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Aborto

Sumário

1 Introdução

2 O aborto numa Igreja Mestra e Mãe

3 A Igreja Mestra: defender a vida

4 A Igreja Mãe: crescer na acolhida

5 Considerações finais

6 Referências bibliográficas

1 Introdução

O aborto, compreendido como retirar o feto antes que ele tenha condições de sobreviver fora do útero, é um dos temas mais debatidos na história da Igreja e continua a dividir opiniões nos nossos dias. É necessário explicitar que quando se trata do aborto no contexto da reflexão moral e ética refere-se, evidentemente, ao aborto provocado. O aborto espontâneo, que ocorre por inúmeras causas, não implica em questões morais, por mais doloroso que possa ser para as pessoas envolvidas.

A abordagem do tema no âmbito da teologia se torna necessária, para que possamos ter uma visão mais complexa da problemática. Gostaríamos de ir além da dicotomia pobre que se instalou sobre o assunto: “ser contra ou a favor”. Certamente o alerta de Bernard Häring, já pronunciado há quadro décadas, é bastante atual e propício à Igreja Católica nos nossos dias:

A condenação da Igreja ao aborto é plenamente aceitável apenas se ao mesmo tempo todos os esforços possíveis forem feitos para eliminar as causas principais do aborto. Estes esforços deveriam incluir uma verdadeira aplicação pastoral da doutrina, bem como todo tipo de ação social em favor daqueles que são especialmente expostos ao perigo de “resolver” seus difíceis problemas pelo aborto (1970, p.35).

Publicamos recentemente artigos que abordaram a temática do aborto numa perspectiva pastoral[1] onde apontamos que uma visão mais completa da posição da Igreja sobre o aborto é possível se o fizermos numa dupla perspectiva: a posição da Igreja Mestra e a posição da Igreja Mãe. A proposta não sugere um conflito entre estas duas posições, mas mostra que toda vez que uma é enfatizada em detrimento da outra, o ensinamento da Igreja sobre o assunto fica gravemente lesado.  Entendemos que a falta de uma visão conjunta destas posições se dá porque o aborto não tem sido pensado numa dimensão pastoral, ou seja, isto reflete a dificuldade de percebermos que quando discutimos o aborto estamos avaliando duas realidades: o ato em si e a pessoa que o praticou. Estas realidades são diferentes: uma coisa é avaliar a moralidade do ato do aborto, outra coisa é pensar qual a melhor postura pastoral frente à pessoa que praticou o ato e que está inserida em condições sociais, históricas e pessoais bem determinadas. Precisamos estar atentos ao fato de que na teologia católica distinguimos o nível da teologia moral e o nível pastoral (HÄRING, 1970, p. 139).

2 O aborto numa Igreja Mestra e Mãe

Abordar estas duas realidades é extremamente importante para se fazer justiça à visão da Igreja Católica perante o aborto. Para isto, destacamos que a Igreja muitas vezes se apresenta como Mestra e Mãe[2]: como mestra ela ensina com fidelidade a mensagem que recebeu de seu fundador e não poderá ser condescendente com verdades de ocasião; como mãe ela está ciente dos conflitos e condicionamentos que envolvem a vida dos seus filhos e filhas e não assume uma atitude de condenação, ciente de que essa atitude não os ajudaria a crescer e a cumprir a elevada missão a que são chamados.

Por isso, percebemos que é possível indicar – e o faremos a seguir – que a Igreja compreende que a questão do aborto, na maioria das vezes, não é um ato de uma pessoa isolada, mas de uma rede de relações, e que, portanto, antes de culpar a mulher, a Igreja atribui a responsabilidade do aborto ao homem e ao meio social, principalmente numa sociedade machista, hedonista, permissiva e agressiva contra a mulher.

Estamos propondo, portanto, que apresentar uma visão completa sobre o aborto na Igreja só é possível a partir deste delicado equilíbrio: rejeitar com firmeza o ato em si e acolher com misericórdia a mulher que praticou o ato. Por um lado, a misericórdia cristã não poderá ser confundida com falsa piedade. Ela significa todo o empenho em buscar a “ovelha desgarrada” e não construir mecanismos de justificação para deixá-la na exclusão. Significa pronto acolhimento de todos que buscam o perdão e não negar a gravidade do conflito. Por outro lado, a misericórdia na Igreja não pode ser vista como algo que os fortes dispensam aos fracos, assumindo a postura daqueles que, na sociedade, têm o poder de distribuir privilégios. Levar a boa nova aos pobres (Lc 7,22) é a essência da missão da Igreja e não podemos amaciar a força profética do Evangelho, pois se de fato buscamos o Reino precisamos nos colocar a serviço dos excluídos, cientes de que a salvação é sempre comunitária, como nos afirma Bento XVI: “Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho” (Spe Salvi n.48).

3 A Igreja Mestra: defender a vida

A posição da Igreja sobre o aborto – nesta perspectiva do que estamos chamando de Igreja Mestra – tem sido muito bem definida nos pronunciamentos recentes do Magistério. Pio XI, em 1930, na Encíclica Casti Connubii, assinala que algumas pessoas exigiam o aborto como direito da mulher, enquanto outras o consideravam aceitável para salvar a vida da mãe ou como controle populacional. O Pontífice afirma que a vida da mãe e do filho são igualmente sagradas e ninguém, nem sequer a autoridade pública, pode ter o direito de destruí-las, rejeitando, portanto, os argumentos que pretendiam justificar o aborto nessas situações.

Grisez (1972) em sua grandiosa obra sobre o aborto, enfatiza que também Pio XII repete incansavelmente a doutrina católica tradicional – aos médicos, biólogos, parteiras e políticos de seu tempo – rechaçando a morte direta do feto, dizendo que nunca se pode suprimir a vida de um inocente e que a paz social depende da inviolabilidade da vida humana. Pio XII recusa o “ou a mãe ou o filho” em favor de ambos, “a mãe e o filho”. Levar isto a cabo pertence à técnica médica; quando essa não consegue, há de recorrer à divina providência e não à escolha humana de uma vida em preferência à outra.

Quando se precisa escolher entre a vida da mãe ou do filho, a teologia moral tradicional claramente distinguiu o aborto direto e indireto, condenando o primeiro e aceitando o segundo. No entanto, aborto indireto pode ser lícito apenas quando não se trata de um aborto no sentido moral. Os casos aceitos sem questionamento têm sido a gravidez ectópica ou tubária – quando a gravidez se localiza fora da cavidade uterina, que é a sede normal de sua implantação e desenvolvimento – e os casos em que o útero precisa ser retirado por alguma doença, como câncer. Nesses casos, o objetivo da ação médica é a saúde da mãe, e o aborto ocorre como efeito secundário. Por outro lado, Noonan observa que o sacrifício da própria vida será sempre um ato de generosidade, fruto da liberdade e nunca uma obrigação moral (NOONAN JR, 1970, p. xi).

O Concílio Vaticano II aborda diretamente a questão do aborto. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes se refere a ele em duas situações: no número 27 o aborto aparece entre os crimes contra a pessoa humana, ao lado de homicídio e outros crimes. No número 51 a outra referência ao aborto está no contexto do matrimônio e indica formalmente que o aborto é um crime desde o momento da concepção, num diálogo claro com o conhecimento científico atual e abandonando as distinções entre embrião inanimado ou animado – muitas vezes presente nos debates sobre o aborto ao longo da história (GS, n.51).

Em 1968, Paulo VI repetiu a condenação tradicional ao aborto na Humanae Vitae, e João Paulo II se torna o papa que vai enfatizar a posição da Igreja sobre o assunto, se pronunciando sobre o tema em vários momentos do seu pontificado e mais claramente na Encíclica Evangelium Vitae (EV) onde o aborto é classificado como crime abominável (n.58), numa clara referência ao mandamento divino: não matarás (Dt 5,17). Nesse documento, João Paulo II se expressa – com toda consciência e responsabilidade de um sucessor de Pedro: “declaro que o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” (EV n.62).

Um dos aspectos da visão da Igreja que a sociedade nem sempre compreende é que, juntamente com o conceito de que a vida é dom, também a dignidade humana é gratuidade. A vida é dom e o reconhecimento de seu valor se funda no fato ser um dom de Deus, aspecto muito destacado no Documento de São Domingos (SD n.215). O valor de cada pessoa se funda no modo como o próprio Deus a cria: como imagem e semelhança sua (Gn 1,27). Exatamente por isso a dignidade não é uma conquista humana, não é algo que se acrescenta, se perde ou se ganha, mas é gratuidade e se estabelece no simples existir de cada ser humano, pois cada um existe por um gesto do Criador que o chama à existência. O mistério da pessoa de Jesus Cristo – humano e divino – coloca um fundamento ainda mais palpável para a dignidade humana, pois cada ser humano é co-humano com todos os outros humanos e igualmente co-humano com Cristo, destinado a participar da vida divina.

É de conhecimento geral na teologia que esta posição do Magistério da Igreja no século XX sobre o aborto é fruto de uma longa e bem definida tradição cristã sobre o assunto. Por fim, esta posição da Igreja Mestra representa uma força profética nos nossos tempos onde o valor da vida humana passa por um processo de relativização. A legalização do aborto é causa e fruto de uma mudança paradigmática na sociedade atual, onde o bem estar de alguns se consegue às custas de sacrifícios de muitos. É bom destacar que a posição da Igreja não é isolada, pois muitas outras Igrejas cristãs e outras religiões assumem conjuntamente a posição de que o aborto é inaceitável e configura um grave problema moral.

4 A Igreja Mãe: crescer na acolhida

O mesmo estudo dos documentos da Igreja que revela uma clara posição de condenação do aborto também indica que a Igreja manifesta claramente a sua preocupação pastoral ao explicitar uma posição de acolhida às pessoas que praticaram o aborto. Por mais que esta postura da Igreja – que chamamos aqui de Igreja Mãe – esteja expressa em inúmeras declarações do Magistério, as nossas sociedades parecem não receber esta mensagem com clareza, ou talvez não estejamos insistindo também nessa perspectiva.

Para desenvolver a posição que revela essa Igreja Mãe, podemos iniciar por um recente documento da Igreja na América Latina e Caribe – o Documento de Aparecida (DAp) – que  em sintonia com o Sumo Pontífice, exorta todos a “acolher com misericórdia aquelas que abortaram, para ajudá-las a curar suas graves feridas e convidá-las a ser defensoras da vida” (n.469). Esta exortação a “acolher com misericórdia aquelas que abortaram” nasce da compreensão que a mulher que praticou o aborto muitas vezes é uma vítima – e como tal ela sofre com a situação, mais do que a promove – ou se torna uma vítima de seu ato ao praticá-lo. “O aborto faz duas vítimas: por certo a criança, mas também a mãe” (n.469). A Igreja na América Latina tem consciência de que oferece um “serviço de caridade” (n.98) aos povos deste Continente e, em situações concretas, precisa ser rápida em prestar serviço e lenta no julgamento, manifestando ciência de que está inserida num contexto dramático, pois se estima que na América Latina e no Caribe ocorram anualmente 18 milhões de gestações, sendo que, dessas, 23% terminam em abortamento e no Brasil o índice estimado é de 31% (BRASIL, 2005, p.7).

O papa João Paulo II, no mesmo documento onde confirma a posição de condenação do aborto, a Evangelium Vitae, demonstra conhecimento do drama em torno do mesmo, assumindo a face da Igreja Mãe, e assim se expressa:

Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada (EV n.99).

E faz isto sem negar a crueldade do aborto, mas como um serviço de caridade que acolhe e promove as pessoas, oferecendo-lhes o bem mais precioso da Igreja, o perdão, num momento em que elas precisam de ânimo e esperança: “o Pai de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação” (EV n.99). Esta posição do Magistério da Igreja reafirma um ponto central da moral católica em sua preocupação pastoral, que faz a distinção entre a moralidade do ato praticado e a pessoa que o praticou, rejeitando o erro e acolhendo as pessoas. A atitude de acolhida à mulher que praticou o aborto pode se tornar uma medida eficaz contra o aborto, pois há estudo que indica que dentre as mulheres que praticaram aborto 12% já haviam feito aborto antes (ASANDI; BRAZ, 2010, p.135).

Quando a Igreja vê a mulher que pratica o aborto como vítima, ela manifesta uma clara percepção da realidade social que promove uma cultura da morte (EV n.12) com situações viciadas por uma cultura de “permissividade hedonista e de machismo agressivo”. É nesse contexto que João Paulo II se pronuncia também na Carta às Mulheres: “Nestas condições, a escolha do aborto, que permanece sempre um pecado grave, antes de ser uma responsabilidade atribuível à mulher, é um crime que deve ser imputado ao homem e à cumplicidade do ambiente circundante” (CM n.5). Esse pronunciamento de João Paulo II demonstra que a Igreja tem uma visão da complexidade dos contextos sociais que levam ao aborto, e indica que atribuir a responsabilidade do aborto primeiramente à mulher que abortou seria injusto, e refletiria uma visão reducionista que ocultaria – e ocultando inocenta – os outros agentes morais envolvidos na problemática do aborto. Aqui a Igreja, e junto com ela muitos movimentos feministas, se perguntam: Onde está o homem? Ou será que a mulher engravidou sozinha? Qual a atitude do homem quando soube que sua companheira estava grávida? O aborto começa a ocorrer quando um homem não assume a paternidade e diz para sua companheira que “isto é problema dela”. Esta fuga da responsabilidade por parte do homem tem sido denunciada por estudiosos na América Latina (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 1997, p.266) e o próprio João Paulo II deixa claro que a responsabilidade do aborto – em tal situação – é antes atribuível a este homem do que à mulher.

O que mais escandaliza a sociedade brasileira atual no contexto da discussão sobre o aborto é o inaceitável número de casos de violência sexual contra as mulheres – infelizmente um dado também presente em outras sociedades. Entre as causas do abortamento está a violência de gênero e, particularmente, a violência doméstica. Esse tem sido o motivo que leva muitas mulheres a procurar o aborto: quando a consequência do estupro é uma gravidez indesejada, o que, conforme estudos indicam, é também uma das causas de mortalidade materna (MARSTON e CLELAND, 2004, p.15).

Outras passagens dos documentos da Igreja já demonstravam o reconhecimento de que a mulher, muitas vezes, aborta sobre pressão. “A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto” (EV n.59).  Esse trecho não se refere exclusivamente ao caso de estupro, mas, certamente sofrer violência sexual é um forte fator que constrange a mulher a “ceder ao aborto”, lembrando a reflexão da teologia moral que reconhece que há situações onde a pessoa se torna incapaz de lidar com certos imperativos morais. A passagem da Evangelium Vitae também conclui que, nesses casos, a responsabilidade moral do aborto “pesa particularmente sobre aqueles que direta ou indiretamente a forçaram a abortar” (n.59).

O papa fala também da responsabilidade do “ambiente circundante” – e assim traz para o contexto do debate sobre o aborto, o papel da família, da comunidade e do Estado[3]. A família – principalmente os pais da mulher e do homem que praticam o aborto – pode assumir atitudes irresponsáveis frente à notícia de uma gravidez: indiferença, não aceitação, rejeição e até pressão para que o aborto ocorra para salvar a honra da família.

A Igreja – como comunidade – está chamando a si também a responsabilidade e quer desenvolver em seu seio uma postura que possibilite de fato “apoiar e acompanhar pastoralmente e com especial ternura e solidariedade as mulheres que decidiram não abortar” (DAp, n.469), esperançosa que o desenvolvimento da acolhida com ternura e solidariedade leve muitas mulheres a não “ceder ao aborto”. O acolhimento com misericórdia daquelas que abortaram pode criar, nelas, condições para que não abortem novamente. Mais ainda, a Igreja acredita que elas possam se tornar agentes de pastoral em nossas comunidades, como autênticas “defensoras da vida” (DAp, n.469).

Esta mesma perspectiva de misericórdia tem sido a orientação principal assumida pelo papa Francisco no seu pontificado. Já na Evangelii Gaudium ele insiste que a “Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai” (EG n.47), posição também assumida pastoralmente na Carta por ocasião do jubileu extraordinário da misericórdia de 2015, em que a questão do aborto foi enfatizada e o papa concede a “todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado”.

5 Considerações finais

 Indicamos que a posição da Igreja Mestra e Mãe convida à ação. Esta constatação de que a Igreja assume uma posição de Mestra e Mãe em relação ao aborto nos desafia a pensar de modo propositivo o papel de cada um em sua família e em sua comunidade. Visto que estamos evitando reduzir nossas possibilidades a uma posição dual – ser contra ou a favor – percebemos que o desafio maior da sociedade é superar a realidade do aborto, senão de todo, ao menos daqueles abortos que ocorrem por uma gravidez indesejada induzida por fatores socioeconômicos e culturais. Assumimos, assim, a consciência de que, como Igreja, somos também parte do “ambiente circundante”, igualmente responsável, principalmente porque as causas são passíveis de serem trabalhadas numa evangelização integral.

Isto é também um desafio para a teologia. Por isso, gostaríamos de indicar alguns dos pontos relacionados com a realidade do aborto que precisam ser mais bem compreendidos e pensados à luz da reflexão teológica, num diálogo com outras ciências, principalmente na esfera da bioética: altos índices de aborto nos países latino-americanos; a maternidade no contexto da saúde da mulher e dos altos índices de morbidade e mortalidade materna; a violência institucionalizada contra a mulher; o papel da família e da comunidade cristã como espaço de acolhimento; a questão dos direitos sexuais e reprodutivos; a figura masculina nas relações familiares. Alguns desses desafios apontam para áreas onde a Igreja tem uma atuação histórica, que a teologia precisa aprender a valorizar mais. Outros desafios são novos, onde a presença da Igreja ainda é inusitada.

Podemos, como conclusão, apontar que o fato da Igreja se posicionar claramente contra o aborto – e o fará sempre, por uma questão de coerência – tem levado muitos cristãos a concluir que a Igreja condena, exclui e expulsa a mulher que abortou do convívio eclesial. Essa é uma conclusão precipitada, simplista, reducionista e que não reflete o ensinamento da Igreja expresso nos documentos do Magistério. Por uma questão de justiça, não podemos lançar pedras às mães que julgaram não ter condições de criar um filho não desejado (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 1997, p.270). A Igreja Mestra rejeita sempre o aborto e a Igreja Mãe quer acolher a mulher que praticou o aborto, como um pai e uma mãe acolhem os seus filhos sempre, e demostram maior carinho, atenção e amor nos momentos em que eles enfrentam dificuldades.

 Mário Antônio Sanches[4], PUC Paraná

6 Referências bibliográficas

ASANDI, Stella de Faro; BRAZ, Marlene. As mulheres brasileiras e o aborto: uma abordagem bioética na saúde pública. Revista Bioética, 2010; v.18 n.1, Brasília: CFM, p. 131-53.

BRASIL, Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

CELAM. São Domingo – conclusões. São Paulo: CELAM / Loyola, 1992.

______. Documento de Aparecida. São Paulo: CNBB / Paulinas / Paulus, 2007.

GRISEZ, Germain G. El aborto: mitos, realidades e argumentos. Edciones Sígueme, 1972.

FRANCISCO. Carta por ocasião do jubileu extraordinário da misericórdia. Vaticano, 2015. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015. Acessado em: 3 jan 2016.

______. Evangelii Gaudium. Vaticano, 2013. Disponível em:

 https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents. Acesso em: 3 jan 2016.

HÄERING, Bernard. A theological evaluation. In: NOONAN JR., John Thomas. The morality of abortion: legal and historical perspectives. Harvard University Press / Cambridge, Massachusetts, 1970, p.123-45.

JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995.

_____ . Familiaris Consortio. Petrópolis: Vozes, 1992.

_____ . Cartas às Mulheres, São Paulo: Paulinas, 1995.

PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de Bioética. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1997.

MARSTON, Cicely; CLELAND, John. The effects of contraception on obstetric outcomes. Department of Reproductive Health and Research, World Health Organization, Geneva, 2004.

NOONAN JR. John Thomas. The morality of abortion: legal and historical perspectives. Harvard University Press / Cambridge, Massachusetts, 1970.

SANCHES, M. A. Aborto em uma perspectiva pastoral. Revista Eclesiástica Brasileira. fasc.285, janeiro, 2012, p.119-37.

VATICANO II. Gaudium et Spes (1965). Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents. Acesso em: 3 jan 2016.

[1] SANCHES, M. A. O Aborto numa Perspectiva Pastoral.  REB – Revista Eclesiástica Brasileira, Fasc. 285, Janeiro, 2012, p.119 et seq.. SANCHES, M. A.; CASAGRANDE, C. H. V.; GOMES, E. M. D. Aborto numa Igreja mestra e mãe: na perspectiva de agentes de pastoral. Atualidade Teológica (PUC-Rio), v.48, 2014, p.359 et seq..

[2] Mater et Magistra de João XXIII, em 1961, onde ele aborda o problema de excesso de população e se refere às leis divinas invioláveis e imutáveis que governam o matrimônio e a transmissão da vida humana.  A expressão em outros documentos da Igreja, como em Familiaris Consortium, de João Paulo II, é claramente relacionada ao contexto familiar: “Também no campo da moral conjugal a Igreja é e age como Mestra e Mãe.” (n.33)

[3] Também na Evangelium Vitae n.59 João Paulo II amplia a responsabilidade do aborto para a família, os legisladores, os que promovem uma mentalidade hedonista, enfim, toda a sociedade.

[4] Mário Antônio Sanches é Doutor em Teologia pela EST/IEPG, RS, com pós-doutorado em Bioética (2011) pela Pontifícia Universidade de Comillas (Madrid). É professor titular da PUCPR onde atua no Programa de Pós-graduação em Teologia e coordena o Mestrado de Bioética. E-mail: m.sanches@pucpr.br.

Fé e Razão

Sumário

1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

1.1 Introdução

1.2 A virada hermenêutica da razão: o terceiro horizonte do pensamento contemporâneo

2 Fé e razão

2.1 Dois modos complementares e não contraditórios de acesso à verdade

2.2 A história das relações entre fé e razão

2.3 A virada hermenêutica da fé e a razão: da rejeição à mútua colaboração

3 Referências bibliográficas

 1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

 1.1 Introdução

A relação da fé cristã com a razão, a política e a cultura se compreende melhor se considerarmos tanto a metafísica da substância dos antigos quanto a metafísica do sujeito dos modernos. A filosofia clássica nos ensinou com os transcendentais do ser, que além de ser uno, é simultaneamente verdadeiro, bom e belo. A filosofia moderna, com o pensamento transcendental de Kant, pergunta pelas faculdades do sujeito para conhecer o verdadeiro, agir segundo o bem e gostar-julgar do belo. Pelas virtudes teologais, sabemos que o dom da fé é sempre uma fé que crê que ama e que espera. Podemos, então, vincular a fé que crê com a verdade e o conhecimento, a fé que ama com o bom e o agir ético, e a fé que espera com a beleza e o gosto poético. A importância da passagem da metafísica clássica à redução moderna – que contrasta a fé apenas com a ciência, com o dever moral e a teleologia – nos convida a dar um novo passo que supere tanto o deserto da crítica como as tentações de voltar atrás, ao refúgio pré-moderno: “Não nos encoraja a nostalgia das Atlântidas submersas, mas a esperança de uma recriação da linguagem; para além do deserto da crítica, queremos ser novamente interpelados” (RICOEUR, 1960). A fé cristã é novamente interpelada pela virada hermenêutica da razão contemporânea (GREISCH, 1993), pelo grande acontecimento de graça que significou a renovação do Concílio Vaticano II (HÜNERMANN, 2014) e pela plenitude da linguagem que se manifesta numa maior consideração da beleza e da poética em nossa situação de pluralismo cultural. Como introdução às relações entre fé e razão, desenvolveremos brevemente a primeira interpelação que considera um terceiro horizonte no pensamento contemporâneo.

 1.2 A virada hermenêutica da razão: o terceiro horizonte do pensamento contemporâneo

 Sustentar que a razão contemporânea deu uma virada ou que estamos em um novo horizonte, significa reconhecer não só a distância frente à metafísica clássica (que sustenta os transcendentais do ser), mas a crise sofrida pela metafísica do sujeito (que sustenta uma filosofia transcendental e interroga-se sobre as condições de possibilidade). Assim é afirmado por um grande número de filósofos, de Ortega e Zubiri a Vattimo e Habermas. Ortega cunhou a imagem das duas metáforas, sugerindo um terceiro momento, paradigmático, horizonte do pensamento contemporâneo depois das metáforas (ou metafísicas) da substância e do sujeito. Um terceiro horizonte aparece depois do pensamento antigo-medieval e do pensamento moderno (GONZALEZ, 1993).

A discussão sobre se é uma crise particular da metafísica ou da metafísica em geral se resolve se estamos de acordo sobre quem é o paciente diagnosticado com a crise: o Iluminismo que vê como o romantismo volta com força; a modernidade liberal, que foi ultrapassada pela modernidade tardia ou pela chamada pós-modernidade; ou a metafísica do sujeito, superada por um terceiro horizonte. Mas, em todos os casos – seja o cogito cartesiano, os a priori da razão, o saber absoluto, ou o sujeito transcendental – podemos ver como as pretensões da “só razão” (transcendental, sem atributos e constituinte de todo o real) empalidecem, porque temos um cogito ferido, bastante frágil, que procura poder se reassentar ao interior do ser e é reconhecido constituído pelo outro,  diferente de si mesmo.

Seja qual for a profundidade da crise, a hipótese de um terceiro horizonte do pensamento contemporâneo argumenta que a terceira metáfora não pensa o ser em termos de natureza nem em termos de consciência (GEFFRÉ, 1992), mas em referência a outras metáforas que tentam ser relevantes nos novos tempos: a alteridade, a linguagem, a práxis e o acontecimento. “A idade hermenêutica da razão” (GREISCH, 1985) parece ser o resultado de muitas viradas que deu a razão contemporânea: virada hermenêutica, virada linguística, virada pragmática, virada intersubjetiva, virada rumo à alteridade etc. (SCANNONE, 2009). Independente de qual seja a categoria vencedora, existem provas suficientes de que a crise seja um sinal dos tempos.

Se o que temos é um novo horizonte de pensamento, este, obviamente, afetará os interlocutores da fé: a razão e o conhecimento, a política e a justiça e nossos valores (estéticos e afetivos) e esperanças (religiosas e seculares). Voltamos a nos perguntar pela verdade que podemos conhecer com o uso do entendimento e da razão, pela justiça que devemos alcançar com nossas práticas éticas e políticas, pela beleza que nossos juízos estéticos e reflexivos modelam em cada cultura. Mas, obviamente, também afetam a própria experiência crente e religiosa, cuja virada foi expressa para a comunidade eclesial católica na renovação que fez o Concílio Vaticano II.

2 Fé e razão

2.1 Dois modos complementares e não contraditórios de acesso à verdade

“A fé e a raão são como duas asas com as quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. Fides et ratio, de João Paulo II, se conecta, assim, com o que o Vaticano II ensina-nos na Dei Verbum – que, por sua vez, segue quase literalmente os ensinamentos do Vaticano I em Dei Filius, que leva em conta os princípios do Concílio de Trento: “Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens, ‘para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana’”(DV n.6). Indicado o caminho da revelação, o Vaticano II aponta o caminho da razão citando o Vaticano I: “O sagrado Concílio professa que Deus, princípio e fim de todas as coisas, se pode conhecer com certeza pela luz natural da razão a partir das criaturas” (cf. Rm 1,20); mas ensina, também, que deve atribuir-se à Sua revelação “poderem todos os homens conhecer, com facilidade, firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é inacessível à razão humana, mesmo na presente condição do gênero humano” (DV n.6). A verdade alcançada através da reflexão filosófica ou das disciplinas científicas não se confunde nem se contradiz, mas é enriquecida com a verdade que vem da revelação. “Há duas ordens de conhecimento, distintas não só por seu princípio, mas também por seu objeto; por seu princípio, visto que uma conhecemos pela razão natural, e outra pela fé divina; e por seu objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode atingir, propõem crer nos mistérios escondidos em Deus, que não podemos conhecer sem a revelação divina” (Dei Filius, DS 3015).

O reconhecimento de uma diferença não implica qualquer dualismo ou contradição entre fé e razão, nem no plano epistemológico, opondo fé e conhecimento, nem no plano ontológico, defendendo duas realidades separadas. Fé e razão são medidas pela verdade, e a verdade é uma só, embora haja aspectos dela que só sabemos pela fé, porque Deus nos revelou. “O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé.  (…) Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização” (Fides et ratio n.16-17).

A contradição aparece quando uma e outra não respeitam suas respectivas áreas de competência. Racionalismo e fideísmo são a expressão clara do excesso de uma e outra. Então, o racionalismo é uma “concepção que considera que a razão pode ou deve fundamentar a fé, e que deve demonstrar sua verdade com argumentos de razão, ou pelo menos torná-la plausível” (KNAUER, 1989, p.257). Pelo contrário, a verdade da fé só pode ser reconhecida pela fé. A cor e a luz dos vitrais de uma catedral só podem ser vistas de dentro. Do lado de fora eles apenas parecem sombrios e cinzentos. A beleza de Deus é reconhecida a partir da experiência de fé, da acolhida na fé do que Deus revelou. Só pode entrar em comunhão com Deus quem acredita que é o próprio Deus que se autocomunicou. O fideísmo, enquanto isso, “argumenta que a fé não pode e não precisa ser justificada ante a razão” (KNAUER, 1989, p.258). Pelo contrário, a fé deve ser examinada pela razão para eliminar dela aquilo que possa contradizê-la. “Toda objeção contra a fé da parte da razão é refutada no mesmo campo da razão” (KNAUER, 1989, p.258).

Ambos os desentendimentos são superados ao se afirmar que a fé precisa da razão. Longe de ser uma inimiga da fé (porque a prejudicaria ou poderia contradizê-la) ou alguma coisa da qual a fé pudesse prescindir (porque bastando-se a si mesma não necessitaria de complementação), a razão é uma ajuda para a fé. Mas a fé não necessita dela para ser seu fundamento: a fé se fundamenta em si mesma, uma vez que se baseia na Palavra de Deus. Não necessita para que a prove ou a demonstre: o próprio Deus se mostra, se autocomunica na revelação. A fé é acolhida naquilo que Deus comunica. “A mensagem cristã se torna inteligível por si só; a fé somente pode explicar-se por si mesma” ( KNAUER, 1989, p.252). Portanto, não é possível provar a fé pela força das razões, não pode ser enquadrada no marco da razão, não pode ser subordinada como se sua fundamentação dependesse do nosso raciocínio. Da afirmação racional que Deus é o criador do mundo e todo-poderoso não é possível deduzir a possibilidade da comunhão com ele. Isso depende do próprio Deus, do seu amor gratuito e livre.

A fé precisa da razão, não como seu fundamento, mas com a função negativa de ser um filtro para si mesma. A razão é uma ajuda indispensável, ela nos ajuda a filtrar a fé de superstições, a purificá-la de irracionalidades, a ser peneira e crivo de possíveis fetiches. A mensagem cristã quer e deve ser examinada pela razão, pois não deve se acreditar em qualquer coisa que contradiga a razão em sua autonomia, “a autonomia da realidade criada não é interrompida nem debilitada em nenhum lugar pela comunhão com Deus (…) Isto exclui qualquer crença supersticiosa em milagres, que considera a interrupção de leis naturais como prova de especial intervenção divina” ( KNAUER, 1989, p.253-254).

Em resumo fé não se fundamenta na razão, mas pode ser examinada por ela. A revelação de Deus na qual se baseia não é dedutível do mundo; é reconhecível apenas pela a fé. Portanto, nenhuma afirmação da razão pode ameaçar a fé. “Como tendo fé já não se vive do temor, é possível usar a razão sem óculos” (KNAUER, 1989, p.257). Há mais duas ajudas disponíveis: oferece alguns pressupostos e ajuda a pensar, dar unidade e coerência ao conjunto do mistério cristão. Uma colaboração externa à fé, uma vez que “a fé pressupõe certas verdades que podem ser reconhecidas pela razão: o nosso próprio ser como criaturas e a nossa responsabilidade moral” (KNAUER, 1989, p.257). Uma colaboração interna à fé, porque “a razão ajuda a uma compreensão clara da fé. A razão, iluminada pela fé, abrange a unidade interna de todas as afirmações de fé” ( KNAUER, 1989, p.257). Colaboração que impede um conflito insolúvel entre a fé e a razão. Mas a historicidade da fé – expressa na doutrina da Igreja – e a historicidade da razão – expressa nas aquisições dos diversos saberes e ciências – não têm a e impedido a existência de múltiplos conflitos e divergências entre essa doutrina e essas aquisições ao longo da história.

