios passados da evangelização, mas repropor o discipulado progressivo mediante uma “nova evangelização” (cf. Documento de Aparecida, Parte VI). Neste sentido, articulam-se as seguintes fases, complementares entre si: kerigma, com anúncio do amor salvífico de Deus e diálogo interpessoal; didaché, com a instrução catequética que aprofunda o kerigma; mistagogia, com a escuta da Palavra de Deus e a experiência sacramental, em comunidade (cf. Documento de Aparecida n.286-300; Evangelii Gaudium n.160-177).

 3 Conclusão

 Os tópicos de aprendizado dialógico (acima) mostram que cristãos e não cristãos

podem cooperar para a promoção dos valores humanos e espirituais; poderiam, por fim, levar também ao diálogo da experiência religiosa, em resposta às grandes questões suscitadas no espírito humano pelas circunstâncias da vida. Os intercâmbios em nível da experiência religiosa podem tornar as discussões teológicas mais vivas. E estas, por sua vez, podem iluminar as experiências e encorajar relações mais estreitas. (Diálogo e anúncio n.43)

 O “diálogo da experiência religiosa” nos possibilita reconhecer e discernir os valores espirituais das religiões, pontuando as diferenças e também as convergências, já que “a maior parte das grandes religiões têm procurado a união com Deus na oração e também indicado os caminhos para obtê-la” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16). Cientes de que “a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo” (Nostra aetate n.2), não convém “desprezar, sem prévia consideração, tais indicações, só por não serem de origem cristã. Poder-se-á, ao contrário, colher nelas o que contêm de útil, tendo o cuidado de nunca perder de vista a concepção cristã da oração, sua lógica e suas exigências, porque só dentro desta totalidade, esses fragmentos poderão ser reformados e incluídos” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).

Uma sugestão importante para os cristãos “é a aceitação humilde de um mestre experimentado na vida de oração que conheça suas normas; desse aspecto sempre se teve consciência na experiência cristã, desde os tempos antigos, particularmente à época dos Padres do deserto. O mestre – experimentado no sentire cum ecclesia [sentir com a Igreja] – não deve somente guiar e chamar a atenção sobre certos perigos, mas, como pai espiritual, introduzir de maneira viva, de coração a coração, na vida de oração, que é dom do Espírito Santo” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).

De fato, o acompanhamento pessoal e comunitário dos processos de educação da fé e da espiritualidade em geral tem sido uma necessidade, ainda mais nos nossos dias.

A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta arte do acompanhamento, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que, ao mesmo tempo, cure, liberte a anime os irmãos a amadurecer na vida cristã. (Evangelii Gaudium n.169)

 Outro resultado valioso do diálogo das experiências religiosas são as solicitações de releitura e aprofundamento de nossa fé cristã, em face da outra religião. No encontro e diálogo sobre os diferentes caminhos espirituais, as religiões pedem de nós o esclarecimento de pontos tradicionais do cristianismo, a respeito da Palavra de Deus, da Trindade, da comunicação/encarnação do Verbo e da mediação sacramental da Igreja. Além desses pontos tradicionais, há casos em que o diálogo inter-religioso solicita de nós o desenvolvimento de novas perspectivas do dado revelado. Afinal,

a plenitude da verdade recebida em Jesus Cristo não dá aos cristãos, individualmente, a garantia de terem assimilado de modo pleno esta mesma verdade. Em última análise, a verdade não é algo que possuímos, mas uma Pessoa por quem nos devemos deixar possuir. Trata-se, portanto, de um processo sem fim. Embora mantendo intacta a sua identidade, os cristãos devem estar dispostos a aprender e a receber dos outros e por intermédio deles os valores positivos de suas tradições. (Diálogo e anúncio n.49)

Dentre essas perspectivas, elencamos oito:

  1. a) Pneumatologia: desenvolver a Teologia do Espírito Santo a partir da Palavra de Deus e da Teologia da Graça, considerando a ação universal do Pneuma nos sujeitos, culturas e credos, inclusive seus indícios na exemplaridade dos mestres de outras religiões (cf. CTI, 1997, 50-52 e 82-84).
  2. b) Antropologia da “imago Dei”: examinar os dados da fenomenologia e teologia das religiões, com foco na humanidade em geral e na pessoa humana, em particular, como creatura Verbi e capax Dei, interlocutora do diálogo de salvação aberto pela Trindade e, portanto, intérprete da Revelação universal (cf. CTI, 1997, 48, 51, 88-92 e 110-112).
  3. c) Cristologia do Verbo: esclarecer a dimensão cósmica e trans-histórica da presença do Verbo no universo e na humanidade, em cotejo com a cosmovisão das demais religiões, particularmente o hinduísmo e o budismo (cf. CTI, 1997, n.36 e 41-47).
  4. d) Teologia da Criação: ampliar e tematizar a teologia bíblica da Criação, do Primeiro e do Novo testamentos, em diálogo com as narrativas criacionais/cosmogônicas das religiões, individuando as distinções e as convergências.
  5. e) Teologia da Revelação: pontuar os elementos de Revelação presentes nas narrativas, ritos e escrituras das religiões não cristãs, à luz da dogmática cristã (cf. CTI, 1997, n.88-92).
  6. f) Fenomenologia da interioridade humana: sistematizar o quanto as religiões registram sobre a interioridade humana (consciência, vontade, busca da verdade, memória, autoconhecimento, conversão) numa perspectiva comparada, para dialogar com a teologia da graça e a teologia espiritual (cf. Diálogo e anúncio n.15-18).
  7. g) Soteriologia: ponderar as linguagens de salvação do cristianismo (redenção, libertação, cura, nova criação, reconciliação, justificação, recapitulação) em diálogo com os conceitos e as linguagens de salvação das diversas religiões, como libertação/moksha, plenitude/nirvana, despertar/bodhi, benevolência divina/rahmat (Diálogo e anúncio n.29).
  8. h) Escatologia: aproximar a escatologia pascal cristã da perspectiva escatológica das religiões, considerando seus emblemas de mundo, suas doutrinas ecológicas e suas prospectivas quanto ao futuro e aos fins, seja do cosmos, seja da humanidade (cf. CTI, 1997, n.113).

Marcial Maçaneiro, PUC Paraná. Original em português.

4 Referências bibliográficas:

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SHOLEM, Gershom. Le grandi correnti della mistica ebraica. Torino: Einaudi, 1993.

Patrística – Patrologia

Sumário

1 Nomenclatura

2 Classificação e tendências

3 Hermenêutica Patrística

4 Referências bibliográficas

 

O interesse pelos ensinamentos dos Padres da Igreja marca os tempos atuais com o retorno às fontes originais do cristianismo. Como antecedente determinante juntamente com o movimento litúrgico, o movimento patrístico foi fundamental para a convocação e a celebração do Concílio Vaticano II, que não cessou de afirmar o valor inquestionável dos Padres da Igreja para a renovação da fé nos dias atuais. Ao lado da história dos dogmas, a Igreja acredita na contribuição dos Padres da Igreja para “a interpretação e a  transmissão fiel de cada uma das verdades da Revelação” (cf. Optatam Totius n.16).

1 Nomenclatura

Com os avanços da pesquisa teológica, as terminologias elementares relacionadas às Ciências Patrísticas se multiplicaram e se diversificaram, de maneira que a concessão dos conceitos acabou por ser redefinida, fazendo com que o termo “patrística” reunisse elementos conceituais mais abrangentes. Até então, era comum dizer que a patrística era o estudo que se ocupava do pensamento teológico dos padres da Igreja, enquanto patrologia se mantinha na perspectiva da pesquisa sobre a vida e os escritos dos mesmos autores (cf. Cong. Educação Católica, 1990, n.49). Desta forma, patrística se redefine como termo técnico utilizado para determinar a ciência responsável por analisar e interpretar o conjunto dos documentos antigos entre o século I A.D. e os primeiros sinais claros da metodologia medieval.

Paralela às fontes bíblicas que compõem o material de uma ciência própria para o estudo das Sagradas Escrituras, a documentação desta fase patrística também pode ser classificada como fontes patrísticas, o que será estabelecido pelo material literário, iconográfico, topográfico, epigráfico ou arqueológico quando essas informações se relacionarem e representarem elementos que elucidem a realidade social ou religiosa daquele período.

Por definição, cabe à arqueologia cristã identificar, decifrar e explicar as fontes cristãs mais antigas encontradas, por exemplo, nos sarcófagos, nas catacumbas, quando essas começam a identificar a presença do fenômeno religioso cristão, nas estátuas, em objetos comuns à vida antiga e, em grande escala, na função que as diversas edificações possuíam para culto, domicílio, administração, caridade social, entre outros. A lápide fúnebre de Abércio se associa aos mais importantes achados arqueológicos de todos os tempos e lidera a lista dos documentos mais valiosos para o cristianismo (MORESCHINI, 1995, p.307). O Bispo de Hierápolis morreu em 216 dC. Três anos antes de sua morte, ele mandou construir a própria inscrição mortuária, enriquecendo-a de alusões cristológicas e eclesiológicas, transmitindo um sentimento claro de devoção das igrejas espalhadas pelo mundo em relação à igreja romana, discursando sobre a eucaristia e sobre um possível grupo homogêneo de escritos paulinos e, por fim, datando-a e assinando-a. Por isso, a lápide de Abércio também é chamada de Regina Scriptarum, encontrando-se no acervo permanente do museu paleocristão do Vaticano.

Por sua vez, o conceito “patrologia” deve ser entendido como o produto dogmático e o conteúdo ortodoxo presente nos ensinamentos dos escritores antigos, independente da sua função dentro ou fora do âmbito eclesiástico. Por outro lado, face aos movimentos inovadores e heréticos que estabeleceram uma releitura independente, distorcida e falsa do ensinamento que Jesus e os Apóstolos tinham instituído, a comunidade dos fiéis cristãos entendeu que o critério de autenticidade incontestável a ser seguido era o critério “antiguidade cristã”, cuja aplicação não se baseava tanto em aspectos temporais, senão nos elementos fundamentais da verdade doutrinal estabelecida pelas raízes judaicas e cristãs.

Já a terminologia “Padres da Igreja” fora cunhada pela primeira vez em contexto protestante, pelo teólogo alemão Johann Gerhard no ano de 1637, com a finalidade de defender uma pressuposta antiguidade dos conceitos teológicos dos Reformadores contra os dogmas católicos. Reavaliando este conceito a partir do critério de antiguidade cristã, a Igreja Católica o incorporou ao seu linguajar teológico, para indicar a autenticidade da fé cristã verificada no desenvolvimento da doutrina católica. No Brasil, Padres da Igreja se tornou a tradução utilizada com mais frequência pelas editoras e autores católicos, ao passo que os livros e artigos protestantes tendem a traduzir o mesmo termo por “Pais da Igreja”. Compreende-se “História da Igreja” como a forma de reconstrução aproximativa dos eventos da antiguidade cristã cujas menções se fundamentam em dados literários presentes em documentos antigos. Todavia, essa reconstrução patrística exige cautela para que os conceitos antigos não sejam mal interpretados ou sejam aplicados às situações hodiernas como regras gerais, já que o acesso dos mesmos eventos históricos através da literatura se limita a basear-se em aproximadamente vinte por cento dos documentos cujos títulos foram citados nos livros dos Padres da Igreja, o que quer dizer que oitenta por cento dos livros citados pelos escritores antigos não chegaram até nós (GRECH, 2005, p.37). Alguns erros se tornam comuns na avaliação das fontes patrísticas, seja pelo anacronismo, quando o juízo é feito fora do contexto em que o texto foi escrito,  seja quando um dado do passado é proposto de maneira arbitrária pelo fundamentalismo histórico daqueles que tentam retomar situações passadas já obsoletas ou estruturas caducas.

Fala-se ainda de “Literatura patrística” para designar as formas literárias pesquisadas por aqueles que procuram entender as regras da tipologia, das alegorias, da retórica e da pedagogia que ampliam e possibilitam maior entendimento daquilo que os escritores antigos queriam dizer ao redigir seus textos. Obras originais e traduções valiosíssimas enriquecem o conjunto da Literatura patrístrica num cenário linguístico tão vasto como os limites geográficos do cristianismo antigo. Essas obras foram produzidas nas seguintes línguas: grego, latim, siríaco, copto, armênio, etíope, georgiano, árabe e paleoeslavo.

2 Classificação e tendências

Em geral, os critérios para se identificar um Padre da Igreja são antiguidade, aprovação eclesiástica, santidade de vida e ortodoxia (SANTINELLO, 1973, p.6). A princípio, os limites do período patrístico eram estabelecidos até Isidoro de Sevilha (…636) para o ocidente e até João Damasceno (…749) para o Oriente. No entanto, ao perceber a continuidade e a evidência da metodologia patrística em períodos que alcançam a produção literária da corte de Carlos Magno, estudos recentes revisam esses limites, propondo-os até o século IX (LUISELLI, 2003, p.9-17).

Os Padres Apostólicos são os primeiros personagens da patrística, assim denominados porque eram discípulos dos Apóstolos de Cristo. As principais e mais antigas obras são: “A Carta de Barnabé”, “O Pastor de Hermas”, as cartas de Clemente de Roma, o epistolário em sete obras de Inácio de Antioquia, as cartas de Policarpo de Esmirna, “Papias” e a “Didaqué”, também conhecida como a “Doutrina dos Apóstolos”. Destaca-se, assim, o enfoque dado às estruturas e às reflexões eclesiásticas destes textos, dos quais podem ser extraídas informações importantes sobre os aspectos sociais que envolviam as reuniões dos cristãos em suas celebrações domiciliares e o vasto cenário dos ministérios exercidos nessas celebrações. O tema da importância irrefutável do episcopado aparece constantemente tratado nestas obras. Assim, nos escritos dos Padres Apostólicos nota-se aquilo que os estudiosos normalmente chamam de autoconsciência cristã, ou seja, o modo pelo qual os cristãos se distanciavam das práticas religiosas do paganismo, do gnosticismo e do judaísmo, formando assim uma religião com elementos claramente distintos.

A geração sucessiva enfrentou as grandes perseguições do Império Romano no segundo século, enquanto os cristãos eram acusados de oposição à ordem pública (pax deorum), já que os fiéis da Igreja se opunham a oferecer sacrifícios aos deuses pagãos, recusando-se a observar os princípios governamentais por meio dos quais se acreditava que fosse preservado o bem-estar dos cidadãos. A apologética cristã nasce da necessidade de defender os acusados de cristianismo nos tribunais da perseguição. Quanto aos autores apologetas ou apologistas, citam-se são Justino, Taciano, Atenágoras, Melitão de Sardes, Irineu de Lião, Hipólito de Roma, Orígenes, Tertuliano, Cipriano, Lactâncio, entre outros.

Após o período mais duro das perseguições por volta do final do terceiro século, a comunidade primitiva teve que se preocupar em salvaguardar a fé face à intensificação das questões teológicas e políticas. Ora, Orígenes e Clemente de Alexandria promovem as suas obras no Oriente, enquanto do Ocidente, já latinizado, surgem importantes obras como as redigidas por Tertuliano. Muitas questões permanecem em aberto dada a dificuldade e a obscuridade para as quais os textos bíblicos não ofereciam maiores explicações. Destarte, a tipologia, enquanto antecipação dos eventos históricos, e a alegoria, enquanto significado dos elementos dos textos (SIMONETTI, 1985, 14), mostram, por exemplo, que Jesus morre com a coroa de espinhos, como fora antecipado tipologicamente pelo cordeiro que aparece preso aos arbustos no sacrifício de Isaac, ou que o cordão – toalha ou pano para Clemente de Roma e outros – de cor vermelha que Raab pendurara sobre sua janela representaria a alegoria do sangue de Cristo para a salvação dos pecadores. Nem todos os termos bíblicos, todavia, compreendem o vasto conteúdo do mistério revelado por Cristo à sua Igreja, como pode ser observado durante a polêmica ariana, motivo pelo qual o Concílio de Niceia foi proclamado pelo Imperador Constantino em 325. A questão que colocou Ário e os cristãos de doutrina ortodoxa uns contra os outros versava sobre a divindade e sobre a procedência de Jesus Cristo do Pai, em forma de insuficiente terminologia bíblica que os opositores apresentavam para defender a sua opinião. Para os padres conciliares de Niceia, a melhor forma de resolver aquele impasse foi a promulgação de um símbolo de fé, ou seja, a produção de diretrizes que esclarecessem o modo ortodoxo de se crer e de se ensinar a fé da Igreja. Todos os esforços dos padres conciliares trouxeram à luz o termo “consubstancial”, que não se encontrava na Bíblia, mas se prestava para ajudar no discernimento da verdade que a Igreja sempre tinha pregado sobre a divindade do Filho de Deus. Entre os Padres mais famosos deste período, destacam-se Eusébio de Cesareia, Atanásio e Hilário de Poitiers.

Notáveis também foram os Padres da Capadócia – Basílio Magno, Gregório de Nissa, Gregório Nazianzeno e João Crisóstomo – que exerceram um papel fundamental para o entendimento da fé trinitária na segunda metade do século IV. De fato, na obra “Contra Eunômio”, de são Basílio, aparece claramente a questão sobre a divindade do Espírito Santo, contra cuja visão os hereges estabeleciam que, assim como o Filho, o Espírito Santo também era uma criatura da divindade. Os capadócios responderam às ameaças contra o Espírito Santo e se tornaram referências essenciais para o Concílio de Constantinopla em 381, no qual foi proclamado o símbolo que até hoje é conhecido como credo niceno-constantinopolitano.

Depois dos concílios de Niceia e Constantinopla, celebrou-se em Éfeso o concílio que pôs em discussão, entre outros temas, o dogma da theotókos, sobre Maria, Mãe de Deus no ano de 431. Com isso, o cristianismo ficou dividido entre aqueles que aceitavam a interpretação ortodoxa de Cirilo de Alexandria, pela qual o concílio de Éfeso declarou que Maria é a mãe de Deus, e a postura herética de Nestório, que insistia em negar a maternidade de Maria em relação à divindade de Cristo, por isso, a Virgem só deveria ser conhecida como “mãe de Cristo” na opinião dos hereges. Os problemas teológicos inerentes a essa questão eram tipicamente cristológicos, enquanto o entendimento dos nestorianos promovia grandes obstáculos para a compreensão da verdadeira divindade de Cristo, repetindo assim os erros do arianismo e do sabelianismo. Vencido pelos argumentos de Cirilo, Nestório foi deposto da sede de Constantinopla. Infelizmente, o nestorianismo recebeu diversos adeptos por toda a antiguidade.

Na aurora do quinto século, a literatura latina da Igreja é enriquecida pelas obras de Ambrósio, Agostinho e Jerônimo. É a fase em que as autoridades eclesiásticas, ou seja, os bispos, se deparam com situações sociais importantes para a contextualização e o desenvolvimento da vida da Igreja: a) o Império Romano organiza a sua administração governamental a partir dos princípios cristãos estabelecidos pelo edito de Teodósio, em 380, que instituía definitivamente o cristianismo como religião oficial do Império. Aliás, a despeito da importância dada ao edito de Milão decretado pelo Imperador Constantino, em 313, não se pode esquecer que esse edito previa apenas a liceidade do cristianismo até aquele momento. O edito de Milão prescrevia ser lícita a religião cristã, enquanto o edito de Teodósio tornava-a oficial para o cidadão romano. b) reforça-se a devoção aos mártires com a regularização promovida pelos bispos, quando as suas relíquias são transferidas das catacumbas para os altares das Igrejas, instituindo assim o culto de devoção aos santos, a partir da perspectiva de quem tinha vivido a integridade da fé cristã em todas as suas exigências. c) em 410, os bárbaros chegaram a Roma e determinaram assim, com o seu deslocamento, uma nova forma para as cidades do Império Romano. Com isso, as necessidades pastorais e teológicas vão sofrer consequências essenciais que vão determinar o caminho que a Igreja escolherá para a sua missão no mundo.

De suma importância foi o Concílio de Calcedônia, em 451, que defendeu, contra os monofisitas, a fé em Jesus Cristo por meio da qual se definia a união das duas naturezas (humana e divina) em uma só pessoa, esclarecendo assim o que a Igreja ensina sobre a união hipostática. Séculos à frente, em 681, com o Concílio de Constantinopla III, pôs-se fim às dificuldades do monotelismo e do monoenergismo. Multiplicaram-se, por fim, as grandes homilias e tratados teológicos produzidos pelos santos padres sob a luz da graça, da vida moral e sacramental. Neste sentido, Pascásio Radberto se insere entre os autores do fechamento do período patrístico com a sua grandiosa e importante obra sobre a eucaristia intitulada De Corpore et Sanguine Domini em 831.

3 Hermenêutica Patrística

Os Padres da Igreja reconheciam de forma unânime as dificuldades que surgiam da leitura das Sagradas Escrituras e acabaram traçando sendas pelas quais acreditavam que essas dificuldades pudessem ser superadas. Para eles era fundamental respeitar as leis básicas de composição para entender o verdadeiro sentido que o autor bíblico teria dado ao seu texto. Por isso, em inúmeras vezes a solução para as dificuldades bíblicas se apoiava no entendimento básico que a gramática e a retórica davam aos mesmos textos. Embora as interpretações bíblicas sejam diversas, em relação à exegese contemporânea, desde os tempos remotos do cristianismo, os leitores das Sagradas Escrituras eram instruídos a se perguntar sobre o gênero literário dos textos e a intenção dos autores ao escreverem. A base para a investigação bíblica dos primeiros séculos – como demonstra Irineu de Lião – estava na avaliação da veracidade do texto que os cristãos deveriam usar, já que se multiplicavam a pseudo literatura cristã e os escritos apócrifos. Entre outras determinações, a interpretação bíblica neste momento não podia prescindir da regra de fé da Igreja. Nenhuma proposta de interpretação poderia ser considerada válida se contradissesse os ensinamentos da fé cristã, transmitida por Cristo aos seus Apóstolos e pelos Apóstolos às gerações sucessivas.

No terceiro século, o leitor das Sagradas Escrituras é convidado a ler uma mesma perícope progressivamente segundo o sentido literário, que o alerta para as circunstâncias materiais ali descritas; segundo o sentido ético, que o coloca diante dos valores morais não necessariamente mencionados no texto; enfim, segundo o sentido espiritual, valor verdadeiro para onde o texto inspirado quer orientar cada homem. A escola de Alexandria – com Clemente e com Orígenes – foi a grande promotora deste método hermenêutico.

Entre as propostas hermenêuticas patrísticas, destacam-se as regras de Ticônio, corrigidas e explicadas por Agostinho no terceiro livro do De Doctrina Christiana, onde o santo hiponense admite ser necessário partir dos textos claros – cujo entendimento não deixa dúvida – para se entender os textos obscuros. Segundo Agostinho, não há contradição de gênero algum entre os textos das Sagradas Escrituras. As dificuldades nascem da limitação da linguagem humana, pela qual Deus quis transmitir as suas verdades. Segundo Agostinho, o leitor atento considera, por exemplo, que todos os textos bíblicos tratem da unidade inseparável entre Cristo e a Igreja, achando nesta unidade a resposta às dificuldades e às aparentes contradições bíblicas.

No processo de instrução da fé, o mistagogo desempenha a função de revelar ao catecúmeno os mistérios que esse deve abraçar no momento do batismo. Dada as dificuldades acima mencionadas, o conteúdo da fé cristã é considerado arcano, ou seja,  a sua transmissão prevê o acesso às informações secretas (mistérios), que apenas os iniciados, isto é, catecúmenos, poderiam receber. Vinte e quatro catequeses mistagógicas de Cirilo de Jerusalém (…387) chegaram aos tempos hodiernos em grupos de textos que descreviam um período pré-catequético no qual os aspirantes eram chamados de ‘iluminados’ e se lhes oferecia uma introdução ao batismo, transmitida em uma catequese. O grupo maior de textos, com 18 catequeses, era referência para os encontros que ocorriam durante a quaresma. Enfim, logo após o batismo que era celebrado na noite de Páscoa, 5 catequeses eram destinadas aos neófitos na tentativa de expor-lhes o que até então não eram capazes de entender.

André Luiz Rodrigues da Silva. Brasil.

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Cristianismo Moderno

Sumário

1 O período moderno

2 Os descobrimentos e a expansão da cristandade

3 A evangelização de populações não cristãs

3.1 Os ameríndios

3.2 Os povos da África

3.3 A escravidão colonial e o catolicismo

4 As Reformas

4.1 As reformas protestantes

4.2 As Igrejas Cristãs

4.3 Reforma Católica

4.4 Novas e velhas ordens e congregações

5 A religiosidade popular latino-americana

6 Referências bibliográficas

1 O período moderno

No alvorecer do que chamamos período moderno (a partir do século XV), uma série de instâncias da vida social, econômica e política mudou drasticamente. Desde o cisma gerado pelo papado em Avinhão, a autoridade dos papas vinha sendo minada pelo desejo de autonomia dos soberanos nacionais em seus Estados em formação. Esta transformação política, que substitui a descentralização característica do sistema feudal por uma centralização, extrapola a esfera da política estatal e se desdobra em outras áreas. Exemplos da ação do Estado em outras esferas são o mercantilismo econômico, que se baseia na prerrogativa real de estruturar a economia por meio da concessão de monopólios e a preservação de estancos reais; e o controle que, progressivamente, os monarcas exerceram sobre o catolicismo ou sobre o processo de Reforma nos seus domínios (liderando, como na Inglaterra, administrando, como na França, ou impedindo, como no caso dos Ibéricos). É possível pensar que até mesmo a geografia e a demografia mudaram abissalmente com a integração das Américas e da África no sistema político, econômico e religioso do Ocidente moderno.

Tal período se finda com o advento do liberalismo republicano, sendo esse filho da Ilustração que tem início ainda no século XVII, com filósofos como John Locke e Thomas Hobbes, na Inglaterra. Esses pensadores acabam por romper com a aura divina que legitimava o poder dos reis absolutistas. Em seus textos, o governo monárquico surge como uma necessidade da vida em sociedade – Hobbes – e as distinções nobiliárquicas não mais são produzidas por diferenças inatas, mas construções sociais – Locke. O trabalho desses filósofos vai preparar e ajudar a fundamentar o pensamento iluminista do século seguinte. Embora pouco se diga sobre isso, os dois grupos, ingleses do século XVII e franceses do XVIII, operam com conceitos que já eram usados por teólogos do século XVI, como o dominicano Francisco de Vitória, considerado o fundador do direito internacional, e o jesuíta Luís de Molina (ZERON, 2011, p.203 et seq.). Ambos, assim como outros teólogos de sua época, operavam largamente com a ideia de direitos naturais, como direitos inerentes a todos os homens. Os jesuítas foram inclusive acusados de propagandear o regicídio, por defenderem o direito de se opor à tirania, o que sem dúvida contribuiu para a sua supressão. (ANDRÉS-GALLEGO, s.d., p.168 et seq.)

2 Os descobrimentos e a expansão da cristandade

O  período moderno foi, sem dúvida, marcado pela mudança no escopo de relações da cristandade com o mundo externo a ela. Se nos primórdios do cristianismo e no medievo o palco de tais relações foi o Mediterrâneo, agora os espaços privilegiados para estes encontros serão o Atlântico e o Índico. Será por aí que as trocas mercantis e culturais passarão a acontecer com uma frequência cada vez maior. Novos povos serão conhecidos, uma nova geografia será desenhada e novos desafios ao cristianismo também aparecerão.

Os novos contatos serão, na verdade, fruto de velhos conhecidos. A expansão europeia se inicia com os portugueses a partir da expulsão dos mouros que habitavam seu território na península Ibérica havia cerca de sete séculos. Daí para Ceuta, em 1415, já apresentando o padrão de conjunção da ação militar, com a expansão da fé e os objetivos mercantis que marcaram as conquistas da modernidade ibérica. Ceuta, uma praça comercial de grande importância no extremo norte da África, no estreito de Gibraltar, era a confluência entre o mar conhecido e o novo, uma espécie de esquina entre a península e as novas possibilidades africanas. Foi, por isso mesmo, a ponta de lança para a busca de novas regiões com ganhos potenciais mais ao sul. Passava-se assim dos mouros aos povos animistas, também chamados de pagãos.

Mas foi sem dúvida com o infante D. Henrique, o navegador, que a expansão lusitana teve seu maior impulso. Esse filho do rei D. João I, o fundador da dinastia de Avis (1385-1581), foi o articulador da tomada de Ceuta e da consequente série de conquistas que lhe sucedeu. Na sequência vieram: as ilhas do Atlântico (arquipélago da Madeira, os Açores e outras ilhas menores) e a passagem do cabo Bojador por Gil Eanes em 1434, depois foram a foz do rio Senegal e o arquipélago do Cabo Verde em 1456. Seu nome aparece explicitamente na bula Romanus Pontifex, de Nicolau V, datada de 1455, que, ainda impregnada do espírito das Cruzadas, lhe autoriza a conquista militar como mecanismo para a expansão da fé sobre os sarracenos (muçulmanos) e outros infiéis (povos animistas subsaarianos).

Pelo Mediterrâneo, o comércio dos artigos vindos da Ásia era monopólio de italianos desde a quarta cruzada (1202-1204), quando foi fundado o reino latino de Constantinopla – hoje Istambul. Assim, a Europa era, na primeira metade do século XV, inundada de produtos vindos da África, pela península Ibérica, e da Ásia, pela península Itálica. No entanto, este quadro muda drasticamente depois que os turcos do Império otomano conquistam a praça mercantil de Constantinopla em 1453, data que foi usada por muito tempo como marco fundamental da passagem do medievo para a idade moderna. Deste momento em diante, a incerteza do abastecimento e a elevação dos preços tomaram conta dos principais mercados consumidores de produtos asiáticos (especiarias, louças, sedas e outros produtos finos).

Abre-se, assim, a demanda por novas rotas comerciais para o Oriente, seja pelo Atlântico sul – passando o Cabo das Tormentas –, com os portugueses, seja buscando a circum-navegação da terra com os espanhóis. Esses últimos, por terem concluído o processo de expulsão dos mouros e a unificação das casas de Aragão e Castela somente em 1492, ano em que a mesquita de Córdoba cai em mãos espanholas, estavam em considerável desvantagem frente aos lusitanos. Certamente por isso, a Coroa espanhola apostou uma pequena soma de dinheiro, se comparada aos vultosos gastos da corte madrilena, numa expedição de três embarcações chefiada por Cristóvão Colombo, que partiu rumo ao ocidente naquele mesmo ano.