 2.2 A história das relações entre fé e razão

Distante da contraposição entre crer e saber, que faz do primeiro um saber inseguro, a fé aparece como fundamento na Bíblia. Enquanto no AT se proclama a confiança em ser o povo escolhido e na esperança nas ações de Deus, no NT se trata de acreditar no que Deus já fez e manifestou em Cristo Jesus, que antecipa a plenitude escatológica:  “ A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11,1). O judeu-cristianismo, que acredita que o Deus salvador é o mesmo que o Deus criador, confia na razão humana e não tem medo de ser julgado por ela ao tentar dar razão para a sua esperança. A reprovação do Livro da Sabedoria para aqueles que “não foram capazes de conhecer, pelas coisas boas, Àquele que é (…) pois da grandeza e beleza das coisas criadas chega-se, por analogia, ao conhecimento do seu Autor” (Sb 13,1.5), reitera Paulo, aos que “aprisionam a verdade na injustiça (…) porque o invisível de Deus, desde a criação do mundo, revela-se à inteligência através de suas obras” (Rm 1,18.20). No início, São Pedro exorta os cristãos a estarem sempre prontos a dar resposta (apo-logia) a quem quer que perguntasse pelo logos (razão) de sua fé (cf. 1 Pd 3,15). São João não teme identificar Cristo com o logos e abre um caminho que percorrerão os Padres da Igreja que, de diferentes maneiras, identificarão sabedoria bíblica e filosofia grega na figura do logos. Justino é exemplar neste ponto e vê na fé cristã a verdadeira filosofia e, na filosofia, os precursores do cristianismo. “Isto significava que a fé bíblica devia entrar em discussão e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer, mediante a interpretação, a linha de separação, mas também a convergência e a afinidade entre elas na única razão dada por Deus” (BENTO XVI, 2005). Por isso, as Escrituras judaico-cristãs, o pensamento hebraico, não temerá medir-se e articular-se com o pensamento grego, e aqueles que, filosoficamente, o sucederão. Toda a história do cristianismo é testemunho dessa apropriação da racionalidade filosófica, em um esforço contínuo de tradução à linguagem dos cada vez mais novos destinatários da Boa Nova. O espírito secularista e desmistificador desta religião é a consequência desta disposição para ser purificada e criticada pela razão (TAYLOR, 2007).

Agostinho, “o mestre indiscutível da Alta Idade Média, cuja influência permanece durante todo o segundo milênio”, acredita que uma fé não pensada é uma fé morta e acredita que “o conhecimento do homem e o de Deus são convergentes”, porque a própria interioridade, “a subjetividade é o lugar por excelência para conhecer Deus” (ESTRADA, 1996, p.45). Por sua parte, Anselmo, o pai da escolástica, como um bom discípulo de Agostinho proclama os Fides quaerens intellectum: a fé em busca de sua inteligência. As palavras de Anselmo no Proslogion tornaram-se uma carta magna sobre a convergência harmônica entre fé e razão: “Senhor, não tenho a intenção de penetrar em sua profundidade: como eu poderia comparar a minha inteligência com o seu mistério? Mas quero entender, de algum modo, esta verdade que acredito e meu coração ama. Eu não procuro entender para crer, mas creio em primeiro lugar para, depois, fazer um esforço para entender. Porque acredito em algo: se eu não começo por acreditar, nunca vou compreender”. Nasce aqui uma teologia como Intellectus fidei, que tenta mostrar a razoabilidade da fé. Mas a razão encontra aquilo que a fé já sabe; o raciocínio serve para ajudar a descobrir a verdade, não para determiná-la. A fé, dom de Deus que a Palavra revelada suscita, deve ser assumida racionalmente para que seja humana. O esforço de intelecção não elimina, mas pressupõe a contemplação.

No século XIII, graças aos filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contato com o cristianismo medieval formado na tradição platônica. São Tomás de Aquino, de forma genial, entendeu que a ratio aristotélica poderia ser uma mediação mais apropriada do que a platônica para expressar fé dos homens de seu tempo. Ele foi capaz de mediar “o novo encontro entre a fé e a filosofia aristotélica, colocando, assim, a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante de seu tempo” (BENTO XVI, 2005). Com Tomás, as diferenças entre fé e razão estão claramente dispostas em relação à unidade e integridade da verdade, então a verdade não pode contradizer a verdade.

Essa clareza começa a desvanecer-se até escurecer com a chegada da modernidade, o desenvolvimento da ciência e a reivindicação de autonomia do mundo moderno. A própria articulação entre Atenas e Jerusalém para formar um ocidente que bebe da filosofia grega, do direito romano, da escolástica medieval, da Renascença europeia, oferece razões para que também a modernidade seja construída a partir de um ato de fé na razão humana. Mas a confiança na razão pode tornar-se excessiva, no caso de reivindicar-se somente pela razão o acesso exclusivo à verdade. Com a luz da razão pode ser superada a escuridão do mito e da religião. A reação defensiva da Igreja e seu refúgio nas apologias e condenações, nem sempre razoáveis, não contribuíram para melhorar as coisas. O épico caso de Galileu é apenas o sinal de uma disputa que irá aumentando com a só razão autossuficiente e uma revelação cada vez mais opaca e autoritária. A exortação kantiana para se atrever a pensar por si mesmo (o sapere aude) enfrenta, de modo desafiador, todos os guardiões que impedem a autonomia, entre eles a Igreja e fé. “O confronto da fé da Igreja com o liberalismo radical e também com umas ciências naturais, que tentam abranger, com seus conhecimentos, toda a realidade até os seus limites, propondo, teimosamente tornar inútil a ‘hipótese Deus’” (BENTO XVI, 2005), provocou, da parte da Igreja, no século XIX, “ásperas e radicais condenações desse espírito dos tempos modernos”. Também provocou, da parte dos representantes da idade moderna, “a rejeição drástica” à fé eclesial. É contra esta Igreja católica, fechada diante de um mundo moderno hostil e adverso, que o Vaticano II assume o desafio de “determinar de modo novo a relação entre a Igreja e a idade moderna” (BENTO XVI, 2005).

Bento XVI observa que “havia se formado três círculos de perguntas que aguardavam uma resposta. Em primeiro lugar, foi necessário definir, de um modo novo, a relação entre a fé e as ciências modernas” – tanto as ciências naturais como as ciências históricas. “Em segundo lugar, era preciso definir, de um modo novo, a relação entre a Igreja e o Estado moderno (…) Em terceiro lugar, e com isso estava relacionado, de forma mais gera, o problema da tolerância religiosa” – e a liberdade religiosa –, “havia uma questão que exigia uma nova definição da relação entre a fé cristã e as religiões do mundo” (2005) e as culturas em geral. São precisamente estes três problemas que podem ser abordados com uma renovada compreensão da relação entre a fé e a razão, a política e a cultura.

2.3 A virada hermenêutica da fé e a razão: da rejeição à mutua colaboração 

Hoje em dia, uma hermenêutica, tanto da fé como das ciências, torna propícia a finalização das condenações recíprocas e permite uma aproximação, reconhecendo cada uma o seu campo de ação. Houve um tempo em que as ciências modernas competiam e ameaçavam a fé, não só as ciências naturais, mas também a ciência histórica. As explicações religiosas e teológicas deviam recuar na explicação do mundo e também em relação à compreensão das próprias sagradas Escrituras, pela pretensão do método histórico-crítico em ser a última palavra na interpretação da Bíblia. Deste excesso da razão ilustrada, passou-se para uma atitude mais modesta.

“As ciências naturais foram começando a refletir, cada vez mais claramente, sobre seu próprio limite, imposto pelo seu próprio método que, apesar de realizar coisas grandiosas, não era capaz de entender a totalidade da realidade” (BENTO XVI, 2005). Abandonando todo positivismo e todo dogmatismo, a ciência torna-se mais modesta e já não pretende ser a única abordagem válida sobre a realidade. Com consciência hermenêutica, o sonho da modernidade ilustrada em possuir o ponto de vista único começa a reconhecer vários instrumentos, sejam afirmações lógicas ou matemáticas, das ciências naturais ou das ciências sociais, das humanidades ou da arte. A multiplicidade de saberes exige múltiplas abordagens. O caminho tem sido difícil desde a diferenciação entre as ciências da natureza e as ciências do espírito (Dilthey) para argumentar que quanto mais se explica melhor se compreende (Ricoeur), a partir do reconhecimento dos interesses dos diferentes tipos de conhecimento (Habermas) até a conclusão que o observador nunca é neutro e que, em certos casos, como a história, a linguagem ou a arte, ele pertence à realidade que investiga (Gadamer).

Enquanto isso, também o discurso da fé, as afirmações magisteriais e a teologia adquirem consciência hermenêutica. Também a teologia se tornou mais modesta e não pretende enfrentar as afirmações científicas ou históricas com afirmações bíblicas nem promover concordismos apaziguadores. O texto bíblico não quer substituir ou contradizer os conhecimentos adquiridos pela razão. Sua pretensão é salvífica e não científica. Como aprendemos com Galileu, a Bíblia não ensina como vai o mundo, mas para onde vai. Não há nenhuma razão para qualquer competição entre razão e fé, mas sim a necessidade de cooperação mútua. Vimos que a fé precisa da razão para purificar-se, para corrigir o curso se alguma das suas afirmações contradiz a razão. “Quando, por causa da verdade, alguém vira as costas para Cristo, corre diretamente para seus braços” (KNAUER, 1989, p.248). O cristianismo tem “a convicção que agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus” (BENTO XVI, 2006).

Mas também é possível sustentar o contrário? Que agir contra a fé está em contradição com a natureza humana. A razão necessita da fé? Fides et ratio afirma: “Conhecer a fundo o mundo e os eventos da história não é possível sem confessar, ao mesmo tempo, a fé em Deus que neles age (n.16). Caritas in veritate reitera isso, defendendo a interação de diferentes saberes, incluindo o papel da caridade: “A caridade não exclui o saber, mas o requer, o promove e anima a partir de dentro. O saber nunca é apenas obra da inteligência (…) Sem o saber, o fazer é cego, e o saber é estéril sem o amor” (n.30). Por um lado, “ao enfrentar os fenômenos que estão diante de nós, a caridade, na verdade requer, antes de tudo, conhecer e compreender”, respeitando a especificidade de cada saber. Por outro lado, “a caridade não é um acréscimo posterior, mas dialoga (com as disciplinas) desde o início. As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as condições das ciências não podem indicar por si só o caminho para o desenvolvimento humano integral. Sempre é preciso aventurar-se mais além: o exige a caridade na verdade” (n.30). Mas a caridade deve respeitar os mesmos limites que tem a fé. Tanto a caridade como a fé, e teríamos que adicionar a esperança, sabem que “ir além” do que elas encorajam, esta ampliação da razão, “nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não há inteligência e depois o amor: existe o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor (n.30).

A inclusão do amor nos aproxima de nossa práxis e reflexão sobre a relação entre fé e política, que deverá considerar a relação entre amor e política. Terminemos com uma consideração final sobre se a razão necessita da fé e do amor cristão. Em seu famoso diálogo com Habermas, Ratzinger encoraja essa sugestão. Sem aceitar o discurso positivista que a gradual eliminação e superação da religião é o caminho do progresso humano, da liberdade e da tolerância universal, admite a existência de “patologias da religião” (do mais extremo fundamentalismo ao mais sutil integrismo), para as quais o diálogo com a razão é uma cura saudável. Mas continua a apontar uma condição que se torna cada vez mais evidente no mundo de hoje: a “patologia da razão”. “Antes havia surgido a questão se devia-se considerar a religião como uma força moral positiva; agora, deve surgir a dúvida sobre a confiabilidade da razão. No final das contas, a bomba atômica é um produto da razão; e também a produção e seleção de homens foram criadas pela razão. Neste caso, não haveria que colocar a razão sob observação? Mas por meio de quem ou de quê? Ou talvez não deveriam se circunscrever reciprocamente a religião e a razão, mostrarem mutuamente os respectivos limites e se ajudar a encontrar o caminho? (RATZINGER, 2008, p.43-44).

Ante as patologias da razão, devemos também exigir à sua hybris (com perigos tão ameaçadores como a bomba atômica e o ser humano entendido como um produto) “reconhecer os seus limites e aprender a ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade” (RATZINGER, 2008, p.53). “Por isso, podemos falar de uma correlação necessária de razão e fé, razão e religião, que são convidadas a se purificar e regenerar mutuamente, que se necessitam reciprocamente e devem reconhecê-lo” (RATZINGER, 2008, p.53). Mas se adverte que, no contexto intercultural de hoje, os dois atores principais, a fé cristã e a racionalidade secular ocidental, não podem ignorar outras culturas e devem escutá-las para não repetir um falso eurocentrismo. Só com esta correlação polifônica poderá adquirir “nova força efetiva entre os homens o que dá coesão ao mundo” (RATZINGER, 2008, p.54). Ratzinger está falando aqui dos fundamentos morais e pré-políticos do estado liberal, da necessidade de “encontrar uma evidência ética eficaz que tenha suficiente força de motivação e que seja capaz de responder a estes desafios e ajudar a superá-los” (RATZINGER, 2008, p.44).

Deste modo existe uma dupla ajuda da razão à fé e da fé – e do amor – à razão.  A razão pode ajudar a fé eliminando contradições errôneas ou supérfluas que dificultam e impedem que o mundo de hoje possa entender o Evangelho em toda a sua grandeza e beleza. A razão não pode abolir as contradições entre o Evangelho e os erros e pecados dos seres humanos. A igreja se aproxima do mundo para servi-lo, anunciando a Boa Nova, evitando a tentação de mundanizar-se. Existe a distância cristã, que preserva de qualquer acomodação ou adaptação espúria, pois o Evangelho e a Igreja continuam sendo “sinal de contradição”. A razão só nos ajuda a eliminar falsos escândalos (formas que serviam em outros tempos e que agora já não são válidas) para que brilhe o verdadeiro escândalo, a cruz que é loucura para os gregos e escândalo para os judeus. A reforma promovida pelo Concílio para tornar compreensível o Evangelho ao mundo de hoje é um novo momento nesta longa história entre a fé e a razão.

A fé cristã no reino de Deus volta a abrir passagem entre o racionalismo e o fideísmo, contornando as diferentes versões que se repetem tanto na modernidade ilustrada (no positivismo científico, no marxismo totalitário ou no economicismo neoliberal) como no romantismo pós-moderno (nos fanatismos e fundamentalismos religiosos ou nos fundamentalismo seculares de algumas versões do ecologismo, do indigenismo, do populismo). Além de se deixar ajudar para evitar que nela aconteçam “patologias da religião”, a fé, o amor e a esperança cristã podem ajudar a razão contemporânea nos desafios que enfrenta o nosso mundo. Podem ajudar a detectar e denunciar as “patologias da razão”, as desumanizações que prejudicam o desenvolvimento integral. Podem colaborar na busca dessa “evidência ética eficaz” desses fundamentos morais e pré-políticos que não pretendem substituir a autonomia da moral e da política, mas que podem enriquecer com amor a nossa busca por justiça e impregnar de esperança os anseios de cada uma das nossas culturas.

 Eduardo Silva S.J. Universidad Católica de Chile y Universidad Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol 

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Fé e Política

Sumário

1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

1.1 Introdução

1.2 A virada teológica do Concílio Vaticano II: a historicidade da fé

2 Fé e política

2.1 As relações respectivas da fé e da política com a ética

2.1.1 Fé e obras

2.1.2 Amor e justiça

2.1.3 Ética e política

2.2 Quatro modos de relação entre fé e política

2.3 A teologia política: as buscas da teologia da libertação e da nova teologia política

3 Referências bibliográficas

Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

1.1 Introdução

A relação da fé cristã com a razão, a política e a cultura se compreende melhor se considerarmos tanto a metafísica da substância dos antigos quanto a metafísica do sujeito dos modernos. A filosofia clássica nos ensinou os transcendentais do ser, que além de ser uno, é simultaneamente verdadeiro, bom e belo. A filosofia moderna, com o pensamento transcendental de Kant, pergunta pelas faculdades do sujeito para conhecer o verdadeiro, agir segundo o bem e gostar-julgar do belo. Pelas virtudes teologais, sabemos que o dom da fé é sempre uma fé que crê, que ama e que espera. Podemos, então, vincular a fé que crê com a verdade e o conhecimento, a fé que ama com o bom e o agir ético, e a fé que espera com a beleza e o gosto poético. A importância da passagem da metafísica clássica à redução moderna – que contrasta a fé apenas com a ciência, com o dever moral e a teleologia – nos convida a dar um novo passo que supere tanto o deserto da crítica como as tentações de voltar atrás, ao refugio pré-moderno: “Não nos encoraja a nostalgia das Atlântidas submersas, mas a esperança de uma recriação da linguagem; para além do deserto da crítica, queremos ser novamente interpelados” (RICOEUR, 1960). A fé cristã é novamente questionada pela virada hermenêutica da razão contemporânea (GREISCH, 1993), pelo grande acontecimento de graça que significou a renovação do Concílio Vaticano II (HÜNERMANN, 2014) e pela plenitude da linguagem que se manifesta numa maior consideração da beleza e da poética em nossa situação de pluralismo cultural. Como introdução às relações entre fé e política, desenvolveremos brevemente a segunda interpelação que considera a renovação que significaram estes cinquenta anos de recepção conciliar na América Latina.

1.2 A virada teológica do Concílio Vaticano II: a historicidade da fé

Em consonância com este novo horizonte, é conveniente explicar a virada dada pela experiência de fé que se seguiu ao Concílio Vaticano II. Este evento de graça, inspirado pelo duplo movimento para se aproximar mais de Jesus Cristo, a fim de estar assim mais perto dos homens e mulheres deste tempo, renovou a face da Igreja Católica. Foi justamente descrito por João XXIII como “um novo Pentecostes” e por João Paulo II como “o evento de graça do século XX” e “a bússola” que nos leva ao terceiro milênio. Vamos nos debruçar em um dos aspectos fundamentais da renovação conciliar teológica: a entrada do tempo e da história no exercício e no método da teologia.

 O Concílio foi precedido por um enorme trabalho de muitos teólogos que tentavam superar a neoescolástica e assumir o desafio de historicidade. Podemos apenas lembrar os franceses – os dominicanos de Saulchoir ou os jesuítas de Fourvière –, a “Nouvelle Théologie”,  a teologia das realidades terrenas, e Rahner, com o método antropológico transcendental. Nessas buscas, se trata de acolher a historicidade e reconhecer à história (seus eventos, fenômenos sociais, os sinais dos tempos) uma positividade teológica. É também a pretensão e o valor da teologia da libertação (TdL): reconhecer o continente como um antecedente teológico e não apenas um local de aplicação de uma teologia que é extrínseca à sua realidade. Se for isso o que está em jogo, é a teologia mesma que está em jogo, ela se coloca em crise e é transformada. “interpretar teologicamente o presente” ou “compreender o significado teológico dos eventos” só pode ser feito por aquele que reconhece o status histórico da teologia. Conceber a teologia como “reflexão crítica sobre a práxis histórica à luz da Palavra” (GUTIERREZ, 1972), ou como “interpretatio temporis” (HÜNERMANN, 2014) envolve reconhecer o duplo movimento hermenêutico que interpreta a escritura a partir da história concreta e que interpreta o presente à luz da fé.

Ignacio Ellacuría nos ensina que por historicidade da salvação cristã entendemos duas coisas. A primeira, pergunta pelo caráter histórico dos fatos salvíficos; a segunda, pela natureza salvífica dos fatos históricos. Enquanto a primeira está interessada em fundamentar historicamente os fatos fundamentais da fé (ressurreição, milagres, eventos salvíficos do AT), a segunda procura discernir “que fatos históricos trazem salvação e quais trazem condenação, quais fatos fazem Deus mais presente e como neles é atualizada e se torna eficaz essa presença” (ELLACURÍA, 1994, p.323). A segunda pressupõe a primeira, e quer repensar o problema de como se relacionam a salvação cristã (“o que é formalmente determinante da missão dos cristãos enquanto cristãos”) e a libertação histórica (“o formalmente determinante  dos Estados, as classes sociais, os cidadãos e os homens como homens”) como nos mostra Ellacuría (p.324). Repensar a ligação entre a salvação cristã e promoção humana, entre o serviço da fé e a promoção da justiça, da fé cristã com a salvação-libertação dos pobres da terra, não é  reduzir a fé a uma ética social, a um compromisso político em particular, mas, como proclamou exaustivamente a TdL, conceber uma nova forma de fazer teologia.

Marie-Dominique Chenu, precursor e partícipe no Concílio, agrupou os seus artigos em dois volumes que intitulou A fé na inteligência e O Evangelho no tempo, indicando-nos que as relações gerais da fé e do Evangelho são com a razão e com a história: o paralelismo dos nomes dos dois volumes “baseia-se na lei encarnada da Palavra de Deus, seja considerada no espírito do homem ou  no desenvolvimento da história” (CHENU, 1964, p.8). O binômio verdade e justiça que, para Rawls, em sua Teoria da Justiça, são as primeiras virtudes respectivas das teorias e das instituições sociais, é modificado por esse binômio inteligência e tempo.  A verdade é ampliada para vinculá-la à inteligência, ao “espírito do homem”, e não apenas ao conhecimento que as várias ciências permitem-nos, como quer a redução moderna. A justiça é profundamente modificada com esta consideração do tempo que, como “desenvolvimento da história”, vai além do imperativo categórico e dos deveres universalizantes. Historicidade da verdade e da justiça; historicidade também da fé e do Evangelho, que ao encarnar-se na inteligência e no tempo, os amplia e cresce  com eles. A fé amplia o inteligível, pois proporciona “bens divinos que transcendem totalmente a inteligência humana” (DV n.6), e por sua vez o Evangelho do amor amplia os deveres de justiça para que a história alcance a plenitude do Reino de Deus. Bens divinos  e deveres de justiça, sinais dos tempos que a Igreja está chamada a auscultar para descobrir a voz de Deus no meio das vozes dos seres humanos. Mandato conciliar que o magistério e a teologia latino-americana assumiram com dedicação exemplar nestes 50 anos de recepção do Concílio.

2 Fé e política

A fé que busca a inteligência é uma fé que busca também a justiça. A relação entre fé e justiça é abordada nesta Enciclopédia no eixo temático Teologia prática e pastoral, em que Francisco de Aquino Júnior aborda os elementos essenciais da relação da justiça com a fé, com o Reino de Deus e com as opções da Igreja latino-americana. Muitas dessas considerações são cruciais para as relações entre fé e política. As relações da justiça e da política com a fé se localizam dentro de um horizonte mais amplo: o da relação entre fé e ética. Tony Mifsud desenvolve, no eixo temático Ética Teológica, o verbete Moral Social,  em que aborda vários aspectos intimamente relacionados com nosso  tópico: o pensamento social da Igreja tem a sua fonte no Evangelho e seu desenvolvimento na doutrina social; é possível enunciar uma série de princípios permanentes que o norteiam; eles se relacionam à economia, à política e às questões ambientais; a solidariedade, os direitos humanos e a opção pelos pobres são a chave para este ensinamento e compromisso social.

Trataremos aqui a relação entre fé e política assumindo todas estas questões e nos ocuparemos, principalmente, da maneira que elas podem dar-se, considerando tanto a renovação teológica  conciliar como a elaboração que o magistério e a  teologia latino-americana tem feito sobre isso. Antes desta questão principal, e como introdução, gostaríamos de oferecer alguns esclarecimentos e considerações terminológicas sobre os conceitos envolvidos, reconhecendo a virada hermenêutica da razão contemporânea. A relação entre fé e política inevitavelmente nos confronta com a experiência ética. Uma breve reflexão sobre as relações respectivas da fé com a ética e do político com o ético parece necessária.

2.1 As  relações respectivas da  fé e da política com a ética

A ligação entre o serviço da fé e a promoção da justiça tem sido repetidamente apontada pela renovação teológica conciliar. Puebla nos ensina que “a promoção da justiça é uma parte integrante da evangelização” (Puebla, n.1254). Para ser fiel ao Concílio, os jesuítas têm reformulado sua missão como serviço da fé “do qual a promoção da justiça é uma exigência absoluta” (CG 32, 1975). Isso nos lembra que a fé opera através do amor, que o amor a Deus é verificado no amor para os irmãos e que a fé sem obras é uma fé morta.

Vincular fé e justiça é articular a experiência religiosa com a experiência ética, o dom da fé com o compromisso moral. Sabemos que essas são duas experiências diferentes, e que o status dessa diferença não é uma oposição irreconciliável. Mas é menos claro como transformar a tensão em uma  dialética proveitosa para ambas as experiências que reivindicam sua autonomia. As duas primeiras seções tratam de apresentar primeiro a radicalidade dessa diferença, e depois as possibilidades  de sua articulação. Na primeira, a apresentação da oposição entre fé e obras no problema da justificação em Paulo nos ajudará a compreender melhor uma das alternativas da relação entre fé e política que apresentaremos adiante. Servirá, também, para compreender a legitimidade das respectivas reivindicações de autonomia: da experiência moral em relação a qualquer mandamento religioso, e da experiência de fé que deve escapar da tentação pelagiana. Na segunda seção, aprofundaremos a articulação entre fé e ética, refletindo sobre a dialética entre amor e justiça, que de acordo com Ricoeur é a tradução para o campo prático da relação teórica entre fé e razão. Finalmente, numa terceira seção, abordaremos brevemente a especificidade do político, do ético e da relação entre eles (Tg 2,17).

2.1.1 Fé e obras

Para examinar a diferença entre fé e ética e a impossibilidade de reduzir uma à outra, é conveniente partir da questão da justificação pela fé, o articulus stantis do cristianismo, de acordo com Lutero, e que em Paulo parece estabelecer uma polaridade irreconciliável ​​entre fé e obras: o que justifica é a fé em Jesus Cristo e não o cumprimento da lei. Somos salvos pelo dom gratuito de Deus e não pelas obras de nossas mãos; são os méritos de Jesus Cristo, e não os nossos, que nos justificam e nos fazem agradáveis a Deus. A salvação é um dom imerecido, e não uma recompensa por causa da nossa bondade. Na realidade, somos maus: pagãos e judeus estamos sob a ira de Deus, merecedores de castigo, se Deus levasse em conta nossos delitos e nos tratasse como nossas ações merecem. Mas a misericórdia de Deus, em virtude dos méritos de Jesus Cristo, nos justifica, nos salva, nos perdoa. Crer que nada pode nos separar do amor de Deus nos torna livres e nos permite viver da fé na ação de Deus por nós e não no medo de depender de nossas próprias ações.

Portanto, a alternativa que parece opor em forma irreconciliável a ação de Deus e a ação humana deve dar lugar à necessária mediação entre ambas. O mediador é o próprio Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A fé é, ao mesmo tempo, um dom de Deus e resposta livre do ser humano. Para que o dom se torne uma chamada que provoque uma resposta, é preciso  o que João proclama no prólogo do seu Evangelho: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Graças ao corpo de Cristo, podemos ouvir a Palavra e crer nela. A fé é dom de Deus que vem a nós através de Cristo na Igreja. A fé é, ao mesmo, teologal, eclesial e pessoal. Um dom de Deus acolhido no corpo eclesial por cada crente. Pela fé o homem fé “se entrega a Deus total e livremente, lhe oferece a homenagem total do seu entendimento e vontade, assentindo livremente ao que Deus revela” (DV n.5). Apenas um dom que se apropria, se acolhe e se recebe com  liberdade pode ser um dom que empapa a terra, que a fecunda e que nos transforma. Um dom que não se impõe, mas que interpela a nossa liberdade, que pode aceitá-lo ou rejeitá-lo. “Mas a todos quantos o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,11-12). Um poder que nos transforma porque a graça é “inerente”: “O amor de Deus é derramado (…) nos corações daqueles que são justificados e neles permanece inerente. O homem recebe a fé, a esperança e a caridade, que por sua vez são infundidos, através de Jesus Cristo, por quem é enxertado” (Trento, DH 1530).

A fé produz frutos. Tanto católicos quanto luteranos, acreditamos nisto. Por isso pode-se dizer da fé luterana: a sola fidei nunca está só. É o que permite diferenciar entre a fé viva e a fé morta. É, portanto, perfeitamente compatível a doutrina da justificação pela fé de Paulo (esclarecida pelo debate tridentino e pela “Declaração Conjunta sobre a Justificação” de 1997 entre católicos e luteranos) com a afirmação de Tiago, que “a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma” (Tg 2,17). A justiça justificante de Deus nos salva e somente nela, que coincide com sua misericórdia, podemos confiar. No entanto, trata-se de uma confiança que não nos deixa passivos, mas pede frutos de amor. Não há contradição entre o que Deus faz em nós e o que nós fazemos, “uma vez que aquela justiça que se diz nossa, porque por tê-la em nós somos justificados, também é de Deus, porque é por Deus infundida por merecimentos de Cristo” (DH 1547). É o que diz belamente a frase de Agostinho, retomada por Trento: a bondade de Deus “é tão grande que quer que sejam merecimentos deles, o que são dons seus” (DH 1548).

2.1.2 Amor e justiça

“Eu vejo a relação entre amor e justiça como a forma prática da relação entre teologia e filosofia” (RICOEUR, 1994, p.271). A diferença entre a lógica do dom que incentiva o amor e a lógica da equivalência que rege as relações de justiça parece análoga à que existe entre a linguagem religiosa (que é um tipo de linguagem poética) e o discurso do argumento (que inclui a linguagem da ética). É precisamente esta lógica do dom que incentiva a fé bíblica a que tentamos articular, respectivamente, com a razão, com a política e com a cultura.

Ricoeur nos ensina que o amor pertence à lógica da superabundância, característica daquilo que ele chama de economia do dom. Distinta e outra é a lógica da equivalência, que rege as diferentes esferas da justiça. Também rege as trocas econômicas e é a lógica da vingança e da lei de Talião. Só após a realização de uma descrição essencial do amor e da justiça, e deixar bem marcada a desproporção entre os dois, Ricoeur aborda a tarefa de estabelecer uma ponte entre a “poética do amor” – lógica da superabundância – e a “prosa da justiça” – lógica da equivalência. O amor precisa da mediação da justiça para entrar na esfera prática e ética: a justiça necessita da “fonte” do amor para evitar cair em uma simples regra utilitária. A tarefa da filosofia e da teologia, neste nível, seria mostrar que é perfeitamente razoável a incorporação tenaz de um grau crescente de compaixão em todos os nossos códigos legais. “Se de fato o amor obriga, é à justiça que obriga em primeiro lugar, mas a uma justiça educada pela economia do dom. É como se a economia do dom procurasse se infiltrar na economia da equivalência” (RICOEUR, 1990b, p.28).

O amor (…) é o guardião da justiça, na medida em que a justiça, apesar de sua grandeza quando colocada sob a égide da reciprocidade e da equivalência, está sempre ameaçada de recair, apesar de si mesma, no nível do cálculo interesseiro, o Do ut des (“eu te dou para que tu me dês”). O amor protege a justiça contra essa malvada inclinação, proclamando: “Eu dou porque já me deste”. Então, eu vejo a relação entre caridade e justiça como a forma prática de relação entre o teológico e o filosófico (RICOEUR, 1994, p.179).

A partir dessa perspectiva, Ricoeur propõe repensar o pensamento teológico-político

ou seja, o fim de um determinado teológico-político construído sobre a relação vertical dominação/subordinação. Uma teologia política de outra maneira orientada deveria, na minha opinião, deixar de constituir-se como uma teologia da dominação para instaurar-se como justificação do querer viver juntos em instituições justas (1994, p.179).

Esta reflexão teológico-política, “em confronto com o problema do ‘desencantamento do mundo’” (RICOEUR, 1994, p.179), se afasta de qualquer pretensão de fundamentação pela fé. Ricoeur estima que a partir da fé bíblica não se acrescentam conteúdos éticos, não se dão as respostas adequadas que faltariam à moral.

No plano ético e moral, a fé bíblica não acrescenta nada aos predicados “bom” e “obrigatório” aplicados à ação. O ágape bíblico faz parte de uma economia do dom de caráter metaético (…) O que me faz dizer que não há moral cristã, exceto no plano da história das mentalidades, mas uma moral comum (…) que a fé bíblica coloca em uma nova perspectiva, em que o amor está ligado à “nomeação de Deus” (RICOEUR, 1990a, p.37)

 A relação entre amor e justiça nos ajuda a pensar a relação entre fé e ética e a entrar na discussão dos teólogos moralistas sobre o “específico” da ética cristã. De um lado, estão os defensores da ética “autônoma” que se aproximam da posição aqui enunciada de Ricoeur: a autonomia da experiência moral, a autonomia do imperativo categórico, universalizante e válido em todas as condições, é independente das motivações religiosas. Por outro lado, os partidários da  chamada “ética da fé”, que também atribuem à fé princípios concretos que redimensionam o alcance universal da capacidade da razão: a experiência cristã seria uma fonte de  critérios morais para a política. Um debate que deve ser objeto de outro verbete nesta Enciclopédia.

2.1.3 Ética e política

Para entender as relações entre fé e política, e como a política, além de ser objeto das ciências sociais, pertence ao campo da ética, são necessários os correspondentes esclarecimentos terminológicos: o que é política?, o que é ética?, qual é a relação entre política e ética? Aqui só enunciaremos as questões pertinentes, que são objeto de reflexão da filosofia prática.

Uma análise da especificidade da política e sua singularidade dentro do campo da ética nos obriga a observar o “paradoxo da política”. Ricoeur reconhece, por um lado, a racionalidade específica da política, sua autonomia, que é a busca de um “bem-viver” juntos, como cidadãos da polis, no Estado. Por outro lado, isso nos fala sobre o seu mal específico, a dominação, a violência, o poder de uns sobre os outros. “Racionalidade específica, mal específico, tal é a dupla e paradoxal originalidade da política” (1990c, p.230). Que o mal político venha da especificidade da política, permite resistir à tentação de opor dois tipos de reflexão política, “uma que favorece a racionalidade da política, com Aristóteles, Rousseau, Hegel, e outra que coloca a ênfase na violência e na mentira do poder, de acordo com a crítica platônica do ‘tirano’, a apologia maquiavélica do ‘príncipe’ e a crítica marxista da “alienação política” (RICOEUR, 1990c, p.230). Na relação da política com a ética – e também com a fé – deve-se saber que não se trata de escolher entre uma boa e uma má política, mas de reconhecer a sua natureza paradoxal, sua ambiguidade intrínseca.