O objetivo da expedição de Colombo era chegar ao reino do grande Kan, apresentado por Marco Polo em suas crônicas. O plano era simples, chegar ao paralelo das ilhas Canárias, marco divisório do oceano Atlântico entre portugueses e espanhóis desde o Tratado de Alcáçovas, de 1479, e seguir para oeste até as chamadas Índias. A base dos cálculos de Colombo estava completamente equivocada. Sobre isso, aliás, o advertiram os geógrafos da Universidade de Salamanca. É preciso que se diga que, não obstante sejam estes estudiosos católicos frequentemente apresentados como equivocados e curtos de entendimento frente ao visionário Colombo, a realidade foi bem outra. Longe de acreditarem que a terra era plana, os professores de Salamanca se apoiavam nos cálculos de Eratóstenes, da Grécia antiga, que calculou a linha em torno do equador como equivalente a cerca 40.000 km (a medida exata é 40.072 km). Enquanto Colombo se apoiava em cálculos feitos Ptolomeu de Alexandria, que usou um método que o induziu ao erro e chegou a um valor cerca de 20% menor que o de Eratóstenes. Logo, o debate que antecedeu a partida das embarcações rumo ao oriente pelo ocidente era sobre a viabilidade da viagem em termos da sua duração; do tempo que ficariam à mercê dos ventos e ondas, sem água potável e sem entrepostos de abastecimento. No entanto, foi a partir deste equívoco que os europeus contataram uma nova gama de populações com indivíduos genericamente chamados de “índios”, já que, comprovando o equívoco cometido pelo célebre navegador, esse julgou ter chegado ao arquipélago do Japão (toda a porção do mundo a leste de Jerusalém era designada pelo termo Índias).

De qualquer maneira, um fato merece destaque: a expansão da fé católica, ainda nos moldes das Cruzadas, sempre esteve presente nas viagens da Expansão Ibérica; da autorização papal às dezenas de menções à fé e a Deus no diário de Colombo, há fartas evidências de que a ampliação do mundo cristão, pelo crescimento dos domínios dos Reis católicos, sempre pairou no imaginário e nos corações dos envolvidos neste processo.

3 A evangelização de populações não cristãs

3.1 Os ameríndios

O processo de colonização foi marcado por uma série de ambiguidades, o interesse na colonização foi apenas uma delas. Por um lado muitos europeus que desembarcaram na América vieram imbuídos do ideal de obtenção de ganhos materiais e sociais, como títulos e cargos na governança do Novo Mundo, usando como pano de fundo a expansão da fé católica como autorizava Nicolau V. Por outro, a Bula Sublimis Deus[1], do papa Paulo III, de 1537, o mesmo que referendou o instituto da Companhia de Jesus, apontava para outra diretriz geral para o contato com os habitantes das novas terras. Segundo essa bula, a vida, a liberdade e as propriedades de todos os povos contatados pelos europeus deveriam ser preservadas e o processo de conversão só poderia ser feito pela pregação e bom exemplo. Assim, desembarcam na América conquistadores e missionários com percepções distintas da terra e dos habitantes e com objetivos igualmente distintos para esses.

No caso da América espanhola, ainda que os jesuítas tenham tido um papel importante, os primeiros missionários a chegarem foram os padres das ordens mendicantes, em especial os franciscanos. No entanto, foram os frades dominicanos, especialmente Pedro de Córdoba, Antonio Montesinos, Julián Garcés (bispo de Tlaxcala) e Bartolomé de las Casas, os que mais se notabilizaram na defesa da vida e da liberdade dos indígenas, com que se preocupava o papa Paulo III. Os dois primeiros viajaram a São Domingos, na ilha La Española, em 1510, fundando a primeira casa da ordem nas Américas. Foi exatamente uma pregação duríssima em favor dos índios, proferida pelo frei Antonio de Montesinos em nome de todos os seus companheiros, em 1511, que impactou las Casas.

Este, até então, havia participado de combates contra grupos indígenas que resultaram na morte de dezenas de espanhóis e de milhares de nativos, possuíra índios como escravos (na verdade, em encomienda, uma modalidade de trabalho não remunerado imposta aos indígenas), não obstante já se dedicasse ao trabalho de evangelização e batismo da população local. Segundo Carlos Josaphat, na própria avaliação que las Casas faz dos resultados da prédica de Montesinos, ele os coloca em uma espécie de gradação: “houve quem ficasse ‘atônito’, outros ‘empedernidos’ e uns poucos ‘compungidos’, mas ninguém convertido” (JOSAPHAT, 2000, p.59). Se isto de fato ocorreu, las Casas estava ao menos entre os compungidos, já que não tardou para que se convertesse em grande defensor dos povos nativos da América.

A crença que perdurou desde o século XIX até bem pouco tempo, de que os povos poderiam ser classificados entre avançados e primitivos, foi largamente utilizada para explicar o fenômeno da conquista. Só dos anos 1980 para cá é que os pesquisadores – historiadores, sociólogos e antropólogos – se despiram do velho mito eurocêntrico que aferia o grau de evolução de cada cultura pela semelhança que esta guardava com a cultura ocidental coeva. A grande questão historiográfica a ser respondida era como um grupo tão pequeno de colonizadores pôde dizimar uma população tão grande de nativos (ROMANO, 1972, p.97-106). Na verdade, isso pouco tem a ver com o fato de algumas culturas possuírem Estado com poder coercitivo e outras não. Se deve muito mais à característica americana de sua população não se constituir uma totalidade, portanto se organizam em grupos que possuem interesses específicos e, para alcançá-los, estabelecem estratégias próprias, como alianças com os colonizadores. Isso aconteceu com os povos tributários dos astecas repetindo-se, de modo semelhante por toda a América, inclusive nas alianças entre franceses e tamoios, na baía de Guanabara. Nesse cenário de diversidade e conflitos, potencializado pela presença de europeus interessados em tirar proveito das disputas entre os povos nativos, é que atuaram os missionários; ora de maneira pacífica, ora ampliando um dos lados beligerantes, em nome do que acreditavam ser a implantação da fé numa terra à mercê do demônio. Era uma equação simples: perder corpos (inclusive os seus) e salvar almas (inclusive as suas).

Quando os jesuítas chegaram à América espanhola encontraram toda uma obra de catequese e conversão dos indígenas que já vinha sendo empreendida pelos mendicantes. No caso dos domínios portugueses, os missionários da Companhia de Jesus foram os protagonistas nesse processo de cristianização. No Brasil, os membros das ordens mendicantes atuaram em menor escala. Sabe-se apenas que o celebrante da primeira missa no Brasil, e portanto capelão na esquadra cabralina, era o bispo franciscano Dom frei Henrique de Coimbra, que ia como missionário para Calicute.

Já os padres jesuítas chegaram junto com o primeiro governador-geral Tomé de Souza, em 1549. Era um grupo pequeno liderado pelo padre Manuel da Nóbrega, que imediatamente começou a percorrer as aldeias catequisando e batizando os índios. Atendendo a um pedido de Nóbrega, então já ciente do tamanho da tarefa evangelizadora, alguns anos mais tarde, quando chega o segundo governador-geral Duarte da Costa, aporta um novo grupo com José de Anchieta. Este novo grupo se desloca para o sul, em direção à capitania de São Vicente, fundando ali o colégio São Paulo de Piratininga.

Segundo se percebe nas cartas enviadas pelos missionários, a evangelização destes povos tinha uma curta duração, consistindo em uma efusiva aceitação inicial, seguida do completo abandono tão logo os padres se ausentavam da tribo (CASTELNAU-L’ESTOILE, 2006, p.109). A solução para esse dilema da “vinha estéril” foi a criação do aldeamento. Por meio dos chamados descimentos e de adesões voluntárias ou pressionadas pelo risco da escravização pelos bandeirantes, os índios se integravam em comunidades controladas pelos padres jesuítas, constituindo um espaço de civilização e ordem, que garantia uma maior durabilidade da sua cristianização. Nos aldeamentos, os nativos se organizavam em torno da liderança dos padres da Companhia, passando a adotar os hábitos cristãos, aprendendo ofícios e se sedentarizando. Este conjunto de elementos representava, na ótica dos padres, o suporte para uma conversão mais duradoura.

 As missões jesuíticas ficaram famosas como lugares de abrigo para a população indígena no Brasil, mas eram frequentemente fornecedoras de força militar e de trabalho alugada pelos padres às Câmaras municipais, aos particulares que solicitassem ou às outras ordens que necessitassem. Na expulsão dos franceses que resultou na fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1555, os índios aldeados foram de suma importância do ponto de vista militar. Do mesmo modo, os índios aldeados pelos jesuítas na região amazônica, desde a primeira metade do século XVII, compuseram a mão de obra predominante na coleta das chamadas drogas do sertão. Nos séculos XVII e XVIII, a produção artística dos índios aldeados em várias partes da América – escultura, pintura, música e confecção de instrumentos musicais –, que inicialmente era apenas um dos mecanismos da catequese, foi adquirindo características próprias, passando a ser conhecida como arte missioneira ou barroco missioneiro. Uma das características desta arte é a influência de elementos estéticos indígenas nas produções. Com a expulsão dos jesuítas do Império português em 1759 e no Império espanhol em 1767, as missões foram entregues a outras ordens – em geral mendicantes – ou a administradores civis.

3.2 Os povos da África

Tanto os missionários mendicantes quanto os padres da Companhia de Jesus atuaram nas repetidas tentativas de cristianização da África. Os resultados deste processo variaram muito, de região para região, sempre com avanços e retrocessos. Para que se possa abordar minimamente esta história é preciso compreender que a África é um continente extremamente vasto e que seus habitantes são diferentes de região a região e de povo a povo. Há pelo menos duas grandes matrizes religiosas na África, mas uma imensidão de possibilidades de combinações e interações entre elas: a islâmica e a animista. A islâmica se instalou com a expansão do islã pelo norte do continente e posteriormente com as vagas de expansão intracontinental através do Saara. Já a animista, mais característica dos povos subsaarianos, é profundamente ligada à natureza e aos seus fenômenos, atribuindo-lhes espíritos. Além disso, incorpora elementos sociais divinizados, como líderes, guerreiros ou personalidades muito marcantes, que, junto com os mitos de criação e construção do mundo, vão compor o panteão dos orixás. Com isso pode-se compreender a imensa tarefa de cristianizar uma área que é quase quatro vezes maior que o Brasil de hoje. Vamos apresentar, apenas a título de exemplo, os casos de Angola, Congo e Guiné, regiões que mais sofreram os efeitos dos contatos com os europeus, dentre os quais se destaca deploravelmente o tráfico de escravos.

As facilidades ou dificuldades para a evangelização da costa sul-ocidental do continente que hoje é a da Angola, derivou das alianças entre portugueses e os chefes locais sobas, subordinados ao grande soberano Ngola, que governava o reino Ndongo. Essas alianças tinham como fundamento tanto os ganhos políticos e comerciais, quanto os interesses religiosos. Segundo a conveniência do momento, os sobas se convertiam ao catolicismo ou voltavam ao animismo, ou ainda se aproximavam dos reformados. Um dos maiores interesses na proximidade com os sobas é que, devido à grande autonomia com que governavam seus territórios, eram eles que controlavam grande parte do tráfico de escravos de Angola para a América. Sua conversão sempre foi vista com certa desconfiança pelos jesuítas, posto que, com grande frequência, não era duradoura.

 Os portugueses chegaram à costa do Congo nos primeiros anos do século XVI, dando início ao processo de evangelização da região. Na Cronica d’el Rei D. João II, de aproximadamente 1502, seu autor Rui de Pina relata que tanto o chefe local mani Soyo, com alguns dos seus ministros, como chefe da região, o mani Congo, com muitos seguidores, aceitaram o batismo e a fé católica prontamente, dando origem a todo um processo sincrético que envolve não apenas religião, mas também política e alianças comerciais. Para começar, muitos autores, como Marina Melo de Souza, acreditam que a cruz já era para a cultura do congo um símbolo místico e divinatório, o que facilitaria a absorção do crucifixo católico como símbolo religioso, bem como a associação das imagens de santos e terços aos minkisi, denominação genérica de objetos mágicos ou de culto religioso naquela região (SOUZA, 2005). Outra mostra desta simbiose é que, a partir de 1509, os soberanos congoleses passaram a ostentar nomes portugueses associados aos seus.

No caso da Guiné, ainda mais ao norte, o jesuíta Baltazar Barreira, responsável pela missão de Angola e fundador do colégio de Cabo Verde, assume no princípio do século XVII a missão de evangelizar o povo daquelas terras. Barreira e seus companheiros enfrentaram a concorrência dos bexerins, como eram chamados os sacerdotes islâmicos, e dos jambacouse, como eram designados os sacerdotes locais, incumbidos de identificar os feiticeiros e comedores de almas que, segundo a crença local, produziam doenças e mortes. Como não poderia deixar de ser, com tantas matrizes religiosas disputando espaço nos corações e mentes dos habitantes, o sincretismo foi tal que, em pouco tempo, os jesuítas passaram a ser chamados de bexerins dos cristãos (SANTOS, 2011, p.187-213). Ali também, relatou Barreira, a gente cristã, pela pouca doutrina e pelo muito contato com os animistas, facilmente voltava aos seus antigos cultos. Além desta concorrência, havia os problemas com o tráfico de escravos. Os sacerdotes animistas e os bexerins também funcionavam como agenciadores e atravessadores no comércio de escravos transaariano, que levava escravos – principalmente mulheres como futuras esposas – para as regiões islâmicas (LOVEJOY, 2011, p.32). Tudo isso se soma ainda ao tráfico de escravos para a América, que gerava muitas críticas dos jesuítas aos demais religiosos católicos, acusando-os de não pregarem, nem catequizarem, apenas traficarem. No entanto, os padres jesuítas também possuíam escravos. Embora pouco se saiba quantitativamente da participação desses no comércio de africanos, é certo que esta houve. De modo geral, a alta mortalidade de sacerdotes, a concorrência com outros grupos religiosos mais bem estruturados e respaldados pela sociedade local, além do parco investimento da Coroa portuguesa, pode explicar o relativo fracasso da missão de converter os africanos no litoral atlântico.

De modo geral, a presença europeia na África foi, como no início da colonização na América, costeira. O cristianismo, enlaçado no mesmo processo, também. A diferença é que, na América, progressivamente a colonização foi se interiorizando. Ocupando, ainda que parcamente, áreas cada vez mais ao interior, levava consigo a catequese e a Cruz, fenômeno que não se deu na África, onde o principal interesse era a administração de áreas litorâneas para controlar o comércio, principalmente o de escravos.

3.3 A escravidão colonial e o Catolicismo

É preciso que se esclareça, antes de abordar tão delicado assunto, que durante boa parte de sua vigência a escravidão não apenas era legal, bem como moralmente lícita. Isso não implica dizer que, vista dos dias de hoje, se possa considerá-la, ou a qualquer condição de trabalho análoga a ela, minimamente aceitável. O que se constata aqui é restrito ao período que se encerra na metade do século XIX, senão antes. Esta constatação se faz necessária para compreendermos como era possível que escravos alforriados também comprassem escravos para trabalharem em seu lugar, e como um grupo pequeno de feitores poderia controlar uma quantidade de escravos, não raras vezes, dez vezes maior.

Antes que se pense em passividade, é preciso considerar a autonomia que estas pessoas escravizadas tinham de estipular suas próprias estratégias cotidianas, que não eram necessariamente a clara revolta e o recurso à violência, embora as inúmeras rebeliões de escravos atestem ser este recurso viável não apenas para os senhores, mas também para os escravos. Porém, o número de vezes em que os escravos recorreram à violência da rebeldia foi muito menor do que o número de vezes em que o cálculo de perdas e ganhos levou-os a tomarem outro caminho, por certo menos arriscado. Deve-se considerar que, frequentemente, historiadores e outros autores colocam nas cabeças e bocas de personagens históricos discursos que só chegaram a eles muito depois. No caso da escravidão, o conceito iluminista de liberdade só aportou na América para os letrados entre o final do século XVIII e o início do século XIX, e significava a autonomia econômica e o direito à participação política. O significado da liberdade muda com o passar do tempo. Assim, quando falamos de escravidão colonial estamos tratando de um costume ou regra tácita da sociedade que a perpassava de alto a baixo. Muitas rebeliões foram apaziguadas quando certas condições de trabalho foram estabelecidas (REIS e SILVA, 1989, p.103).

É a essa escravidão que os textos do clero colonial católico se referem. De fato, não são textos libertários, e nem teriam como sê-lo. Estariam mais bem classificados como utópicos, que lidam com uma escravidão em que o senhor desempenha funções paternas: ensinar, tutelar, alimentar e corrigir. Veja-se o que diz o jesuíta Jorge Benci, em seu livro intitulado Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, escrito pelos idos de 1700: “Deve o senhor ao servo o pão para que não desfaleça” (BENCI, 1977, p.53). No primeiro dos quatro discursos do livro, o autor coloca sob a rubrica pão uma série de obrigações do senhor para com o seu escravo: comida, vestimenta e cuidados na enfermidade.  No segundo discurso, a argumentação começa com a seguinte afirmação: “como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não só deve o senhor dar-lhes o sustento corporal para que não pereça o seu corpo, mas o espiritual para que não desfaleçam suas almas” (BENCI, 1977, p.83). Isso nos permite perceber que o mito afirmando que o clero católico defendia a teoria de que os escravos não tinham alma é completamente infundado. O esforço do clero católico em catequisar, coerentemente às suas crenças, batizar, casar sacramentalmente e sepultar segundo o rito cristão os escravos, é evidência mais que bastante para mostrar que a postura geral entre o clero católico era bem oposta a essa. Ademais, Benci também chama veementemente a atenção dos senhores a respeito da sua obrigação religiosa para com os seus escravos.

O pensamento colonial católico acerca da escravidão parece ter tido início com Alonso de Sandoval, reitor do colégio jesuítico de Cartagena de las Índias (1605-1617). Em seu livro Um tratado sobre a escravidão, apresenta um longo estudo voltado para a compreensão e o ensino dos povos recém-chegados da África ao porto de Cartagena. Na verdade, mais que um programa catequético, Sandoval desenvolve uma verdadeira “soteriologia” dos escravizados. O primeiro passo desta “soteriologia” foi classificar todos os negros africanos e das ilhas do Índico como etíopes, que já eram associados à descendência de Cam, amaldiçoada pelo pecado deste contra seu pai, Noé. Daí se desenvolve o pensamento de Sandoval, apontando que, segundo Isidoro de Sevilha, na divisão do mundo a África correspondia aos descendentes de Cam. Portanto, a escravidão nos moldes cristãos, onde os senhores assumem funções paternais para com seus escravos, representaria a redenção da maldição de Cam. Isso por representar a inserção dos “etíopes” no novo povo eleito: a Igreja.

Também em Cartagena de las Índias, atuou São Pedro Claver que ali viveu e evangelizou durante quase toda a primeira metade do século XVII. Na região portuária da cidade, acolhia, alimentava e confortava os africanos escravizados que desembarcavam, sem medir gastos (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, p.86). Aferia os conhecimentos doutrinários, para checar se haviam sido batizados na África e se tal batismo era válido[2], catequizava a todos e batizava, ocasionalmente “sob condição”, os escravizados, colocando em seus pescoços uma medalhinha de chumbo, que de um lado tinha a face de Jesus e no outro a de Maria, para poder reconhecer os seus batizados na cidade. Em seu processo de beatificação consta que tinha constantes desentendimentos com as senhoras da cidade, por recolher pelas ruas e praças os negros para a celebração da missa, apesar do mau cheiro que esses exalavam, por suas feridas e precárias condições de higiene que lhes eram impostas (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, p.90 et seq.).

4 As Reformas

O termo reforma, embora de conteúdo semântico pouco delimitado, foi utilizado durante toda a Idade Média como o chamado à mudança e à correção tanto dos fiéis, no sentido da conversão e santidade, quanto da correção dos problemas de disciplina e ética dentro do clero católico. Em vários contextos medievais o uso do termo reforma esteve vinculado à busca da purificação e da santificação dentro da Igreja. Somente após o surgimento e a afirmação política do movimento luterano é que o termo ganha aspecto de ruptura.

Tradicionalmente, o fenômeno da emergência da Reforma Protestante vem sendo explicado a partir de suas causas internas. As mais antigas vias historiográficas situam em Lutero e nas 95 teses publicadas na catedral de Wittenberg o foco explicativo da Reforma. Posteriormente, a historiografia marxista incorporou a venda das indulgências do clero alemão, extrapolando o fenômeno como prática generalizada do catolicismo, e transformou Lutero numa espécie de revolucionário lançando-se contra as estruturas opressivas do poder financeiro eclesiástico. Tanto em uma quanto em outra vertente, o peso da ruptura recaía totalmente nos desvios e “abusos” comportamentais do clero católico.

No entanto, para uma melhor compreensão do fenômeno, as razões do surgimento e da afirmação da Reforma devem ser pensadas de modo mais amplo. Em primeiro lugar, os “abusos” do clero não são causa suficientes para a Reforma, afinal o movimento reformador já existia dentro da própria Igreja desde a Idade Média e nunca se tinha visto grupos que propusessem rupturas na proporção que começa a se ter a partir de vozes como Lutero e os anabatistas. Além disso, as principais referências a abusos nos textos dos reformadores são relativas a práticas litúrgicas e costumes católicos, como a comunhão em apenas uma espécie, e não sobre as eventuais práticas privadas do clero. Muitos críticos não eram separatistas, como Erasmo de Roterdã, por exemplo. Por último, pode-se pensar que, alguns anos mais tarde quando a Reforma Católica corrigiu grande parte dos desvios de conduta generalizados entre clérigos, os reformadores não propuseram o retorno (DELUMEAU, 1989, p.59 et seq.).

Certamente as causas mais profundas da Reforma estão ligadas às angustias coletivas do final do medievo. A principal delas era a morte e a consequente ida para o inferno. Não por acaso, os concílios na baixa Idade Média – Lyon (1274) e Florença (1438-1445) – e no início da era moderna – Trento (1545-1563) – se ocupam deste ponto doutrinário. Fenômenos como a peste negra, a guerra dos Cem Anos, o Grande Cisma no Ocidente, que gerou três homens alegando serem o verdadeiro papa, a ameaça dos turcos otomanos, foram, enfim, uma série de problemas que abalaram e desorientaram as consciências do europeu em geral. O horror ao pecado e o medo da morte foram algumas das consequências deste processo, para o qual a solução apresentada pelas correntes reformadoras era mais acessível se comparada ao purgatório católico.

De fato, pela teologia reformada, o pessimismo dominante gerava uma solução simplificada para o binômio pecado/inferno: a Graça advinda da fé, que era bastante e suficiente para tornar justo o homem, por si só inerentemente pecador. A novidade dos reformadores era propor uma fé individual que resgatasse individualmente do pecado. Consequência deste postulado era que cada indivíduo era seu próprio sacerdote, reduzindo ao mínimo a eclesiologia e praticamente extinguindo os ministérios ordenados. Como muitos sacerdotes possuíam vida condenável, e desde a propagação da Devotio Moderna muitos leigos buscavam uma vida santificada, a ideia reformada de um sacerdócio universal não foi difícil de ser propagada. De igual modo, a leitura do texto bíblico, que neste período já não era rara fora do ambiente litúrgico, também passa a ser de individual direção. Como aponta Jean Delumeau (1989, p.78), “os reformadores não ‘deram’ aos Cristãos os livros santos traduzidos em língua vulgar que a Igreja teria anteriormente lhes recusado”. O que aconteceu é que a profusão de cópias em línguas diferentes do latim gerou a familiaridade e o desejo de ler e interpretar as Sacras Letras.

4.1 As reformas protestantes

O fenômeno das reformas posteriormente chamadas de protestantes não teve início com Lutero, mas sem dúvida alguma teve nele seu primeiro grande protagonista. O frei agostiniano Martinho Lutero, que ingressou na ordem como cumprimento de uma promessa quando em perigo de morte, tornou-se um monge diligente e escrupuloso. Provavelmente já lhe atormentava a consciência a grande questão que o levaria à ruptura com o catolicismo: a justificação do homem. Ademais de uma miríade de críticas comportamentais, como a cobrança pelas indulgências praticada por parte do clero de sua própria terra, a grande questão de Lutero sempre foi a da salvação ou danação das almas, o que era uma questão comum à época. No fundo, as normalmente supervalorizadas noventa e cinco teses publicadas na catedral de Wittenberg e a viagem a Roma não estão no centro da Reforma Luterana. Ao contrário do que muitos autores afirmam, Jean Delumeau, baseado em textos do próprio Lutero, diz que “esta viagem a Roma não parece ter sido determinante na evolução interior” do futuro reformador (DELUMEAU, 1989, p.86). Já sobre as teses que foram copiadas e impressas por toda a Europa é preciso notar que, quando inquirido sobre essas no capítulo dos Agostinianos reunido em Heidelberg (abril de 1518), Lutero deu menos importância à questão das indulgências do que à sua doutrina sobre a justificação (DELUMEAU, 1989, p.90).  A visão do agostiniano alemão era fortemente marcada por uma leitura pessimista da obra de Santo Agostinho, decalcando no ser humano uma total inoperância contra o pecado, ficando esse, então, à mercê da Graça divina e nada mais. Assim, irremediavelmente pecador, o homem, enquanto indivíduo, só teria uma solução: a fé individual. Nas palavras do próprio Lutero: “O livre-arbítrio depois da queda não é mais que uma palavra vã; fazendo-lhe o que é possível o homem peca mortalmente” (DELUMEAU, 1989, p.106).

Desse modo, persistindo na sua doutrina da justificação possível apenas pela fé, Lutero abre as portas para outros pensadores proporem doutrinas autônomas e estabelecerem confissões próprias. E foi exatamente o que fez o humanista francês João Calvino. Por insistência do pai formou-se, inicialmente, em direito. Com a morte desse, torna-se teólogo em Paris, todavia não sendo ordenado sacerdote. Aderiu à Reforma e por isso foi expulso de Paris junto com outros huguenotes. Seguiu para Basiléia e depois para Genebra, onde se estabeleceu. O marco inicial da doutrina calvinista foi a publicação, em 1536, ainda em Basileia, da sua obra Institutio Religionis Christianae, onde começa a se apresentar efetivamente como reformador. Nela Calvino segue a eclesiologia luterana, ensinando que a Igreja é o conjunto dos eleitos, cujos nomes só Deus conhece, sendo portanto essencialmente invisível. Mas em uma edição posterior (1541), apresentará a Igreja visível como alvo de grande estima e obrigatória comunhão. Dada a sua percepção de uma distância incomensurável entre Deus e o homem, fomenta a iconoclastia, reafirmando que apenas as Escrituras podem oferecer um caminho para conhecer Deus. Partilhando do pessimismo do reformador de Wittemberg, Calvino amplia a sua reflexão quando publica, em 1552, um tratado sobre a predestinação, explorando a premissa de que Deus concede a sua graça a quem assim o desejar. Os grupos que aderem ao calvinismo abraçam a predestinação, porque Deus escolhe a quem dá a sua Graça e que, consequentemente, será salvo. Aos que não foram eleitos para a salvação só restaria o inferno. Como nesta doutrina uma das maneiras de tornar perceptível ao mundo o grupo dos eleitos era frutificar o trabalho diligente e o comportamento austero em riquezas, esta crença se figurava muito atraente aos burgueses – principalmente aos financistas –, que eram tidos como pecadores pelo catolicismo.

A última das três grandes vertentes de reformadores é a anglicana. O rei Henrique VIII era um católico fervoroso, tendo até mesmo chegado a escrever um manifesto contra os erros de Lutero. Ao que parece, esta devoção só se sustentou enquanto o rei acreditava que o papa lhe seria sempre favorável. Quando o papa Clemente VII negou o pedido de anulação do casamento para o qual Henrique havia pedido licença a Júlio II, o rei percebeu que não tinha em Clemente o aliado incondicional de que necessitava. Para ele, era necessário um segundo matrimônio na busca por um herdeiro masculino, que evitaria o retorno das guerras e conflitos pelo trono inglês. Daí surge a ruptura da Inglaterra, por uma lei – o Ato de Supremacia (1534) – sem nenhuma questão teológica ou disciplinar a propor ao catolicismo. Esta reforma era meramente uma questão de obediência e jurisdição. Ao rei cabia, a partir de então, a dupla jurisdição que tantos conflitos causara na Idade Média: a temporal e a religiosa, a mitra e a coroa repousando na mesma cabeça.

4.2 As Igrejas Cristãs

Como consequência do movimento reformista iniciado no século XVI, o que se observa no cenário religioso é o aprofundamento das rupturas entre as várias vertentes do cristianismo. À antiga divisão entre Oriente e Ocidente, que, a bem das tentativas feitas no ocaso do medievo, pouco se avançou concretamente rumo ao reencontro, soma-se a fratura da reforma e as múltiplas divisões colaterais à doutrina da livre interpretação das escrituras. Este ponto específico, comum à grande maioria das vertentes doutrinárias, associado à emergência do indivíduo como referência e agente relevante, ensejou a proliferação e a fragmentação das correntes reformadoras em uma miríade de credos. Assim, ao longo dos cem anos seguintes aos processos fundadores reformistas, as comunidades confessionais se multiplicaram pela Europa (JEDIN, 1972, p. 577).

Além disso, as identidades nacionais nascentes se associaram às identidades religiosas, o que conduziu às disputas e guerras de cunho religioso, em especial na França, com a Noite de São Bartolomeu, quando os católicos massacraram os protestantes em Paris, e a Guerra dos Trinta Anos, que tinha, entre as causas dos conflitos, disputas entre católicos e protestantes.

A multiplicação de denominações foi inevitável e, até certo ponto, previsível. A livre interpretação das Escrituras e a eclesiologia que atribui um papel quase nulo à igreja visível dariam, inevitavelmente, em dissenções e dissenções das dissenções. Ademais do protestantismo clássico de Lutero, Calvino e Zuínglio, acrescenta-se o anglicanismo. E nesse, os fiéis de influência calvinista, críticos das reminiscências católicas do anglicanismo, iniciam o movimento puritano, que se desdobrará entre os colonizadores da América do Norte e os que, na França, formariam os huguenotes. Igualmente derivados do grupo calvinista, surgiram os presbiterianos, que se distinguem pelo governo dos anciãos (presbíteros). Ainda derivados dos anglicanos, os batistas surgem dos ingleses que viviam na Holanda, em 1608, caracterizando-se pela defesa do imersionismo para o ritual do batismo. Nos séculos seguintes surgirão pietistas, metodistas, adventistas, pentecostais, além de novas separações do catolicismo no século XIX: as igrejas veterocatólicas.