Uma palavra sobre a ética em geral, nos convida a reconhecer nela dois momentos: o que é considerado bom e o que se impõe como obrigatório. O primeiro é o modo opcional, a herança aristotélica, o momento teleológico, que Ricoeur resume na “intenção da vida boa com e para os outros em instituições justas”; o segundo é o modo do imperativo, a herança kantiana, o momento deontológico próprio das normas, das obrigações, das proibições caracterizadas pela exigência de universalidade e dos efeitos coercitivos da lei (cf. a chamada “pequena ética”, em  RICOEUR, 1990a). O bom é anterior à lei, pois as normas que determinam o que é permitido e o que é proibido tentam encarnar os desejos e anseios do viver bem. O bom é também posterior à  lei, pois permite a interpretação e a aplicação das normas às situações específicas que exigem um discernimento de sabedoria prática, particularmente em casos difíceis. O momento da norma –convencionalmente denominada “moral” –  reconhece um momento ético anterior, no nível da fundamentação, a ética fundamental, e um momento ético posterior, no nível da aplicação, as éticas aplicadas (RICOEUR, 2001).

Uma vez esclarecidos os respectivos termos, política e ética, estaremos em condições de analisar a relação entre os dois. Por um lado, é conveniente  ter um olhar para a história dessas relações, que possa distinguir o modelo clássico, o modelo hegeliano e as articulações contemporâneas, desde Habermas a Benjamin (DE LA GARZA, 2002). Por outro lado, uma análise das atuais relações entre ética e política não pode deixar de considerar a relação de ambas para com a economia. Ricoeur, novamente, nos ajuda a compreender a distinção entre a luta com a natureza, para tornar possível a sobrevivência, e a produção econômica e a sabedoria, para sermos capazes de viver juntos em uma comunidade política. Aparece aqui a distinção entre o racional, da maximização econômica, e o razoável, das deliberações e decisões para viver juntos (RICOEUR, 1992).

Considerando este quadro conceitual, agora abordaremos os vários modos de articulação entre fé e política. Primeiro através de uma descrição fenomenológica das quatro possibilidades de articulação da fé cristã e a política que realmente ocorrem na AL. Imediatamente depois, com uma reflexão crítica das tentativas da teologia política feitas pela TdL e pela nova teologia política.

2.2 Quatro modos de relação entre fé e política

Nos anos 1970, Juan Carlos Scannone analisa “quatro posições latino-americanas sobre fé e política” (SCANNONE, 1976, p.97-126). Fazendo uso de documentos episcopais, distinguia a postura clássica tradicional, a do humanismo cristão reformado e outras duas muito próximas da nascente TdL (uma mais ligada ao movimento de sacerdotes do Terceiro Mundo e a outra aos cristãos para o socialismo). Nos mesmos anos setenta, Pedro Trigo faz uma tipologia na qual também reconhece quatro tipos de catolicismo na América Latina: o tradicional das elites, o reformado, o  revolucionário e o da religiosidade popular (TRIGO, 2004, p.37-121). Centrando-nos na questão do poder e na atitude que a Igreja tem sobre ele e aprofundando essas análises tipológicas, podemos discernir quatro tipos de relação entre fé e política.

A primeira, a mais clássica e que podemos ver no catolicismo tradicional – seja da elite conservadora, seja da religião popular – é típica de um regime de cristandade, onde as consequências sociais, políticas e até culturais do Evangelho são deduzidas diretamente dele. Para esta posição, o poder é óbvio, a Igreja o recebe de Deus e está ao seu serviço para unificar todos os níveis do ser humano. Isto é o que Paul Ricoeur chamou de “síntese clerical da verdade” (RICOEUR, 1955, p.155-160), que está muito próxima da síntese que pretende o totalitarismo na política. Ao lado da grandeza de buscar a unidade, aparece “a tentação de unificar violentamente o  verdadeiro” através do poder espiritual ou do poder temporal. Enquanto o núcleo clerical faz uso da autoridade especial que o crente concede à verdade revelada, o núcleo político perverte sua função natural e verdadeiramente dominante de nossa existência histórica. Aqui se manifesta o paradoxo da política e do poder não só como um serviço para o bem comum e para as possibilidades de convivência, mas como patologia de dominação. Nós observaremos especialmente esta patologia clerical, pois os outros três tipos de relação que a fé estabelece com a política, e que descrevemos a seguir, são maneiras de tentar superá-la, procurando seguir as exigências da modernidade a este respeito.

 A unificação violenta da verdade está ligada à teologia e a autoridade que o poder clerical tem sobre a verdade. Mas a teologia, “antes de ser esta tentação de violência, é uma realidade subordinada, submetida; sua referência para além dela é a Verdade que é, e que é mostrada como uma Pessoa. (…) Esta Verdade que se manifestou só vem a nós através de uma cadeia de testemunhas e testemunhos. (…) O primeiro testemunho é Escritura; a sua verdade está subordinada, e com ela se mede a verdade da pregação, que no ato de culto transmite e explica à comunidade de hoje o testemunho primeiro” (RICOEUR, 1955, p.156). A pregação como interpretação da Palavra  tentar evitar tanto “uma repetição anacrônica” como “uma adaptação arriscada da Palavra às necessidades atuais”. Com esta verdade da pregação se articula a verdade possível da teologia, que é um esforço para compreender. A sua função crítica em relação à pregação (medindo-a com a Palavra de Deus), é uma função de totalização, em que integra a cultura do seu tempo e, por vezes, combate a filosofia, que também visa compreender toda a nossa existência. O caráter de autoridade destas instâncias não é mais um acidente social adicional, mas um aspecto fundamental da Revelação e da verdade que aquele que crê ali reconhece. “Todo um encadeamento: a autoridade do Verbo, a do testemunho escriturístico, a da pregação fiel, a da teologia” (RICOEUR, 1955, p.158). Daí surge “a pretensão endêmica das igrejas de recapitular todos os níveis de verdades em um sistema atual, que seja ao mesmo tempo uma doutrina e uma civilização” (1955, p.158) surge. É a tentativa medieval – tentação de todas as cristandades – de “associar a Palavra a um sistema do mundo, a  uma astronomia, a uma  física, a um sistema social” (1955, p.158). Na busca da unidade se expressa tanto uma tarefa grandiosa do homem como a falta ambígua que dá origem às paixões pelo poder, que se une à violência do poder clerical ou político. Para Ricoeur, “a paixão clerical é capaz de gerar todas as figuras fundamentais da mentira que voltará a inventar o totalitarismo político” (1955, p.159). Assim, a ideia de um “humanismo integral”, em que estariam situados harmoniosamente todos os níveis de verdade, realmente é uma miragem,  “o tempo ainda é tempo para o debate, o discernimento e a paciência” (1955, p.183).

Os outros três tipos de relação entre fé e política são maneiras muito diversas de crítica e superação desta tentação pré-moderna. Na segunda, temos o cristianismo reformado, sustentado pela renovação que significou a doutrina social da igreja desde a Rerum Novarum até a Caritas in Veritatis. A resposta do catolicismo social às urgências da questão social é contundente e inovadora: a tomada de consciência da questão proletária, da pobreza e injustiça; um medo do abandono massivo da fé e da Igreja pelas massas proletárias, seduzidas pelos apóstolos da “fantasia do socialismo” (RN n.11); uma ruptura com os partidos católicos conservadores, que até então eram o único canal legítimo dos cristãos na política, validando o pluralismo cristão na política; um meio-termo entre o capitalismo industrial injusto e alternativa marxista, que é alimentada pela social democracia, o humanismo cristão e o magistério papal. “A doutrina social católica, que se desenvolveu gradualmente, tornou-se um modelo importante entre o liberalismo radical e a teoria marxista do Estado” (BENTO XVI, 2005).

Se analisarmos especificamente a relação desta teologia reformada com o poder, vemos que, para ela, o poder é um instrumento de serviço. Estima-se que é um bem, mas não um bem último, mas que serve a bens superiores. O questionamento e a suspeita sobre a distribuição do poder e sua origem na história são fracos, mas, ao contrário da figura anterior, existem. Como o poder é “para o serviço”, o importante é a forma como ele é usado: a justiça de seu uso é dada por sua orientação para o bem. Os cristãos são chamados a servir ao bem comum e, a partir dos valores do Evangelho e da doutrina social, um cristão saberá como fazê-lo. Usar o poder ou assumir  o poder que se tem não só é legítimo, mas é um dos maiores serviços que podem ser feitos. “A maior vocação depois do sacerdócio” – disse  Santo Alberto Hurtado; “a expressão máxima da caridade” – afirmou  Paulo VI.

A terceira maneira de relacionar fé e política é expressa pelo surgimento de um cristianismo revolucionário, que com a TdL expressa o surgimento de um cristianismo libertador que critica não só o catolicismo conservador e reformado, mas, também, o catolicismo popular. Enquanto o primeiro é cúmplice das injustiças e o segundo não é a solução certa para superá-las,  a “religiosidade popular” é acusada duramente de alienar as pessoas. Mas a religião popular, que foi alvo de muitos ataques na primeira etapa da TdL, gradualmente foi sendo revalorizada nas fases posteriores. Uma evolução influenciada tanto pela crise no uso das mediações analíticas quanto pela maturidade que o movimento vai alcançando, produto dos questionamentos e do diálogo eclesial. Também foi influenciada pelo surgimento de uma teologia da cultura, que mostrava como a leitura da realidade ficava limitada quando, ao enfatizar as variáveis ​​sociopolíticas e econômicas, se eclipsava a profundidade da cultura e da religião latino-americanas. A teologia do povo, contemplada pelo papa Francisco, continua atenta ao discernimento entre os valores da fé, da solidariedade e da sabedoria de uma “cultura popular evangelizada” e os “pontos fracos que ainda têm de ser curados pelo Evangelho” (Evangelii Gaudium n.68-69). A tipologia de Scannone, que mencionamos anteriormente, já mostrou duas versões da teologia latino-americana, que, para ele, são duas versões da TdL. Para outros, as possibilidades oferecidas por uma teologia da cultura são o modo de combater os discursos liberacionistas. Alguns dizem que todo o documento de Puebla é o resultado dessa luta entre culturalistas e liberacionistas. O debate promoveu o engano de aparentar, em algum momento, que existia oposição entre a libertação dos pobres e a evangelização da cultura. O medo de um neoclericalismo de esquerda surgiu naqueles que temiam que a libertação cristã fosse reduzida à emancipação política. A acusação mais incisiva não vem de conservadores e reformados, mas do cristianismo radical, a quarta figura a ser discutida.

Se nos concentrarmos na questão do poder, vemos que essa teologia tem sido alimentada pelas novas teologias políticas de Moltmann, Pannenberg e Metz. Em todas elas existe uma crítica para a distribuição do poder dominante e uma luta pela reversão do status quo. Não só importa que o poder esteja a serviço do bem comum; nem se sua justiça será valorizada só porque simplesmente serve ao bem. É criticada e suspeita uma atitude muitas vezes ingênua e ideológica que não leva em conta a origem desse poder. Tal como se distribuem os outros bens, o poder deve também ser distribuído de forma justa. A pobreza é a falta de poder e as várias lutas pelo reconhecimento e a emancipação dos mais desfavorecidos procuram reverter esta situação e colocar os pobres em uma posição diferente, não como meros objetos, mas como sujeitos.

O panorama não estaria completo se não nos referíssemos a uma quarta possibilidade nas relações entre fé e política. O cristianismo radical não se situa nos quatro tipos de catolicismo que Trigo enunciava na década de setenta, mas tem alguma sintonia com algum dos oito tipos de catolicismos que descreve nos anos noventa (TRIGO, 2004). Tipologia ampliada, mostrando por um lado a fragmentação e pluralização do catolicismo e, por outro lado, a perda de hegemonia, especialmente com o crescimento do pentecostalismo, mas também com a presença de religiões autóctones e os novos movimentos religiosos. Apenas a alternativa radical, que tem sua origem nas denominações anabatistas, quer evitar tanto a proximidade (e às vezes cumplicidade) com o poder que normalmente tem o catolicismo, como a distância (e às vezes submissão) que, seguindo a tradição protestante, caracteriza o pentecostalismo.

O cristianismo radical faz uma crítica completa do poder. O poder pode ser um bem, mas apenas em referência a Deus e por ele limitado. O poder de uns é sempre à custa dos outros. Em contrapartida, o Evangelho é um serviço que não é feito de cima para baixo; um serviço sem mais poder do que a força do Espírito. Ele defende um igualitarismo radical. À medida que os poderes deste mundo estão obsoletos, a única política é escatológica (1Cor 1-2), em uma vida alternativa, que não tem a intenção de escapar deste mundo, mas viver já a lógica do Reino. A comunidade cristã é testemunha do mundo real e não cúmplice deste mundo que é lixo .

O cristianismo radical tende a posições anárquicas, promove um pacifismo radical e desconfia totalmente do Estado. William Cavanaugh explica que o estado moderno deve ser entendido como uma soteriologia alternativa à da Igreja. É uma invenção dos últimos quatro séculos. “Um poder abstrato e centralizado que mantém o monopólio da coerção física dentro de um território” (CAVANAUGH, 2007, p.24) Depois de mostrar o relato cristão e o do Estado, analisa o mito das “guerras de religião”, e refuta a interpretação usual, mostrando que essas guerras não foram causadas ​​pela religião, mas visavam a própria criação da religião. Rejeita o “mythos da salvação pelo estado”, adotado por muitos cristãos que se submetem às suas práticas e até mesmo entregam seus corpos para a guerra, “na esperança de alcançar a paz e a unidade prometidas pelo estado. O que se tentou mostrar é que o mythos do estado e a religião do estado são distorções da nossa esperança, e que a tradição cristã fornece recursos para a resistência” (CAVANAUGH, 2007, p.62). Foi Antonio González que, criticando frontalmente a TdL,  aprofundou as motivações teológicas do cristianismo radical (Teología de la praxis evangélica, 1999; Reinado de Dios e imperio, 2003; El evangelio de la paz y el reinado de Dios, 2008).

2.3 A teologia política: as buscas da teologia da libertação e da nova teologia política

As quatro possibilidades de relação entre fé e política oferecem um panorama fenomenológico que deve ser enriquecido com uma reflexão crítico-hermenêutica sobre as implicações políticas da fé cristã. Nós a fazemos tendo em conta não só a renovação teológica  conciliar, mas também a virada hermenêutica da razão contemporânea.  Os desafios da secularização – como também os da libertação –  são resolvidos não com “uma teologia do cosmos, nem uma teologia transcendente da existência humana, mas com uma teologia política” (GEFFRÉ, 1972, p.113). “O denominado problema fundamental hermenêutico da teologia não é propriamente  a relação entre teologia sistemática e teologia histórica, entre dogma e história, mas entre Teoria e Práxis, entre a inteligência da fé e a prática social” (METZ, 1971, p.146).  A política – a práxis, o evento histórico –  aparece aqui como a terceira metáfora substitutiva tanto da substância dos antigos, como do sujeito dos modernos. Já não basta a teologia existencial e  “antropocêntrica”, centrada no presente e em um assunto abstrato, com concepções individualistas e idealistas (mesmo de certos personalismos e da teologia transcendental), que tendem a permanecer distantes do mundo e da história. Este terceiro ponto requer a compreensão do mundo e da Igreja como a história, o político como mediação do ser humano e uma teologia política não no sentido regional – como a teologia do “trabalho” ou do “desenvolvimento” – mas como uma teologia fundamental que leve a sério a dimensão escatológica do cristianismo. O programa de teologia política de Johann Baptist Metz contemplará, por um lado, o momento negativo de criticar a tendência de reduzir a fé cristã à esfera privada e, por outro, “a tarefa positiva (política) para determinar um novo gênero de relações entre a religião e a sociedade, entre a Igreja e a realidade pública social, entre a fé escatológica e a prática social” (METZ, 1968, p.385).

É o caminho que seguiu a TdL na AL: “Pela inesperada brecha aberta por Bloch passa a atual teologia de esperança.  J. Moltmann e W. Pannenberg encontraram, nas análises de Bloch, categorias que lhes permitem pensar alguns grandes temas bíblicos: escatologia, promessa, esperança” (GUTIERREZ, 1990, p.255-256). À pergunta de Kant sobre “o que me é permitido esperar?” Bloch respondeu: “onde há esperança, há também a religião”. “Esperar não é saber o futuro, mas para estar pronto, em atitude de infância espiritual, para acolhê-lo como dom. Mas esse dom é acolhido na negação da injustiça (…) e na luta pela paz e fraternidade. É por isso que a esperança cumpre uma  função mobilizadora e libertadora da história (…) Peguy dizia como a pequena esperança, que parece ser impulsionada por suas duas irmãs mais velhas, a fé e a caridade, é de fato quem as arrasta” (GUTIERREZ, 1990, p.258). Gutierrez sugeriu que a passagem da insistência na ortodoxia às preocupações pela ortopráxis está relacionada com a passagem do primado da fé ao “primado da caridade”. São talvez os impasses da práxis (a afirmação de autojustificação, a redução à ética etc.) que fizeram  acontecer uma nova primazia: “a da esperança, que libera história graças à sua abertura ao Deus que vem” (1990, p.259).

Entre as muitas críticas que a nova teologia política recebeu, nos interessam as feitas pela TdL, considerando que a política, nos escritos de Metz, ainda se move em um campo um tanto abstrato. Expressando sua estima e sua dívida com essas teologias europeias e, depois de resenhá-las em sua obra fundadora, Gutiérrez explicita suas diferenças: “Lendo os trabalhos de Metz tem-se a impressão de uma certa insuficiência na sua análise da situação contemporânea. (Estar) longe da efervescência revolucionária que existe em países do terceiro mundo, não lhe permite assimilar profundamente a situação de dependência, de injustiça e de expropriação que vive a maioria da humanidade (…), nem (experimentar) a aspiração de libertação que vem das profundezas desse estado de coisas” (1990, p.266-267). Esse tem sido o desafio que a TdL quis assumir e, para além dos seus sucessos e limites, o empreendeu bebendo da renovação do Concílio e da recepção que dele fez o magistério latino-americano. Um esforço para compreender as relações entre fé e política a partir da situação no continente e no horizonte desta era hermenêutica da razão. Na verdade, as duas características fundamentais da TdL, a primazia do pobre e a primazia da práxis, situam-se neste terceiro paradigma do pensamento contemporâneo (GONZALEZ, 1993).

Uma teologia que quer articular as esperanças cristãs com as esperanças humanas, uma teologia da história que é realizada como teologia dos sinais dos tempos, é necessariamente provisória e deve reconhecer os novos desafios que ocorrem em um contexto muito diferente dos anos sessenta, quando ela nasceu. A queda dos socialismos históricos fez com que alguns acreditassem que a história havia chegado ao fim, graças à aliança entre o capitalismo financeiro e tecnológico e a democracia liberal. Mas essa ilusória  reconciliação final tem visto o surgimento de novas crises: financeira, com a crise do sistema econômico em 2008; ecológica, com a poluição e as alterações climáticas; bélica, com novas guerras após o ataque às torres gêmeas; civil, com a insatisfação e o desassossego expressos nas manifestações de 2011. Novas crises que se somam às antigas, que assolam há muito tempo o continente – a violência, tráfico de drogas, a corrupção – em um mundo que se mostra cada vez mais desigual e injusto, ao aumentar simultaneamente a pobreza injusta, o consumo e a concentração de renda.

As mudanças que ocorreram em nível mundial e continental nos últimos trinta anos obrigam as teologias  política e da libertação a se renovarem, a não se repetirem, a redescobrir a ação e a paixão de Deus em nossa história. Devem vencer a tentação de ser simplesmente teologias politizadas, novos clericalismos de esquerda ou progressistas, evitando tanto a abstração e a neutralidade como uma concretização  que leve à sacralização de uma teoria da sociedade, de um programa político ou de um projeto de ação em particular. “Uma teologia cristã que fosse apenas a justificação para a práxis de um grupo particular corre o risco de cair na ideologia” (GEFFRÉ, 1987, p.104). Também corre o risco de ser alvo das críticas daqueles que advertem para o perigo de transformar o cristianismo num novo tipo de pelagianismo, em mero compromisso moral com alguma causa que esteja na moda.  A justificação pela fé e não pelo cumprimento da lei, a superação do “sistema das retribuições e de toda a lógica da autojustificação (Col 2,14)” (GONZALEZ, 2008, p.12) é a chave para o Evangelho que o cristianismo radical  nos recorda: abandonar “a velha pretensão adâmica de viver dos resultados das próprias ações” (GONZALEZ, 2008, p.12). É também o que parece advertir  Metz quando indica que a historicidade, como entrada do tempo tanto na fé quanto na política, implica a superação de toda  identidade, como totalização ou coincidência entre o real e o racional. A novidade da consciência histórica e hermenêutica é o abandono da grande tentativa hegeliana, mostrada agora como uma grande tentação (RICOEUR, 1985). Metz argumenta que o desafio de fazer uma “teologia depois de Auschwitz” – e na AL “depois de Ayacucho” – significa, em primeiro lugar, “aceitar finalmente o surgimento da história concreta no logos da teologia e a consequente experiência teológica da não identidade” (METZ, 2002, p.142). Pela mesma razão Gutiérrez, em seu prefácio “Olhar longe” indica que a teologia, se quer permanecer fiel a Deus, à Igreja e ao povo, longe de ser uma mera repetição, é um amor que se aprofunda e varia a forma de sua expressão (1990, p.53).

Eduardo Silva S.J. Universidade Católica de Chile e Universidade Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol

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Fé e Cultura

Sumário

1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

1.1 Introdução

1.2 Uma virada para a beleza e a poética em nossa situação de pluralismo cultural

2 Fé e cultura

2.1 Evangelização da cultura e inculturação da fé

2.2 A Palavra encarnada: a dialética entre a verdade imutável e sua expressão cultural

2.3 Toda cultura é “ad-evangelho” e todo Evangelho é transcultural

3 Referências bibliográficas

1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

 1.1 Introdução

A relação da fé cristã com a razão, a política e a cultura se compreende melhor se considerarmos tanto a metafísica da substância dos antigos quanto a metafísica do sujeito dos modernos. A filosofia clássica nos ensinou com os transcendentais do ser, que, além de ser uno, é simultaneamente verdadeiro, bom e belo. A filosofia moderna, com o pensamento transcendental de Kant, pergunta pelas faculdades que tem o sujeito para conhecer o verdadeiro, agir segundo o bem e gostar-julgar o belo. Pelas virtudes teologais, nós sabemos que o dom da fé é sempre uma fé que crê, que ama e que espera. Podemos, então, vincular a fé que crê à verdade e ao conhecimento, a fé que ama ao bom e à ação ética, e a fé que espera à beleza e ao gosto poético. A consideração da passagem desde a metafísica clássica até a redução moderna – que contrasta a fé apenas com a ciência, com o dever moral e a teleologia – nos convida a dar um novo passo que supere tanto o deserto da crítica como as tentações de voltar atrás, ao refugio pré-moderno: “Não nos encoraja a nostalgia das Atlântidas submersas, mas a esperança de uma recriação da linguagem; para além do deserto da crítica, queremos ser novamente interpelados” (RICOEUR, 1960). A fé cristã é novamente interpelada pela virada hermenêutica da razão contemporânea (GREISCH, 1993), pelo grande acontecimento de graça que significou a renovação do Concílio Vaticano II (HÜNERMANN, 2014) e pela plenitude da linguagem que se manifesta numa maior consideração da beleza e a poética em nossa situação de pluralismo cultural. Como introdução às relações entre fé e cultura desenvolveremos brevemente a terceira interpelação, que manifesta a maior consideração da beleza e da poética em nosso tempo de pluralidade cultural que a mantida por antigos e por modernos.

1.2 Uma virada para a beleza e a poética em nossa situação de pluralismo cultural

Rawls começa sua Teoria da justiça afirmando que “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais como a verdade é a primeira virtude das teorias”. As ideias de verdade e justiça presidem, respectivamente, a filosofia teórica e a filosofia prática. No entanto, neste esquema que distingue na razão o teórico do prático, que bebe da moderna crítica kantiana e segue a esteira dos clássicos  transcendentais, falta ainda a ideia do belo.

A crítica do juízo dos modernos e a ideia de beleza dos antigos parecem completar o panteão das possibilidades da condição humana. A fé cristã, que aqui relacionaremos com o saber racional, com o agir político e com o valor cultural, tem uma especial conexão com a beleza, além daquelas que tem com a verdade e a bondade. “É preciso partir da escuta das pessoas e dar razão da beleza e da verdade de uma abertura incondicional à vida” (Relatio Synodi, 2014). É conveniente esboçar um mapa para nos orientar no vasto território onde estas relações se situam hoje.

Verdade, bondade e beleza, os transcendentais do ser, são reformulados com as três perguntas – que podemos conhecer?, que devemos fazer? que é possível esperar? – que Kant responde com as três críticas. Verdade e justiça claramente têm a ver com as duas primeiras. A beleza merece uma breve explicação. Na crítica do juízo, a faculdade de julgar, já não determinante, mas reflexiva, vê no princípio teleológico a possibilidade da ordem, da totalidade e do sentido na experiência estética e na organização da vida. O próprio Kant vincula a faculdade do julgamento reflexivo com a filosofia da cultura e Cassirer fez considerações notáveis a esse respeito. Podemos, portanto, colocar sob o patrocínio desses três princípios (a razão teórica, a razão prática e a faculdade de julgar), destas três dimensões (do saber, da ética e da poética), dos três transcendentais, as questões referidas à  razão, à política e à cultura, que queremos vincular à fé cristã.

Estimamos, ainda, que estas relações são enriquecidas quando vinculadas ao conjunto de virtudes teológicas. Dado que, como acabamos de mencionar, o dom da fé é sempre uma fé que crê, ama e espera, podemos apoiar a hipótese que cada virtude teologal tem um vínculo mais forte com algum dos três transcendentais do ser: a fé com a verdade, o amor com o bem e a esperança com a beleza. Mas, além de perceber as relações da fé com esses três tópicos – razão, política e cultura – nos interessa particularmente destacar a dimensão que o pensamento moderno tinha deixado na sombra. Não é por acaso que esta redescoberta da beleza e da poética ocorre no momento em que as reduções modernas, que têm favorecido a unidade abstrata e uma razão sem atributos, perdem terreno para a valorização da diferença e do pluralismo cultural. Felizmente na teologia contemporânea, também podemos encontrar esse maior apreço pela estética. Assim, a trilogia de Hans Urs von Balthasar foi capaz de favorecer como ponto de partida uma estética teológica que depois será continuada com uma teopragmática e uma teológica. Sua notável iniciativa nos ensinou que o dom de Deus se manifesta como belo, ele é dado como bom e é dito como verdadeiro. Jon Sobrino também entende a teologia como intellectus amoris, que implica um intellectus justitiae e um intellectus gratiae, que deve se relacionar com um intellectus spei, para poder ser realmente intellectus fidei (SOBRINO, 1992). São esforços teológicos em sintonia com o Concílio Vaticano II, na tentativa de passar de uma Igreja europeia ocidental para uma igreja que, pela primeira vez, se autocompreende como mundial e em diálogo com todas as culturas.

2 Fé e cultura

2.1 Evangelização da cultura e inculturação da fé

A fé não pode buscar a inteligência e a justiça se não se encarna nas diferentes culturas. Às expressões “a fé na inteligência” e “o evangelho no tempo”, se deveria adicionar a raiz de ambas, que Chenu recorda: “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). O “Verbo encarnado” pode ser uma expressão propícia para indicar as relações da fé com a cultura, que busca uma cultura evangelizada e uma fé inculturada.

A preocupação com a evangelização da cultura e a inculturação da fé teve uma série de marcos doutrinários importantes desde o Vaticano II até hoje. Nesse Concílio há vestígios da virada que significa compreender a cultura, já não só na sua definição tradicional clássica (criação elevada do espírito humano manifesta no saber filosófico humanista, no direito, nas artes – e que é muito típica das elites mais refinadas), mas, graças às contribuições das ciências sociais e humanas, como um modo de viver, habitar e cultivar que têm os diferentes povos ou sociedades. A valorização positiva da diversidade cultural rompe com o eurocentrismo que, considerando o restante como bárbaros e não cultos, impõe as aspirações e os padrões normativos de uma cultura hegemônica que se considera universal. Pelo contrário, hoje podemos definir a cultura como tudo o que o homem e a mulher vêm “cultivando”, o que vêm semeando, colhendo, produzindo. De acordo com a UNESCO, a cultura é entendida como o modo de convivência.

Apesar das ambiguidades que ainda se encontram na Gaudium et Spes, no longo capítulo intitulado “A conveniente promoção do progresso cultural”, que fala de cultura de modo equivalente a “mundo”, ambos designam “o objeto elementar ao qual está referida a Igreja. Cultura, como mundo, é o polo em referência ao qual se define o próprio ser ad extra da Igreja” (NOEMI, 1990, p.12). Esta eclesiologia que faz uso da noção de cultura para falar da sua relação com o mundo contemporâneo, que também está na LG e AG, só se desenvolverá fortemente com a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, fruto posterior do sínodo de 1974 dedicado à Evangelização. Como a Assembleia não conseguiu produzir um documento de consenso, a tarefa foi confiada a Paulo VI. A virada delineada no Concílio, reconhecendo o pluralismo cultural, atingiu, aqui, uma orientação decisiva: “A ruptura entre Evangelho e cultura é, sem dúvida, o drama do nosso tempo, como foi também no passado. Por isso, devemos fazer todos os esforços para garantir uma generosa evangelização da cultura, ou, mais corretamente, das culturas” (EN n.20).

Os destinatários da evangelização ainda são as pessoas, mas agora também as culturas, porque devemos “alcançar e transformar, com a força do Evangelho, os critérios da justiça, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade”, porque não importa evangelizar superficialmente, “mas de uma maneira vital, em profundidade e isto até as suas próprias raízes, a civilização e as culturas do homem” (EN n.18-20). Neste processo, cada igreja particular tem uma função tripla: “assimilar o essencial da mensagem do Evangelho”, “transpô-la sem a menor traição (…) para a linguagem que essas pessoas entendem, (…) e proclamá-la nessa mesma linguagem” (EN n.63). Para alguns, essa teologia de uma Igreja multicultural não foi superada por qualquer outro documento oficial, e seria o melhor que temos sobre o assunto. João Paulo II, que como cardeal participou decisivamente na sua redação, considerou desde o início do seu pontificado que “o diálogo da Igreja com as culturas do nosso tempo é o terreno vital onde se joga o destino do mundo no final deste século XX”. Duas contribuições são dignas de consideração. A primeira é o uso do termo “inculturação” já na precoce Catechesi Tradendae de 1979, retomada na encíclica Slavorum Apostoli, em 1985: “A inculturação é a encarnação do Evangelho nas culturas nativas e a introdução destas culturas na vida da Igreja” (n.21). Francisco confirmou recentemente esta ideia na Evangelii Gaudium, afirmando que “é imperativa a necessidade de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho” (n.69). A segunda é o seu constante apelo pastoral para uma “nova evangelização”. Este repetido slogan papal foi proclamado pela primeira vez no Haiti em 1983, desenvolvido na Redemptoris Missio, em 1990, e acolhido em Santo Domingo, em 1992. “Em nome das nossas Igrejas particulares da América Latina e do Caribe nos comprometemos a: 1. uma Nova Evangelização dos nossos povos; 2. uma promoção integral dos povos latino-americanos e caribenhos; 3. uma evangelização inculturada” (SANTO DOMINGO, Conclusões).

Além do debate sobre os êxitos e os limites da primeira evangelização (BOFF, 1991), alguns argumentam que esta “nova evangelização” já estava acontecendo na AL, antes do chamado que o Papa dirigiu à Igreja universal. “Não é apenas um projeto para o futuro. É uma realidade em curso a partir dos anos 60. Seu maior símbolo é Medellín, ampliado e aprofundado em Puebla, mas o processo começa com o Vaticano II, passando pela (…) Evangelii Nuntiandi” (ROLFES, 1992, p.16). Um processo no qual “surgiram novas formas de viver o Evangelho na Igreja (CEBs), novos métodos de evangelização (a partir da opção preferencial pelos pobres), novas expressões litúrgicas e de reflexão da fé (teologia da libertação )” (VERDUGO, 2003, p.28).

Na América Latina, essa preocupação da EN pela evangelização da cultura foi fundamental no documento de  Puebla. As relações entre fé e cultura em Puebla, e em geral no magistério latino-americano, merecem um desenvolvimento particular com um verbete próprio nesta Enciclopédia. O mesmo seria necessário sobre a evolução e os problemas decorrentes do termo “inculturação da fé”, como sobre o movimento teológico que se autodenomina  “teologia contextual” (BEVANS, 1992),  “teologia local” (SCHREITER, 1993), ou “teologia da inculturação” (SHORTER), teologias que insistem que a teologia deve ser sempre contextual, local ou inculturada.

2.2 A Palavra encarnada: a dialética entre a verdade imutável e sua expressão cultural

Contudo, a maior mudança que o magistério e a teologia pós-conciliar propiciam não está em  uma nova compreensão do que são as culturas. A maior diferença é teológica e tem a ver com a questão decisiva que orienta nossa indagação: a historicidade da fé e do Evangelho. Vale a pena voltar a ouvir as conhecidas palavras de João XXIII ao inaugurar o Concílio:

É necessário que esta doutrina, verdadeira e imutável, que deve ser fielmente obedecida, seja aprofundada e exposta de acordo com as necessidades de nosso tempo. Na verdade, uma coisa é o depósito da fé, isto é, as verdades que contém nossa venerável doutrina, e outra diferente é a maneira como são enunciadas estas verdades, preservando, no entanto, o mesmo sentido e significado (GME, 1962).