4.3 Reforma Católica

Da parte católica, já havia um movimento reformista iniciado ainda na Idade Média, conhecido como Reforma Gregoriana, em alusão ao papa Gregório VII (1073-1085), e que teve avanços e retrocessos ao longo dos séculos. Entretanto, fazia-se urgente que os reformadores tivessem uma resposta. Esta era uma demanda do clero católico e uma exigência do imperador Carlos V. Esse, preocupado por ter seu Império dividido entre católicos e reformados, buscava impor uma solução conciliatória, que preservasse a unidade de seus domínios. Nessa tensão, celebra-se o Concílio de Trento, cerne da Reforma Católica moderna.

Desde a Dieta de Worms, reunida em 1521, na qual Lutero refirmou a sua doutrina sobre a justificação pela fé na presença do imperador Carlos V, na cristandade já se demandava um concílio (ALBERIGO, 1995, p.325). Não apenas pela gravidade da ruptura que ameaçava se alastrar, mas certamente também por influência da doutrina conciliarista, ainda em voga. Um dos maiores defensores de um novo concílio geral era o próprio Lutero, ainda que provavelmente para ganhar tempo em seu processo de excomunhão (JEDIN, 1960, p.99). A escolha da cidade onde teria lugar a assembleia foi difícil e complexa. Para os luteranos, grandes fomentadores da ideia de um concílio reformador, a sede do concílio deveria ser na Alemanha, onde nasceu o conflito. No entanto, o tempo passava, os papas se sucediam, e a oposição de Roma à sua convocação era evidente. Não apenas pela aversão à doutrina conciliarista da qual a proposta estava impregnada, mas também pelo fato de que, ao menos em parte, uma tentativa semelhante fracassara em Augsburgo. O concílio só começou a se configurar de forma efetiva depois de um encontro de Carlos V com o Papa Paulo III, ocorrido em Roma, na primavera de 1536.

Houve então uma primeira convocação, no ano seguinte, para a cidade de Mântua, que não foi possível pela guerra entre Carlos V e Francisco I e pelas exigências feitas pelo duque de Mântua para abrigar o concílio. Em outubro de 1537, o concílio foi transferido para Vicenza, igualmente sem sucesso. Quando a expansão das doutrinas reformadas já havia avançado muito e ameaçava penetrar na península Itálica, revestiu-se de urgência uma ação por parte da Cúria romana. Esta ação foi a efetiva convocação do Concílio para a cidade de Trento, estrategicamente localizada no Tirol, ainda pertencente ao Império, mas de fácil acesso aos prelados italianos. Ainda assim, o Concílio foi realizado num período turbulento, entremeado de guerras que fizeram com que os trabalhos fossem suspensos e recomeçassem.

Logo de início, a divergência entre a Cúria e o imperador ficou clara: enquanto à Cúria interessava a imediata condenação do luteranismo, o imperador desejava a reforma da Cúria para então entabular um diálogo com a vertente reformada e preservar a unidade confessional do Império (ALBERIGO, 1995, p.334). A primeira das três etapas do Concílio (1545-1548) foi a mais importante. Nela foram celebradas 10 sessões, nas quais foram reafirmadas as fontes de autoridade no catolicismo – Escrituras e Tradição –, a doutrina do pecado original, a justificação pela fé e pelas obras e a validade dos sacramentos. Na segunda etapa (1551-1552), quando tiveram lugar 6 sessões, foram acertados cânones sobre a eucaristia, penitência e extrema-unção. Após longa interrupção, o Papa Pio IV convoca um terceiro período (1562-1563), no qual ainda foram celebradas 9 sessões. Este último período foi marcado por decretos disciplinares que objetivavam uma reforma na Cúria, ainda alvo de duras críticas.

Um dos pontos centrais do Concílio, principalmente na primeira etapa, foi a questão da justificação do homem, tema central na reforma luterana. Para Carlos V e seus aliados dentro do Concílio, a definição católica deveria admitir duas formas de justificação alternativas: a fé e as obras, que poderiam vir juntas ou preferencialmente a fé. Desse modo, às novas vertentes do cristianismo ficaria resguardada a crença na fé como forma de justificação, e aos católicos reservado o direito de acrescentar as obras como necessárias à salvação. A ação dos padres jesuítas Diego Laynez, que sucederia Inácio de Loyola no controle da Companhia de Jesus, e Alfonso Salméron, grande erudito e exegeta, contribuiu decisivamente para a distinção doutrinária marcada no texto final do concílio.

Além desta questão central, os conciliares em Trento procuraram estabelecer com máxima clareza os saberes e as práticas envolvidas em cada um dos sacramentos. Não apenas por estarem estes sendo postos em questão pelo movimento reformador, mas por considerar que é deles que nasce a verdadeira santidade, e se esta for perdida é por onde se a recobra ou ainda se a aumenta.

4.4 Novas e velhas ordens e congregações

O movimento de caráter espiritual que surgiu no final da Idade Média, conhecido em sua totalidade como Devotio Moderna, assenta-se na emergência da referência ao individual em diversas esferas da vida cotidiana, inclusive na religiosa. Erwin Iserloh, se referindo ao ocaso do medievo, afirma que

(…) se había puesto en marcha un proceso de individualización, que descubría lo particular en lo universal, y se liberaron enormes fuerzas espirituales, artísticas y religiosas. En conexión con ese movimiento está el despertar de un laicismo consciente de su responsabilidad, la evolución de las ciudades y la formación de los estados nacionales ( HUBERT, 1973, p.573)

 indicando que o mesmo fator está na raiz de distintos fenômenos. Trata-se da progressiva emergência do indivíduo como referência, que tanto redunda no laicismo crescente no cenário religioso europeu dos séculos seguintes, quanto fundamenta as novas formas de relacionamento com o divino que se instauram dentro da própria Igreja. Se não em função deste novo modelo de piedade, ao menos a partir dele, a reforma católica vai pôr em marcha uma reforma das ordens religiosas.

 Ao se tratar das reformas nas ordens religiosas, é preciso que se distinga a que foi empreendida na Espanha pelo cardeal Cisneros, a pedido do papa Alexandre VI e com apoio da monarquia católica. Essa distinção deve ser feita não apenas pela sua importância interna, mas pelos desdobramentos que esta reforma vai ter na América, com a vinda de missionários de ordens já reformadas para o trabalho catequético e missionário. Por influência de Cisneros, os franciscanos e beneditinos espanhóis foram reformados, retornando ao rigor na observância de suas regras, então perdido. De modo semelhante, sob a liderança de Santa Tereza d’Ávila, o foram as carmelitas. Aos frades carmelitas é São João da Cruz que estende o mesmo espírito reformista. Acresce-se a esses místicos São João de Ávila, o apóstolo da Andaluzia, que pregava a reforma do clero e o aprofundamento espiritual, e Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, autor dos Exercícios Espirituais. Curiosamente, o espírito antirreformista também se fazia notar; basta dizer que todos os quatro santos de espírito místico e reformador tiveram que se haver, de uma maneira ou de outra, com a inquisição espanhola.

 A Companhia de Jesus assumiu características singulares frente às ordens mendicantes e às demais. Destas, a mais distintiva foi a instauração do quarto voto: o de obediência especial ao papa em relação às missões. Além disso, não habitavam em mosteiros e não se fixavam em um só lugar, sendo fundamentalmente missionários de inspiração paulina. Basta considerar que muitos dos colégios e missões fundados nos primeiros anos eram dedicados à memória de São Paulo: Piratininga, Luanda, Goa etc. Logo após a fundação, foram enviadas as primeiras missões para dentro da própria Europa, buscando recobrar os católicos que haviam migrado para as doutrinas reformadas. Logo em seguida foram enviados missionários jesuítas para cristianizar os rincões mais distantes no planeta: da América ao Japão. Um grande exemplo de missionário jesuíta foi São Francisco Xavier, um dos companheiros de Inácio de Loyola na fundação da Companhia, enviado à Índia e ao Japão, após um acordo entre os jesuítas e a Coroa portuguesa.

 Outras ordens foram fundadas neste espírito de reforma do clero regular: Santo Antônio Maria Zaccaria (1502-1537) fundou os Clérigos regulares de São Paulo, chamados de barnabitas, por seu monastério de São Barnabé; a Ordem dos Clérigos Regulares de Somasca, os somascos, foi fundada por São Jerónimo Emiliano, um leigo consagrado que se dedicou ao cuidado dos órfãos. São Jerônimo era muito próximo de São Caetano de Thiene, que fundou a ordem dos teatinos. O santo da alegria, São Felipe Neri, fundou uma comunidade de clérigos seculares conhecida como Congregação do Oratório, ou oratorianos. Algumas mulheres também criaram ordens regulares neste movimento, como Santa Angela de Merici (1474-1540), que foi fundadora da Compagnia delle dimesse di Santa Orsola (as chamadas ursulinas), destinada ao abrigo e educação de meninas abandonadas. É importante notar que o Estado não cumpria as funções de cura, sustento e educação dos súditos. Cabia a instituições caritativas, em geral ligadas às iniciativas do clero católico, desempenhar este papel.

 5 A religiosidade popular latino-americana

 O termo religiosidade popular refere-se, por si só, às leituras e interpretações do povo e da relação que esse estabelece com o sagrado (NASCIMENTO, 2009, p.119-30). Frequentemente, constitui-se do amálgama entre tradições e crenças de origens diversas com a doutrina e a liturgia católica, resultando em formas de culto, crenças e devoções semelhantes às católicas, mas com significados deslocados pelos saberes populares. Sem sombra de dúvidas, as práticas religiosas populares de Portugal e Espanha, passadas quase sempre pela via materna, deram origem, no encontro com os ritos locais ameríndios e os importados da África, ao catolicismo popular latino-americano (DUSSEL, 1983, p.200).

Para uma melhor compreensão desta simbiose de formas e conteúdos religiosos, é preciso considerar que, do ponto de vista da antropologia cultural, a religiosidade é a forma com a qual as sociedades lidam com o inesperado e com o que lhes escapa ao controle – como o resultado das colheitas, o regime das chuvas, os problemas de saúde e a morte. O cristianismo, como religião revelada, transcende este aspecto primeiro, mas acaba dialogando com ele, na medida em que se propaga por meio da pregação de suas verdades. Na medida em que foi alcançando grupos cada vez mais distantes em termos de padrões culturais, o conteúdo da pregação passou por filtros cada vez mais variados e foi associado a formas de crer e ver o mundo cada vez mais distintas da judaico-europeia, da qual saiu o modelo católico que chega à idade moderna.

Por outro lado, os missionários católicos, preocupados em garantir a salvação dos menos letrados, empreenderam enormes esforços catequéticos. No entanto, neste contexto de confronto religioso com os reformadores, o povo católico iletrado e os povos ágrafos foram, no mais das vezes, subavaliados na sua capacidade de aprendizado e de compreensão doutrinária. Nos séculos XVI e XVII, abundavam na cristandade os catecismos resumidos para as crianças, os rudes, os brutos e todos considerados curtos de inteligência (MUÑOZ, 2006, p.417). Em cada espaço do globo havia rudes e brutos específicos, mas de modo geral eram os camponeses, os pobres, os índios e os africanos, neste último caso tantos os que viviam lá quanto os que foram trazidos para a América e seus descendentes. É em meio a este povo de rudes e brutos que um modelo muito particular de catolicismo vai se desenvolver na América Latina. É possível considerar que neste processo de evangelização sob condições muito específicas, ou seja, em um contexto de colonização e conquista, construiu-se um catolicismo mestiço.

O fato é que a cultura popular e a sua religiosidade encontraram, nas formas católicas de culto ou de expressão de seus valores, mecanismos para viabilizar suas crenças ancestrais, assim como suas necessidades imediatas. Por isso, antes das últimas décadas do século XX, havia uma grande distância entre a devoção católica aos santos e o pedido de sua intercessão, e a crença popularesca no poder atribuído aos santos de fazer milagres, com poderes que lhes seriam próprios – apenas para citar um exemplo. Do mesmo modo, a doutrina católica como expressa em Trento sobre os sacramentos dista em muito da interpretação que deles se fazia nas camadas mais populares – dos rudes e brutos – menos afeitas a complexos conceitos teológicos. Até as irmandades de leigos, lugar do catolicismo não clerical por excelência, eram não raras vezes usadas muito mais como lugares para visibilidade e status sociais que efetivamente de culto e adoração (BOSCHI, 1986, p.14).

A popularização da doutrina e os movimentos de leigos incrementados pelo Concílio Vaticano II tenderam a diminuir a distância entre o que a Igreja ensina e o que o povo mais engajado no catolicismo crê. No entanto, fora dos círculos estritamente católicos, as crenças perpassadas de figurações católicas ainda se mantém.

 Carlos Engemann, Brasil.

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 [1] Essa bula foi escrita pelo papa Paulo III após ter recebido uma carta do dominicano Julián Garcés. Nessa carta, o bispo de Tlaxcala (hoje um dos estados que compõem o México), denuncia a extrema crueldade com que os conquistadores tratavam os habitantes da América, sob o pretexto de que esses não conheciam a fé.

[2] Era frequente que se considerasse inválido um batismo que não fora precedido de catequese, aceitação da fé e desejo pelo batismo. O arcebispo de Sevilha D. Pedro de Castro y Quiñones proferiu, no início do século XVII, uma instrução que se tornou modelar para a catequese de africanos e nela recomendava que se questionasse se o indivíduo havia ouvido catequese, se a tinha compreendido, se a tinha aceitado e se havia desejado ser batizado. Claver utilizava essa instrução no seu trabalho.

Cristianismo Medieval

Sumário

1 Significado histórico de “Cristianismo Medieval”

2 Circunscrevendo a cristandade latina  (séculos V-X)

2.1 A Ecclesia e a nova situação do Ocidente

2.2 O papel do monasticismo

2.3 A cristandade carolíngia

3 Circunscrevendo a cristandade papal (séculos XI-XV)

3.1 O significado histórico da afirmação do papado

3.2 O avanço do poder papal

3.3 As universidades e a escolástica medieval

3.4 O cristianismo e o disciplinamento da sociedade

3.4.1 As cruzadas

3.4.2 O tribunal da inquisição

4 Referências bibliográficas

 

1 Significado histórico de Cristianismo Medieval

Nenhum acontecimento ou característica particular nos autoriza a tomar por medieval, isto é, “por oposição à ou superação” da antiguidade, o cristianismo que se desenvolveu no Ocidente após a deposição do imperador romano Rômulo Augusto, em 476. Do ponto de vista político, as Igrejas do Ocidente mantiveram, daí em diante, a mesma tradição oriental de serem protegidas e, de certo modo, governadas pela autoridade imperial romana e, na falta dela, pelos monarcas romano-germânicos, fazendo repercutir historicamente o modelo social da cristandade (christianitas) definido após a chamada “guinada constantiniana” de 313. Do ponto de vista teológico, os debates em torno das naturezas de Cristo e de sua vontade, o lugar e a ação do Espírito Santo na Trindade e na história continuaram a povoar a mente dos bispos orientais e ocidentais, e a inquietar os governadores do Império que prosseguiram no costume de convocar concílios ecumênicos e regionais, para buscar a paz e o consenso entre as muitas teologias da Igreja. Isso não impede que mudanças profundas tenham vindo a marcar o futuro dessa história, como, por exemplo, o gradativo afastamento cultural, teológico e disciplinar entre as igrejas orientais e as igrejas ocidentais (entre os séculos V-XI), o surgimento de igrejas nacionais, com a formação dos reinos bárbaros (séculos V-VI), a ascensão do papado como centro de governo eclesial disposto a ocupar o ponto mais alto de autoridade na Ecclesia (séculos V-XI), o acirramento dos sistemas persecutórios dos desvios dogmáticos e morais, que aos poucos foram assumindo características sempre mais sociais e políticas (séculos VIII-XIV), e atraindo para si um significado histórico de primeira grandeza no Ocidente latino.