A distinção papal entre “a verdade imutável” e “o modo como são enunciadas estas verdades” lembra o ditado clássico sobre as afirmações dogmáticas que “não terminam no enunciado, mas na coisa” e a distinção, também clássica, do filósofo Gottlob Frege, entre sentido e referência (Sinn und Bedeutung), que influenciou tanto a fenomenologia de Husserl, quanto a filosofia da linguagem de Wittgenstein: uma coisa é aquilo a qual me refiro e outra é o modo de dizê-la. O referencial da Escritura, o dogma, a verdade imutável, é o próprio Deus que se autocomunica pelo Espírito no seu único Filho, Jesus Cristo, o Senhor: “O único sujeito que nos foi dado” – diz Bento XVI, precisamente comentando as palavras inaugurais do Concílio. Propõe  distinguir entre “as formas concretas que dependem da situação histórica e, portanto, estão sujeitas a alterações” e “os princípios [que] expressam o aspecto duradouro, permanecendo no fundo e motivando a decisão de dentro” (BENTO XVI, 2005 ). A distinção permite-lhe explicar as mudanças que o Concílio promoveu, que parecem estar em descontinuidade com uma parte da tradição.

Assim, as decisões substantivas podem permanecer válidas enquanto as formas da sua aplicação a novos contextos podem mudar (…) O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno, revisou ou mesmo corrigiu algumas decisões históricas, mas nesta aparente descontinuidade manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade (BENTO XVI, 2005).

A distinção entre a verdade que permanece e sua expressão contingente, ou entre “os princípios” duradouros e substanciais e “as formas concretas”, é fundamental para compreender –para distinguir e vincular – o Evangelho e a maneira como as diferentes culturas o vivem e expressam. No entanto, esta distinção entre o imutável e permanente (da verdade e os princípios), por um lado,  e o contingente e mutável (da expressão e as formas concretas), por outro, pode deixar de ser uma simples oposição e passar a articular-se dialeticamente graças ao novo horizonte da historicidade, tanto da fé quanto da cultura. Para esta finalidade, filosoficamente, ajuda colocar no mesmo nível a verdade e a beleza, como momentos segundos em referência a um momento primeiro, que Ricoeur chamou de função meta (1995). Do mesmo modo, em teologia, podemos colocar no mesmo nível a verdade e sua expressão, distinguindo-a da experiência primeira de comunicação de Deus com o dom da fé. É o que fazemos, ligando o Evangelho primeiramente a Deus e as culturas com suas verdades e expressões ao ser humano. São estas distinções e ligações que são esclarecidas neste novo horizonte do pensamento contemporâneo e na renovação teológica que implica pensar a historicidade do Evangelho e da fé.

2.3 Toda cultura é “ad-evangelho” e todo Evangelho é transcultural

É preciso, primeiro, reconhecer a distinção fundamental entre Evangelho e cultura para, em seguida, verificar suas ligações e mediações. Juan Noemi (1990, p.11-24) nos diz que “a raiz da diversidade é estabelecida no nível dos diferentes sujeitos”: enquanto a cultura é o cultivo do mundo “operado pelo humano”, o Evangelho é o bom anúncio “operado radicalmente  por Deus” (p.13). Esta referência radical do Evangelho a Deus – de “Deus, sujeito do Evangelho” – é uma verdade que se resume a uma condição implícita quando se insiste “sobre o papel que cabe aos sujeitos instrumentais e secundários no anúncio evangélico” (p.13). Uma insistência que pode fazer esmaecer o fato de que também Deus “é o objeto próprio do Evangelho”. Mas esta diversidade radical entre Evangelho e cultura, relacionada à diversidade de sujeitos que operam, é básica, mas não “ab-soluta”. Se Deus “falou-nos no Filho” (Heb 1,2-3), Jesus é o meio pelo qual Deus nos fala. Este é o ponto de partida da EN: “O próprio Jesus, Evangelho de Deus, foi o primeiro e o maior dos evangelizadores” (EN n.7). A eclesialidade constitui um momento posterior. “A realidade de Deus como sujeito do Evangelho é mediada por Jesus e pela Igreja” (NOEMI, 1990, p.15).

Um processo inverso ocorre com o outro polo, em que o ser humano é o sujeito próprio da cultura. A verdade é que o desenvolvimento do ser humano no mundo não se dá separado de Deus. A cultura é do humano e o humano é de Deus. Não se dá uma antinomia, pois o mandato para cultivar o jardim é feito através da capacidade autônoma que o mesmo Deus deu ao ser humano na criação. “Nem Deus é sujeito absoluto do Evangelho, nem o homem da cultura. O evangelho acontece através do homem Jesus e dos homens que constituem a Igreja. A cultura do homem acontece como força de Deus inscrita na condição de criatura do homem” (NOEMI, 1990, p.15). Descartando que a diferença seja oposição (que o Evangelho seja “a-cultural” e que a cultura seja “a-evangélica”), Noemi conclui que o “Evangelho se  diferencia da cultura como transcultura e a cultura se diferencia do Evangelho como ‘ad-evangelho’, isto  é, como algo que tende ao Evangelho” (p.17). Evangelho como transcultura “significa que a expressão de Deus, ao ser dada por Jesus e sua Igreja, assume elementos culturais, mas não se dissolve neles,  mas os ultrapassa” (NOEMI, 1990, p.16).

Assim, Jesus de Nazaré assumiu e atuou na cultura judaica de seu tempo. Também a Igreja ao longo de sua história tem assumido e atuado nas várias culturas em que se encarnou. Nenhuma delas é indiferente ao Evangelho, mas encarnações sucessivas e, no cenário atual do pluralismo cultural, encarnações simultâneas. Tanto a crítica à denominada helenização do Cristianismo, que considera uma depravação do Evangelho sua passagem do judaísmo ao helenismo, como as nostalgias pela cultura ocidental cristã, seja a cristandade medieval ou outra, além de românticas são idólatras, pois absolutizam uma cultura determinada.

Essa absolutização envolve a não aceitação dos “círculos hermenêuticos inerentes para a constituição escriturística da fé judaica e cristã” (RICOEUR,1994, p.268). É conveniente que reparemos nesses círculos constituintes, pois mostram com nítida clareza o caráter histórico do Evangelho: 1) o círculo entre Palavra e Escritura (por um lado o próprio Jesus interpreta a escritura de Israel e a aplica para si mesmo, por outro lado, a comunidade apostólica, reconhecendo-o como a Palavra de Deus definitiva, dá origem a uma segunda escritura); 2) o círculo entre a Palavra e a Escritura, juntas, e a comunidade eclesial (a Bíblia é o espelho no qual a igreja se reconhece e ao interpretá-la gera uma tradição teológica e magisterial que permite compreender-se a si mesma); 3) o círculo existencial em que cada crente é confrontado com a pregação eclesial que o desafia a compreender a sua vida a partir da revelação de uma Palavra, que vem através da Escritura e da tradição, e a apropriar-se dela na fé. Em cada um desses três círculos, a Palavra de Deus está frente a outro (a marca das escrituras, a comunidade confessante, cada crente), que a encarna, a intermedia e a amplia. Uma ampliação que inclui tanto a cultura com a qual se escreve a Escritura como a cultura da qual participa a comunidade confessante e cada crente que a interpreta. Temos aqui a tensão clássica entre Escritura e tradição. Por um lado, é preciso “proclamar a primazia das Escrituras sobre a tradição” e acolher a posição dos reformadores da Sola scriptura! (o que significa que ela tem a capacidade de interpretar a si mesma). Por outro lado, “é preciso confessar que uma Escritura virgem de toda interpretação é, estritamente falando, não detectável” (RICOEUR,1994, p.269). Evitando “a oposição entre a fidelidade ao texto original e a criatividade própria da história da interpretação” (RICOEUR,1994, p.269), a tradição não será a simples transmissão de um depósito imutável, mas a continua novidade de uma interpretação sem a qual a letra permaneceria morta. Assim Gregório Magno pode dizer que “a Escritura cresce com aqueles quem a leem”. É mais um importante ensino para a hermenêutica contemporânea: o texto está sempre disponível para que, em cada momento da história, a comunidade crente dele se  aproprie e, ao interpretá-lo, o atualize e amplie com a cultura de seu tempo.

No processo de formação da tradição é muito considerável o segmento representado pelos empréstimos das culturas adjacentes. As próprias Escrituras judaicas nasceram com a incorporação de conjuntos milenares vindos do Egito, da Mesopotâmia, da Pérsia e do encontro com o helenismo, que inicia “o longo diálogo entre Jerusalém e Atenas, do qual somos os herdeiros, seja aceitando-o  ou rejeitando-o” (RICOEUR,1994, p.269). A helenização do judaísmo ou a cristianização do helenismo não foi uma contaminação lamentável, mas um destino histórico que continuou com a incorporação de Aristóteles na Idade Média e, depois, de “Descartes e outros cartesianos, de Kant e de todo o idealismo alemão, sem esquecer os pós-hegelianos judeus do início do século XX, de Hermann Cohen a Mendelsohn  e Rosenzweig” ( RICOEUR,1994, p.270).

A transcendência do evangelho em relação à cultura não significa um docetismo cultural, em “que a cultura constitua uma aparência irrelevante, uma casca insignificante na qual se dá Evangelho” (NOEMI, 1990, p.16). O transcultural envolve um momento “in-cultural”. O momento “in-cultural” do Evangelho não deriva da mera impossibilidade que o Evangelho seja dado sem a mediação cultural. É positivamente baseado no fato de ser anúncio de Deus que se dirige ao ser humano e não a outro além deste. “A partir da transformação que produz a aceitação do Evangelho nenhuma atividade humana está isenta; nada do que é próprio do mundo” (NOEMI, 1990, p.17). O Evangelho estabelece uma transformação radical do sujeito da cultura; do homem tornado “nova criatura”. A novidade evangélica não o desenraiza deste mundo, não o dispensa de sua mundanidade. Ela oferece um novo horizonte às perspectivas humanas, sem excluir a tarefa temporária que corresponde a cada ser humano.

Cultura como “ad-evangelho” não significa negar a sua autonomia. Portanto, o desenvolvimento da cultura, que depende da capacidade que o ser humano tem de agir no mundo, não significa propriamente uma maior proximidade com o Evangelho. Temos como resultado uma consequência positiva e outra negativa.

Negativamente:

a ação mundana operada pelo homem não é equivalente à realização do homem (…) a inadequação entre o homem e a cultura reside na incapacidade permanente, crônica, do homem autoobjetivar-se univocamente, reside na realidade do pecado, que coloca toda a realização humana sob o signo da ambiguidade. É por isso que a cultura como objetivação autônoma do homem sempre envolve alienação. O homem que identifica sua realização com a objetivação, da qual é capaz autonomamente, termina sempre  alienado de si mesmo, porque busca completar-se na obra que  nunca o finaliza a si próprio (NOEMI, 1990, p.18-19).

 Ele tenta viver do fruto das suas mãos, do resultado das suas ações, pretende se justificar pelas suas obras.

Positivamente: “O ser humano não é definido como pecador, mas como uma criatura e orientada para Deus” (NOEMI, 1990, p.19). A aversão a Deus tem uma situação antecedente que é de conversão a Deus.

O ser para Deus, do homem, ficou alterado, desordenado, mas não foi aniquilado pelo pecado (…) A desordem não suprime a orientação radical do homem para Deus, nem concebe como alternativa uma conversão a Ele, independentemente da ordem criacional (…) A graça do Redenção possibilita que esta orientação para Deus não seja uma “paixão inútil” do homem; ela, no entanto, não isenta nem libera da inserção na ordem criacional ( NOEMI, 1990, p.19).

 A cultura é, portanto, um caminho inevitável na realização do ser para Deus do humano. O motivo é novamente o mesmo que explicava as relações da fé com a razão e com a política: “O  plano de salvação de Deus expresso no Evangelho não reduz ou suprime o desígnio inscrito em toda a criação” (NOEMI, 1990, p.20). Esta vinculação entre  criação e salvação, entre encarnação e cruz, faz com que a fé, ao mesmo tempo que não se identifique com alguma cultura, nunca esteja desvinculada, mas sempre encarnada em uma determinada cultura. A encarnação e a cruz também apontam a necessidade tanto de assumir e apropriar-se de aspectos da cultura quanto de enfrentar e padecer as contradições de sua própria cultura. Portanto, a fé se dará sempre de forma condicionada por uma forma de ser, que incentiva certos valores, que se expressa em algumas imagens, que encoraja certos comportamentos, que se sabe depositária de uma história. Algumas destas determinações são partes irrenunciáveis da Tradição e outras pertencem a determinadas tradições. Em cada momento histórico e cultural, é necessário discernir se esses costumes e linguagens, adequados para outros tempos, continuam sendo pertinentes para a cultura atual. Como dissemos na seção dedicada à fé e à razão, é fundamental distinguir entre o “verdadeiro escândalo” (o de Jesus, o da cruz) e o “falso escândalo” (formas e usos próprios de outros tempos, adequados para o passado, mas que no presente podem estar  sufocando o Evangelho).

A partir do exposto, podemos tirar algumas conclusões sobre o momento positivo e negativo dessa complexa  relação, em que há sempre um momento de  crítica e um momento de acolhida da cultura pelo Evangelho. Se a fé e o Evangelho negam e afirmam a cultura, será sempre necessário um discernimento capaz de distinguir entre diferentes culturas e reconhecer os aspectos que devem ser assumidos e os que devem ser criticados. Um discernimento que não  fazemos aqui, mas que uma teologia dos sinais dos tempos, como a nova teologia da história, precisa realizar (uma tarefa pendente e que deverá ser objeto de outro verbete nesta Enciclopédia). Por agora, terminemos com algumas conclusões a respeito do momento positivo e negativo dessa complexa relação que, embora tenha semelhanças óbvias com o que foi dito sobre a relação entre fé e razão, avançam mais decisivamente no que diz respeito às contribuições que o Evangelho é chamado a dar a cada cultura.

Em primeiro lugar, a diferença entre ambas não é uma simples oposição, nem uma mera contradição. A diferença do Evangelho envolve um sim e um não dialéticos sobre a cultura, que implica uma superação da cultura. Por um lado, “Evangelho é a negação da cultura, uma vez que nega a possibilidade da cultura como realização total do homem” (NOEMI, 1990, p.21). Não é uma negação indiscriminada de cultura, mas uma crítica a ela, como determinação dos limites que pode representar para o ser humano. Por outro lado, “Evangelho é a afirmação da cultura, uma vez que nega a possibilidade de uma realização do ser humano dissociada e alheia à ordem criacional” (NOEMI, 1990, p.21). Nem a negação nem a afirmação são  feitas em referência a um padrão ou modelo de cultura evangélica definível, nem relativas a um ideal abstrato que possa ser deduzido do anúncio evangélico.

Portanto, em segundo lugar, a “evangelização da cultura não é uma tentativa de impor um ideal cultural particular” (NOEMI, 1990, p.21). A cultura será negada ou afirmada na medida em que permita a realização do ser humano como ser orientado para Deus (estabelecido na criação, desordenado pelo pecado e possibilitado na sua atualização pela graça). O Evangelho é a negação ou a afirmação da cultura, se ela se fecha (impossibilitando) ou se abre (não impedindo) para um horizonte específico de liberdade.  Afirmação condicional porque permite a realização humana que transcende toda cultura e permanece aberta ao dom de Deus. Negação determinada da cultura porque é “negação daquilo que, em uma cultura, fecha e restringe um horizonte e um exercício concreto de liberdade” (NOEMI, 1990, p.22).

Em terceiro lugar, uma vez que a atualização do ser para Deus não ocorre à margem, mas na ação no mundo, o Evangelho, que possibilita essa orientação para Deus, tem uma função libertária na vida cultural. “Que o Evangelho seja garantia da liberdade do ser humano (…) não é uma concessão à consciência moderna pós-iluminista. A liberdade não é baseada em um a priori abstrato de autonomia, mas na orientação positiva e concreta do ser humano para Deus” (NOEMI, 1990, p.23). Ser para Deus é o que define radicalmente o humano segundo o Evangelho. A liberdade que o Evangelho garante não é a proclamação abstrata de um valor, nem um campo de escolhas possíveis, mas o resguardo de um horizonte definitivo de liberdade. É garantia absoluta (se baseia em Deus como destino e fim insubstituível) e concreta (denuncia tudo o que se opõe à busca desse propósito).

Finalmente, e em quarto lugar, “a cultura enquanto uma operação humana está sujeita a uma ambiguidade radical” (NOEMI, 1990, p.23). Toda cultura tende a esconder a sua ambiguidade (todas apelam a um ideal de humanidade) e isto constitui a falácia da cultura. “A falácia da cultura tem sua condição de possibilidade e não é senão uma manifestação do demônio, isto é, do mal que se objetiva como uma eficiência hipócrita e poderosa” (NOEMI, 1990, p.24). Sob o pretexto de ser um veículo de liberdade, envolve um mecanismo de destruição da liberdade. Quando a cultura é absolutizada e se torna um  “objeto objetivador” e alienante do ser humano, há um “demonismo cultural” (NOEMI, 1975, p.167-212). Portanto, a crítica evangélica da cultura não se reduz a um discurso  moralizante nem a meras exortações parenéticas. A denúncia profética do que há de pecado em uma cultura, de dominações políticas de um Estado, ou de patologias da razão em nosso mundo, se é evangélica vem sempre acompanhada por um anúncio de esperança, forçado a discernir as possibilidades de “teonomia” cultural que ali se manifestam. A “teonomia”, longe de ser uma heteronomia, é verdadeira autonomia, garantia de libertação,  enquanto impede que a liberdade se feche. O Evangelho de Jesus Cristo, que nos abre por meio da fé, a esperança e o amor ao Reino de Deus, nos liberta de fechamento e de toda escravidão, seja cultural, política ou racional.

 Eduardo Silva S.J. Universidade Católica de Chile e Universidade Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol

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Religião cristã do povo

Sumário

1 Heterogeneidade e transformação

2 O cristão na população

3 Discernimento bíblico e teológico

4 Fé e energia teológica do povo

5 Referências bibliográficas

Nas Américas se constatam crenças plurais, festivais, éticas e processos simbólicos. Ao discernir cada realidade devemos nos afastar de dicotomias (verdade/mentira, bom/mau etc.). Cada terminologia possui marcos teóricos e implicações na ação:  cristianismo,  catolicidade, fé e religião, espiritualidade, crença de elite, devoção multitudinária. O conceito de religião se refere mais a instituições. A espiritualidade é atribuída mais a movimentos eclesiais e também a vivências mais ou menos autônomas.

Trata-se, pois, de realidades heterogêneas e complexas, nas quais se desenvolvem identidades, conflitos e aspirações. São experiências que trazem o sensus fidelium e carismas do povo de Deus (cf. LG n.12). Com cordial admiração, e também de modo crítico e interdisciplinar, é preciso desvendar processos crentes na população latino-americana. Cada ciência tem suas formas de compreender a religião. As teologias tendem a distinguir a religião humana da fé que responde à Revelação. Em 1979, os bispos em Puebla indicaram que a religiosidade não é apenas “objeto da evangelização, mas na medida em que contém a Palavra de Deus encarnada” (n.450) o povo evangeliza-se a si mesmo; em 2007, em Aparecida, nossos bispos advertiram que, se ela fosse desvalorizada “seria como esquecer o primado da ação do Espírito e a iniciativa gratuita do amor de Deus” (n.263).

As vivências da população latino-americana e caribenha manifestam o protagonismo dos leigos, das mulheres, das pessoas simples. Elas também mostram inculturações da fé, da sua interculturalidade, de autogestão  teológica, de acentuação carismática. Os atuais comportamentos e imaginários socioespirituais provêm de várias matrizes (do âmbito mestiço, urbano e rural, indígena, afro, migrante e outros) e de processos de transformação. Quando o trabalho teológico dialoga com as contribuições da ciência, reconhece traços (de caráter regional e étnico, etário,  feminino/masculino, sociopolítico, emocional, estético, confessional e outros) que condicionam o que é denominado religião.

No entanto, muitas vezes estas realidades são tratadas de forma instrumental (por grupos abastados, pelo clero, por pessoas fanáticas, associações leigas), seja para idealizá-las ou para desacreditá-las ou para sustentar planos econômico-culturais, clericais, políticos, nacionalistas. Em meio a essas tensões, o genuinamente cristão que está enraizado no Evangelho pode ser revelado (ou ocultado).

O cenário é multifacetado e transcendente:

a religião além de se manifestar em uma multiplicidade de vozes que a narram a partir da experiência e outras muitas que a estudam em momentos e culturas diferentes… se reflete em em uma variedade de linguagens que tentam, por vezes, comunicar a incomunicabilidade da experiência recorrendo ao símbolo, ao mito, ao rito, à doutrina (…) (VELASCO & BAZAN, 2012, p.11).

Nas regiões cristianizadas, a variedade de crenças e ritos (e suas transformações) interpelam o trabalho teológico e eclesial. São possíveis leituras interdisciplinares, e um papel específico da teologia em que não se excluem paradoxos nem perguntas abertas. O simbólico, bem como o seu ambiente material e social, tem um selo polissêmico que supera a explicação unidimensional. A fidelidade ao Evangelho implica ver quando o religioso é menos ou mais humanizador e, finalmente, ver em que medida há continuidade ou descontinuidade com a revelação divina. Cabe, então, um discernimento comunitário de mediações religiosas e de formas de fé, um discernimento à luz do amor primordial a Deus e ao próximo.

Por exemplo, podem ser examinados testemunhos durante festas católicas: “pedimos uma bênção à Virgem, então vivemos tranquilos, sem problemas … eu poderia perder qualquer coisa, menos a minha  fé … se queremos nos desenvolver, que haja espírito coletivo de povo” (IRARRÁZAVAL, 1998, p.165-6). Ao superar problemas e aspirar um crescimento, a fé do povo tem padrões culturais e religiosos que merecem se confrontar com o evangelho solidário e escatológico. O critério bíblico principal é o desenvolvimento do amor (e não a superioridade de uma ou outra religião ou forma de crer).

1 Heterogeneidade e transformação

Existem estatísticas sobre a maioria católica (embora esteja diminuindo), o aumento dos evangélicos/pentecostais no século 20, os 10 a 20% de pessoas sem religião – que acreditam em Deus mas não estão associadas a uma religião ou igreja –, as atitudes pós-secularistas e consolidação de espiritualidades (1). Existem diferenças significativas dentro do catolicismo e entre as denominações cristãs. É também heterogênea a adesão a Deus, a representação de Cristo, a devoção a santos e a crença em milagres, a oração pessoal (principalmente fora dos serviços oficiais), e as inculturações a respeito da Virgem Maria (Guadalupe e milhares de cultos locais) .

Tudo isto suscita diferentes interpretações: a reconfiguração do sagrado; o consumo de bens religiosos de modo privado: “no interior das Igrejas a religião se individualiza, vale cada vez mais a experiência e não a crença instituída” (BENEDETTI, 1998, p.31); a cultura plural latino-americana tem como núcleo “o humanismo católico popular” (GALLI, 2014, p.62.); diversificação de opções de crenças e espectro de fundamentalismos (característicos da modernidade); reencantamento com Jesus e sua Igreja. A interpretação essencialista (“síntese mista” ou “matriz católica”) não percebe numerosas fases e correntes de inculturação da fé.

A dinâmica religiosa (de cada setor do povo e das elites) é mutável e ambivalente. O conjunto de formas de ética, mito, rito, associação crente, são relativamente autônomas do cristianismo de origem do Atlântico Norte. Além disso, em todo o mundo se desenvolvem o marketing e o espetáculo neossagrado (ondas de evangelismo, culto a ídolos na música e no esporte etc). E, embora o “capitalismo funcione como uma religião poderosa, [ele] não é capaz da verdadeira transcendência” (SILVA MOREIRA, 2012, p.44). De modo geral, hoje predominam a absolutização do indivíduo e o marketing da religião. Nas Américas, as religiosidades interagem, há ondas de sincretismo e aumentam as correntes de caráter carismático.

Assim, nestes terrenos complexos, a responsabilidade eclesial é assumida de várias maneiras. É reconhecida a ambivalência e até mesmo a violência dentro do sagrado. Alguns tentam restaurar e renovar tradições, muitos contribuem para modernizar o cristianismo. Outros setores, hoje, impulsionam um discipulado missionário, com opção por pessoas marginalizadas. É visível e reconhecida a obra de Deus na comunidade eclesial, que tem abandonado atitudes intolerantes. A fé cristã “reconhece que a ação do Espírito é captada e deixa vestígios nas outras religiões, que de modo algum se reduzem ao âmbito restrito de uma análise fenomenológica” (FRANÇA MIRANDA, 1998, p.98). Uma vez que ninguém é dono da transcendência, em diversas pegadas humanas são encontrados traços de Deus.

2 O cristão na população

No senso comum, se vê a imagem do cristão aquele que trata bem os outros (e em segundo plano se situam os parâmetros sagrados). No que diz respeito à religião popular, o Episcopado Latino-Americano (2) difunde elogios e críticas ponderadas. Medellín sublinhou virtudes e carências; Puebla indica a necessidade de reevangelizar e purificá-la; Santo Domingo trata das culturas indígenas, afros e  mestiças; Aparecida destaca lugares de encontro com Jesus Cristo apontando, entre eles, a piedade do povo e a necessidade de “ser amigos dos pobres e solidários com o seu destino” (DAp n.257). A fé em Deus, Cristo e Sua Mãe e as expressões católicas são apreciadas de várias maneiras. No entanto, em muitos lugares, o potencial evangelizador do povo está subordinado à intervenção pastoral (e ao seguimento dos ensinamentos oficiais).

Após o evento de Aparecida, sobressai o discipulado missionário de todo o povo de Deus (e novamente se abrem portas à piedade popular). “A mística popular, acolhe, ao seu modo, o Evangelho inteiro, e o encarna em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta, de celebração” (EG n.237); trata-se da alegria do Evangelho.

Ainda que muitos entendam que a religião é uma instituição do passado, o fato é que as crenças e práticas mudam constantemente. Há mudanças no cristianismo moderno, de cidadãos  racionais e pluralistas que, por exemplo, não são submissos à moral e ao culto católico. A fé é vivida de acordo com o bem-estar pós-moderno (em devoções com soluções imediatas e ritos de caráter terapêutico). Além disso, os simbolismos persistem e são transformados (no Natal e na Semana Santa, nas celebrações religiosas, em vínculos com os mortos e com  numerosos seres sagrados). Se reconfiguram identidades e associações com traços cristãos.

Como se entende o cristão? Costumava-se privilegiar doutrinas e normas (isso hoje enfrenta resistência por grande parte das novas gerações). Um olhar  histórico mostra dimensões sociopolíticas e o pluralismo cristão. De uma maneira filosófica, sublinhou-se a identidade e o sentido de ser cristão. As contribuições de várias ciências (com seus quadros teóricos, metodologias e hermenêuticas) são utilizadas pela teologia e pela ação eclesial. Isso permite superar posições monoculturais e desafiar o proselitismo fundamentalista.

Na América Latina e no Caribe, diversas correntes teológicas têm estado atentas à religião do povo, seja através da leitura cultural, seja através da liberal ou da pastoral (cf. RIBEIRO, 1984, p.224-5). Aos esforços científicos, juntou-se a compreensão teológica dos sinais dos tempos e perscrutar o sensus fidelium  para entender espiritualidades concretas da  população.

Uma chave para a interpretação é notar que a fé cristã torna-se religião através do católico em sentido amplo. “O ‘catolicismo’… mais que outras estruturas no interior do cristianismo, pretende articular uma ‘religião’ vivenciada pela ‘fé’, uma ‘fé’ que existe em forma de ‘religião’” (SANCHIS, 209, p.189). Nas Américas, a fé pluralmente religiosa também é profundamente comunitária (em contraste com a globalizada privatização e o marketing de símbolos). Por um lado, sobressai a catolicidade inculturada, intrarreligiosa e plural; por outro lado são incipientes o ecumenismo e o diálogo entre religiões e com a indiferença. Os esforços a favor da justiça e a vida (e não apenas através de textos e boas intenções) poderiam transformar os latino-americanos de acordo com o Espírito presente em todo o universo.

3 Discernimento bíblico e teológico

Quais elementos proporcionam um bom discernimento ao aspecto religioso? Deve ser entendido à luz da palavra de Deus e da ação atualizada do Espírito, e devemos voltar às orientações eclesiais (especialmente as do Vaticano  II, as diretrizes dadas pelos bispos latino-americanos, as iniciativas locais). Também é preciso sintonizar com o sensus fidelium e a sabedoria dos povos empobrecidos e sábios, e permitir que o trabalho científico interdisciplinar acompanhe o pensamento com fé-esperança-amor. Não é um trabalho unidimensional, nem funcional para uma instituição. É uma tarefa complicada e sempre aberta para novas questões e buscas.

A religião é confrontada com a prática de Jesus e com o movimento do Espírito. Jesus compartilhou a espiritualidade dos pobres de seu tempo (incluindo orações familiares e peregrinações festivas); desafiou a violência da lei, o sábado, o templo, os funcionários da religião; desmascarou o orgulho piedoso dos que “não são como os outros” (Lc 18,11) e os mestres da lei que “para dissimular [roubos], fazem  longas orações” (Mc 12,38) e ele alegrou-se de como os pequeninos e não os sábios recebiam a revelação (Lc 10 Mt 11). Em outras palavras, a salvação vem de misericórdia de Deus e da solidariedade humana.

Qualquer religião é ambivalente e cheia de armadilhas. Por isso é preciso confrontá-la com o primado do amor (cf. Mt 12, Lc 10: 1 Cor 13) e, especialmente, com a aliança incondicional de Deus com o povo pobre, com quem sofre e anseia viver. Em cada crença e rito é possível perguntar: são mediações concretas nas quais hoje se manifesta o reinado amoroso de Deus e as bem-aventuranças do pobre (Mt 5, Lcs 6)? Existe uma relação filial com o Abba de Jesus e sua comunidade (Lc 11 Mt 6) e é solidário e eficaz o encontro com Cristo presente nos marginalizados (Mt 25)?

No que diz respeito à reflexão latino-americana, ela oferece critérios relevantes. A teologia dos povos originários não separa o sagrado do profano, mas sim invoca e celebra poderes (como Pachamama, antepassados/as) que resolvem carências e são biocêntricos. As teologias afros resistem a qualquer humilhação, sublinham o onipresente axé ou força vital, e cultivam a simbiose com seres protetores. As teologias feministas questionam os ídolos androcêntricos, e reconhecem Deus no cotidiano. Também as eco-espiritualidades oferecem uma compreensão holística da salvação no universo. Por outro lado, a teologia mestiça e intercultural combina várias tradições religiosas, e – como outras correntes  de fé – reconhece em Maria fontes de vida sem barreiras. Isto é, de várias maneiras a reflexão (gerada nestas terras do Sul) está em sintonia com iniciativas culturais e religiosas do povo.

A assim chamada teologia do povo (desenvolvida na Colômbia, América Central, Argentina) exalta a fé popular. Por exemplo, Lucio Gera observa que “os nossos povos conservaram, em sua religiosidade popular nada menos do que a fé” (AZCUY, GALLI, GONZALEZ, 2006, p.790). Desde a sua criação, a teologia da libertação a vê com carinho e olhar crítico. Por exemplo, Gustavo Gutierrez lamenta que ela, sendo “incompreensível e desprezada pela mentalidade ilustrada e burguesa, seus representantes não se neguem, todavia, a manipulá-la para defender seus privilégios. As experiências religiosas do povo estão também carregadas de valores de protesto, de resistência e de libertação” (GUTIERREZ, 1979, p.353). Em outro texto, explica a “espiritualidade coletiva, eclesial, marcada pela religiosidade de um povo explorado e crente … que se dirige ao o Senhor com a confiança e espontaneidade da criança que fala com o pai e lhe conta a sua dor e sua esperança” (GUTIERREZ, 1983, p.46, 152).

Além disso, os desafios tecnocientíficos, comunicacionais e cibernéticos crescem com as suas implicações espirituais. O discernimento se estende a crenças e ritos seculares, à medida em que as novas gerações encontram Deus (ou lhe ignoram) através de redes virtuais e suas relações místicas. De qualquer forma, “internet cada vez mais contribui para a construção da identidade religiosa das pessoas” (SPADARO, 2014, p.29). Pode-se prever que surgirão desafios sem precedentes que nos obriguem a repensar o fator religioso.

4 Fé e energia teológica do povo

Em alguns ambientes a religião popular é considerada “mediação” da salvação e até mesmo da revelação cristã. Isto não possui base bíblica e não corresponde à experiência dos dias de hoje. Por outro lado, a população está dominada por religiões do indivíduo e pelo marketing de coisas individuais e símbolos que garantem a felicidade. Nestes contextos, surgem perguntas sobre os sinais de Deus nos comportamentos e espiritualidades de uma humanidade crucificada e ressuscitada.

O fundamental é como Jesus e a grande tradição eclesial se aproximam da existência humana no limite do amor de Deus e do próximo. É neste sentido que a religião popular é avaliada. A pneumatologia também é relevante, porque a ação do Espírito abre para a comunidade os conteúdos da revelação (LG n.12; GS n.11). A atividade do Espírito afeta “a história, os povos, as culturas, as religiões” e refere-se a “Cristo, Verbo encarnado por obra do Espírito” (JOÃO PAULO II, RM n.28-29). Em outras palavras, a religião em si não seria mediação. Pelo contrário, a atenção é dirigida à fidelidade ao Evangelho e aos sinais do Espírito em cada trajetória humana (incluindo a religião cristã).