2 Circunscrevendo a cristandade latina (séculos V-X)

2.1 A Ecclesia e a nova situação do Ocidente

O mundo romano, no século V, conheceu uma importante reviravolta em sua história, com consequências ingentes para a história do cristianismo: populações estrangeiras, que os romanos chamavam de bárbaras (godos, burgúndios, suevos e vândalos), instalaram-se definitivamente nas regiões ocidentais do império (GEARY, 2005). Tais populações provavelmente não eram cristãs antes da entrada no território romano, e o processo de cristianização desses povos é bastante amplo e complexo, marcado, grosso modo, por uma adoção coletiva do cristianismo, ocorrida como parte da instauração dos chamados reinos federados (ou romano-germânicos), isto é, substitutos da autoridade romana nas províncias ocidentais (DUMÉZIL, 2005, p.143-64); tratava-se, portanto, de um ato político feito a partir da decisão dos governantes bárbaros e extensível às populações que reconheciam a autoridade deles (WICKHAM, 2013, p.118-9). Enquanto os cidadãos do império, no Ocidente, professavam a fé defendida pelos concílios de Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451), as populações bárbaras adotaram um outro tipo de cristianismo, definido nos concílios regionais de Selêucia e Rimini, em 359, cuja doutrina foi pejorativamente chamada “ariana” porque, segundo seus críticos, tratava-se ainda de defender a subalternidade de Cristo em relação ao Pai, premissa defendida por Ário de Alexandria e rechaçada pelo Concílio de Niceia. No entanto, para os bárbaros, a questão não era o dogma, mas a construção de uma identidade coletiva para grupos multiétnicos, como os godos e vândalos, que encontraram no cristianismo um modo de se afirmarem como comunidade distinta dos romanos.

Assim, enquanto o episcopado latino (niceno) via os bárbaros como “arianos”, isto é, hereges, os bárbaros viam os cristãos nicenos (latinos) como romanos: duas posturas, dois tipos de igreja (FRIGHETTO, 2010, p.114-30). Os reinos romano-germânicos instalados no Ocidente possuíam uma hierarquia eclesiástica particular que formava igrejas próprias, nacionais, que se identificavam com as populações bárbaras e por elas eram defendidas como marca de sua identidade comunitária. Com exceção dos vândalos, no Norte da África, os cristãos ditos arianos não costumavam indispor-se ou intimidar os cristãos nicenos, com quem conviviam nas mesmas cidades, não destituíam os bispos nicenos, não confiscavam seus bens e muito menos pretendiam converter os latinos, atitude muito praticada por esses. O episcopado latino (niceno) procurou principalmente influenciar os mecanismos de governo destes reis que, apesar de não nicenos, pretendiam adotar a tradição política romana e, por isso, viram no episcopado latino um importante vetor de romanização. Tal demanda suscitou uma aliança entre o governo e a fé, porém com características bastante diferentes daquela aliança dos tempos de Teodósio I (380). No Oriente, o chefe visível da Igreja era o imperador, mas no Ocidente, sem autoridade imperial desde 476, este cargo ficou vago, pois os reis, não sendo de fé nicena, eram legalmente heréticos e, neste sentido, não podiam ser vistos pelos bispos na mesma condição dos imperadores. Assim, o episcopado católico latino tomou para si a missão de evangelizar os reis e de ensiná-los a governar. E, dentre todos os bispos, o de Roma assumiu um posto destacado.

O fato de haver, no Ocidente, apenas uma Sé apostólica, a de Roma, alçou a autoridade de seu bispo a uma posição ímpar entre os bispos das diversas igrejas que, apesar de latinas, ainda não se reconheciam como dependentes de uma tradição romano-papal, como é o caso da igreja ibérica ou da igreja norte-africana. A situação era um pouco diversa nas Gálias, onde, por força política, o imperador Valentiniano III, em 444, vinculara a igreja galicana à igreja de Roma, fazendo seus bispos obedecerem a todas as leis canônicas sancionadas pelo papa, a aceitarem as advertências que viesse a proferir, podendo, inclusive, serem punidos politicamente, caso o papa os denunciasse ao governador da província.

Em 595, quando o papa Gregório Magno enviou quarenta monges romanos ao reino de Kent (sul da atual Inglaterra), ainda pagão, com a missão de converter o rei Etelberto e fundar a igreja no reino (597), vinculou juridicamente aquela igreja, chefiada por Agostinho de Cantuária, seu antigo colaborador em Roma, à autoridade papal; a marca desta dependência, inédita na história da Igreja, ficou evidente no rito de concessão papal do pálio pastoral ao bispo primaz de Cantuária.  Ora, este gesto viria a ser repetido com outro monge-bispo missionário, Bonifácio (673-754), que, sob as ordens de outro papa chamado Gregório (Gregório II, papa de 715 a 731), tomou a peito a evangelização das áreas germânicas da Saxônia, Hesse e Bavária: uma evangelização conturbada, violenta e impositiva que elevou ao paroxismo a tendência dos reinos bárbaros de serem convertidos juntos com seus reis (BROWN, 1999, p.273). A entrega do pálio, que marcava a extensão da autoridade papal sobre igrejas de missão, tornou-se, depois, obrigatória para todos os bispos metropolitanos.

2.2 O papel do monasticismo

Os monges e seus mosteiros se tornaram os principais vetores da evangelização do Ocidente porque souberam adaptar o cristianismo às regiões não romanizadas. Em primeiro lugar, é preciso ter presente que a primitiva implantação das comunidades cristãs sempre dependeu do sistema administrativo romano das civitates (cidades): tal pressuposto era bastante difícil de existir em áreas não romanizadas ou em regiões ao norte de Europa, onde não havia cidades ou onde elas eram muito raras. Ao passo que era preciso haver uma cidade para que houvesse um bispo, os mosteiros podiam ser construídos em regiões ermas, com ou sem população prévia, com ou sem um sistema político definido, propriedades e hierarquias eclesiásticas. Nesse sentido, os mosteiros sempre foram mais plásticos, mais adaptáveis aos mais diversos ambientes, dado que o monasticismo, em si mesmo considerado, não é uma instituição, mas um modo de vida; além disso, numa região de forte predominância de comunidades rurais de pequenas proporções ou ainda frente à existência de um sistema clânico ou tribal, como era o caso da Irlanda no século V (DUMÉZIL, 2006, p.58), os mosteiros adaptavam-se a toda sorte de ambientes e, em todos eles, implantavam igrejas e ofereciam os sacramentos e a pregação, reproduzindo, assim, aquilo que antes apenas a ecclesia mater do bispo, presente numa cidade, era capaz de oferecer.

Lembremo-nos ainda de que o monasticismo do Ocidente, inspirado no modelo oriental, concebia a sua forma de vida a partir de uma profunda ascese que se traduzia, muitas vezes, no enfrentamento concreto dos perigos e desafios que as regiões mais inóspitas e as populações ainda não cristianizadas tinham a oferecer. Não podemos interpretar a fuga mundi, um dos grandes temas da vida monástica, como um desinteresse pelo mundo enquanto campo de ação da vida espiritual. Os mosteiros jamais foram fechados à sociedade circunvizinha e, a partir da experiência cenobítica proposta pela Regra de São Bento de Núrsia (480-543), sempre se apresentaram como escolas do serviço do Senhor, tanto para o vocacionado que chegava, quanto para os habitantes das redondezas.

Enquanto a igreja episcopal, implantada somente nas cidades, constituía um espaço público de culto, os mosteiros podiam ser construídos por particulares em propriedades privadas, o que, de um lado, abria a possibilidade de haver tantos mosteiros quantos fossem seus benfeitores e, de outro, associava o mosteiro ao patrimônio de uma família que procurava, pela sua construção, ligar-se a um capital espiritual inesgotável, facultar a existência de um lugar de memória para a sua parentela, ali sepultada, bem como encontrar um futuro para os filhos e filhas que não tivessem conseguido bons casamentos: o mosteiro reproduzia o status aristocrático da família (LE JAN, 2006, p.56-82). A Regra de Bento, por exemplo, valorizava a prática da doação de filhos crianças aos mosteiros (os oblatos), junto com a dádiva monetária ou patrimonial que assegurava a sua educação, o que tornou as abadias verdadeiras casas aristocráticas. Desse modo, o cenobitismo de observância beneditina correspondia bem às características nobiliárquicas das sociedades romano-bárbaras que se desenvolveram no Ocidente, entre os séculos V-VIII, e isso constituiu importante explicação para o sucesso da vida monástica ocidental no processo de cristianização, na medida em que o avanço do evangelho foi interpretado como o avanço das estruturas sociopolíticas dos reinos romano-germânicos simultaneamente.

Em regiões germânicas que não haviam conhecido a romanização e urbanização, as comunidades cristãs lá fundadas, a partir do século VII, dependeram exclusivamente da ação de monges, como São Bonifácio, que, ao construir mosteiros como base primeva do início da evangelização, deram origem a verdadeiras cidades, desta vez construídas exclusivamente sobre a tradição cristã e segundo um pressuposto cristão. Isso porque os mosteiros de matriz beneditina organizam-se como núcleos autônomos de produção de bens, miniaturizando e adaptando o sistema urbano nos limites do claustro e daí ao seu redor, donde a sua importância na reprodução dos sistemas sociopolíticos do Ocidente cristão.

Como vimos, Bonifácio estava investido da autoridade missionária conferida pelo papa de Roma, e era militarmente protegido pelas armas do reino franco. Ora, a comunhão de interesses entre os monges missionários de São Bonifácio, a Sé papal e o poder carolíngio é que deram vigor ao modelo de cristandade latina, tendo seu centro espiritual em Roma e seu centro político na Gália. Embora a ação dos carolíngios, que instauraram um império cristão no Ocidente, sob as bênçãos dos sucessores de São Pedro, tenha abrangido uma reforma social mediante uma reforma completa do clero, eles contaram com o apoio irrestrito dos monges, qual falange heróica de contemplativos-missionários que, no caso da evangelização da Frísia (atual Holanda), reviveram o antigo espírito martirial das origens. Entre os séculos VII-IX, os mosteiros foram, de fato, os centros intelectuais da cristandade latina, pois os carolíngios, aí incluídos seus ideólogos, entendiam que o império cristão não era apenas um império de armas, mas de palavra e, sobretudo, da Palavra, no sentido evangélico.

Os mosteiros se tornaram oficinas de manuscritos, de gramática, de arte, de pensamento: ali estudavam os funcionários da burocracia imperial que, depois, fundariam as escolas catedrais (séc. IX) e, futuramente, as faculdades que deram origem ao sistema universitário ocidental (séc. XII). Isso não significou que os monges tenham se apropriado da cultura escrita, patrimônio universal, e impedido que os leigos se acercassem dele; ao contrário, a cultura romano-bárbara, própria do período carolíngio, segmentava a sociedade em categorias quase profissionais, reservando para os contemplativos o ofício das letras, para os aristocratas leigos, o ofício das armas e para os não-aristocratas, os demais trabalhos manuais. Assim, devemos aos mosteiros grande parte de toda a cultura cristã do Ocidente, aí incluídas a arte, a filosofia e o pensamento político.

2.3 A cristandade carolíngia

A dinastia carolíngia deve seu nome a Carlos Martel (686-741), avô de Carlos Magno (747?-814) e pai de Pepino III (715-768): Carlos deu origem à família aristocrática que promoveu um golpe de Estado (WICKHAM, 2013, p.472) no reino franco, em 751, depondo o rei merovíngio Childerico III. Este golpe contou com o aval e a conivência do bispo de Roma, o papa Zacarias (741-752), e com seus sucessores imediatos que, um a um, foram aprovando e dotando de privilégios a nova família reinante: os papas concederam aos carolíngios o título de reis, os ungiram, os coroaram, fizeram-nos imperadores de todo o Ocidente, implementaram com eles um projeto que devia tornar todo o território ocidental uma só cristandade, capaz de rivalizar e suplantar a cristandade do Oriente, naquela época governada por imperadores iconoclastas. A união do papado com os carolíngios teve uma importância medonha para o futuro da história da Igreja: de um lado, ratificou o golpe de Estado, tornando-o vontade de Deus; de outro lado, blindou o papado das investidas dos reis lombardos, que insistiam em não reconhecer a superioridade política dos papas na península italiana. Esta época marca o início decisivo de uma caminhada institucional que alçará os bispos de Roma à qualidade de soberanos pontífices, processo que demorou séculos e que exigiu grande esforço. Mas, no século VIII, a autoridade apostólica da Sé de Roma, reconhecida por todas as igrejas do Ocidente, ainda não significava a supereminência dos papas sobre os bispos ou sobre os reis. Assim, a cristandade que vemos se descortinar nesse período deve mais propriamente se chamar carolíngia ou franca porque suas fronteiras ainda coincidiam com aquelas do reino franco-carolíngio. De fato, os ideólogos do poder régio, aí inclusos clérigos da cepa de Alcuíno de York (735-804) e Teodulfo de Orleãs (750-821), bem como os diversos concílios e sínodos episcopais, como aquele de Frankfurt, de 794, insistiam em tomar por sinônimos os termos ecclesia (igreja) e imperium (império) (DE JONG, 2003, p.1255). Ora, tal fato calhava bem com a proposta de dominação política de Carlos Magno, que promoveu uma aproximação entre seu reino e aquele do antigo Israel, governado por Davi, Salomão e Josias, três figuras que aparecem sempre citadas nos documentos emanados da corte régia e representados nas igrejas de seus palácios. No fundo, esperava-se que o reino dos francos superasse aquele dos israelitas do Antigo Testamento porque constituía o reino de Cristo e, portanto, era universal e escatológico. Dentro desta perspectiva, as ações políticas e militares de Carlos Magno e, depois, Luís o Piedoso (778-840) foram encetadas e interpretadas segundo o mote veterotestamentário do extermínio dos inimigos de Deus, agora identificados com os muçulmanos, os pagãos e todo tipo de hereges.

Por ser um império-igreja, as celebrações litúrgicas, bem como as definições doutrinais, assumiam um posto de primeira importância e preocupavam sobremaneira os imperadores carolíngios, afinal eram as preces que mantinham a invencibilidade do reino e a expansão da fé: no século IX, era em território franco que se encontravam os mais brilhantes liturgistas, os teólogos de renome com suas escolas monásticas ou episcopais. A corte de Carlos Magno, justamente chamada de sacrum palatium, em Aix-la-chapelle, era vista, pelos bispos do Ocidente, como o centro da perfeita liturgia, modelo para as diversas igrejas particulares. Foi dos mosteiros de Carlos que saiu talvez a maior reforma da missa latina, pois misturam-se, adaptando-as, as liturgias galicana e romana, numa síntese que passou a definir o missal romano, desde então tornado universal no império, e pôs fim ao missal galicano, que rapidamente caiu em desuso.

Apesar de reconhecer que, sem os papas, os carolíngios não teriam ido tão longe, eles sabiam bem que a cristandade que formavam era completa nela mesma, por conta da fraternidade entre bispos e reis. Nesta época, tanto os bispos como os reis sabiam bem que o poder das chaves, dado a Pedro por Jesus, conforme o Evangelho de Mateus, capítulo 16, era extensível ao poder episcopal como um todo e que os papas de Roma ainda não tinham a exclusividade nesse campo (DE JONG, 2003). Assim é que o concílio de Frankfurt, de 794, invalidou, para o Ocidente, os efeitos do Segundo Concílio de Niceia (787) que, presidido por uma mulher, a imperatriz Irene, pôs fim ao cisma iconoclasta; tamanha a autoridade do episcopado carolíngio que, mesmo que o papa de Roma tenha considerado legítimo e ecumênico este concílio, foi obrigado a tergiversar e encontrar um ponto de equilíbrio entre as duas eclesiologias. Ora, a igreja carolíngia, ao negar a possibilidade de conferir aos ícones uma reverência desmesurada, como pretendia o II Concílio de Niceia, procurava assegurar que tanto o sacramento eucarístico quanto o próprio ministério episcopal não perdessem o exclusivo papel de mediadores entre Deus e os homens. Nesse momento, foi o episcopado comandado por Carlos Magno que manteve a Igreja latina na tradição de Gregório Magno, para quem as imagens e ícones eram veículos de ensinamento doutrinal e moral e não objetos de veneração neles mesmos. A forte ideia de que o império cristão mantinha a integridade da fé deu aos clérigos e fiéis a impressão de que viviam, de fato, no reino de Cristo e que esse reino agora se aproximava.

Por mais cristão que o império carolíngio pudesse ser, permanecia o fato de que, teologicamente, a ecclesia possuía uma natureza diferente daquela do reino terreno, nascido, segundo o Gênesis, após o pecado de Adão; a ecclesia, a julgar pela literatura patrística, como o Pastor de Hermas, antecedia à criação do mundo. Ora, a consciência dos bispos do período carolíngio e pós-carolíngio foi gradativamente aumentando a reflexão acerca dos limites do poder régio sobre a noção mesma de igreja e, com isso, temos o surgimento de inflexões eclesiológicas em novas bases. Não é que o episcopado e, com ele, o papado, fossem já suficientemente fortes a ponto de negarem aos reis e príncipes lugar fundamental no conceito de ecclesia, mas que já não queriam permitir que o papel por eles desempenhado servisse para diminuir o poder dos bispos, bem como o tamanho de seus bens, frequentemente utilizados para as necessidades dos próprios reis.

3 Circunscrevendo a cristandade papal (séculos XI-XV)

3.1 O significado histórico da afirmação do papado

Dentre os mais frequentes estereótipos da chamada Idade Média, encontra-se aquele relativo ao poder temporal dos papas. Pensa-se que tenham sido homens todo-poderosos capazes de vergar reis e imperadores e instaurar a ordem social nos momentos de crise, quando reis e imperadores, por motivos torpes, não eram capazes de cumprir seu papel. Tais estereótipos encontram o aval de importantes historiadores, na medida em que, no século XX, muitos deles viram no papado medieval o início do ordenamento político-estatal que marcou, inclusive, o fim da Idade Média e o começo da modernidade (RUST, 2014). A época dos papas estadistas, monarcas sacerdotais incontestes, parece, hoje, mais o produto de um mito historiográfico moderno do que um fato social instaurado na época de que tratamos. Não que os papas não tivessem exercido uma autoridade ampla e estável muito além dos limites da diocese de Roma e de suas igrejas suburbicárias, mas é que devemos distinguir os diversos níveis e significados do primado romano ao longo da história.

3.2 O avanço do poder papal

Diversos documentos históricos nos levam a ver que, a partir do século XI, os papas começaram a reivindicar maior reconhecimento de seu poder temporal. Esta atitude fez parte de um movimento clerical, intelectual e monástico que, aos poucos, começou a querer inverter as regras do jogo, procurando com que o papado despontasse como o único poder capaz de governar legítima e eficazmente a cristandade. O desenrolar desta história ficou conhecido, desde pelo menos a obra de Augustin Fliche (1924), como “Reforma Gregoriana”. Diz-se que a reforma movida pelos papas do século XI foi responsável pela libertação da Igreja da influência dos senhores laicos que, por força da própria condição, não podiam interferir nos assuntos eclesiásticos sem desvirtuá-los e degenerá-los; diz-se também que a reforma moralizou o clero, porque afirmou o celibato, excluiu os clérigos casados e instituiu a vida em comunidade como estado ideal para os padres. Diz-se que a reforma tornou os papas independentes das pressões imperiais e impediu os imperadores de imporem o seu candidato durante o conclave.

De fato, sabemos que houve uma tendência disciplinar e espiritual, de caráter reformador, que questionava a moral dos clérigos e a situação da igreja. Mas, essa tendência não foi nunca controlada unicamente pelos papas e nem pelos clérigos aliados a eles. Entre aqueles que foram eleitos papas por influência dos imperadores e, depois, depostos por papas opositores, como Clemente III (1029-1100) e Gregório VIII (…1137), estavam muitos clérigos que defendiam as mesmas ideias morais de Leão IX (1002-1054) e Gregório VII (1020-1085), como o fim das investiduras, o celibato obrigatório e o combate à simonia. Os monges e eclesiásticos que pregavam a reforma da Igreja conviviam também com largos setores do laicado que defendiam os mesmos valores e exigiam uma purificação da cristandade. Com isso, dizemos que a renovação espiritual não opôs clérigos sedentos de santidade e leigos corrompidos pelo mundo. Estes nunca foram obstáculos à reforma, mas antes, grandes entusiastas: em outras palavras, não foram vítimas da reforma, mas seus agentes. Neste sentido, é bom que evitemos pensar que a reforma do século XI foi gregoriana e clerical, pois, na verdade, era um anseio instaurado na base da sociedade cristã e contou com o apoio dos leigos, como a condessa Matilde de Canossa (1046-1115), braço direito do papa Gregório VII. De todo modo, teologicamente, o papado saiu do século XI muito fortificado: como escrevia Congar (1997, p.104), aos olhos da cúria romana, não era mais a Ecclesia que constituía a realidade fundamental da fé, mas o papa: sem papa, não havia igreja. Tal discurso eclesiológico contou com o apoio irrestrito de homens como Gregório VII, Pedro Damião (1007-1072), Bernardo de Claraval (1090-1153) e tantos outros oriundos de mosteiros justamente alçados à imunidade por beneplácito papal. Ora, aceitar a premissa de que é o papa quem instaura a Ecclesia é admitir que as igrejas patriarcais e autocéfalas do Oriente não eram propriamente igrejas e, com isso, temos um verdadeiro cisma. Mas, mesmo no Ocidente, aqueles bispos e teólogos que, movidos pela autoridade da tradição, defendiam a antiga eclesiologia, foram taxados de heréticos simoníacos porque duvidavam de que só os papas é que podiam gerir a igreja, defensores que eram de uma igreja imperial (constantiniana) que usurpava os poderes papais: o principal campo de observação destes embates está, a meu ver, no processo de escolha de novos bispos, os quais, segundo o antigo costume, eram eleitos pelo clero e pelo povo da igreja local, mas que, durante os séculos IX-X, passou a ser atributo do sistema imperial; ora, o papado dos séculos XI e XII procurou retirar tanto do clero/povo quanto do império esta prerrogativa, centralizando a escolha dos bispos nas mãos da Cúria romana. Pode-se entender esta ascensão do papado, por um lado, como parte do processo da própria ascensão do Ocidente e do avanço de uma eclesiologia romanocêntrica que tinha, naquela época, muita aversão pelas eclesiologias orientais. Mas tamanha mudança de perspectiva não teria alcançado os níveis que conquistou sem os arranjos estratégicos entre o papado e ordens monásticas poderosas, como Cluny e Cister, ordens essas que pretendiam controlar a sociedade senhorial (ou feudal) mais do que fazer desaparecer uma suposta igreja mundanizada (IOGNA-PRAT, 1998).

3.3 As universidades e a escolástica medieval

O surgimento das universidades, entre os séculos XII e XIII, deu ainda maior sustentação ao sistema sociopolítico da cristandade latina, pois forneceu-lhe não só o veículo difusor, mas também as ideias a serem difundidas e que cimentariam a universalidade da sociedade cristã: assim, ao lado da autoridade dos papas e do poder dos imperadores e reis, a universidade nasceu como uma terceira força (o studium, ou em outros termos, a ciência) que, como num tripé, ajudava a manter erguidos os dois outros poderes: nas palavras de Lima Vaz (2002, p.21), a universidade era um “órgão institucional do corpo religioso-político da cristandade” que explicitava o seu caráter docente. As universidades foram fundadas em cidades como Paris (1200), Bolonha (1158), Montpellier (1220) e Oxford (1208) e organizavam-se como corporação de ofício, isto é, uma associação de mestres e/ou de alunos preocupados em protegerem o status quo da profissão intelectual. Nesse sentido é que se pode dizer que as universidades ultrapassaram os limites jurídicos, científicos e didáticos das escolas catedrais e monásticas que haviam marcado a história da Igreja latina nos séculos anteriores. Não mais atreladas à autoridade de um bispo (como a escola catedral) ou de um abade (como a escola monástica), as universidades nasceram do desejo de garantir liberdade e autonomia institucional para o que veio a se chamar de faculdades, divididas em dois tipos: o primeiro, a faculdade preparatória de artes, que ensinava as disciplinas liberais (lógica, gramática, retórica, aritmética, música, geometria e astronomia) e tornou-se, em meados do século XIII, propriamente uma faculdade de filosofia especializada nos estudos aristotélicos e judeu-muçulmanos; o segundo tipo eram as faculdades superiores, basicamente divididas em três: a faculdade de teologia, considerada a arte das artes, a faculdade de direito (canônico e civil) e a faculdade de medicina. Como enfatiza Verger (1999, p.82), a autonomia pretendida pelas universidades visava à capacidade de a instituição universitária gerir a sua própria organização interna, estabelecendo seus estatutos, currículos, metodologias, títulos, cursos etc.; tinha também o intuito de impedir a instrumentalização desses centros de saber por parte de poderes exógenos a eles, laicos ou eclesiásticos, reservando aos mestres e também, em alguns casos, aos alunos o poder decisório sobre os mecanismos de reprodução do saber e a gestão dos recursos ali investidos.

É curioso, a meu ver, o fato de que as universidades, expressão concreta de uma cristandade que se pensa e se projeta, lançaram mão da herança filosófica greco-romana que só era acessível através das comunidades que a cristandade excluía de si, como os muçulmanos, os cristãos ortodoxos (“cismáticos” para os latinos) e os judeus: esses é que tinham acesso aos mais antigos manuscritos, às traduções siríacas e árabes por meio das quais os textos gregos chegaram ao medievo ocidental. Isso nos leva a ver que, no universo das belas letras, não havia fronteiras étnicas e religiosas: a sabedoria antiga percorria o Mediterrâneo de leste a oeste em cópias diversas que se multiplicavam em escolas habitadas por mestres muçulmanos, cristãos (orientais e latinos) e judeus, num relacionamento amigável que a mentalidade eurocêntrica de hoje tem dificuldade em aceitar.

Do ponto de vista acadêmico, as universidades da cristandade foram marcadas por um método de investigação que, em latim, chamava-se disputatio (debate) e que consistia na proposição de uma questão (quaestio) por um mestre que expunha seus alunos, dispostos ao seu redor, aos embates de teses conflitantes, a silogismos e contra-argumentações, até chegar à conclusão considerada mais adequada ao jogo da filosofia. Nas palavras de Alain de Libera (1999, p.148), o pensamento universitário medieval é profundamente agonístico, “a lei da discussão se impõe a todos”. Ao lado das disputas, o comentário aos textos das grandes autoridades (auctoritates) da cultura cristã (Bíblia, Padres da Igreja e filósofos greco-romanos e árabes) constituía outra importante vertente da inquirição escolar: no caso da teologia, comentar o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo constituía etapa fundamental para a obtenção do título de baccalarius theologiae; parafraseando Tomás de Aquino (Liber de coelo et mundo, I, lect. 28, n.8), pode-se dizer que o comentário não era apenas a tentativa de entender o que as autoridades haviam dito, mas um modo de se buscar a verdade das coisas. É assim, por meio de debates e comentários, de sumas e tratados, que pensadores como Tomás de Aquino, Alberto Magno, Alexandre de Hales e Boaventura de Bagnorégio, só para citar os mais conhecidos, se notabilizaram por aprofundar o diálogo entre cristianismo e helenismo, entre revelação e filosofia: legaram para o Ocidente uma reflexão filosófica original e suficientemente madura que, em muitos aspectos, contribuiu para o desenvolvimento da filosofia moderna.

No entanto, é bom que se diga, permanece paradoxal o fato de homens como Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnorégio terem se tornado os nomes mais famosos dentre os teólogos medievais. Oriundos das duas importantes ordens mendicantes, ambos os mestres não fizeram teologia como vocação primeira, pois partilhavam o ideal fundacional de suas congregações pelo qual a erudição acadêmica estava a serviço do anúncio do Evangelho contra os inimigos da Igreja. Dominicanos e franciscanos, antes de serem teólogos, deviam ser pregadores e este ofício, renovado desde o Concílio de Latrão IV (1215), dirigia-se mais propriamente à conversão dos hereges e infiéis do que ao anúncio kerigmático ad gentes. O significado histórico desta opção para a consolidação dos estudos teológicos não pode ser minimizado. Por cerca de vinte anos (de 1254 a 1274), os mestres universitários de Paris, membros do clero secular, levantaram suas armas intelectuais contra os mendicantes e seu ensino: combatiam a “hipocrisia de sua pobreza” e criticavam a maneira pouco corporativa de lidar com o ensino (CONGAR, 1961). Assim, o papado precisou intervir para assegurar aos frades a permanência em suas cátedras e, com isso, ao mesmo tempo, reforçar a própria autoridade sobre as universidades. A aliança mendicantes-papado fez das universidades, sobretudo da faculdade de teologia, um instrumento para alargar e fortalecer o tom conquistador da cristandade principalmente num período de grande questionamento das bases religiosas e morais do programa católico. Os frades mendicantes, nascidos sob a égide da defesa da fé contra os inimigos da Igreja, buscaram as universidades para terem ainda mais condições de lutarem pela causa da cristandade; os papas, desde Inocêncio III, se não antes, dedicaram cuidado especial pelas universidades porque dali saíam os discursos apologéticos da sociedade cristã presidida pela Sé apostólica: a faculdade de teologia, a despeito de toda contribuição para o desenvolvimento filosófico, estava a serviço da reforma da Igreja, o que incluía certamente o embate com os dissidentes, os infiéis, os pagãos: a produção do saber era a consequência de uma luta renhida entre as forças de Cristo, em sua Igreja, e as do anticristo, entendido como o oposto da sociedade cristã latina (a imagem inversa de si mesma, visível nas terras islâmicas).