Em todo o povo de Deus, o Espírito se move e sustenta o sentido da fé (sensus fidei), que é alimentado pelo ensinamento da Igreja (cf. LG n.12, 25; DV n.8). Uma reflexão sistemática corresponde a interagir com a capacidade teológica do povo. A inteligência de fé do povo pode ser considerada como espaço teológico (sensus fidelium). Assim, a comunidade de fé, guiada pelos pastores, insere-se na verdade de Deus e a coloca em prática para o bem de todos. Isso não sacraliza a religião popular, nem a torna mediação onipotente. Pelo contrário, há indicadores claro-escuros que são discernidos pela comunidade eclesial.

O Evangelho não é neutro: os pequeninos/as são preferidos/as do Reino e destinatários/as da Revelação. Isso recoloca a koinonia eclesial no povo, e também contribui para o intellectus fidei (que em setores da teologia latino-americana é concebido como intellectus amoris). A Igreja vai mudando de acordo com a vivência  do pobre e é estimulada pela espiritualidade cordial e pela teologia dos marginalizados. Uma vez que as estruturas discriminatórias e clericais persistem, surpreende a inteligência  tenaz e profunda de todo o povo de Deus.

Porém, no que comumente se denomina religião popular há muita referência eclesial e também de outras fontes. Isso se desenvolve, na América Latina, em espaços católicos, evangélicos, pentecostais, catalogados como formas sincréticas, uma variedade de espiritualidades e setores sem filiação religiosa. Além disso, o católico tende a ser plural e não excludente. Por exemplo, se constata, em regiões metropolitanas,

a capacidade da Igreja Católica conviver com modalidades distintas de catolicismo. Essas modalidades de representação asseguram que a Igreja pode abarcar um grande número de fiéis, pois contém ofertas de sentido variadas que permitem diversas interpretações simbólicas do ser católico (GOMEZ DE SOUZA, 2002, p.71).

O que pode fazer cada leitor/a desta seção da Theologica Latino-americana? Dentro da pluralidade de ser um cristão, e nas amplas bases da religião popular, é preciso cultivar a disciplinada sintonia com conhecimentos, espiritualidades, comportamentos do povo de Deus. Isto implica uma análise crítica da maneira com que a população enfrenta, a cada dia, sofrimentos e esperanças. Trata-se de uma interação sapiencial e cordial, científica e interdisciplinar e, acima de tudo, qualitativamente, de fé.

 Diego Irarrazaval. Universidad Católica Silva Henriquez, Santiago do Chile.  Texto original em espanhol.

5 Referências bibliográficas

AZCUY, V.; GALLI, C.; GONZALEZ, M. Presente y futuro de la teología en Argentina: homenaje a Lucio Gera. Buenos Aires: Agape, 2006.

DIEZ DE VELASCO, F.; GARCIA BAZAN, F. El estudio de la religión. 2.ed. Madrid: Trotta, 2012.

BENEDETTI, L.R. A experiência no lugar da crença. In: DOS ANJOS, Marcio F. Experiência religiosa. Risco ou aventura? São Paulo: Paulinas/SOTER, 1998. p.13-32.

FRANÇA MIRANDA, M. de. O cristianismo em face das religiões. São Paulo: Loyola, 1998.

GALLI, C. M. Dios vive en la ciudad. Buenos Aires: Agape, 2014.

GOMEZ DE SOUZA, L.A. et al. (org.). Desafios do catolicismo na cidade. São Paulo: Paulus, 2002.

GUTIERREZ, G. La fuerza histórica de los pobres. Lima: CEP, 1979.

GUTIERREZ, G. Beber en su propio pozo. Lima: CEP, 1983.

IRARRAZAVAL, D. La fiesta: símbolo de libertad. Lima: CEP, 1998.

RIBEIRO, H. Religiosidade popular na teologia latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1985.

SANCHIS, P. Perspectivas sociológicas sobre o catolicismo. In: TEIXEIRA, F.; MENEZES, R. (orgs.) Catolicismo plural. Petrópolis: Vozes, 2009. p.181-206.

SILVA MOREIRA, A. da (org.). O capitalismo como religião. Goiânia: PUC Goiás, 2012.

SPADARO, A. La fe y el ambiente digital: nudos críticos y prospectivas. In: SOCIEDAD ARGENTINA DE TEOLOGIA, La transmisión de la fe en el mundo de las nuevas tecnologías. Buenos Aires: Agape, 2014, 21-44.

1 Ver R. de la Torre, C. Gutierrez, Atlas de la diversidad religiosa en Mexico. Mexico: CIESAS, 2007. F. Mallimaci (dir.), Encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina, Buenos Aires: FONCYT, 2008, y PUC/ADIMARK. Encuesta nacional bicentenario, Santiago: PUC, 2013, Disponível em: www.sft.org.ar/2009/ARG, e www.encuestabicentenario.uc.cl/resultados2013/ religionycreencias. Acesso em: julho 2014.

2 Ver II Conferência Geral do Episcopado Latinomericano (Medellín, 1968), documento Pastoral Popular; III Conferência (Pueblo, 1979), n.444-469; IV Conferência (Santo Domingo, 1992), n.36-39, 243-251; V Conferência (Aparecida, 2007), n.88-97, 258-265. Em Evangelii Gaudium o Papa Francisco considera a religiosidade-mística-piedade do povo (n.68-70, 90, 122-126, 198, 237).

O Espírito age a partir de baixo. Pneumatologia desde América Latina

Sumário

1 Introdução temática

2 Abordagem bíblica

2.1 Espírito de justiça

2.2 Espírito sopro de vida no caos e na morte

2.3 Pai dos pobres

3 Pneumatologia na tradição teológica da Igreja

3.1 Pneumatologia patrística

3.2 Tradição cristã ocidental

3.3 A tradição oriental

4 Teologia latino-americana pós-conciliar

4.1 Surgimento de uma teologia latino-americana

4.2 Linhas de força da teologia da libertação

4.3 Evolução socioeclesial. Movimentos pentecostais e carismáticos

4.4 Evolução na teologia da libertação

5 Conclusão

6 Referências bibliográficas

1 Introdução temática

A reflexão sobre o Espírito Santo (chamada pneumatologia,  de pneuma, que significa espírito em grego) se desenvolveu fortemente na Igreja latina, especialmente desde o Concílio Vaticano II (1962-1965) e do pedido de Paulo VI para que  a cristologia e a eclesiologia do Vaticano II fossem complementadas com um estudo e um culto mais aprofundado sobre o Espírito Santo (Paulo VI, em audiência geral de 6 jun  1973; cf. João Paulo II, Dominum et vivificantem, n.2).

No entanto, a pneumatologia desenvolvida no Primeiro Mundo durante o período pós-conciliar incide mais sobre as dimensões pessoais e eclesiais do Espírito do do que sobre aspectos históricos, sociais e políticos, talvez inspirando-se mais em LG 4 (o Espírito na Igreja) do que em GS 11 e 44 (os sinais dos tempos).

Certamente, se afirma, nestas pneumatologias, que o Espírito do Senhor enche o universo (Sab 1,7), que sopra onde quer e que, como o vento, não sabemos de onde vem nem para onde vai (Jo 3,8). Entretanto, não se reflete o suficiente onde o Espírito age.

No entanto, nas décadas de 1970-1980, na América Latina e no Caribe, se experimentou uma grande irrupção vulcânica do Espírito, a partir dos pobres, que nos oferece uma chave de leitura para discernir como o Espírito age. De fato, nestas duas décadas, na América Latina, houve uma irrupção dos pobres na sociedade e na Igreja, que sacudiu fortemente a consciência social e eclesial. Mais especificamente, os bispos reunidos em Medellín (1968) e Puebla (1979) ouviram o imenso clamor do pobre, e discerniram nisso a voz do Espírito, se comprometeram na luta contra as estruturas injustas e fizeram uma opção preferencial pelos pobres, nos quais viram o rosto do Senhor crucificado.

Assim, a Igreja latino-americana realizou, a partir de Medellín (1968) e Puebla (1979), uma recepção criativa e inovadora do Vaticano II, porque tornou-se consciente  de sua responsabilidade como igreja local para discernir os sinais dos tempos que foram manifestados através do clamor do povo pobre e crente.

Como resultado desse discernimento e destas opções, tem surgido um estilo novo e profético de Igreja na América Latina, de uma riqueza comparável a outros momentos estelares da história da Igreja, como o tempo dos Padres da Igreja, os movimentos medievais e modernos de reforma, o período do século XX anterior ao Vaticano II com o surgimento de novas teologias etc.

Assim, aparece uma série de bispos proféticos e próximos do povo,  verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres que defenderam os direitos dos pobres e indígenas, até o martírio (Romero, Angelleli, Gerardi). Neste contexto, nascem as Comunidades Eclesiais de Base, que são outra maneira de ser Igreja. A vida religiosa, inspirada pela CLAR, é inserida nos setores populares e pobres. Grupos numerosos de leigos se comprometem com a transformação da sociedade e com a evangelização, e as mulheres assumem um papel de protagonismo nesses processos de mudança socioeclesial. Neste contexto, acontece o martírio de bispos, sacerdotes, religiosos, catequistas, trabalhadores, jovens,  indígenas, povo inocente massacrado pelos governos ditadores e militares que se proclamam defensores da civilização cristã ocidental. Finalmente, nasce também nestes tempos a teologia da libertação, a primeira reflexão teológica original da América Latina.

Neste contexto histórico pode-se discernir como o Espírito agiu e age claramente a partir de baixo, dos pobres da sociedade e da Igreja, e que, embora chame todos a contribuir para o trabalho do Reino, sempre o faz da perspectiva dos pobres e em favor deles.

Esta chave hermenêutica da realidade e do Espírito ajuda-nos a reler a tradição bíblica e teológica da Igreja e lançar as bases de uma pneumatologia latino-americana a partir de baixo, que seja uma contribuição para toda a Igreja.

2 Aproximação bíblica

Que contribuições encontramos na Bíblia para uma pneumatologia a partir de baixo?

2.1 Espírito de justiça

Para o Antigo Testamento, os termos direito e justiça não significam somente julgar, mas exercer o direito e a justiça para os pobres, como fez Yahweh no Êxodo, como fizeram os juízes de Israel, como anunciaram os profetas o que se realizaria nos tempos messiânicos. Todas estas atuações são fruto do Espírito de justiça (Is 28; Miq 3,8-10; Is 11,1-9; Ez 36,27-28; Jl 3,1s).

Este é o Espírito que desce sobre Jesus no batismo (Lucas 3,21-22 e paralelos) e unge-o para sua missão (Lc 4,16-30 citando Is 61). Este é o Espírito que, em Pentecostes, desce sobre a Igreja nascente e produz frutos de solidariedade e exclusão da pobreza (Atos 2,44-45; 4,32-37). É o Espírito que Jesus promete aos seus discípulos, para que possam continuar sua missão (Jo 16,7-11).

É o Espírito contrário às obras injustas da carne (Gl 5,13-25), o Espírito que nos impele a amar os irmãos (Rm 5,1-5), o Espírito que antecipa a justiça escatológica de Deus para pobres (Mt 25,31-45).

2.2 Espírito sopro de vida no caos e na morte

O Espírito Criador é aquele que no caos, na confusão e na escuridão da origem da criação paira sobre as águas alentando a vida (Gn 1,2), aquele que, pelo sopro divino, dá vida ao primeiro homem (Gn 2,7) e desde esse momento vivifica a humanidade para a escatologia, como uma mãe gera seus filhos para a vida[1]. Mas o Espírito não só gera vida, mas permite a passagem da morte para a vida, como os profetas anunciaram (Ez 37,1-14).

No Novo Testamento, o Espírito de vida gera Jesus no ventre da Virgem Maria (Lc 1, 35), como já antes havia dado fertilidade a mulheres estéreis, mães de grandes figuras de Israel. Para João, o Espírito é vida e dá vida (Jo 10,10), não a vida meramente natural (bios), mas a vida eterna, a participação na vida divina (zoe). E este Espírito flui do coração morto e trespassado de Jesus na cruz (Jo 19,30.34), a partir de baixo. Este Espírito dá vida ao batizado, nos ressuscitará a nós, como ressuscitou a Jesus (Rm 8,11) e também libertará a criação da escravidão e das dores de parto (Rm 8,22-23).

2.3 Pai dos pobres

Esta expressão do hino Vem Espírito Criador inclui o amor paterno-materno do Espírito para os pobres e pequenos, a quem foram revelados os mistérios do Reino, como Jesus, tão cheio de Espírito, reconhece e agradece ao Pai (Lc 10,21-22; Mt 11,25-27). O Espírito que clama pelo grito dos pobres é o mesmo que acolhe a sua oração e torna-se seu pai e protetor, como aconteceu no Egito (Ex 4,3). É o Espírito que move os pastores a adorar o Menino de Belém (Lc 2,8-29) e que leva ao templo Simeão e Ana para revelar o Messias (Lc 22-28). É o Espírito que nos faz clamar a Deus Pai (Rm 8,15; Gl 4,6). Ele é o pai e a mãe, protetor, goel (redentor), padrinho dos pobres.

Poderíamos resumir o que foi dito, afirmando que em toda a história da salvação o Espírito age a partir dos marginalizados, a partir de baixo, a partir da periferia, utilizando meios pobres e desproporcionados, para que o povo caminhe corajoso para o Reino. É uma lógica contrária ao racionalismo moderno, mas é a lógica do Magnificat em que Maria canta a misericórdia do Senhor que é exercida nos pequenos, humildes e famintos (Lc 2,46-55).

3 Pneumatologia na tradição teológica da Igreja

3.1 Pneumatologia patrística

Não seria correto projetar nos Padres da Igreja Oriental dos séculos IV e V (Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, Atanásio, João Crisóstomo e outros) essa problemática atual, mais ainda quando muitos deles estavam preocupados com as questões trinitários e, especificamente, com defender a divindade do Espírito atacado pelos hereges, que afirmavam que o Espírito era uma criatura suprema, mas não Deus nem objeto de adoração. O Concílio de Constantinopla (381) afirma que o Espírito é Santo, Senhor que dá a vida, que procede do Pai e junto com o Pai e o Filho é adorado e glorificado. Na sua ação externa, o Espírito falou através dos profetas, está presente na Igreja, no batismo para a remissão dos pecados, na ressurreição dos mortos e na vida do mundo vindouro.

Embora os Padres da Igreja não  relacionem diretamente o Espírito com a justiça, eles reconhecem a presença do Espírito na vida dos fiéis. Se o Espírito não fosse Deus, os cristãos não poderiam ser divinizados.

No Ocidente, Agostinho (séc. IV-V) concebe o Espírito como o vínculo amoroso de comunhão que une o Pai com o Filho, comunhão da qual participam os cristãos. Mesmo antes, Irineu de Lyon (séc. III) havia comparado o Filho e o Espírito às duas mãos com as quais o Pai cria e dirige a história da humanidade para a realização do seu plano divino. As mãos são diferentes, mas se complementam entre si: o Espírito prepara a vinda do Filho ao mundo, o Filho encarnado derrama seu Espírito depois da Páscoa aos seus discípulos, o Espírito completa a missão de Jesus na Igreja e na humanidade.

Paralelamente a estas reflexões trinitárias, os Padres da Igreja experimentam um desenvolvimento vigoroso das dimensões éticas e sociais da fé sobre a dignidade da pessoa humana, o destino universal dos bens, a necessidade da esmola e de atender aos pobres etc. Eles mesmos, conscientes da unidade profunda entre o sacramento do altar e o sacramento do irmão atendem a muitos órfãos, viúvas, forasteiros, doentes, prisioneiros…

No entanto, não se expressa claramente nos Padres uma conexão explícita e direta entre o Espírito e os pobres, entre Espírito e justiça, como tínhamos visto na tradição bíblica, ainda que não fosse difícil articular ambos os temas.

3.2 Tradição cristã ocidental

A tradição teológica ocidental tem sido marcada por Agostinho, assimilado e aprofundado por Tomás de Aquino, e concentrou-se especialmente na dimensão intratrinitária do Espírito e nos seus efeitos pessoais (os sete dons do Espírito de acordo com Isaías 11, 2-3) como aparece nos hinos medievais e em Vem Espírito Santo e Vem  Espírito criador. Tem havido muito pouca incidência da pneumatologia na eclesiologia que mantém o esquema Deus-Cristo-Igreja, e assim, na eclesiologia, prevalece a dimensão hierárquica e  sacramental com pouca atenção aos aspectos laicais e carismáticos.

No entanto, ante esta situação teológica e eclesial, reforçada na Idade Média, especialmente a partir do século XI, surge o polo profético dos movimentos leigos populares (séc. XII e XIII) que reivindicam a dimensão do Espírito e desejam voltar à pobreza evangélica. Alguns são excluídos da Igreja oficial, enquanto os mendicantes (franciscanos, dominicanos e outros) foram reconhecidos por Roma. Um monge da Calábria, Joaquim de Fiore (1132-1202) defende a era do Espírito como o Terceiro Reino, que sucede o Reino do Pai (Antigo Testamento) e o Reino do Filho (Novo Testamento). Embora esta teoria tenha sido condenada, obteve grande influência no mundo filosófico e político, porque foi vista como possibilidade de ação do Espírito não só na Igreja, mas também na história.

A Reforma (séc. XVI), tanto protestante como católica, é certamente um movimento espiritual surgido “de baixo” para reformar a igreja e voltar à Palavra, a Cristo e à cruz, mas, em seguida, ambas as reformas se separaram por diferentes posições eclesiais. Também na evangelização da América Latina (séc. XVI-XVII), houve figuras proféticas inspiradas pelo Espírito que defenderam os indígenas e os escravos africanos contra os conquistadores luso-hispanos: Montesinos, Las Casas, Anchieta, Claver etc.

A Revolução Francesa (séc. XVIII), com seus excessos, provocou em toda a Igreja um movimento restauracionista e contrarrevolucionário sem perceber – como mais tarde afirmou Paulo VI – que  os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade eram profundamente evangélicos. Também não foram compreendidos, por Roma, os movimentos de independência da América Latina que, começando pelo Haiti, se espalharam por todo o continente.

Esta tendência conservadora vai se manifestar no Vaticano I (1870) e, mais tarde, nas posições de Pio X contra o Modernismo (1907) e de Pio XII contra a nova teologia europeia (1950), que não compreenderam nem a minoria do Vaticano I nem os elementos questionadores e positivos dessas teologias.

Não surpreende que os cristãos orientais acusem a Igreja Latina de “cristomonismo”, ou seja, de concentrar a fé somente em Cristo, esquecendo-se do Espírito. Esta ausência do Espírito é compensada na prática, com alguns substitutos como a devoção à Maria, ao papa e à eucaristia.

Em suma, durante estes longos séculos, a Igreja latina, apesar de professar sua fé trinitária, não desenvolveu uma verdadeira pneumatologia, reduzindo o Espírito à hierarquia e a alguns místicos, substituindo-o por outras dimensões eclesiais. Durante este longo período, não faltou a ação caridosa de muitos grupos cristãos, embora sem relação especial com o Espírito, e – acima de tudo – houve movimentos proféticos suscitados pelo Espírito a partir da base eclesial e social, que postulavam uma Igreja mais evangélica e uma sociedade mais livre, justa e fraterna.

Foi necessário  esperar os movimentos teológicos e sociais da metade do século XX e o profético João XXIII, vindo da base e que queria uma Igreja dos pobres, para recuperar a pneumatologia na Igreja Ocidental.

3.3 A  tradição oriental

A tradição oriental sempre enfatizou fortemente a importância do Espírito, tanto na teologia trinitária como na Igreja e no mundo. Isto dá origem a uma teologia e uma práxis eclesial que enfatizam as dimensões experienciais, trinitárias, comunitárias, litúrgicas, cósmicas e escatológicas da fé cristã. Alguns teólogos orientais que desenvolveram a pneumatologia foram: Serge Bulgakov, Vladimir Lossky, Paul Evdokimov, Olivier Clement, John D Zizioulas Jean Meyendorff, Boris Bobrinskoy.[2]

O Espírito que precede e orienta a vida de Jesus é que possibilita a Igreja viver a comunhão trinitária, que a missão seja um Pentecostes, que a liturgia seja invocação do Espírito (epíclese) e a ação cristã seja uma transfiguração da história e do cosmos. O Espírito nos comunica a vida divina, nos diviniza. A Trindade não é apenas um objeto de contemplação através dos ícones, mas constitui um verdadeiro programa social: um mundo de comunhão e participação, em liberdade e respeito às diferenças.

A revolução comunista foi um teste difícil para a Igreja Oriental: uma crítica ao pietismo individualista de muitos cristãos pouco comprometidos com a história e uma chamada apocalíptica a uma maior integração entre fé e justiça, entre pneumatologia e os pobres. Mesmo com estas deficiências, a rica teologia do Oriente oferece muitos elementos para uma pneumatologia a partir de baixo.

4 Teologia latino-americana pós-conciliar

4.1 Surgimento de uma teologia latino-americana

Como vimos, o Vaticano II foi um evento pentecostal para a Igreja, preparado providencialmente por uma série de movimentos teológicos centro-europeus (movimentos bíblico, patrístico, litúrgico, ecumênico, social etc.) e, sobretudo, pela figura carismática e popular de João XXIII, que convocou o concílio Vaticano II (1962-1965).

O Vaticano II tem uma série de afirmações e intuições pneumatológicas (LG n.4; GS n.11), mas não consegue desenvolver uma pneumatologia. Além disso, o Vaticano II também não assumiu o desejo de João XXIII de uma Igreja dos pobres: há apenas uma breve alusão a este assunto (LG n.8; GS n.1).

Portanto, não é surpreendente para nós que a pneumatologia pós-conciliar desenvolvida no Primeiro Mundo não aborde a questão dos pobres nem uma pneumatologia a partir de  baixo.

Com esta situação, a irrupção vulcânica do Espírito na América Latina dos anos 1970-80 nos oferece novas possibilidades de articular uma pneumatologia a partir de baixo. Neste contexto socioeclesial surge a teologia da libertação, primeira teologia da América Latina que não é apenas um reflexo da teologia europeia. Esta nova teologia é uma recepção criativa do Vaticano II, ligada às Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979). Os nomes dos principais protagonistas são: G. Gutiérrez, H. Assmann, J. L. Segundo, E. Dussel, L. Boff, I. Ellacuría, J. Sobrino, P. Richard, J. B. Libanio, F. Betto, J. Comblin, C. Mesters, J. C. Scannone, R. Muñoz, D. Irarrázaval, A. Quiroz etc.

4.2 Linhas de força da teologia da libertação

A teologia da libertação parte da realidade socioeclesial do povo, ouve o grito dos pobres e descobre neles o rosto do Crucificado. Esta é uma verdadeira experiência espiritual. Esta realidade, iluminada pela Palavra, ajuda a ver que a pobreza é pecado, contrária ao projeto do Reino de Deus. Projeto nos foi revelado através do Jesus histórico de Nazaré, por meio de sua pregação, suas opções pelos pobres, sua defesa da vida, sua denúncia das estruturas sociorreligiosas opressivas, que levam à morte. A ressurreição de Jesus é a confirmação do Pai que o caminho de Jesus era o verdadeiro caminho. A vinda do Espírito sobre os discípulos faz nascer uma Igreja que tem a missão de continuar o trabalho de Jesus na história. Daí o compromisso com o Reino, a opção pelos pobres, a defesa da vida, denunciando situações de morte, e tudo isso no seguimento de Jesus.

Esta teologia não tem nenhuma inspiração marxista, mas evangélica; não é simples sociologia política, mas autêntica teologia que aborda todas as questões teológicas, desde a Trindade à escatologia; não substitui Cristo pelo pobre, mas contempla Cristo presente nos pobres; não é anti-hierárquica, mas procura que toda a Igreja seja um povo de Deus messiânico; não é mera ideologia, mas leva à práxis e até mesmo ao martírio.

4.3 Evolução socioeclesial. Movimentos pentecostais e carismáticos

As mudanças políticas do final dos anos 1980, com o colapso do socialismo no Leste, a evolução democrática da maioria dos países da América Latina e do Caribe, o inverno eclesial dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, o  ambiente cultural pós-moderno, o surgimento de novos atores sociais e eclesiais (indígenas, afros, mulheres, jovens etc.), o desafio da ecologia e a proliferação de movimentos carismáticos e pentecostais afetam a teologia da libertação.

Especificamente, o chamado movimento pentecostal evangélico é, de acordo  com J. Comblin, o maior impacto religioso ocorrido desde a Reforma no século XVI. É o que mais cresce nas igrejas, o mais popular, o que se difunde nas várias igrejas históricas. Na América Latina, os mais pobres entre os pobres, por sua vez, não vão para as comunidades de base, nem mesmo para a Renovação Carismática Católica, mas aos movimentos pentecostais.

Estes movimentos acolhem aos mais desesperados da sociedade moderna – excluídos pelo sistema neoliberal – e lhes proporcionam um supermercado da fé, com acentos mágicos, sincréticos e utilitários. Mas, muitos de seus seguidores passam por uma profunda conversão que os leva a abandonar as drogas, alcoolismo, abusos sexuais e violência familiar.

A principal característica do pentecostalismo, especialmente do clássico, é o processo que leva à conversão pelo Espírito, ao batismo do Espírito, que é uma experiência emocional profunda em que se aceita a Cristo como salvador, se é possuído pelo Espírito e se recebem dons extraordinários como glossolalia, profecia e discernimento. Suas diretrizes teológicas são baseadas em um puritanismo de serem os escolhidos, um dualismo radical entre o espírito e o mundo material, uma visão puramente individualista do pecado.

Neles, há um ambíguo entusiasmo emocional coletivo, um supermercado religioso no neopentecostalismo e, acima de tudo, um afastamento da responsabilidade pública e social. Seu sucesso deve-se, sobretudo, ao fato de, em meio à desordem social e exclusão com que são tratados por grande parte da sociedade e também pelas igrejas históricas, se sentirem acolhidos, valorizados e ajudados pelas igrejas pentecostais, com capacidade de comunicação e de expressão, em cultos à sua disposição que os enchem de alegria e melhoram suas vidas.

A Renovação Carismática Católica nasceu nos Estados Unidos, em 1966, espalhou-se rapidamente por toda a Europa, América Latina e pelo resto do mundo. Tanto Ratzinger como Y. M. Congar veem nesse movimento um fruto positivo do Vaticano II (cf. MESSORI e RATZINGER, 1985; CONGAR, 1983, p.349-415R).

Os envolvidos neste movimento asseguram ter experimentado, pela primeira vez, a liberdade do Espírito, o dom da salvação, um novo nascimento no Espírito, a pertença à comunidade do Senhor e sentiram-se renovados, convertidos, transformados, regenerados, cheios de felicidade e alegria. Sua semelhança com os movimentos pentecostais é grande, mas a renovação carismática geralmente se concentra na celebração eucarística.

A crítica que tem sido feita à renovação carismática é semelhante à que foi feita aos movimentos pentecostais: risco de emocionalismo psicológico, individualismo, falta de discernimento, apego aos dons extraordinários como glossolalia, evasão de tarefas e compromissos sociais (“paralisia social”). Além disso, do ponto de vista católico, observa-se o risco de se tornarem comunidades da Palavra, pouco esclarecimento entre o batismo do Espírito e a confirmação, pouca participação na pastoral de conjunto e o perigo  de constituir uma espécie de seita católica.

Os líderes do movimento carismático reagem a essas críticas, dando critérios de discernimento baseados em 1Cor 12. Com efeito, desde as suas origens até os dias atuais, o movimento tem apresentado um processo de amadurecimento e purificação muito positivo, uma maior formação bíblica e teológica, maior inserção eclesial na pastoral, maior discernimento, mais engajamento apostólico e social.

Na América Latina, muitos pobres vão para esses grupos, provavelmente pelas mesmas razões de desordem social pelas quais outros vão para os pentecostais. Entre os dois grupos cresce um sentimento de aproximação ecumênica.

Estes movimentos pentecostais e carismáticos interpelam as Igrejas históricas. Diante de um tipo de estrutura religiosa demasiado rígida e racionalista, expressa em dogmas, escrituras e normas, há a busca de uma espiritualidade mais experiencial, carismática, mística e entusiasta, mais sensível à corporeidade e à dimensão afetiva, mais aberta à comunidade, mais popular, mais sensível à espiritualidade que às estruturas religiosas. Há uma interpelação pneumatológica.

4.4 Evolução na teologia da libertação

Como a pobreza não só continua, mas aumenta na América Latina, de modo que o povo passou de explorado a descartado e abandonado, o novo imaginário socioeclesial afeta a teologia da libertação. Esta se abre, agora, à teologia indígena e afro, a um  maior protagonismo das mulheres na teologia, à  reflexão ecológica, a uma valorização positiva da religiosidade popular. Surgem, também, perguntas sobre essa teologia em seu começo: muito voluntarista, paternalista e androcêntrica? Um pouco ingênua em sua análise social e política? Com risco de milenarismo? Talvez a maior crítica seja à sua deficiente pneumatologia. A teologia da libertação, que se constrói a partir de baixo, é um evento espiritual e suscita uma verdadeira espiritualidade, mas, no entanto, foi pouco pneumatológica em sua reflexão.

Nos últimos anos, vários teólogos e teólogas, como J. Comblin, L. Boff, M. Clara Luccheti Bingemer, M. J. Caram, D. Irarrázaval, entre outros, lançaram as bases para uma pneumatologia latino-americana. Esta reflexão encontra a ação do Espírito não só nas pessoas e na Igreja, mas no mundo, na criação e sua evolução, na história e, muito concretamente, nos pobres. Através do grito dos pobres, através de sua busca por liberdade, por dignidade e por expressão, de sua luta pela vida, o Espírito age. O Espírito age a partir de baixo e sempre em favor dos oprimidos, faz passar da morte para a vida.

Não pode se identificar o Espírito apenas com os fenômenos extraordinários (dom de línguas etc.), mas  também está relacionado ao serviço, ao amor, à alegria nas tribulações, à luta por uma vida digna, à solidariedade, ao senso de gratuidade e de celebração, à oração e à esperança, ao seguimento de Jesus a cada dia. O Espírito também é visto em estreita relação com o grito da terra para a sua libertação, em conexão com o respeito pelas mulheres (ecofeminismo). A dimensão religiosa e cultural das tradições originais é o fruto do Espírito, assim como a sua rica religiosidade e espiritualidade popular. Surge um macroecumenismo que leva ao diálogo não apenas com as várias Igrejas cristãs, mas também com as religiões originárias e com outras confissões religiosas.

Naturalmente, esta pneumatologia que começa a surgir de baixo não é ingênua, e vê a necessidade de um discernimento sério dos sinais dos tempos, sempre à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.

Esta pneumatologia a partir de baixo deve aprofundar-se no mistério trinitário, compreendendo um Pai que – ao entregar a Jesus por amor – se empobrece; o Filho, que se aniquila na encarnação nazarena; e o Espírito que se esconde na voz dos pobres e pequenos. A opção pelos pobres está implícita não apenas em nossa fé cristológica (Bento XVI), mas também em nossa fé pneumatológica no Espírito Santo, Senhor e que dá a vida.

5 Conclusão

A irrupção vulcânica do Espírito na América Latina – em torno dos anos 1960-70 – nos ajuda a compreender que o Espírito age a partir de baixo. Esta intuição é confirmada pela Escritura, que nos revela o Espírito presente, especialmente em tempos de crise e caos, fazendo passar do não ser ao ser e da morte para a vida, levantando movimentos proféticos em defesa do direito da justiça, ao serviço dos pobres e pequenos, ungindo Jesus para evangelizar os pobres.

No entanto, a pneumatologia tradicional tem estado mais preocupada com questões intratrinitárias e por temas meramente intraeclesiais do que com a presença  viva do Espírito na base da sociedade e da Igreja. A teologia da libertação, muito sensível ao clamor dos pobres, mas até recentemente apenas com uma pneumatologia incipiente, começa agora a integrar libertação e Espírito, superando o risco do excessivo voluntarismo ético e completando a cristologia e a eclesiologia com uma pneumatologia a partir de baixo, reunindo a tradição bíblica e o melhor das correntes proféticas da Igreja.

Esta pneumatologia se abre aos pobres, às culturas, às religiões, aos indígenas e afros, às mulheres e jovens e, de modo especial, às questões ecológicas da terra e de toda a criação. Este Espírito é o fundamento da opção de Jesus e da Igreja pelos pobres. Nos revela uma Trindade que, por amor, se esvazia no mundo e quer – a partir dos pobres – realizar seu projeto do Reino de filiação e fraternidade universal.

O novo bispo de Roma, Francisco, vindo do fim do mundo e que viveu as opções da Igreja latino-americana, é quem nos chama hoje para sair às ruas, ir às fronteiras e reformar a Igreja para que se torne uma igreja pobre e dos pobres. Isso atualiza e confirma a importância de uma pneumatologia que venha de baixo, porque o Espírito é tradicionalmente o “pai dos pobres”.

Víctor Codina, SJ. Universidad Católica de Bolívia, Cochabamba. Texto original em  espanhol.

6 Referências bibliográficas

BOFF, L. O Espírito Santo. Petrópolis: Vozes, 2013.

CODINA, V. El Espíritu del Señor actúa desde abajo. Santander: Sal Terrae (no prelo).

COMBLIN, J. El Espíritu Santo y la liberación. Madrid: San Pablo, 1987.

COMBLIN, J. O Espírito Santo e a tradição de Jesus. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2012.

Para saber mais

BINGEMER, M. C. El amor escondido. Concilium, n.342, septiembre 2011. p.63-76.

CARAM, M. J. El Espíritu en el mundo andino, una pneumatología desde los Andes. Cochabamba: Verbo Divino, 2012.

CODINA,V. Creo en el Espíritu Santo. Santander: Sal Terrae,1994.