3.4 O cristianismo e o disciplinamento da sociedade

É comum ouvirmos ou lermos afirmações categóricas acerca dos métodos violentos, grotescos e nada razoáveis com que a Igreja ou o império cristão latino se valia para coagir, cercear e até executar a vida de homens e mulheres que, por algum motivo, enfrentavam a sua autoridade. Nomes como inquisição, cruzadas, heresia suscitam um sem fim de sentimentos que, misturados à imperícia no campo da história, resultam danosos para a compreensão do período. Antes de mais nada, devemos pontuar que o cristianismo, enquanto sistema religioso antigo, distingue-se das religiões mediterrânicas justamente por incluir, em seu sistema de crenças, uma moral estritamente definida em termos de reação à cultura mediterrânica generalizada pelo Império romano; neste sentido, não bastava a retidão do culto ou da fé (ortodoxia); era necessário que o crente apresentasse também a retidão da conduta, em âmbito privado e público (ortopraxia), traduzida numa vida disciplinada e ascética. Esta característica cristã é tão marcante que, nas mais antigas elaborações teológicas acerca da legitimidade dos poderes políticos, pensadores cristãos, como o Apóstolo Paulo, admitiam que, em nome da correção dos vícios, Deus se valia da força física, exercida pelos governantes, ou da força espiritual, desempenhada pelos legítimos pastores e ministros eclesiais e, na medida em que a coação proporcionava a prática do bem, ela era boa e meritória (SENELLART, 2006, p.72). Ora, o ministério episcopal sempre foi concebido a partir desta matriz disciplinadora e moralizante que colocava os bispos na posição de fiscais das condutas de seu rebanho, sempre a postos para exortar, corrigir e até punir. A história do sacramento da reconciliação e dos mecanismos de readmissão à comunhão eclesial daqueles que dela saíram mostra o quanto era grande o caráter disciplinador da comunidade cristã. Nos tempos ditos medievais, esta característica se acentua na medida em que os ideais de edificação do novo povo de Deus, confundido com o reino franco carolíngio e, no limite, com a própria cristandade latina, exigiam que houvesse uma concreta adequação moral compatível com a unidade doutrinal. Isso só era possível e justificava-se diante de uma cultura que, ao contrário da nossa, priorizava a sincronia, em que passado, presente e futuro estavam sempre implicados no agora, e o comunitarismo, isto é, a crença de que a vida comunitária é a expressão mais elevada da caridade, tornava a sociedade um só corpo, tendo os indivíduos por seus membros. Daí que a doença moral de uma pessoa implicava necessariamente a saúde espiritual de todo o organismo social e por isso todo pecado, vício ou erro precisavam ser corrigidos para a manutenção da ordem social (MIATELLO, 2010).

3.4.1 As cruzadas

As cruzadas foram parte de um movimento prioritária, mas não exclusivamente, militar, de inspiração escatológica, milenarista e penitencial, oriundo de uma ideia de cristandade expansionista, própria da experiência carolíngia, e ligado aos diversos problemas e crises político-sociais que marcaram a história do Ocidente latino; seu objetivo imediato era a libertação de Jerusalém e dos demais lugares santos da vida terrena de Cristo que, desde o século VII, estavam sob o poder político do império muçulmano. Tal compromisso comportava todos os demais objetivos de instaurar a ordem cristã romano-germânica, por meios militares, nos espaços dominados pela ortodoxia bizantina (ou qualquer outro tipo de ortodoxia), pelo islamismo e por qualquer outra eclesiologia que não se adequasse aos pressupostos ocidentais de inspiração carolíngio-papal. Cronologicamente, o movimento cruzadista pode ser situado entre finais do século XI (1095) estendendo-se até 1272, pelo menos. Em termos gerais, as cruzadas somavam duas situações bastante importantes da cristandade latina: a dimensão guerreira, constitutiva dos aristocratas e reis cristãos, e a peregrinação que, de longa data, era um dos mais relevantes mecanismos de penitência e, portanto, de reinserção social daqueles que pecaram e quebraram a unidade do corpo que era a sociedade cristã. Embora a aristocracia guerreira tenha sempre encontrado lugar e função eclesiais, a invenção da cavalaria, por volta do século XI, trouxe à tona, mais uma vez, o debate sobre a legitimidade da violência e do uso de armas no seio da sociedade cristã (FLORI, 2013): uma vez pacificada, acredita-se que a cristandade não poderia ver-se cindida em grupos rivais, em luta fratricida, exatamente o que nunca deixou de ocorrer, uma vez que a cristandade, apesar de forte, jamais conseguiu apagar por completo o peso da tradição regionalista das grandes parentelas que davam origem aos senhorios, principados e até reinos.         Deste modo, os líderes da cristandade precisaram encontrar um mecanismo que, a despeito das divergências internas, congregasse os guerreiros numa causa superior e pertinente à sua vocação, a defesa do reino de Cristo e a vitória sobre seus inimigos.

Concomitantemente, a peregrinação, enquanto penitência, também propiciava para os guerreiros adequada ocasião de atrelarem a sua função social ao projeto de uma societas christiana que procurava reformar-se para conquistar. Na medida em que Jerusalém era excessivamente distante e estava fora dos limites da cristandade, oferecia aquela carga de perigos e sacrifícios que tornava a cidade o lugar perfeito para uma penitência completa e, quem sabe, definitiva. Apesar de haver quem interprete as cruzadas a partir de seus pressupostos políticos e econômicos, supondo que foi uma empresa vantajosa, seu funcionamento tantas vezes precário e deficitário contou com a força simbólica que Jerusalém evocava para a cultura religiosa daquela época: afinal, o reino de Deus que os cristãos latinos esperavam fazer triunfar misturava aquela teocracia do Antigo Israel, cujo centro era Jerusalém, com o significado místico e alegórico que esta cidade adquiriu na cultura cristã primitiva. Profecias, expectativas milenaristas, pregação popular, redespertar evangélico, ímpeto penitencial, as cruzadas foram muito mais impulsionadas por forças espirituais do que por interesses materiais e seu significado social reside no triunfo da ideia de cristandade entendida como um Estado místico que elabora seus projetos políticos à luz da teodiceia cristã e católica.

Os valores que uma sociedade proclama não dissimulam a hipocrisia de suas ações; as cruzadas, inspiradas na penitência e na escatologia, foram, muitas vezes, caminho de violência pura e gratuita, sobretudo quando seus agentes, imbuídos de sentimentos que podemos classificar de xenófobos e fanáticos, usavam a força para arrasar e destruir não só soldados opositores, mas gente indefesa. Parece sintomático o fato de que, aos olhares muçulmanos, principais alvos dos ataques, os cruzados não eram identificados como “cristãos”, mas como “francos”, título que designava os súditos do antigo império carolíngio, a Francia, antes da França. Assim, aquilo que os filhos da cristandade chamavam de empresa espiritual, os islâmicos viam como ato guerreiro, de natureza conquistadora, militar e material. É certo que tanto o Islã quanto a cristandade não distinguiam política e religião; mas, no pormenor da cruzada, os islâmicos identificaram bem que toda aquela guerra não tinha só o fito de reaver Jerusalém, mas de destruir os Estados muçulmanos e, quem sabe, a própria religião do Profeta.

3.4.2 O tribunal da inquisição

O papel da inquisição não diverge muito das finalidades e procedimentos da cruzada. Mas, para entendermos melhor o fenômeno que foi a inquisição, devemos nos recordar que, numa sociedade que se crê mística, os desvios doutrinais significam o abalo dos laços sociais, de natureza espiritual, que mantêm de pé esta sociedade; neste sentido, a perseguição às heresias deve ser interpretada mais como tentativa de superação de crises sociopolíticas do que um problema dogmático: isto pode ser verificado, por exemplo, nos vários documentos papais que, ao lançarem a acusação de heresia, identificavam como hereges grupos inteiros de certas cidades, sobretudo italianas, que professavam, na verdade, uma política pró-imperial e antipapal, o que fatalmente fazia do adversário político um herege potencial: aos olhos dos agentes pontifícios, todo gibelino, isto é, o partidário do imperador, podia vir a ser um herege se não respeitasse os limites concedidos para a oposição. Com isso dizemos que a heresia é uma invenção daqueles que governam (ZERNER, 2009): não é, portanto, uma oposição à uma igreja, mas oposição ao mundo que se deixa governar por uma igreja em particular. Se deixarmos este aspecto de lado e não distinguirmos a heresia da Baixa Idade Média do que era a heresia na Antiguidade, deixaremos de entender por que os mecanismos de identificação e supressão da heresia estiveram sempre atrelados aos direitos políticos, às autoridades políticas e às suas instituições (tanto nas cidades comunais quanto nos reinos e principados) e por que a tortura, neste caso, foi adotada.

As origens da inquisição devem ser buscadas no IV Concílio de Latrão, celebrado em Roma, em 1215. Esse concílio representou o momento de uma imensa e geral revisão da cristandade: foi a hora de se procurar um reordenamento interno que fosse capaz de dotar os cristãos de força moral para vencerem o Islã; por isso, o horizonte do concílio foi a cruzada, uma nova cruzada, feita por cristãos autênticos, visto que as demais cruzadas fracassaram, segundo o entendimento da época, pela falência moral dos cruzados e pelos pecados dos cristãos, sendo que o principal deles era a heresia. O cânon III do Concílio de Latrão estabelecia os procedimentos de exclusão e repressão: os heréticos deviam ser identificados pelos poderes clericais, punidos pelos poderes seculares, tendo seus bens confiscados; os suspeitos também sofreriam: deviam ser colocados no ostracismo social até que provassem a inocência, enquanto isso, incorreriam na penalidade dos culpados, sendo que o prazo para a defesa seria de um ano. Se o problema fosse tão-somente eclesiástico, deveríamos nos perguntar por que o Cânon III insiste em definir as punições em termos políticos: os servidores públicos que não trabalhassem para a extirpação da pravitas haeretica seriam destituídos dos cargos e todos os seus súditos poderiam desobedecê-lo: tratava-se de verdadeira anulação política tanto do herege quanto de quem não o perseguia; perdiam-se os direitos de votar/ser votado, prestar juramento e ocupar cargo público (perda de direitos políticos); não podia-se fazer testamento ou receber herança; se fosse juiz ou advogado, seus atos jurídicos perderiam a validade (perda de direitos civis); não podiam receber os sacramentos ou ter cemitério cristão (perda de direitos religiosos). A identificação de tais desviados seria feita mediante a vigilância mútua, em primeiro lugar, dos pastores (padres e bispos), nos espaços paroquiais e diocesanos; em segundo lugar, pelos vizinhos, uns sobre os outros e, mediante o denuncismo, o erro devia ser apontado; por isso é que, nesta época, as paróquias receberam forte estímulo para reformarem-se e incrementar os mecanismos de controle sobre as atitudes particulares de seus fregueses; os bispos foram novamente advertidos a visitarem as paróquias com frequência e a redigirem relatórios e, uma vez identificados  os erros, deviam levá-los a julgamento.

Apesar de ainda não ter sido fundado, o tribunal da inquisição já se antecipava nesses procedimentos. Faltava apenas que a decisão fosse tomada, o que de fato aconteceu, sob o papa Gregório IX, em 1239. Interessante pensar que este papa, muito antes de sua eleição (quando se chamava Hugolino de Segni), fora um eficiente agente das determinações do Concílio de Latrão IV; como legado apostólico, percorria o norte de Itália para arrecadar dinheiro para a V Cruzada e, simultaneamente, implementar a política antierética do concílio. Quando se tornou papa, em 1227, elevou à máxima potência seu desejo de ordenar a cristandade segundo a eclesiologia pontifícia. Para tanto, contou com o apoio de dois importantes movimentos, que há pouco foram elevados à categoria de ordens religiosas, os Frades Pregadores, ou dominicanos, e os Frades Menores, ou franciscanos, cujos fundadores conviveram com o cardeal Hugolino e, após a morte, foram canonizados por Gregório IX. Este papa, muito sensível aos novos movimentos de reforma religiosa, usou os frades para agilizar tanto a pacificação das cidades quanto a repressão herética. Concedeu-lhes poderes de ação política nas cidades, inclusive poderes superiores aos dos bispos, para que agissem em nome do papa. Baseados em procedimentos jurídicos, tendo a reconciliação por finalidade e a defesa da verdade como horizonte teórico, os frades inquisidores procuravam identificar o erro e corrigi-lo mediante a exortação e, caso não fosse suficiente, com as punições já previstas pelo concílio. A investigação acurada (inquisitio) dos possíveis erros de fé era também chamada de negotium fidei, aliás, o mesmo nome dado ao tribunal que investigava os candidatos a santos, procedimento que conhecemos como processo de canonização, novidade instaurada por Inocêncio III, 1198. Assim, do mesmo modo que se devia provar a santidade de um cristão falecido, devia-se provar a ortodoxia de um cristão vivo acusado de heresia. Iguais procedimentos: instauração de uma banca de árbitros (juiz, promotor, relator, advogado), oitiva de testemunhas, questionamento dos acusados etc.; até, pelo menos, 1252 não podemos dizer que este tribunal usasse qualquer meio truculento de arrancar a verdade; no entanto, com o assassinato do grande inquisidor, Pedro de Verona (1205-1252), da ordem dos dominicanos, neste mesmo ano, em Milão, o então papa Inocêncio IV, afrontado em sua autoridade, lançou uma contraofensiva: canonizou Pedro, doravante chamado São Pedro Mártir, e endureceu ainda mais os procedimentos de investigação e punição: é neste momento que entram em cena as torturas. No entanto, jamais podemos confundir a inquisição fundada pelo papa no século XIII (justamente chamada de inquisição pontifícia) com aquela que os reis ibéricos (portugueses e espanhóis), mediante o direito de padroado, utilizaram para perseguir seus opositores políticos, do século XV em diante (chamada de inquisição ibérica, espanhola ou moderna). São instituições, procedimentos, finalidades e resultados amiúde distintos. Apesar de isto não servir de justificativa, a inquisição pontifícia, segundo os documentos históricos, não atingiu nunca os índices persecutórios que imaginamos. Na verdade, havia uma verdadeira política de retardar a instauração do tribunal ou as punições, uma vez que nem sempre tais procedimentos correspondiam à vontade das lideranças locais, muitas vezes implicadas com os acusados e sentenciados. Deste modo, os casos drásticos de intervenção e violência devem ser vistos dentro do acirramento de questões políticas regionais e momentâneas e não a lógica efetiva que controlava a instituição. Assim, a inquisição pontifícia, ou medieval, articulava-se dentro de uma perspectiva sociopolítica de cristandade em que, apesar da sincronia entre o poder secular e o religioso, a simples distinção entre os representantes de ambos os poderes (reis e papas, respectivamente) impedia que a inquisição fosse inteiramente instrumentalizada pela razão de Estado que marcou a inquisição ibérica.

André Miatello, UFMG/FAJE. Brasil.

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