CODINA,V. No extingáis el Espíritu. Santander: Sal Terrae, 2008.

CONGAR, Y.-M. El Espíritu Santo. Barcelona: Herder, 1983.

DURRWELL, F. X. El Espíritu del Padre y del Hijo. Madrid: Paulinas, 1983.

EDWARDS, D. Aliento de vida. Una teología del Espíritu creador. Estella; Verbo Divino, 2008.

GUITÉRREZ, G. Beber en su propio pozo. Lima : CEP,1983.

IRARRÁZAVAL, D. Conversión vivencial del Espíritu en Sudamérica, Concilium, n.342, septiembre 2011. p.137-147.

MESSORI, V.; RATZINGER, J. Rapporto sulla Fede. Milano: San Paolo, 1985.

MÜHLEN, H. Espíritu.. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1974.

[1] Espírito em hebraico é ruah, de gênero feminino.

[2] Não queremos entrar aqui em questões mais técnicas sobre o conflito trinitário entre Oriente e Ocidente sobre a questão do Filioque, ou nas modernas propostas orientais sobre o Spirituque. Ver V. Codina, No extingáis el Espíritu, Santander, 2008, p.229-241; e V. Codina, Los caminos del Oriente cristiano, Santander, 1997, p.91-98.

Os Sacramentais

Sumário

1 O que são os sacramentais?

2 Uma aproximação histórica

3 Popularidade dos sacramentais

4 Iluminação teológica

4.1 Reino de Deus

4.2 A oração da Igreja

4.3 Cosmologia teológica e sacramental

4.4 A teologia da benção

5 Teologia da misericórdia

6 Conclusão

7 Referências bibliográficas

1 O que são os sacramentais?

O Vaticano II define os sacramentais como “sinais sagrados criados no modelo dos sacramentos, pelos quais se expressam efeitos, especialmente de caráter espiritual, obtidos pela intercessão da Igreja” (SC n.60). O concílio os situa em torno do mistério pascal de Cristo (SC n.61) e afirma que devem ser reformados (SC n.62; 79) e sugere que alguns podem ser administrados por leigos (SC n.79).

O atual Código de Direito Canônico (1983) fala dos sacramentais (c. 166-1172) e não os define como “coisas ou ações” – como no Código anterior de 1917 (c. 1169) – mas como “sinais sagrados” (c 1169.) de acordo com o Vaticano II (SC n.60); inclui, entre os sacramentais, consagrações e dedicações, bênçãos e exorcismos, mas restringe o uso dos exorcismos (c. 1172) e estende alguns sacramentais aos leigos (c. 1168).

Certamente, muitos estudantes de teologia terminam seus estudos sem nunca ter ouvido falar dos sacramentais. Nos manuais de teologia anteriores ao Vaticano II poderia ser encontrado algum apêndice sobre eles, enquanto nos manuais modernos apenas se fala dos sacramentais, mencionando que representam um problema difícil de conciliar com o mundo moderno secularizado de hoje (Mysterium salutis IV/2, Madrid: Cristiandad, dedica a este tema três páginas, 155-157).

Exemplos de sacramentais são a água-benta e todos os tipos de bênçãos com água-benta (de imagens, de casas, de crianças, de doentes, de idosos, de famílias, do campo, de alimentos, de veículos e até mesmo de animais etc.), a imposição das cinzas no início da Quaresma, as palmas do domingo de Ramos, as velas iluminadas, as exéquias e os ritos fúnebres, a veneração da cruz,  de Maria e dos santos e, por extensão, muitas devoções da religiosidade popular, como peregrinações a santuários do Senhor ou de Maria, via sacra, procissões etc.

2 Uma aproximação histórica

A teologia dos sacramentos e, em particular, o número septenário dos sacramentos, não foi desenvolvida até o século XII. Nem na Escritura nem na tradição cristã primitiva podemos encontrar uma doutrina clara dos sete sacramentos. Para as primeiras gerações cristãs, sacramento (que era a tradução do grego misteryon) tinha um sentido muito mais amplo e mais rico que o nosso conceito moderno de sacramento. Os primeiros que falaram de sacramento foram os canonistas e teólogos escolásticos  do século XII, como Pedro Lombardo, mas, durante os séculos XII e XIII, o conceito de sacramento ainda era muito extensivo e não se distinguiam os sacramentos dos sacramentais. Para S. Bernardo, um contemporâneo de Pedro Lombardo, os sacramentos são tantos que, em uma hora, não é possível listar todos. Para ele, os três sacramentos principais são o batismo, a eucaristia e o lava-pés. Para Hugo de S. Victor, também um contemporâneo de Pedro Lombardo, os sacramentos são a água benta, a imposição das cinzas, a bênção dos ramos e de velas e o toque dos sinos para chamar os fiéis. Apenas com as grandes sumas teológicas de Alexandre de Hales, Boaventura e Tomás de Aquino, se chegará a estabelecer e difundir o número septenário dos sacramentos, doutrina que, em seguida, passou aos Concílios II de Lyon (1274), Florença (1439) e, de forma definitiva,  em Trento (1547). Ainda assim, o número sete tem um significado profundo, mais simbólico que aritmético. Ele é a soma de três e quatro, o que significa plenitude (cf. matriz sacramentos).

Após Trento, os sacramentais são estudados em um tratado próprio, independente  dos sacramentos (Suárez) e o movimento litúrgico que precedeu o Concílio Vaticano II (Guardini, Parsch etc.), situa os sacramentais dentro da teologia da liturgia,  intuição que o Vaticano II acolherá, como foi visto.

Se quiséssemos resumir brevemente esse processo histórico, poderíamos dizer que, ao longo do primeiro milênio da Igreja, o conceito de sacramento foi extremamente amplo e rico,  incluindo tanto os sacramentos (como os conhecemos hoje) quanto os sacramentais. No segundo milênio, quando tantas coisas mudaram na Igreja, se estabelece uma hierarquia entre os sacramentos e sacramentais, que conduzirá à distinção do septenário sacramental dos sacramentais (Trento).

3 Popularidade dos sacramentais

Para o povo, os sacramentais sempre foram importantes. Na Idade Média europeia, em que o povo enfrentava situações de pobreza, pestes, guerras e medo do diabo, o sacramental materializava a bênção divina que emanava de algum objeto abençoado. Os frutos que podiam ser obtidos a partir dos sacramentais não eram apenas espirituais, mas também, e principalmente, temporais: saúde, boa colheita, paz etc.

Também hoje os sacramentais tem grande importância em setores populares, principalmente na América Latina e no Caribe. No Natal, muitas vezes o centro da celebração é a bênção do Menino Jesus que, depois, será venerado na família durante as festas natalinas. Na Quaresma, as cinzas desfrutam de grande popularidade. O Domingo de Ramos, provavelmente a festa mais  popular de todo o ano, para o povo é a festa das palmas, que levam para suas casas e guardam durante todo o ano com devoção. Na Quinta-feira Santa, em muitos lugares, o centro de atenção popular é o lava-pés, cerimônia que, para a Igreja antiga, tinha valor de sacramento em alguns lugares. A Sexta-feira Santa se centra, para o povo, na Via Sacra, adoração da cruz e em procissões do Santo Sepulcro, mais do que na solene liturgia da paixão. Na Vigília Pascal, o que mais atrai o povo é a fogueira inicial e as velas que levam com tanta devoção às suas casas, tal qual a água abençoada da liturgia batismal.

Já Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi (1975) afirmou que “a piedade popular expressa uma sede de Deus que só os pobres e os simples podem conhecer” (n.48). Bento XVI, em discurso em Aparecida, disse que esta piedade popular é “um tesouro precioso da Igreja Católica” e “nela aparece a alma dos povos latino-americanos” (discurso inaugural da V Conferência General do Episcopado Latino-americano, em 13 de maio de 2007).

O Documento de Aparecida (2007) recolhe alguns destes gestos simbólicos de fé do povo:

 Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos recorrem a algum pequeno sinal do amor de Deus: um crucifixo, um rosário, uma vela que se acende para acompanhar um filho em sua enfermidade, um Pai Nosso recitado entre lágrimas, um olhar entranhável a uma imagem querida de Maria, um sorriso dirigido ao Céu em meio a uma alegria singela (n.261).

 E o papa Francisco, na Evangelii Gaudium, falando da fé do povo que se manifesta na piedade popular, manifesta:

Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. (n.125)

 Esse apreço do povo pelos sacramentais gera, muitas vezes, um problema pastoral, porque o povo parece mais interessado nos sacramentais do que nos sacramentos. Poderíamos acrescentar que os mesmos sacramentos que o povo pede,  muitas vezes, estão vistos mais sob o prisma dos sacramentais que dos sacramentos.

Não é exagero dizer que, para o povo simples e pobre, os sacramentais são mais valiosos que os sacramentos, porque são mais compreensíveis que os sacramentos:  são variados, ricos em simbolismo, próximos, domésticos, acompanham o ritmo da vida cotidiana, são sensíveis, mais familiares e vitais. Os sacramentais são os sacramentos dos pobres.

Evidentemente, este fato contrasta com a valorização teórica que o dogma e a teologia nos apresentam: o centro da celebração litúrgica cristã são os sete sacramentos, e sua fonte e ápice é a eucaristia (SC n.10); os sacramentais são secundários e periféricos. No entanto, continua a ser um paradoxo que a maioria das pessoas que estão na Igreja, justamente tenha acesso a Deus mais pelos sacramentais do que pelos sacramentos.

4 Iluminação teológica

Como iluminar os sacramentais e sua importância pastoral a partir da fé e da tradição eclesial?

4.1 Reino de Deus

A categoria central para nos aproximar de uma releitura teológica dos sacramentais pode ser a do Reino de Deus, que é o horizonte último da pregação e da atividade do Jesus histórico (Mc 1,15).

O Reino de Deus é o grande projeto de Deus ao criar o mundo, para fazer da humanidade uma família reconciliada e fraterna de filhos e filhas do Pai, em Cristo, pelo Espírito. É a Trindade para fora, que deseja comunicar o mistério da sua vida e comunhão trinitária para o mundo. É o mistério mais abrangente da fé cristã.

Precisamente por ser o Reino de Deus um mistério, só pode ser abordado simbolicamente: as parábolas, os milagres e sinais de Jesus são as únicas maneiras que temos para acessar alguma compreensão do Reino de Deus. Tanto os sacramentos quanto os sacramentais são colocados sob a órbita de sinais sensíveis e simbólicos da presença eficaz do Reino de Deus.

Quanto mais simples, populares, comunitários e cósmicos são esses ritos simbólicos, mais eles cumprem uma função sacramental, se aproximam do Reino de Deus. A hemorroíssa que toca a orla do manto de Jesus (Mt 9,20), a unção de Maria em Betânia (Jo 12), o lava-pés (Jo 13) são atos sacramentais de grande densidade teológica. Santo Tomás diz enfaticamente que os rudes (ou seja, os simples, ignorantes e pobres) vivem a fé da Igreja através das celebrações litúrgicas e das festas da Igreja, que têm uma dimensão sacramental em um sentido muito amplo (cf. “De quibus ecclesia festa facit”, De Veritate q 14 a 11).

A partir desta  sacramentalidade original e fundante do Reino de Deus adquirem sentido pleno todos os sacramentais do povo cristão.

4.2 A oração da Igreja

Todo gesto litúrgico sacramental da Igreja é uma oração eclesial, é súplica ao Pai por meio de Cristo, é  invocação do Espírito Santo (ou epiclese), em função do Reino de Deus. Neste sentido, os sacramentais não são formas degradadas de sacramentalidade, mas se pode entender os sacramentos como a culminação dos sacramentais.

Temos de passar das cinzas para o sacramento da reconciliação, das palmas do Domingo de Ramos para o mistério do Tríduo Pascal, do lava-pés à eucaristia, da água benta ao batismo. Deveríamos manter e continuar a pedagogia divina da história da salvação (DV n.15), pedagogia paciente e misericordiosa que parte de baixo, dos pobres e dos pequenos.

Tanto o estudo dogmático dos sacramentos quanto a pastoral deveriam começar pelos sacramentais, sacramentos dos pobres e, lentamente, alcançar os sete sacramentos clássicos, que os ordenam e de quem  recebem a força.

Especificamente, o clamor dos pobres a Deus, inspirado pelo Espírito, é a grande oração sacramental que se eleva ao Pai através da Igreja e move suas entranhas de misericórdia. Isso nos leva a ver o sacramental como oração eclesial do povo cristão, e não uma forma degradada dos sete sacramentos. Quando este clamor atinge sua densidade máxima e torna-se oração solene da Igreja, então temos um sacramento no sentido pleno e rigoroso do termo. Mas os sacramentais já são oração eclesial, grito do povo inspirado pelo Espírito ao Pai, um clamor para o Reino.

4.3 Cosmologia teológica e sacramental

Este capítulo um pouco esquecido na nossa teologia latina poderia iluminar o mundo sacramental e, mais especificamente, os sacramentais.

O Oriente cristão manteve uma visão integral da salvação, em que o cósmico desempenha um papel muito importante. Precisamos desenvolver um capítulo da cosmologia teológica no qual se integre a criação do cosmos, a sua queda, a encarnação de Cristo, a ressurreição, a consumação escatológica do oitavo dia, todo isso transformado pela força vivificante do Espírito, que tudo o transfigura. O cosmos é um ícone sagrado, não é um mero objeto de exploração. Os sacramentos são momentos  especialmente densos de uma cosmologia teológica e escatológica, lugares onde se antecipa a transfiguração do cosmos, os novos céus e nova terra.

Tudo isso também se aplica aos sacramentais. Cristo, descendo às águas do Jordão em seu batismo, começa a purificar a natureza cósmica, antecipando o que se realizará no mistério pascal. Os céus e a terra, as águas, o arco-íris, os frutos do campo e do trabalho humano tornam-se símbolos sacramentais da nova terra renovada pela ressurreição.

Dentro da cosmologia cristã é necessário integrar a noção de salvação de forma plena. A divisão canônica e jurídica entre os efeitos espirituais e efeitos temporais sobre os sacramentais é empobrecedora  e pressupõe uma visão dualista da salvação que está intimamente ligada à saúde (da qual  leva o nome salus, soteria) e que inclui a libertação do pecado, do mal e da morte. A salvação alcança sua plenitude no Reino de Deus que é  consumação total da vida e, portanto, inclui o material e o espiritual, que são dimensões inseparáveis.

Este tópico, sumariamente enunciado, nos leva à teologia de bênçãos.

4.4 A teologia da benção 

Os sacramentais estão geralmente ligados às bênçãos. A bênção, no Antigo Testamento, é comunicação da força e poder de Deus através de sua Palavra e a de seus ministros. A bênção (berakah) produz abundância, fertilidade, bem-estar, saúde e paz (shalom).

Podemos dizer que a bênção comunica a vida divina aos humanos, é um dom do Deus vivo da vida, que chega a todos os viventes de alguma forma. O oposto de bênção é a maldição, um sinal de morte, por vezes pronunciada pelos profetas (Jer 25,5-6). O povo israelita na Bíblia se encontra entre a vida e a morte (Dt 39,19),  deve escolher um destes caminhos.

No Novo Testamento, Jesus, Palavra de Deus, abençoa crianças e doentes, com a sua autoridade expulsa demônios (Mc 1,21-28; Mt 12,28 e outros), chama bem-aventurados aos pobres e lamenta a situação dos ricos ( Lc 6,20-26), antecipando, assim, o julgamento escatológico (Mt 25,31-45). A eficácia da sua palavra passar para os discípulos, que participam do seu poder libertador que denuncia o mal, comunica a salvação e antecipa, de algum modo, o julgamento de Deus (Rm 15,19; 2Cor 12,12; Atos 8,18-28). Poderíamos dizer que a bênção antecipa o Reino de Deus, comunica vida e Espírito, liberta da morte e do maligno.

A bênção das coisas simboliza e condensa esta eficácia da Palavra, fazendo com que  a criação fique impregnada e cheia da força e da energia vivificadora do Senhor para o bem das pessoas. A bênção tem uma dimensão sacramental.

Nos sacramentais o clamor do pobre, através da Igreja, se torna petição ao Espírito (epiclese). As coisas abençoadas são um sinal sacramental da força vivificante da Palavra de Deus através da Igreja. O fruto dos sacramentais é a bênção de Deus, a vida, a participação do Reino de Deus.

5 Teologia da misericórdia

Chegamos ao último ponto da nossa reflexão teológica. Todo este rico e variado mundo dos sacramentais não é compreensível se não o acessamos com uma atitude de misericórdia.

Para aqueles que não vivem a angustiosa situação dos pobres, os sacramentais podem parecer supérfluos, supersticiosos, profanos, carregados de um ambíguo sincretismo. No entanto,  com misericórdia pode-se contemplar que, por trás da petição dos sacramentais que o povos deseja, se esconde um mundo de dor,  pobreza e injustiça não apenas metafísica, mas histórica e real.

Mas, acima de tudo, os sacramentais nos aproximam da misericórdia de Deus, suas entranhas de misericórdia, com as quais acolheu Israel (Lc 1,54), com as mesmas que Jesus se compadeceu das multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor (Mt 9,35, no final da seção narrativa dos milagres que começa em Mt 8).

O papa Francisco diz a este respeito na Evangelii Gaudium:

Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar, mas amar. Só a partir da conaturalidade afetiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres (n.125).

Certamente, os sacramentais devem ser evangelizados, iluminados pela Palavra, entroncados nos sacramentos, orientados ao reconhecimento dos benefícios de Deus e à tomada da  consciência do compromisso que o cristão tem com o mundo (Puebla n.962; DAp n.380-430). Mas não se pode esquecer que são sacramentos dos pobres e são parte de uma teologia e pastoral da misericórdia.

Isso também deverá levar à reforma os sacramentais, ampliando aos leigos muitas bênçãos que, até agora, estão ligadas exclusivamente ao ministério ordenado. A igreja local tem aqui um amplo espaço para realizar  a sua missão pastoral.

6 Conclusão

O sacramental é o clamor do povo feito oração simbólica, que sobe ao Pai através da Igreja e desce sobre o povo como uma bênção. Esta bênção atualiza de modo eclesial as bem-aventuranças dos pobres e antecipa cósmica e historicamente o Reino de Deus, o triunfo da vida sobre a morte. E tudo isso, pela misericórdia do nosso Deus, que nos visita para iluminar os que vivem nas trevas e nas sombras da morte (Lc 1,68-79).

Os destinatários privilegiados dos sacramentais são os pobres, ou seja, a maior parte da Igreja e da humanidade hoje. E, como escreve o papa Francisco na Evangelii Gaudium, “as expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização” (EG n.126).

Os sacramentais dos pobres podem evangelizar a teologia e a pastoral dos sete sacramentos. Os pobres sempre nos evangelizam.

Víctor Codina, SJ. Universidad Católica de Cochabanba, Bolívia. Texto original em Espanhol

7 Referências bibliográficas

CODINA, V. Os sacramentais: sacramentos dos pobres. Perspectiva Teológica v.22, n.56, 1990. p.55-68

CODINA, V.  Sacramentos. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. (eds.) Mysterium Liberationis. v.II. Madrid: Trotta, 1990. p.267-294.

MARTIMORT, A. G. La Iglesia en oración. Barcelona: Herder, 1987.

TABORDA, F.  Sacramentos, praxis e festa. 4.ed. Petrópolis: Vozes,,1998.

Para saber mais

BOFF, L. Los sacramentos de la vida y la vida de los sacramentos. Bogotá: Indo-American Press Service, 1977.

BOROBIO, D. La celebración en la Iglesia, II Sacramentos. Salamanca: Sígueme,   1988.

CASTILLO, J. M. El Reino de Dios. 3.ed. Bilbao: Desclée de Brouwer,. 2001

CHARALAMBIDIS, S. Cosmología Cristiana. In:  LAURENT, B.; REFOULÉ, F.  Iniciación a la práctica de la teología. v.III. Madrid: Cristiandad, 1985.

CODINA, V. No extingáis el Espíritu. Santander: Sal Terrae,  2008

KASPER,W. La misericórdia. 3.ed. Santander: Sal Terrae, 2013.

IRRARRÁZAVAL, D. Itinerarios de la fe andina. Cochabamba: Verbo Divino, 2013.

Liturgia, religiosidade popular e culturas

Sumário

Proêmio

1 Inculturação da liturgia

1.1 Que entendemos por liturgia e por cultura

1.2 Interação entre liturgia e culturas

1.3 Breve resenha histórica. Rumo à  interculturalidade

2 Criatividade litúrgica

2.1 Criatividade e novidade

2.2 Quatro modalidades na criatividade litúrgica

2.3 Variação, adaptação, inculturação

3 Religiosidade popular, cultura e liturgia

3.1 Importância da religiosidade popular

3.2 Religiosidade popular na América Latina

3.3 Religiosidade popular e liturgia

4 Encontro de fé e cultura no simbólico sacramental

4.1 Importância do simbólico sacramental

4.2 O evangelho nos chega através de símbolos e ritos

4.3 As culturas devem entrar no rito e progredir com ele.

5 Conclusão

6 Referências Bibliográficas

Proêmio

Para a fé cristã a encarnação do Filho de Deus é um dado tão importante que afeta todas as estruturas e elementos que a compõem: o tempo, o espaço, a cultura,  a religiosidade, o culto, as relações sociais … Tudo é permeado pelo fato de que Deus entrou em nossa história. A encarnação adquire o seu pleno significado na glorificação de Jesus. Mas para a fé cristã há outro fato, sem o qual não é totalmente compreendida, nem a pessoa de Jesus, nem a sua glorificação, nem a Igreja nem o destino da humanidade: este fato é a presença do Espírito de Deus na pessoa de Jesus na Igreja e no mundo.

Se a encarnação do Filho de Deus tem uma transcendência única, mas enquadrada em um tempo e um espaço concretos (Nazaré ano tal), a efusão do Espírito Santo é algo que permeia toda a história e todos os povos, mesmo que o seu ápice mais significativo seja Pentecostes. Nós tendemos a ler os acontecimentos salvíficos de forma linear sem conexão: a criação, a história antes de Jesus, a presença de Jesus na Palestina há dois mil anos, a história e a vida da Igreja depois de Jesus. Estes estágios são reais, mas somente o Espírito Santo os unifica: Ele vai ser a chave para entender coisas tão variadas como a presença de Deus na religiosidade do povo, a presença de Deus na liturgia, a presença de Deus em cada coração e em todas as culturas, o destino da humanidade .

Sempre, mas especialmente em tempos de rápidas mudanças históricas, culturais e sociais, a Igreja, na sua evangelização, estruturação e liturgia, precisa voltar a repensar a sua relação com a cultura ou as culturas dos povos, com base na encarnação de Cristo e no dom do Espírito.

1 Inculturaçaõ da liturgia

1.1 Que entendemos por liturgia e por cultura?

A palavra liturgia tem significados diferentes para o nível bíblico e eclesial. Refere-se a realidades inter-relacionadas, mas não idênticas. Aqui por liturgia entendemos o significado que a Constituição Sacrosanctum Concilium do Vaticano II lhe atribui mesmo sem tentar definir o que ela é. Ela diz  no n. 7:

Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo – cabeça e membros – presta a Deus o culto público integral.

Há palavras que devem ser levadas muito em conta nesta quase definição: exercício do sacerdócio de Jesus Cristo, cabeça e membros, santificação e culto público, sinais sensíveis que significam e realizam algo. A liturgia não pode ser reduzida a algo puramente interno ou individual; não é uma mera lembrança das ações salvíficas de Jesus; é atuação de Cristo hoje na sua Igreja; é adoração e santificação. O que Cristo fez na sua encarnação, paixão e glorificação, o continua atualizando hoje na liturgia pela Igreja, que recebeu seu Espírito. Odo Casel, grande precursor da renovação da teologia da liturgia,  disse em 1928 que em cada um dos sacramentos é dada “a presença do ato salvador divino sob o véu dos símbolos

e que “a liturgia é o mistério cultual de Cristo na Igreja” (citado por FILTHAUT, p. 28-29). A Sacrosanctum Concilium por sua vez, diz que “Cristo está sempre presente na sua Igreja, sobretudo na ação litúrgica” (SC 7).

A palavra cultura tem tido e tem significados muito diferentes. Limitando-nos ao âmbito do nosso estudo se poderia dizer que é o conjunto de expressões simbólicas (modo de vida e de trabalho, festas, artes, celebrações, formação …) que caracterizam a forma de ser, de agir, de sentir e de valorizar de um o povo. E mesmo quando não há unanimidade ante o conceito de cultura, há algum acordo sobre certos traços que a caracterizam e que caracterizam todas as culturas: a cultura não só é racional; não é um simples enfeite folclórico; não é algo unívoco, mas plural e diversificado; a cultura é um todo estruturado, mas é mutável e evolutiva;  deve ser participativa, se não quer ser manipulada; inclui as realidades profundas de um povo, realidades que a “moldam”, incluindo o fenómeno religioso;  influenciam nela o meio ambiente e história[1].  

1.2 Interação entre liturgia e culturas

A cultura como uma expressão do mais característico e mais íntimo do ser, agir, sentir e valorizar de um povo inclui, obviamente, a experiência religiosa de um povo. Enquanto isso, também a religiosidade de um povo (expressa em seus livros, crenças, festas e rituais) imprime de alguma forma a sua marca na cultura. Portanto, quando um povo tem recebido em sua história a fé cristã, a sua liturgia interage com a cultura numa simbiose mais ou menos bem sucedida, mas real. Duas palavras-chave explicam como ele funciona, ou, pelo menos, como pode funcionar essa interação: são as palavras aculturação e inculturação.

Aculturação: É a introdução de uma mudança ou modificação em um rito litúrgico para uma melhor inserção dos fiéis na liturgia. Aculturação envolve sempre se mudanças mais ou menos significativas no rito litúrgico estabelecido. Um exemplo: a sóbria liturgia romana dos primeiros séculos, quando em contato com povos evangelizados provenientes de outras culturas  nos séculos posteriores, aceitou ritos mais expressivos e textos mais exuberantes que de alguma forma mudaram o gênio do rito romano. Assim, a liturgia romana se “aculturou” (= acomodou-se) à cultura desses povos.

Inculturação: É a reinterpretação e transformação de um rito não-cristão para que ele possa tornar-se parte de um rito litúrgico, mas de forma que expresse o mesmo que expressa o rito litúrgico. A inculturação comporta mudanças mais ou menos profundas do rito não-cristão, mas respeitando a forma própria de uma cultura. Para realizar a inculturação é preciso, entre outras coisas que o gênio e a cultura de um povo e suas expressões simbólicas, linguísticas e rituais sejam muito bem conhecidos. Um exemplo: A unção pré-batismal não estava no rito batismal dos primeiros séculos; ele foi tirado da cultura e ritualidade  pagãs ; mas lhe foi dado um sentido cristão[2].

1.3 Breve resenha histórica. Rumo à  interculturalidade

Famílias litúrgicas: Um fenômeno eloquente da interação entre fé e cultura é, acima de tudo, a presença de vários ritos ou famílias litúrgicas na Igreja. Na verdade, por causa da diversidade teológica e cultural, existem desde os primórdios do cristianismo várias maneiras de celebrar a liturgia no Oriente e Ocidente: não se celebrava antes nem se celebra hoje da mesma forma nas igrejas de Roma, Constantinopla ( Istambul), Antioquia ou Alexandria. O Concílio Vaticano II valoriza muito estes ritos e deseja que continuem (cf. Orientalium Ecclesiarum n. 1-2).

Aculturação: Circunscrevendo-nos ao rito romano, a história da liturgia mostra que, apesar de que a liturgia ocidental tem sido muito resistente às mudanças, os ritos foram modificados ao longo dos séculos: não se celebrava da mesma forma nos primeiros séculos, que nos tempos medievais, depois do concílio de Trento e depois da reforma conciliar do Vaticano II. A liturgia ocidental tem sido “aculturando” aos diversos tempos e ás mudanças cultural. Em particular, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II teve em conta as exigências da cultura de hoje (uso de línguas vernáculas, criação e variedade de textos eucológicos, participação, etc.).

Inculturação: Sobre a inculturação, podemos dizer que o próprio Jesus fez uso de padrões culturais anteriores e de seu  tempo (incluindo banhos rituais de Israel, o batismo de penitencial e iniciático de João Batista), mas dando lhes um novo sentido. Nos primeiros séculos e limitando-nos ao patriarcado do Ocidente, a liturgia foi cautelosa em aceitar formas rituais de outras religiões. Nos séculos XVI e XVII destacam as controvérsias sobre os ritos malabares e  chineses que acabaram por ser desautorizados. Singularmente o Ritual do Matrimonio  do Vaticano II não está fechado para a possibilidade de aceitar um rito matrimonial tirado de outra cultura como forma do matrimonio, sob certas condições, especialmente em países recém-evangelizados e culturalmente muito diversos.

Rumo à  interculturalidade: Após o Concílio Vaticano II foi discutida – nem sempre com precisão nem com uma linguagem única – a aculturação e a inculturação da liturgia. Hoje, no contexto da pluralidade cultural e eclesial, se tende tanto no nível cultural e litúrgico a falar mais de interculturalidade. Limitando-nos ao caso da liturgia, pode-se dizer que os termos aculturação e inculturação já expressam a relação e interação entre liturgia e culturas. Mas o termo interculturalidade expressa em si mesmo com mais clareza e reciprocidade a interação entre duas ou mais culturas e evita o perigo real de dominação de uma cultura sobre a outra. A interculturalidade insiste que a relação deve ser em ambos os sentidos, sinérgica, respeitosa, de enriquecimento mútuo … Alguém pode se perguntar até que ponto a interculturalidade (que fala de culturas) é aplicável à relação entre uma cultura particular e liturgia da Igreja: é a liturgia, sem maiores precisões, uma cultura …? Sem entrar neste ponto, devemos reconhecer que a interculturalidade aplicada ao nosso caso pode ajudar à liturgia oficial para ter um relacionamento mais aberto e uma atitude mais respeitosa para com os valores de cada cultura.

2 Criatividade litúrgica

2.1 Criatividade e novidade

A palavra criatividade é uma palavra muito ampla. A ação de criar, característica de Deus, também se aplica ao homem, uma criatura de Deus. O homem cria, inventa, produz, institui, estrutura, organiza, recria. Criatividade e novidade estão ligadas: quando se cria se produz algo novo. Não podemos esquecer que Jesus é a novidade e a novidade não passa: ‘Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje, sempre “(Hb 13,8). Esta novidade que é Cristo deve se expressar e manifestar na liturgia da Igreja que Ele preside.

A liturgia ocidental, como eu sugeri, nem sempre tem sido um modelo de criatividade litúrgica. Esta falta de criatividade -, mas também de coragem e de clarividência – não fez nada para superar as divisões na grave crise da Reforma (s XVI.). A história da liturgia pós-tridentina, além do resultado infeliz dos ritos orientais chineses e malabares (s. XVII e XVIII), mostra algo que hoje parece estranho e ao qual tiveram que se submeter,  mais mal do que bem, as gerações passadas. Trata-se do “fixismo” e imobilismo litúrgico: língua, ritos, normas, rubricas e música foram prescritos e regulamentados até os menores detalhes durante séculos. A Constituição Sacrosanctum Concilium deu um grande passo ao estabelecer a reforma dos livros e ritos litúrgicos e ao incentivar a participação efetiva de todos os fiéis na liturgia.  Mas  reforma litúrgica não significa automaticamente renovação litúrgica. Muitos acreditavam ingenuamente que com a reforma dos livros litúrgicos, mudando do latim para a língua vernácula e transformando alguns ritos ou a disposição do local de culto, já tudo foi resolvido. Logo ficou claro que não era assim. Além disso, na América Latina a mudança nos pegou despreparados: faltava aprofundar na catequese, no modo de pregar e celebrar, na piedade popular, na relação entre liturgia e vida, na formação e catequese dos fiéis. Foi dada ênfase à reforma, mas não à renovação; falava-se demais de criatividade, mas pouco de novidade; houve uma febre de mudanças, mas não um esforço para alcançar uma melhor celebração e participação. Hoje ainda resulta difícil de entender que nem tudo pode ser resolvido com mudanças e que não há  reforma verdadeira sem renovação.

2.2 Quatro modalidades na criatividade litúrgica

Quatro modalidades: Se a criatividade litúrgica significa inventar novas formas rituais, devem distinguir-se os diferentes modos de criatividade: a. Cria-se tudo, forma e conteúdo (por exemplo, algumas intenções da oração dos fiéis improvisadas); b. Se ajusta uma forma ordinária ou “recriação parcial” (por exemplo, se explicita uma oração do missal muito abstrata ou muito concisa); c. Escolhe-se entre vários elementos (leituras, orações, cantos, ritos); d. Se reproduz algo já existente como se tivesse sido criado naquele momento época (declamação de um salmo,  interpretação de uma música, recitação de uma oração).

Regra de Ouro da criatividade: Dentro desses quatro modos indicados não existe uma hierarquia de valor ou eficácia. Porque  “o valor litúrgico de criatividade não flui a partir da quantidade de novidade,  mas da capacidade de significar a novidade do invisível“. Ou, em linguagem simples: A novidade litúrgica não consiste em fazer algo diferente todos os dias, mas fazê-lo cada vez de forma nova. O modo a não é necessariamente melhor do que o modo d.

Alguns exemplos:  1. Uma boa orquestra e coro interpretam dezenas de vezes a Nona Sinfonia de Beethoven, sem mudar nada; mas cada vez o faz de uma nova maneira, como se fosse a primeira vez. 2. Na comemoração de um aniversário não é necessário mudar os gestos estabelecidos, mas fazê-los com o entusiasmo para celebrar algo novo: o dom da vida. 3. As intenções da oração dos fiéis improvisadas não necessariamente ajudam a suplicar melhor do que aquelas preparadas com antecedência e anunciadas por um leitor. 4. Um cântico natalino novo o 25 de dezembro é louvável, mas não necessariamente comove mais e expressa melhor a festa de Natal  que o  clássico “Noite de Paz” bem executado. Mas este não é um convite para fazer sempre a mesma coisa: não podemos esquecer que ao rito litúrgico sempre lhe espreita a  rotina e a  banalidade, a simples repetição do passado sem referência para o futuro, o olhar para nós sem olhar para os outros e para o Outro.

2.3 Variação, adaptação, inculturação

Na preparação e execução da liturgia deve ser  levado em conta, além do indicado sobre a criatividade e novidade, três elementos que as favorecem e indico a seguir:

A variação (indicado nos livros litúrgicos e pouco utilizado por alguns): Não podemos repetir todos os dias o mesmo ritual, a mesma celebração, os mesmos textos e os mesmos cantos sem cair na rotina. É  necessário o uso de variantes. Os livros litúrgicos atuais apresentam uma grande variedade de textos eucológicos (por exemplo: de uma oração eucarística passou-se a treze). Além disso, a liturgia não deve ser reduzida à celebração da Eucaristia: rezar a Liturgia das Horas oferece uma estrutura diferente e enriquece a nossa oração. A inflação de missas leva à desvalorização eucarística …

A adaptação: A missa não pode ser igual na paróquia, num convento de religiosas, com as crianças, ou na prisão … Os livros litúrgicos o insinuam quando dizem nas rubricas: “segundo as circunstancias” ou “se for considerado adequado pastoralmente ” e quando apresentam diversidade de orações para acomodar um sacramento a quem o recebe. Um modelo de adaptação verdadeiramente exemplar é o “Diretório litúrgico para as missas com participação de crianças”, publicado pela Congregação para o Culto Divino, em 1973. Ele merece ser levado mais em consideração nas escolas, na catequese e nas paróquias. Outra adaptação para ter presente é o “Diretório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero”, publicado em 1988 pela Congregação e que convida a exercer uma adaptação criativa e a evitar a imitação servil da missa dominical.

A inculturação-aculturação: Na Constituição da Liturgia  não aparece este tecnicismo; mas se fala aí de  uma “adaptação mais profunda” à mentalidade e às tradições dos povos em determinados lugares e circunstâncias (cf. n. 37-40). Os n. 38-39 falam de uma adaptação do rito romano a uma cultura (aculturação); Os n. 37 e 40 falam da inclusão de elementos de uma cultura no rito litúrgico (inculturação). Para esta adaptação mais profunda se exigem  certas condições descritas em outros documentos. Um exemplo atual de recente inculturação e aculturação é encontrado no rito zairense da Eucaristia (hoje chamado rito congolês), na atual Rep. Dem. do Congo, em África (PALOMERA cf., p. 73-76). Em diversas culturas indígenas da América Latina têm-se permitido mudanças limitadas, especialmente no campo dos textos eucológicos (traduções dinâmicas).

3 Religiosidade popular, cultura e liturgia

Falando das relações entre religiosidade popular, cultura e liturgia, não faremos uma distinção entre religiosidade popular e religião do povo. Embora a distinção é relevante para o nível geral da antropologia religiosa, ao nível da liturgia e da cultura dos povos da América Latina, a distinção está cada vez menos nítida. O povo tende a expressar e  viver a religião (fé, crenças, sentido religioso) pela religiosidade (ritos, expressões simbólicas, festas) na liturgia oficial da Igreja e fora dela.

3.1 Importância da religiosidade popular

A religiosidade popular é um fenômeno que atravessa todos os povos e que influi em todas as culturas. O documento de Puebla (n. 444)  nos diz em palavras simples que “por religião do povo, religiosidade popular ou piedade popular, entendemos o conjunto de crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes básicas que derivam dessas convicções e as expressões que as manifestam”. E acrescenta: “Trata-se da forma ou da existência cultural que a religião adota em um povo determinado.” A religiosidade popular tem acompanhado a liturgia da Igreja desde os seus inicios. No Oriente cristão, a liturgia soube incorporar a religiosidade em sua liturgia ou caminhar em estreita união com ela. No Ocidente, a liturgia, mais formal e elitista, não conseguiu essa simbiose: a religiosidade popular se desenvolveu em forma paralela à liturgia.

3.2 Religiosidade popular na América Latina

Na América Latina, a religiosidade popular católica impregnou tanto a cultura das diversas etnias e grupos sociais que é um traço que marcou o catolicismo e as culturas latino-americanas. Os bispos reunidos em Medellín após o Concilio alertaram sobre a necessidade de tê-la em conta para evitar um divórcio entre o catolicismo e o povo dos batizados (cf. Doc. Medellín 6.3). João Paulo II a valorizava e a caracterizava com estas palavras:

“Esta piedade popular não é necessariamente um sentimento vago, carente de base doutrinal sólida, como uma forma inferior de manifestação religiosa. Pelo contrário, quantas vezes é a expressão verdadeira da alma de um povo, enquanto tocada pela graça e forjada pelo encontro feliz entre a obra de evangelização e a cultura local “(Homilia pronunciada em 30 de Janeiro de 1979, santuário de Nossa. Senhora de Zapopan, 2)

Papa Francisco fala na Evangelii Gaudium em termos altamente elogiosos da religiosidade popular na América Latina, dizendo:

“aquele amado Continente, onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples».” (EG, 124).

Junto com elementos positivos não faltam elementos negativos na religiosidade popular. Entre os elementos positivos podemos apontar, entre outros, os seguintes: a presença trinitária em devoções e na iconografia; sentido da providência de Deus Pai; Cristo, celebrado no seu mistério da encarnação, na sua crucificação, na Eucaristia, na devoção ao Coração de Jesus; amor afetuoso e terno a Maria (talvez o traço mais característico da religiosidade da América Latina); as festas patronais; as peregrinações; a fé na vida após a morte. Entre os aspectos negativos apontamos, entre outros, os de origem ancestral (superstição, magia,  fatalismo); aqueles resultantes de uma catequese pobres (ignorância, sincretismo, redução da fé a um mero contrato, sacramentalismo vazio, ritualismo); os origem ambiental (incoerência entre a fé e a vida, falsos messias, alcoolismo em festas) (ver Doc. Puebla n. 454 e 456 e Doc. Aparecida n. 258-259).

3.3 Religiosidade popular e liturgia

Os limites entre o litúrgico e a religiosidade popular não devem tornar-se fronteiras. Nossas liturgias deveriam reconhecer mais plenamente a importância da piedade popular, como insinua a Sacrosanctum Concilium (n. 9 e 13). Deveríamos ter mais em conta as culturas, as etnias e as línguas minoritárias. Além disso, na religiosidade popular deveria promover-se a valorização da Palavra de Deus, a pregação,  a participação na oração comunitária e nas assembleias dominicais, a preparação para os sacramentos, uma sólida catequese no nível dos ritos e a purificação de aquilo que desmente a fé  e a vida cristã.

4 Encontro de fé e cultura no simbólico sacramental

4.1 Importância do simbólico sacramental

A comunicação no nível humano e  religioso funciona por símbolos. A pessoa humana é um ser ritual. Se expressa e se disse através de sua corporeidade, da sua palavra, dos  seus gestos, dos seus símbolos e dos seus ritos. Isto nos é lembrado pela religiosidade e piedade popular de nossos povos: basta pensar na importância das imagens, cantos, bênçãos, devoções,  oração em família, procissões, confrarias, danças religiosas, festas patronais e santuários em cada cidade. Também a comunicação no nível divino salvífico funciona por símbolos. Deus se mostrou através de sinais: a criação, os profetas, a Palavra revelada, Cristo e seus gestos, a comunidade eclesial e humana, os gestos sacramentais, o pobre… Porque Deus nos fez corpóreos e se tornou corpóreo.

4.2 O evangelho chega até nós através de símbolos e  ritos

O evangelho não é simplesmente uma história de dois mil anos atrás. A Boa Nova não é apenas uma história de algo que aconteceu “in illo tempore“. Se fosse assim nós admiraríamos um homem excepcional, mas não mais. O que Jesus fez na Palestina é atualizado hoje “per ritus et preces” (Sacrosanctum Concilium n. 48), ou seja, através da ação litúrgica de assembleias realizadas em seu nome e invocando a força do seu Espírito nas celebrações. O Símbolo da Fé (Credo), não só expressa a fé da Igreja: ao professá-lo nos une, nos identifica e nos ajuda a crescer como Igreja. A liturgia é isto: não é simples cerimônia, não é mera memória, e não é mera repetição. Cristo está presente no sinal da Palavra, Cristo nos alimenta com Seu pão celestial, Cristo nos une em seu corpo pela força do seu Espírito. Sem esses sinais e sem o Espírito Santo, Cristo permaneceria distante.

4.3 As culturas devem entrar no rito e progredir com ele

Hoje não podemos falar de uma única cultura. Vivemos em um mundo plural. Também a igreja una é uma Igreja plural. É católica não é porque ela se expresse em um idioma e cultura, mas porque na pluralidade de línguas e culturas celebra uma mesma fé. Em Pentecostes, o dom de línguas fez que cada povo entendesse em seu idioma a mensagem que os apóstolos professavam em sua própria língua. Hoje, o dom de línguas deve consistir em que a boa nova do Evangelho seja recebida, se celebre e se encarne na multiplicidade de línguas, salvaguardada a fé. A Igreja Católica é universal, porque nela há espaço para cada cultura, língua, expressão ritual e  artística. A inculturação ritual não é moda; é uma tarefa.

 Conclusão

A encarnação do Filho de Deus é um fato que nos convida a concentrar-nos e encontrar-nos na pessoa de Jesus. A irrupção do Espírito de Jesus na comunidade de Pentecostes nos convida a alargar o horizonte para ver que Jesus, presente na sua Igreja, abraça todas as culturas, povos e línguas e nos abre a humanizar e divinizar o mundo. A igreja na sua liturgia  (embora não apenas nela) tem uma tarefa importante: mostrar que o Senhor está presente em nossa história, em nossas vidas, em nossas culturas. Para isso, a liturgia deve abraçar cada cultura, encarnar-se nelas e traduzir a mensagem para a língua de hoje, a de cada povo e cada cultura. Árdua missão, a longo prazo, mas não impossível. Trata-se não de mudar tudo e desperdiçar um tesouro de vinte séculos; mas de evitar uma liturgia de museu (antiquada), inexpressiva (de rotina) ou discordante com a cultura de um povo : é a tarefa de todos, especialmente dos que a presidem,  especialmente se eles estão inseridos pelo nascimento e batismo naquela cultura.

L. Palomera, S.J. Universidad Catolica de Bolívia, Cochabamba, Bolívia. Texto original espanhol

5 Referências bibliográficas

CHUPUNGCO, Anscar, “Adaptación” en: Nuevo Diccionario de Liturgia, ed. D. Sartore y A.M. Triacca, Madrid: Paulinas, 1987.

DI SANTE, Carmine, “Cultura y liturgia” en: Nuevo Diccionario de Liturgia, ed. D. Sartore y A.M. Triacca, Madrid: Paulinas, 1987.

FILTHAUT, Teodoro, Teología de los Misterios. Exposición de la controversia, Bilbao: Desclée de Brouwer, 1963.

PALOMERA,  Luis, “Le rite zaïrois de la messe. Opinion d’un liturgiste de l’Amérique latine”, en Telema 29 (1982) 73-76.

Para aprofundar mais:

ALDAZÁBAL, J. et al., La inculturación en la liturgia, Cuadernos Phase 35, Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica , 1992.

CASEL, Odo, El Misterio del culto cristiano, San Sebastián: Dinor, 1953.

CONSEJO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, Iglesia y Religiosidad popular en América Latina. Ponencias y Documento final, Bogotá, 1977.

DEPARTAMENTO DE LITURGIA DEL CELAM, El Medellín de la Liturgia, Bogotá, 1973.

EQUIPO SELADOC, Religiosidad popular, Salamanca: Sígueme, 1976.

 [1] Para um maior aprofundamento cf. DI SANTE: p. 518-530.

[2] Para um maior aprofundamento cf. CHUPUNGCO: p. 45-48.

Eclesiologia

Sumário

1 Dificuldades atuais da Igreja

2 Princípios sociológicos e teológicos para compreender a Igreja

3 Fundamentos bíblicos da Igreja

4 Os três milênios eclesiológicos

4.1 Primeiro milênio: Igreja, mistério de comunhão

4.2 Segundo milênio: Igreja de Cristandade

4.3 Terceiro milênio: Igreja que volta a suas origens e se abre aos sinais dos tempos

5 Linhas de força da eclesiologia

6 Desafios para a Igreja do futuro

7 Referências bibliográficas

Antes de começar a refletir sobre a matriz eclesiológica, gostaríamos de dizer, para ser honestos, que nosso horizonte eclesiológico é aberto e, embora apresente a eclesiologia desde a perspectiva católica, poderá ser enriquecido ecumenicamente por outras abordagens eclesiológicas protestantes, anglicanas e ortodoxas.

1 Dificuldades atuais da Igreja

Depois do entusiasmo eclesial do século XIX (Vaticano I) e de inícios do XX, que culminou no concílio eclesiológico Vaticano II, seguiu um tempo de crise eclesial, expressado em formulações como “Cristo sim, Igreja não”, “crença sem pertença eclesial”, “espiritualidade sim, mas instituição não”, “cristãos do átrio”, “inverno eclesial”, “todas as religiões são iguais” etc.

Os motivos são numerosos e variados: escândalos sexuais de ministros da Igreja e escândalos econômicos das finanças vaticanas, pouco respeito aos direitos humanos dentro da Igreja, estreiteza de visão do magistério moral, patriarcalismo, autoritarismo e centralismo hierárquico, aliança da Igreja com os poderosos etc. Em todos estes casos se identifica a Igreja com a hierarquia (papa, cúria vaticana, bispos, presbíteros), embora  não esteja constituída apenas pela hierarquia, nem seja o Reino de Deus, nem  possa substituir a Jesus Cristo, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo  14,6). A Igreja também não tem a exclusividade do Espírito, pois ele também age fora da Igreja nas culturas e religiões. O que é, então, a Igreja?

2 Princípios sociológicos e teológicos para compreender a Igreja

Do ponto de vista sociológico, qualquer iniciativa pessoal, tanto de ordem política quanto cultural e religiosa, não pode ser duradoura se não se institucionaliza, pois toda instituição precisa de um centro de unidade e governo. Sem a institucionalização comunitária, eclesial, o movimento iniciado por Jesus de Nazaré teria desaparecido.

No entanto, teologicamente, é preciso ir além: Deus é um mistério de comunhão, é uma comunidade trinitária e seu projeto de salvação (o Reino de Deus) é comunitário no seu conteúdo (filiação divina e fraternidade humana) e encarnatório (se realiza em Cristo). Desta maneira, o desígnio divino se realiza na história impulsionada pela ação do Espírito nas comunidades: o Israel do Antigo ou Primeiro Testamento, a comunidade de Jesus e seus discípulos, a Igreja comunidade visível e encarnada na história da humanidade. Seu centro é o mandamento do amor, o amor trinitário que se abre e comunica à humanidade.

A Igreja não é uma ideologia, mas um fato histórico. Por isso, não é possível compreender a Igreja sem recorrer à história da Igreja. No entanto, a Igreja não é apenas um problema, mas um mistério que só pode ser acessado a partir da fé. E, por ser um mistério ligado ao mistério trinitário (LG I), a Igreja nunca pode ser plenamente apreendida nem definida. Assim, coexistem, tanto na Escritura quanto na Tradição teológica, diversas reflexões sobre a Igreja (ou eclesiologias), que não são excludentes nem contraditórias, mas que se complementam e enriquecem mutuamente. Por esta mesma razão, procuraremos nos aproximar metodologicamente da Igreja desde seus diversos momentos históricos, desde as diversas eclesiologias que têm  aparecido. Não apenas a partir das eclesiologias oficiais, mas também das eclesiologias que têm surgido da base do Povo de Deus e mais concretamente da América Latina.

3 Fundamentos bíblicos da Igreja

Sem entrar na questão da relação da Igreja de Jesus com as outras religiões (matriz cf. diálogo inter-religioso), podemos dizer que a igreja cristã tem uma longa pré-história no Primeiro Testamento: do plano comunitário de salvação de Deus contido  simbolicamente nos 11 primeiros capítulos do Gênesis (comunidade inter-humana, cósmica e religiosa) e que parece fracassar depois de Babel (Gn 11), Deus escolhe Abraão para que seja cabeça de um povo que lhe sirva com fidelidade e pratique a justiça, de modo que seja luz para todas as nações (Gn 12,1-3;18,18). Este povo,  libertado por Deus, através de Moisés, da escravidão do Egito (Ex 14), será o Povo de Deus, com quem Yahweh estabelecerá uma estreita aliança (Ex 20). Contudo, o Povo de Deus, que passou da época da confederação tribal à monarquia, quebrou muitas vezes essa aliança, sobretudo no tempo da monarquia e, apesar da voz crítica dos profetas, terminou no exílio (Sl 137). Yahweh o salva de novo, e do exílio surge um resto de Israel fiel a Deus, os pobres de Yahweh (anawim), do qual brotarão João Batista, Maria e Jesus. No Antigo Testamento, já se prefigura e prepara a Igreja do futuro (LG 2).

Jesus pertence ao povo de Israel e, com sua vida, morte e ressurreição, abre um horizonte novo; forma uma comunidade de discípulos (Mc 3,13-19 e paralelos) para renovar Israel: os doze representam as doze tribos de Israel; depois da Páscoa e Pentecostes, esses discípulos constituíram a base da comunidade cristã, da Igreja (ver cristologia).

O Novo Testamento pressupõe a existência de comunidades cristãs e recolhe as reflexões e exortações pastorais das primeiras testemunhas de Jesus em torno às diversas comunidades cristãs; o Novo Testamento se origina na tradição viva da Igreja que antecedeu os escritos. O Espírito ilumina e inspira os escritores em função da formação da Igreja. No Novo Testamento, não há uma eclesiologia sistemática, mas uma pluralidade de vivências pastorais e de reflexões eclesiológicas.

Para Paulo, a Igreja é Povo de Deus (Rm 11), Corpo de Cristo (1Cor 12,13) e Templo do Espírito (1Cor 3,16). As Cartas pastorais, escritas em um momento posterior,  apresentam a Igreja como Casa de Deus (1Tm  3,5.15), que deve manter a fidelidade  doutrinal e a estrutura ministerial de governo. As Cartas do cativeiro veem a Igreja como Corpo de Cristo (Cl 1,18) e Esposa do Senhor (Ef 5,21-23). Lucas – no seu evangelho – e, sobretudo, nos Atos dos Apóstolos, nos apresenta o tempo da Igreja (At 1,8) que prossegue e leva adiante o tempo de Jesus, sob a força do Espírito. Para Mateus, a Igreja é o verdadeiro Israel (Mt 21,33-46), dentro do qual Pedro é o rochedo e possui as chaves do Reino (Mt 16,19). A tradição joanina reflete uma dimensão mais pessoal da fé como adesão a Cristo, mas não faltam imagens com ressonância eclesial como o bom pastor (Jo 10), a alegoria da videira (Jo 15) e a parábola eclesial da pesca milagrosa que culmina com o encargo a Pedro de apascentar as ovelhas (Jo 21). A 1ª Carta de Pedro se dirige a uma comunidade cristã em situação de diáspora e a anima recordando-lhe que é Povo de Deus, linhagem escolhida e sacerdócio santo (1Pd 2,9-10). A Carta de Santiago salienta a prioridade dos pobres na Igreja (Tg 2,1-7). A Carta aos Hebreus apresenta Jesus como o sacerdote fiel e compassivo, que nos abriu a entrada ao santuário do céu (Hb 9). Apocalipse quer consolar e animar uma Igreja em situação de perseguição pelo Império romano e oferece imagens femininas da Igreja: a mulher que vence o dragão (Ap 12), a Esposa do Cordeiro (Ap 19), a Nova Jerusalém (Ap 21).

Através destes diversos escritos, aparecem os traços essenciais da Igreja do Novo Testamento: uma comunidade que vive uma radical igualdade e fraternidade entre todos seus membros, com pluralidade de carismas e ministérios, um dos quais é o governo que vela pela unidade de fé e a comunhão. É uma comunidade centrada em Cristo e no Espírito, uma comunidade encarnada na história que caminha para o Reino de Deus seguindo o estilo pobre e simples de Jesus de Nazaré, uma comunidade na qual os pobres ocupam um lugar privilegiado, uma comunidade que anuncia a boa nova do evangelho de Jesus, celebra a fracção do pão e serve o mundo inteiro.

4 Os três milênios eclesiológicos

Não basta conhecer a eclesiologia bíblica, nem a Igreja que Jesus queria, também é preciso conhecer como a Igreja se desenvolveu na história através dos séculos. Podemos distinguir três milênios eclesiais e eclesiológicos.

4.1 Primeiro milênio: Igreja mistério de comunhão

É a passagem da Igreja Apostólica à Igreja pós-apostólica, quando a experiência de Jesus é refletida no Novo Testamento, a comunidade se organiza e se estrutura internamente (bispos, presbíteros, diáconos). Abre-se a todos os povos e culturas, reage e se defende frente às heresias trinitárias e cristológicas, padece perseguições e martírio.  A mesma que, sobretudo depois da paz constantiniana, está dotada de grandes santos que também são pensadores e escritores, os denominados Padres da Igreja. Esta Igreja possui um impulso que durará até o ano mil.

É uma Igreja que se concebe como mistério de comunhão, comunhão trinitária, comunhão eucarística, comunhão fraterna e pastoral, comunhão solidária com os pobres. A reflexão teológica, a eclesiologia, é mais vital, pastoral, bíblica e litúrgica que sistemática. A Igreja se introduz no credo no terceiro artigo sobre a fé no Espírito, para expressar que ela existe sob a força do Espírito que a santifica, unifica, a mantém fiel à tradição apostólica e aberta à universalidade católica: por isto se proclama una, santa, católica e apostólica.

Foram desenvolvidas pastoralmente algumas imagens da Igreja, como a lua que brilha, não com luz própria, mas pela luz do sol que é Jesus; a barca de Pedro, que atravessa o mar do mundo, guiada pelo piloto que é Cristo e pela força do Espírito; a Igreja que é santa e pecadora, casta e prostituta, nunca abandonada pelo Espírito. É uma Igreja que vive fortemente a dimensão local, mas reconhece a primazia na caridade da Igreja de Roma, uma sede santificada pelo martírio de Pedro e Paulo. É uma Igreja participativa e ativa que procura resolver as tensões internas com espírito de diálogo e que faz da eucaristia o lugar de comunhão eclesial: a Igreja faz a eucaristia, a eucaristia faz a Igreja.

4.2 Segundo milênio: Igreja de Cristandade

Ainda que a Cristandade esteja enraizada no tempo de Constantino e Teodósio (séc. IV), ela não se consolidou definitivamente até o século XI, com a reforma de Gregório VII, que, para defender a liberdade da Igreja contra os senhores feudais, centraliza a Igreja e reforça a autoridade papal, em detrimento das igrejas locais e da participação da comunidade. É uma Igreja fortemente clerical, juridicista e triunfalista. A eclesiologia sistemática nasce no século XIV como defesa do poder papal (o sol) contra o imperador (a lua).

Nesta Igreja, começa a divisão entre clérigos e leigos, a ruptura entre a Igreja Ocidental Latina e a Igreja do Oriente, entre a Igreja Romana e as Igrejas da Reforma, entre a Igreja e a sociedade moderna ilustrada. Esta tendência autoritária e fechada ao mundo secular aumenta depois da Revolução Francesa (séc. XVIII), se consolida no Concílio Vaticano I (séc. XIX) e atingirá o seu auge com o pontificado de Pio XII. É certamente a Igreja das catedrais e das sumas teológicas, uma Igreja com grandes santos e santas, místicos e místicas, mas é também a Igreja das cruzadas, da Inquisição, e das guerras de religião entre cristãos.

Neste segundo milênio não faltam movimentos proféticos que pedem um retorno às origens evangélicas: o monacato, os movimentos de leigos dos séculos XI ao XIII, os mendicantes, a Reforma, os bispos e missionários do século XVII defensores dos indígenas na América Latina, a minoria teológica do Vaticano I, que postulava uma Igreja mais comunitária, pneumatológica e trinitária. Em meados do século XX, surgem, no contexto ocidental europeu, uma série de movimentos teológicos e pastorais  (movimento bíblico, litúrgico, patrístico, ecumênico, social…) que se cristalizarão no Vaticano II, convocado por João XXIII; o Vaticano II representa uma mudança de modelo eclesial, é o fim da Cristandade, é a passagem à Igreja do Terceiro milênio.

4.3 Terceiro milênio: Igreja que volta a suas origens e se abre aos sinais dos tempos

O Concílio Vaticano II (1962-1965) é um verdadeiro Pentecostes eclesial que recupera a dimensão comunitária da Igreja de comunhão e dialoga com a sociedade moderna. De Igreja clerical passa a ser Igreja Povo de Deus (LG II); de Igreja juridicista passa a ser Igreja mistério e sacramento de unidade entre Deus e a humanidade (LG I, 1, 9, 48); de Igreja triunfalista passa a ser uma Igreja que peregrina em direção à escatologia (LG VII). A eclesiologia do concílio é uma eclesiologia de comunhão. Uma série de reformas conciliares configura um tempo de primavera eclesial que não durou muito, pois os movimentos reacionários e fundamentalistas que queriam voltar à Igreja de Cristandade (como Lefèbvre) junto ao exagero de alguns grupos extremistas provocaram fortes tensões eclesiais e, de Roma, começa um recuo e freio do Vaticano II, por medo de rupturas internas e, sobretudo, por temor que a Igreja perdesse sua identidade cristã. Iniciou-se, assim, um longo inverno eclesial, uma hermenêutica da continuidade do Vaticano II, muito afastada do aggiornamento ou atualização que queria João XXIII, e que se manteve vigente, sobretudo nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI.

A nomeação de Francisco oxigenou o ambiente eclesial e há sintomas de uma nova primavera eclesial: é retomado o impulso do Vaticano II e se deseja voltar às atitudes evangélicas das origens da Igreja.

Não é por acaso que Francisco é o primeiro papa latino-americano, uma vez que na América Latina houve uma recepção criativa e evangélica do Concílio Vaticano II, que resultou em ouvir o grito dos pobres (Medellín, 1968), na opção pelos pobres (Puebla, 1979), na inculturação nas culturas indígenas e afro-americanas (Santo Domingo, 1992), no impulso para um discipulado missionário e numa Igreja em estado de missão (Aparecida, 2007). Nos anos 1960-80, surgiu na América Latina a imagem da Igreja dos pobres, com bispos que foram verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres, comunidades eclesiais de base (CEBs), leigos empenhados na justiça, mulheres defensoras dos direitos humanos, agentes pastorais e movimentos apostólicos, a teologia da libertação e numerosos mártires… tudo o que lembra os momentos da Igreja do primeiro milênio. Estas correntes teológicas e pastorais se abriram nas últimas décadas a novos sujeitos e a novos campos: às mulheres, aos indígenas e afro-americanos, aos jovens, às novas identidades sexuais, à ecologia, à religiosidade do povo, à piedade e mística popular, etc.

A eclesiologia de América Latina historizou a salvação (libertação) e o pecado (estruturas que matam) e oferece uma imagem de Igreja dos pobres e diferentes, ao serviço da vida, para que o povo tenha vida plena e em abundância, começando pelo mínimo que é o pão de cada dia.

5 Linhas de força da eclesiologia

Esta diversidade de imagens e reflexões eclesiais tem o risco de nos conduzir a uma dispersão e relativismo eclesiológico, se não procuramos estabelecer os princípios estruturadores da Igreja e da eclesiologia.

Podemos dizer claramente que os princípios estruturadores da Igreja são trinitários, a Igreja é Ecclesia de Trinitate, mas esta Trindade se manifesta ad extra  nas duas missões trinitárias que constituem o princípio cristológico e o princípio pneumatológico, ou do Espírito.

Princípio cristológico: a Igreja é a Igreja de Jesus, preparada e prefigurada profeticamente no Antigo Testamento, centrada em Jesus de Nazaré, Filho de Deus e Palavra encarnada, enviado pelo Pai para realizar seu projeto de filiação e fraternidade universal, o Reino de Deus. A vida de Jesus de Nazaré, suas opções, sua cruz e sua ressurreição revelam e fazem presente o projeto do Pai. Jesus não queria fundar uma comunidade separada de Israel, mas de fato sua comunidade de apóstolos e discípulos, depois da Páscoa, será o núcleo da Igreja futura da qual Jesus é fundamento e pedra angular. A Igreja é o corpo comunitário de Jesus na história, até que chegue sua segunda vinda na Parusia. Jesus é a riqueza, a beleza e a luz da Igreja, sem ele a Igreja é estéril e miserável, a Igreja não significa nada se não é testemunha e sacramento de Jesus.

Princípio pneumatológico: a Igreja não nasce em Belém ou Nazaré, mas na Páscoa com a efusão do Espírito Santo, que preparou a vinda de Jesus, o ungiu no batismo, o guiou na sua vida e o ressuscitou dentre os mortos. Esse mesmo Espírito faz nascer a Igreja e a guia através da história, a santifica, vivifica e rejuvenesce continuamente com os sacramentos e com diversos carismas e dons (LG 12) para que realize o projeto do Pai inaugurado por Jesus (LG 4). Sem o Espírito, a Igreja se reduziria a uma simples organização humanitária e social que faz propaganda do evangelho. Com o Espírito, a Igreja é a comunhão trinitária. Sua missão é um Pentecostes continuado. No entanto, o Espírito age além da Igreja católica e das Igrejas cristãs e faz com que a salvação chegue a todos os que, por caminhos misteriosos para nós, podem ser associados ao mistério pascoal (GS 22).

Não há uma Igreja sem Espírito (tentação do cristomonismo ou de Cristo sozinho) nem um Espírito sem Jesus (espiritualismo, iluminismo, gnosticismo, new age…). O Filho encarnado em Jesus e no Espírito são os dois braços do Pai que desde a criação acompanham e guiam toda a humanidade (Irineu[1]). A Igreja é ícone da Trindade.

Essa Igreja se manifesta como anúncio e testemunha do evangelho (kerigma e martírio), celebração eucarística e sacramental (liturgia), serviço ao mundo, sobretudo aos pobres (diaconia) e tudo isso em comunidade e comunhão (koinonia).

Desde o Vaticano II, a Igreja pode ser definida como sacramento[2], isto é, um sinal e instrumento da união com Deus e com a humanidade (LG 1; 9; 48), não é uma simples instituição hierárquica, nem um entusiasmo sem mediação sacramental. Não é o Reino, mas semente do Reino (LG 5).  É sacramento histórico de libertação (teologia da libertação), foi convocada pelo Pai para fazer memória e seguir o caminho de Jesus para o Reino, pela força do Espírito. Seu ícone é a figura de Maria, tipo e modelo da Igreja (LG VIII). São retomadas as imagens paulinas e trinitárias da Igreja: Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito.

6 Desafios da Igreja para o futuro

São muitos os desafios atuais da Igreja para o futuro. Em geral, podemos dizer que o maior desafio é levar a bom termo o que o Concílio Vaticano II propôs e ainda não foi possível realizar, por exemplo, potencializar a colegialidade episcopal e as Igrejas locais, o desenvolvimento dos leigos, respeitar a legítima autonomia da criação… No entanto, há outros temas que o concílio não abordou e que devem ser enfrentados hoje: reforma do Papado e da cúria, promover a ordenação de homens casados (viri probati), revisar o papel da mulher na Igreja, repensar a moral e pastoral sexual e matrimonial, dialogar com os teólogos e teólogas, assumir o desafio ecológico…

Além disso, no momento de mudança epocal e axial que vivemos, a Igreja deve iniciar no mistério de Deus (mistagogia) e dialogar com todas as religiões para procurar  conjuntamente a justiça, a paz e a integridade da criação.

Contudo, podemos afirmar que todas estas mudanças estruturais, ainda que sejam necessárias, são insuficientes e, finalmente, inviáveis se a Igreja como Povo de Deus não volta de novo ao evangelho de Jesus de Nazaré e se deixa guiar pelo Espírito do Senhor. As mudanças na Igreja e na sociedade normalmente vêm de baixo. O Espírito do Senhor age a partir de baixo. De uma Igreja convertida ao evangelho poderá nascer uma Igreja simples, pobre e dos pobres, sincera, acolhedora, que promova o diálogo, a proximidade e a ternura, que sinta a alegria de conhecer, viver e anunciar o evangelho; uma Igreja que dê testemunho ao mundo do amor e da misericórdia do Pai, que suscite esperança, uma Igreja preocupada, antes de tudo, com dor e sofrimento humanos, que denuncie a idolatria do dinheiro e as estruturas econômicas que excluem e matam o povo; uma Igreja que saia às ruas, que possa ir às fronteiras e às margens sociais e existenciais, que respeite os que pensam diferente e não os julgue, uma Igreja que seja casa e lar de portas abertas e não queira reconquistar o poder e prestígio perdidos nem voltar a uma nova Cristandade, mas ser levedura e fermento em um mundo pluralista. Não é esta a imagem de Igreja que promove o Papa Francisco? A todos os batizados corresponde sermos audazes e criativos para ir configurando uma Igreja fiel às suas origens e que possa discernir os novos sinais dos tempos.

Concluamos com uma definição de Igreja de João Crisóstomo, que pode resumir tudo o que discutimos: “Sínodo é o nome da Igreja”,[3]  ou seja, uma comunidade unida pelo Espírito do Senhor caminha com a humanidade para o Reino de Deus, dando testemunho do evangelho de Jesus de Nazaré.

Víctor Codina sj. Universidad Católica de Bolivia, Cochabamba, Bolivia. Texto original espanhol.

7 Referências bibliográficas

CODINA, Víctor. Para compreender a Eclesiologia a partir da América Latina. São Paulo: Paulinas,  1993.

______. Para comprender la eclesiología desde América Latina. Estella: Verbo Divino, 2008. (nova edição atualizada)

KASPER, Walter. A Igreja católica. São Leopoldo: Unisinos, 2012.

Para saber mais

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CONGAR, Yves-Marie. Eclesiología desde San Agustín a nuestros días.  Madrid: BAC,  1976.

DE ALMEIDA, Antonio José. Lumen Gentium, a transição necessária. São Paulo: Paulus, 2005.

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RAHNER, Karl.  Cambio estructural en la Iglesia. Madrid: Cristandade, 1974.

RATZINGER, Josef.  El nuevo Pueblo de Dios. Barcelona: Herder, 1972.

SOBRINO, Jon. Resurreccion de la verdadera Iglesia. Santander: Sal Terrae, 1981.

[1] Adv Haer IV,7,4;II, 25,1; IV 20,1.3.4; V 1,3; V 6,1;V 16,1.

[2] Essa concepção de Igreja-sacramento tem raízes tradicionais na eclesiologia e nos anos anteriores ao Vaticano II foi elaborada principalmente por K. Rahner e Semmelroth.

[3] PG 55, 493.

Moral Social

Sumário

1 Evangelho: fonte da preocupação social da Igreja

2 O ensinamento social da Igreja

3 Princípios permanentes

4 Âmbitos de aplicação

5 A solidariedade como proposta ética

6 Os direitos humanos como um desafio urgente

7 Uma releitura da opção pelos pobres

8 Referências Bibliográficas

 1 Evangelho: fonte de preocupação social da Igreja

 A Sagrada Escritura é a alma da teologia (Dei Verbum, n.24), é a fonte de inspiração do pensamento social. Dela fluem as interpelações para os grandes temas da atualidade social; justiça, direitos humanos, a fraternidade e a solidariedade. Jesus e sua mensagem, o Reino de Deus, são o ponto de partida e de chegada (Mc 1, 15; Mt 5: 3-12). O amor (ágape) é o conceito mais importante (cf. 1Cor 13) e a regra de ouro da moral social da Igreja: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12; Lc 6,31). O Evangelho deve ser anunciado no mundo do trabalho, da economia, da política, da cultura, da família. Todas estas realidades são parte da vida humana e, portanto, são alcançadas pela salvação trazida por Cristo.

A experiência do amor cristão torna-se compromisso por amor; a fé busca a expressão ética. Isto é afirmado claramente na Carta de Tiago:

De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta (Tg 2,14-17; cf. 1 Jo 4,19-21).

A experiência do amor se faz solicitação e busca de configuração de  uma sociedade justa, onde todos estão incluídos para participar em sua organização e  desfrutar de bem-estar. O social forma parte essencial do ser humano e, por isso, com toda a razão, os bispos latino-americanos declararam: “o nosso comportamento social é uma parte integrante do nosso seguimento de Cristo” (Puebla, n.476).

A este respeito, a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37; Mt 22,34-40; Mc 12,28-31) é muito esclarecedora. O escriba ou o jurista pergunta a Jesus “quem é o meu próximo?”, porque não se deve cometer erros neste ponto em que está em jogo a vida eterna.

A resposta de Jesus é surpreendente porque não dá uma definição teórica do próximo, não requer – ao estilo grego – um amor universal pela humanidade, mas mostra através da parábola, o procedimento concreto de amor autêntico ao próximo. Ou seja, a Jesus não importa perguntar quem ele é, ou qual sua nacionalidade ou confissão, mas sim mostrar que todo aquele que precisa da nossa ajuda é nosso próximo e nós somos o próximo dele.

A partir da parábola, podem ser tiradas as seguintes conclusões éticas sobre o amor cristão:

a) A ruptura no conceito vigente de próximo. A pergunta inicial do perito da lei presumia uma delimitação excludente na categoria de próximo (até quem chega a minha obrigação de amar? ou quem está incluído no conceito de próximo?). Jesus recusa-se a responder esta questão e sublinha que o próximo é aquele que vem ao nosso encontro no momento particular e concreto da vida diária. O conceito cristão de próximo é o resultado da história e não o seu ponto de partida. Em outras palavras, Jesus não define o conceito de próximo, mas descreve a ação pela qual se faz do outro um próximo. Em nossa linguagem cotidiana, a palavra “próximo” tem o sentido geral de “vizinho” ou “fulano”, um significado abstrato, passivo e neutro. Na parábola, o conceito de próximo está relacionado a uma ação dinâmica, comprometedora e histórica. O próximo não é apenas outro, mas aquele que eu torno um outro relevante e significativo; fazer do outro, através de uma ação concreta, o meu próximo.

b) O critério de compaixão. A descrição da ação de proximidade não é definida pela presença (o sacerdote e o levita estavam presentes), mas pela capacidade de se compadecer frente a necessidade do outro. Só quem teve compaixão (padecer com) é identificado por Jesus como alguém que se comportou como próximo. O doutor da lei perguntou: quem é o meu próximo? E Jesus responde com outra pergunta: a quem você tratou como próximo? Ou seja, o critério fundamental de proximidade se define a partir das necessidades do outro. Portanto, o próximo não é definido pela mera presença, mas através da ação de acudir o outro que é um necessitado.

c) A prática do amor. A capacidade de se compadecer frente as necessidades do outro faz com que o amor não se manifeste apenas através de sentimentos e palavras, mas também – e especialmente – em fatos concretos. O samaritano se preocupou pelo ferido: ele se aproximou, tratou suas feridas, derramando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. E a resposta de Jesus foi: “faça o mesmo” e “faça isso e viverá”. Jesus não estava interessado no desenvolvimento teórico-legalista da delimitação do conceito de próximo, pois urgia a prática concreta do amor diante da necessidade do outro.

d) Amor sem limites. A verdadeira compaixão leva à radicalidade na prática do amor. Esta radicalidade é mostrada na ajuda desinteressada do samaritano diante do desvalido, porque, para além das divisões nacionais e de culto, o outro está ferido. A vida de Jesus é o exemplo desse amor sem limites, é mediante sua própria vida que a propõe como um modelo de serviço aos outros.

e) O necessitado como referente primário. O doutor da lei pergunta pelo objeto do amor (o conhecimento teórico: a quem eu devo amar?) enquanto Jesus responde em termos de sujeito do amor (a realização prática de como se deve amar). A resposta de Jesus coloca o sujeito na mesma posição daquele que padece a necessidade e, a partir dessa situação de abandono, levanta a questão: o que posso fazer? É precisamente a capacidade de compaixão que o torna sensível às necessidades do outro e leva a uma prática do amor. O necessitado torna-se a medida específica de um amor sem limites,  expressão e verificação do amor a Deus.

Jesus faz do amor ao outro uma pergunta altruísta (levantar a questão a partir da necessidade do outro) e não uma observação egocêntrica (como eu posso ajudar o outro a partir de minha situação confortável de não necessitado). Portanto, a justiça tem a sua origem em Deus. O amor, a verdade e a justiça são uma unidade em Deus. “O amor – caritas – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a se envolverem com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz” (Caritas in veritate n.1). O amor ganha forma operativa na justiça. Se, por um lado, a justiça não pode ser separada da caridade (Populorum progressio n.22), por outro lado, é o primeiro caminho da caridade: reconhecer e respeitar os direitos dos indivíduos e dos povos! (Caritas in veritate n.6). A justiça que brota do amor de Deus é o fundamento da justiça social e da opção pelos marginalizados, indefesos e excluídos da sociedade.

2  O ensinamento social da Igreja

O Ensinamento Social da Igreja (Doutrina Social da Igreja) é a elaboração, de forma sistemática, da preocupação do Magistério  com os problemas sociais,  explicitando as obrigações sociais. Ou seja, o dever cristão de cooperar com a construção de um mundo humano e justo (Gaudium et Spes, n.34, 43, 72; Octogesima Adveniens, n.24).

O documento inaugural é a encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII, publicada em 15 de maio de 1891. É a primeira vez que um documento do Magistério é totalmente dedicado à denominada “questão social”. A Igreja se volta para os problemas que afligem aos pobres. Seu contexto é o de uma sociedade profundamente transformada pela Revolução Industrial: revolução socioeconômica, com o surgimento e consolidação da indústria; política, por meio do fortalecimento dos Estados-nação; científica, através do aprofundamento do conhecimento aliado à técnica; filosófica, fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade. No final do século XIX, a Igreja se encontra frente ao capitalismo e ao socialismo marxista.

Lista dos principais documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI) em ordem cronológica:

Rerum Novarum (RN): Leão XIII de 1891.

Quadragesimo anno (QA): Pio XI, 1931.

Radiomensagem A solennità: Pio XII de 1941.

Mater et Magistra (MM): João XXIII, 1961.

Pacem in Terris (PT): João XXIII, 1963.

Constituição Pastoral Gaudium et Spes: Concílio Vaticano II, 1965.

Declaração Dignitatis Humanae: Concílio VaticanoII, 1965.

Populorum Progressio (PP): Paulo VI de 1967

Octogesima adveniens (OA): Paulo VI 1971.

Justiça no mundo: Sínodo dos Bispos, 1971.

Sollicitudo Rei Socialis (SRS): João Paulo II, de 1987.

Laborem Exercens (LE): João Paulo II de 1981.

Centesimus Annus (CA): João Paulo II, de 1991.

Caritas in veritate (CV): Bento XVI: 2009.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CSDC): Conselho Pontifício de Justiça e Paz, 2004.

Na América Latina e no Caribe, os documentos das Assembleias da Conferência do Episcopado Latino-americano (CELAM) em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) oferecem elementos para o pensamento social. São textos caracterizados pelo profetismo, pela opção preferencial pelos pobres, pela defesa e a promoção da dignidade humana. A condição fundamental da verdadeira libertação é a superação de todas as formas de escravidão. O Evangelho deve iluminar o compromisso pela libertação de cada homem e de todos os homens.

O Documento de Aparecida desenvolveu orientações para uma agenda social (n.347-546.): globalização da solidariedade e da justiça, o compromisso com os novos rostos de Cristo (moradores de rua, imigrantes, doentes, dependentes químicos, prisioneiros); compromisso com a defesa da família e da vida humana (infância, juventude, idosos, mulheres); a necessidade de uma pastoral da comunicação social; a presença mais eficaz e profética na política; compromisso de solidariedade com os povos indígenas e afrodescendentes. A teologia da libertação também oferece uma contribuição inestimável para a reflexão e a práxis social dos cristãos.

3 Princípios permanentes

 Ao longo das várias “encíclicas sociais” surgidas desde a Rerum Novarum até os dias atuais – e apesar das mudanças que ocorreram durante esse mesmo período – se repetem um conjunto de princípios éticos que formam a essência do pensamento social da Igreja.

Primeiro, encontramos a afirmação solene da sagrada dignidade do ser humano, de cada homem e mulher. O núcleo da antropologia bíblica é a semelhança do ser humano o seu criador (Gn 1,26-28; cf. Sab 2,23; Eclo 17,3). E, como imagem e semelhança de Deus, se revela de maneira perfeita e completa na pessoa de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (2 Coríntios 4,4; Col 1,15).

Esta dignidade é a raiz dos direitos humanos e deve ser proclamada e defendida contra todos os tipos de agressão. Portanto, somente o reconhecimento da dignidade humana é condição de possibilidade de uma sociedade justa. Neste sentido, o verdadeiro progresso é entendido como um desenvolvimento integral da transição de condições “menos humanas para condições “mais humanas”; ou seja, o desenvolvimento autêntico não é medido apenas, nem de maneira privilegiada, pela quantidade, mas especialmente pela qualidade; e isso significa o dever de solidariedade, de justiça social e caridade universal e internacional (Mater et Magistra n.97-103; Pacem in Terris n.123; Populorum Progressio n.65; Laborem Exercens n.15; Sollicitudo Rei Socialis n.44). “A fé cristã se ocupa do desenvolvimento contando apenas com Cristo, a quem deve fazer referência toda a autêntica vocação para o desenvolvimento humano integral” (Caritas in veritate n.18).

A exigência do bem comum é uma das principais chaves da ética social, porque as suas exigências são o critério da justiça social; o bem comum é entendido como o conjunto das condições de vida social com que os homens e as mulheres, as famílias, as associações e os povos podem alcançar, com maior plenitude e facilmente, a sua própria realização. No princípio da equidade – o cuidado especial para os mais vulneráveis na sociedade – está incluído no princípio do bem comum, de modo que o bem de todos tem um correspondente privilegiado (Rerum Novarum n.24, 25; Quadragesimo Anno n.110; Mater et Magistra n.65; Pacem in Terris n.53-66; Gaudium et spes n.74; Sollicitudo rei socialis n.42, 43).

O princípio da subsidiariedade enfatiza a dignidade e a responsabilidade do indivíduo e dos organismos intermediários, evitando o individualismo liberal e o estatismo totalitário, porque favorece a intervenção do Estado para o bem comum, facilitando a iniciativa do indivíduo e do grupo como um contributo para a comunidade humana (Rerum novarum n.26; Quadragesimo anno n.76-80; Mater et Magistra n.51-58).

O princípio da destinação universal dos bens prevalece sobre o direito de propriedade, porque é a tradução do bem comum no campo socioeconômico (Rerum Novarum n.16; Quadragesimo Anno n.45-50; Populorum Progressio  n.23-24) “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os homens e todos os povos (Gn 1,28-29), de modo que os bens criados devem ser distribuídos equitativamente a todos, de acordo com a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et Spes n.69). O direito de acesso universal de todos ao uso dos bens deve ser equitativamente garantido para cada indivíduo (Centesimus Annus n.6). É um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade (Populorum Progressio n.22).

Reconhece-se o direito à propriedade privada, incluindo os meios de produção, mas dentro do contexto do princípio primário da destinação universal dos bens, uma vez que todos os outros direitos lhe estão subordinados  (Gaudium et Spes n.71). Toda propriedade dos meios de produção tem uma função social e deve contribuir para o bem comum.

O trabalho ocupa a chave essencial e o centro da questão social (Laborem Exercens n.3). O ser humano é o sujeito do trabalho, de modo que se afirma a prioridade do trabalho sobre o capital.

Todo trabalho humano procede imediatamente da pessoa, a qual como que marca com o seu zelo as coisas da natureza, e as sujeita ao seu domínio. É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina (Gaudium et Spes n.67).

 A questão salarial, a flexibilização, a precarização e o desemprego estão entre as principais preocupações da moral social. Rejeita-se a redução do trabalho a uma simples mercadoria ou a uma força anônima, e se sublinha a responsabilidade do empresário direta e indiretamente sobre o trabalho. Também apela para a solidariedade de e com os homens e as mulheres no trabalho (Quadragesimo anno n.53 ; Laborem Exercens n.3, 6, 7, 8, 12, 16, 17). O cumprimento do princípio da remuneração justa é a medida concreta para cumprir com a justiça social na relação entre o trabalhador e o empresário.

Bento XVI apela à universalização do trabalho decente:

um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes em nível pessoal, familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa (Caritas in veritate n.63).

 A Igreja apoia os sindicatos e as diversas lutas da classe trabalhadora por seus direitos (Compêndio n.305). Os sucessivos documentos têm procurado acompanhar a evolução dos desafios sindicais que surgiram com o capitalismo (Rerum Novarum n.34, 39-40; Gaudium et Spes n.68). As organizações de trabalho são “protagonistas da luta pela justiça social” (Laborem Exercens n.20).

4 Âmbitos de aplicação

4.1 Economia

O papa Francisco tem uma visão crítico-profética da economia contemporânea. “Vivemos em uma economia de exclusão e desigualdade. Essa economia mata!” (Evangelii Gaudium, n.53). Retomando um tema importante da teologia da libertação, a Igreja condena a idolatria do dinheiro. “Criamos novos ídolos. A adoração do bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma versão nova e cruel do fetichismo do dinheiro e da ditadura da economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano” (Evangelii Gaudium n.53). “Na vida econômica e social deve ser respeitada e promovida a dignidade da pessoa humana, a sua vocação e o bem de toda a sociedade. Porque o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social” (Gaudium et Spes n.63).

A economia em todas as suas extensões, é um setor de atividade humana. A relação entre economia e ética é necessária, mesmo que elas sejam reguladas, cada uma em seu campo, por princípios próprios. Na verdade, para Bento XVI, “a economia tem necessidade da ética para funcionar corretamente; não qualquer ética, mas uma ética que seja amiga da pessoa” (Caritas in veritate n.45). O objetivo da economia é produzir riqueza e seu incremento é voltado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade. Mas, “o principal objetivo da produção é não apenas o aumento da quantidade de produtos, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem de suas necessidades materiais e das exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa” (Gaudium et Spes n.64).

O desenvolvimento econômico “não deve ser entregue só ao arbítrio de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes ou só da comunidade política ou de algumas nações mais poderosas” (Gaudium et Spes n.65). As necessidades dos pobres não permitem prorrogação. Portanto, eles devem ter prioridade sobre os desejos dos ricos. Há necessidades econômicas que são direitos humanos fundamentais (Pacem in Terris n.11). “Não é um mero aumento de produtividade ou lucro, ou poder, mas o serviço do homem integral” (Gaudium et Spes n.64).

De acordo com Bento XVI, há iniciativas no âmbito da economia que indicam que “é  possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da atividade econômica” (Caritas in veritate n.36). Existem alguns exemplos: fundos de investimento ético, microcréditos (Caritas in veritate n.45 e 65), cooperativas de consumo (n.66) e  a economia civil e de comunhão (n.46). Na verdade, cada empresa deveria ser caracterizada pela capacidade de servir o bem comum da sociedade através da produção e fornecimento de bens e serviços úteis e necessários para as pessoas. Deve criar riqueza para toda a sociedade, não só para o empresário (Compêndio, n.344).

4.2 Política

A pessoa humana é o fundamento e objetivo da convivência política (Gaudium et Spes n.25). A comunidade política vem da natureza das pessoas e existe para obter o bem comum, que seria de outra forma inatingível (Gaudium et Spes n.74). No entanto, para auxiliar na transformação de uma sociedade injusta, os cristãos devem participar da política. “Embora a justa ordem da sociedade e do Estado sejam o dever central da política, a Igreja não pode nem deve ser deixada de fora da luta pela justiça” (Evangelii Gaudium n.183; Deus caritas est n.28) . A mensagem bíblica inspira o compromisso cristão: “a política é uma forma de oferecer adoração a Deus” (Puebla n.521).

Na sociedade política destacam-se como requisitos éticos os valores da igualdade e da participação em uma estrutura democrática (democracia), porque correspondem melhor à dignidade e ao sentido de responsabilidade do cidadão (Mater et Magistra n.83; Octogesima adveniens n.24, 26, 30-35; Pacem in terris n.159; Sollicitudo rei socialis n.20-21).

A autoridade política é necessária em função das tarefas que lhe são confiadas e deve ser um componente positivo e insubstituível da convivência civil (Pacem in Terris n.279). Essa autoridade deve garantir a harmonia social, sem tomar o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas orientando-a, no respeito e na proteção da independência dos sujeitos individuais e sociais para a  realização do bem comum.

O sujeito da autoridade política é o povo considerado, na sua totalidade, como o  titular da soberania. Portanto, a Igreja observa com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos e garante a possibilidade de escolher os seus governantes ou de substituí-los (Gaudium et Spes n.75). “É uma exigência da dignidade humana que todos possam, com pleno direito,  se envolver na vida pública” (Pacem in Terris n.73). Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e com base em uma concepção correta da pessoa humana (Centesimus Annus n.46). A este respeito, os partidos políticos têm a função de promover a participação e o acesso de todos às responsabilidades públicas e orientar a sociedade para o bem comum (Gaudium et Spes n.75). Outro instrumento de participação política é o referendum, no qual se realiza uma forma direta de eleições políticas.

A Igreja e a comunidade política, embora ambas se expressem com estruturas organizacionais visíveis, são de natureza diversa, seja por sua configuração ou pela finalidade perseguida: “no campo que lhes é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas” (Gaudium et Spes n.76). Por esta razão, a Igreja mantém a sua autonomia frente às ideologias. Qualquer sistema, segundo o qual as relações sociais estejam determinadas inteiramente por fatores econômicos, é contrário à natureza humana (Catecismo n.2423-2425). Rejeita-se a ideologia liberal (Liberalismo, Capitalismo) por seu materialismo prático (hierarquia errada de valores), bem como a ideologia marxista (Marxismo) por seu materialismo dialético (uma visão errônea de reduzir o ser humano a um resultado das relações econômicas).

4.3 Questão ambiental

A questão moral contempla a natureza como “expressão de um desígnio de amor e de verdade” (Caritas in veritate n.48). O meio ambiente foi dado por Deus a todos, constituindo seu uso  uma responsabilidade que temos com os pobres, as gerações futuras e toda a humanidade (…). Quando falta essa perspectiva, o homem acaba considerando a natureza um tabu intocável ou, pelo contrário,  abusa dela. Nem uma nem outra atitude corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus (Caritas in veritate n.48).

Frente às mudanças climáticas, a extinção da biodiversidade e a poluição, as questões relacionadas com a preservação do meio ambiente devem levar em consideração as questões  energéticas. O desenvolvimento deve basear-se “no reconhecimento mais urgente dos limites dos recursos naturais, alguns dos quais são não renováveis. Usá-los como se fossem inesgotáveis, com controle absoluto, compromete gravemente a sua disponibilidade não só para a geração presente, mas, sobretudo, para as gerações futuras” (Sollicitudo Rei Socialis n.34).

A comunidade internacional tem o dever de encontrar formas institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, também com a participação de países pobres, para que eles possam planejar conjuntamente o futuro. Esta responsabilidade é global, porque não está relacionada apenas à energia, mas a toda a criação, já que não devemos deixar despojadas de recursos as novas gerações (Caritas in veritate n.50). Em suma, é necessária uma verdadeira mudança de mentalidade que nos induza a adotar novos estilos de vida (Centesimus Annus n.36).

Requer-se uma espécie de ecologia humana, entendida no seu justo sentido  (Caritas in veritate n.51). O documento de Aparecida apresenta propostas neste sentido: aprofundar a presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório, e apoiá-las em seus esforços para alcançar uma distribuição equitativa da terra, da água e dos espaços urbanos; buscar um modelo de desenvolvimento alternativo integral e solidário baseado em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana, que se fundamente no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens (Aparecida n.474).

5 A solidariedade como proposta ética

A moral social apresenta a solidariedade humana como um requisito inalienável (Gaudium et Spes n.12-32 ; Sollicitudo Rei Socialis n.38-40). A solidariedade é a expressão humana da responsabilidade social do indivíduo e da sociedade com o outro e entre todos. Portanto, a solidariedade é considerada uma exigência humana, porque cada indivíduo é um ser social, forma parte de uma sociedade e  a realização do indivíduo necessariamente envolve a realização de cada um. Viver é conviver.

A solidariedade torna-se uma condição de existência para todos. Não se estende a mão (de cima) para quem está embaixo, mas se caminha junto com o outro; não é uma visão verticalista da sociedade, mas horizontal, em que não se estende uma mão paternalista de um grupo social para o outro , senão que se aperta a mão do outro em reconhecimento da igual dignidade. Por isso, a solidariedade não significa dar o que se tem de sobra, mas é uma expressão de amor pelo semelhante. O outro se torna um próximo quando alguém dele se aproxima.

O conceito de solidariedade ocupa um lugar privilegiado na visão cristã. A Sagrada Escritura é o relato da história solidária de Deus com a humanidade e a condição humana de criatura, significando uma superação da mera dependência pela responsabilidade em um contexto dialogal entre Deus e a humanidade. Ou seja, a comunidade divina (o mistério da Trindade) se revela como comunhão com a humanidade na pessoa de Jesus, o  Cristo, e convida o ser humano a compartilhar uma  vida em comum união com o divino e entre si. A experiência de solidariedade divina torna-se responsabilidade ética de solidariedade nas relações interpessoais e sua estruturação em instituições  (Jo 13, 34-35).

A solidariedade, explica João Paulo II, não é um sentimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou afastadas. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; isto é, para o bem de todos e de cada um, para que todos nós sejamos verdadeiramente responsáveis ​​por todos (Sollicitudo Rei Socialis n.38).

Esta compreensão da solidariedade tem raízes bíblicas profundas. “Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei. Sou eu o guarda do meu irmão?” (Gênesis 4,9). A resposta de Cain contrasta fortemente com a afirmação de Jesus: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Assim, enquanto Caim desconhece seu próprio irmão, Jesus identifica-se com os membros mais fracos da sociedade, fazendo-se seu irmão.

Em uma sociedade globalizada, escreve Bento XVI, o sentido cristão da solidariedade deve ser global.

A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas também um dever. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio (Caritas in veritate n.43).

 6 Os direitos humanos como desafio urgente

 A crescente consciência dos direitos fundamentais da pessoa humana como uma expressão jurídica e política da dignidade do ser humano tem uma formulação privilegiada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris em 1948. Esta Declaração é um verdadeiro marco cultural na história da humanidade, ao afirmar que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo 1º) e que estes direitos pertencem a “toda pessoa, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição” (artigo 2º).

Esta proclamação destaca os direitos que correspondem à pessoa humana como tal e, portanto, são logicamente e historicamente anteriores ao Estado. Assim, o Estado não concede esses direitos, mas simples e necessariamente tem que reconhecê-los. Estes direitos são inalienáveis porque correspondem às condições básicas que permitem a realização do indivíduo na sociedade ou uma sociedade formada por indivíduos e, portanto, pertencem à mesma natureza humana.

No pensamento pontifício, o autêntico desenvolvimento da sociedade se baseia no respeito e na promoção dos direitos humanos. “Não seria verdadeiramente digno do homem um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações populares (…). Tanto os povos como as pessoas devem gozar de uma igualdade fundamental” (Sollicitudo Rei Socialis n.33).

Atualmente, a Igreja entende que a defesa dos direitos humanos como expressão da dignidade inalienável de cada ser humano é parte essencial de sua missão evangelizadora. De fato, os bispos latino-americanos proclamaram solenemente:

sentimo-nos urgidos a cumprir, por todos os meios, o que pode ser o imperativo original desta hora de Deus, em nosso Continente: uma audaciosa profissão de cristianismo e uma promoção eficiente da dignidade humana e de seus fundamentos divinos, precisamente entre os que mais necessitam, ou porque a desprezam ou sobretudo porque, sofrendo este desprezo, buscam – talvez às cegas – a liberdade dos filhos de Deus e o advento do homem novo em Jesus Cristo (Puebla n.320).

 A responsabilidade de uma reflexão sobre os direitos humanos dos esquecidos da história é crucial para que este discurso tenha a legitimidade de uma ética universal, uma vez que de outra forma o horizonte dos direitos humanos só é aplicável para alguns na sociedade.

7 Uma releitura da opção pelos pobres

A preocupação com os pobres e explorados sociais é uma das raízes mais profundas da moral social. A causa dos marginalizados confirma a missão e serviço da Igreja como prova de sua fidelidade a Cristo, para ser verdadeiramente a Igreja dos pobres (Laborem Exercens n.8). O papa Francisco proclama uma “Igreja pobre para os pobres” (Evangelii Gaudium n.198), porque “para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica […] entendida como uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (Evangelii Gaudium n.199).

A visão cristã particular, que sustenta e ilumina os direitos e deveres humanos, encontra na opção pelos pobres sua verificação de radical autenticidade (Teologia da Libertação). A finalidade da opção pelos pobres é a sua personalização na sociedade porque consiste principalmente em um relacionamento, uma aliança, um jogar-se a sorte com eles. Esta aliança com os perdedores da história (e também as suas vítimas) é, de certa forma, perder a própria vida. Ao pobre o salva de sua carência e aquele que opta é libertado da sua alienação. O que salva é a transcendência implicada na relação: sair para fora de si mesmo e respeitosamente chegar ao outro, e, nesta dupla transcendência, a transcendência maior de deixar agir o Espírito, de reconhecer Jesus no pobre, e de fazer o plano do Pai.

Esta opção não é diferente daquela pela humanidade, mas consiste precisamente no caminho concreto para torná-la eficaz. Deus, em Jesus, estabelece uma aliança com toda a humanidade e, em primeiro lugar, com os pobres, porque neles não é reconhecida essa humanidade, por falta do que a cultura atual considera valioso e digno de ser humano. Assim, optando por aqueles que de acordo com esse paradigma dominante humano não têm valor, Deus deixa claro que a sua escolha é pela  humanidade e que esta condição é inerente a cada ser humano. “Os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” (Evangelii Gaudium n.48).

Deus, ao reconhecê-los (Mt 25, 31-46), mostra que ele não é o Deus dos sábios ou dos ricos ou poderosos, e sim o Deus dos seres humanos. Mas também proclama que o indivíduo não chega à categoria de pessoa humana pela posse desses atributos. Em outras palavras, como os pobres tendem a sentir-se não humanos ao introjetar a avaliação negativa da cultura dominante, Deus, quando opta por eles, certifica a condição humana e possibilita que a assumam.

O pobre que aceita essa relação com Deus não se sente excluído, mas reconhecido. Essa aceitação é a fonte da vida, porque lhe permite encarar a realidade e se relacionar com outros nela. Já não cabe a  resignação, porque a descoberta do respeito por si próprio se abre em direção ao outro e ao compromisso com a realidade.

Aquele de outro grupo social que opta pelos pobres ingressa em uma relação que significa dar-se. O dar-se pressupõe criar as condições de igualdade. É a lógica da encarnação: Jesus não se agarra à sua condição divina, mas se despoja de todos os privilégios  tornando-se semelhante aos seres humanos (Fil 2,6-7). Então, dar a si mesmo  também  inclui dar o que se tem. Por isso, Jesus fala àquele que quer segui-lo para vender tudo e se dar aos pobres (Mt 19,21). Esta opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (Documento de Aparecida: discurso inaugural, n.3).

A superação da pobreza, como uma expressão de respeito eficaz para toda e qualquer pessoa humana, exige um sujeito universal. O núcleo deste sujeito universal são os próprios pobres, mas os demais também são necessários para apoiar e facilitar esse processo. A integração do pobre na sociedade como um sujeito social é uma condição necessária, mas não suficiente, para superar a pobreza, porque também se precisa de uma aliança com os não pobres, para que optem por eles. Para que “entre vocês não haja pobre” (Dt 15,4)!

Esta opção implica um redimensionamento da existência, pessoal e social, daqueles de outros grupos sociais que a assumem. Por isso, a dinâmica da opção pelos pobres tende à criação de uma cultura alternativa. Assim, a opção pelos pobres,  que começa como uma maneira de sair de si mesmo para afirmar o outro que é negado,  que começa vivendo-se como perda e sacrifício realizado como correspondência à fé em Deus que funda a própria vida,  torna-se progressivamente uma oportunidade não só de humanização radical, mas também de progresso enquanto ser cultural e até mesmo de valorização profissional.

Para superar a pobreza, e afirmar a dignidade do pobre, é preciso redimensionar o que existe para dar um lugar aos pobres na sociedade. Dar lugar aos pobres significa um ajuste estrutural tão profundo que equivale a configurar uma nova figura histórica; significa renunciar a  muitos elementos do atual sistema de bem-estar; renunciar, em primeiro lugar, a esse consumismo frenético e refrear a sede ilimitada de riqueza e poder. Na verdade,

enquanto não se elimine a exclusão e a desigualdade  dentro da sociedade e entre os diferentes povos, será impossível  erradicar a violência (…). Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças de ordem ou serviços de inteligência que possam garantir a tranquilidade indefinidamente. Isso não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta dos que são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto em sua raiz. (…) Se cada ação tem consequências, uma mal imerso nas estruturas de uma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar por um futuro melhor. (Evangelii Gaudium n.59).

A fundamentação deste sentido vital é o reconhecimento real do outro no ato de reconhecer-se  a si mesmo (filho de Deus e irmão de todos). Mas o reconhecimento positivo dos pobres – o que é feito tanto nas relações estruturais como nas relações pessoais – provoca uma transformação tão profunda  na própria vida, e é uma novidade tão radical na figura histórica vigente, que não pode ser realizada se não se abrem horizontes muito motivadores: sem um coração de carne (cf. Oséias 6,6), nunca haverá justiça, nem, por conseguinte, será possível a vida humana na terra. Isto é o que está em jogo na opção pelos pobres. Portanto, de acordo com o papa Francisco, “ninguém deve dizer que está longe dos pobres porque suas escolhas de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos meios acadêmicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais (…) ninguém pode sentir-se dispensado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (Evangelii Gaudium n.201). Só haverá paz no mundo quando se fizer justiça para os pobres (Populorum progressio n.76). Justiça e paz se abraçarão! (Sl 85).

Tony Mifsud Buttigieg SJ. Universidad Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol.

 8 Referências Bibliográficas

Não foi possível optar apenas por uma referência bibliográfica destes textos pontifícios da DSI. Assim, a lista já está no início do texto. São documentos de domínio universal. Todos estão disponíveis na Internet, bem como nas várias versões das editoras espalhadas por todo o continente latino-americano.

Para saber mais

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