Fé e Razão

Sumário

1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

1.1 Introdução

1.2 A virada hermenêutica da razão: o terceiro horizonte do pensamento contemporâneo

2 Fé e razão

2.1 Dois modos complementares e não contraditórios de acesso à verdade

2.2 A história das relações entre fé e razão

2.3 A virada hermenêutica da fé e a razão: da rejeição à mútua colaboração

3 Referências bibliográficas

 1 Questões fundamentais sobre a fé no mundo de hoje

 1.1 Introdução

A relação da fé cristã com a razão, a política e a cultura se compreende melhor se considerarmos tanto a metafísica da substância dos antigos quanto a metafísica do sujeito dos modernos. A filosofia clássica nos ensinou com os transcendentais do ser, que além de ser uno, é simultaneamente verdadeiro, bom e belo. A filosofia moderna, com o pensamento transcendental de Kant, pergunta pelas faculdades do sujeito para conhecer o verdadeiro, agir segundo o bem e gostar-julgar do belo. Pelas virtudes teologais, sabemos que o dom da fé é sempre uma fé que crê que ama e que espera. Podemos, então, vincular a fé que crê com a verdade e o conhecimento, a fé que ama com o bom e o agir ético, e a fé que espera com a beleza e o gosto poético. A importância da passagem da metafísica clássica à redução moderna – que contrasta a fé apenas com a ciência, com o dever moral e a teleologia – nos convida a dar um novo passo que supere tanto o deserto da crítica como as tentações de voltar atrás, ao refúgio pré-moderno: “Não nos encoraja a nostalgia das Atlântidas submersas, mas a esperança de uma recriação da linguagem; para além do deserto da crítica, queremos ser novamente interpelados” (RICOEUR, 1960). A fé cristã é novamente interpelada pela virada hermenêutica da razão contemporânea (GREISCH, 1993), pelo grande acontecimento de graça que significou a renovação do Concílio Vaticano II (HÜNERMANN, 2014) e pela plenitude da linguagem que se manifesta numa maior consideração da beleza e da poética em nossa situação de pluralismo cultural. Como introdução às relações entre fé e razão, desenvolveremos brevemente a primeira interpelação que considera um terceiro horizonte no pensamento contemporâneo.

 1.2 A virada hermenêutica da razão: o terceiro horizonte do pensamento contemporâneo

 Sustentar que a razão contemporânea deu uma virada ou que estamos em um novo horizonte, significa reconhecer não só a distância frente à metafísica clássica (que sustenta os transcendentais do ser), mas a crise sofrida pela metafísica do sujeito (que sustenta uma filosofia transcendental e interroga-se sobre as condições de possibilidade). Assim é afirmado por um grande número de filósofos, de Ortega e Zubiri a Vattimo e Habermas. Ortega cunhou a imagem das duas metáforas, sugerindo um terceiro momento, paradigmático, horizonte do pensamento contemporâneo depois das metáforas (ou metafísicas) da substância e do sujeito. Um terceiro horizonte aparece depois do pensamento antigo-medieval e do pensamento moderno (GONZALEZ, 1993).

A discussão sobre se é uma crise particular da metafísica ou da metafísica em geral se resolve se estamos de acordo sobre quem é o paciente diagnosticado com a crise: o Iluminismo que vê como o romantismo volta com força; a modernidade liberal, que foi ultrapassada pela modernidade tardia ou pela chamada pós-modernidade; ou a metafísica do sujeito, superada por um terceiro horizonte. Mas, em todos os casos – seja o cogito cartesiano, os a priori da razão, o saber absoluto, ou o sujeito transcendental – podemos ver como as pretensões da “só razão” (transcendental, sem atributos e constituinte de todo o real) empalidecem, porque temos um cogito ferido, bastante frágil, que procura poder se reassentar ao interior do ser e é reconhecido constituído pelo outro,  diferente de si mesmo.

Seja qual for a profundidade da crise, a hipótese de um terceiro horizonte do pensamento contemporâneo argumenta que a terceira metáfora não pensa o ser em termos de natureza nem em termos de consciência (GEFFRÉ, 1992), mas em referência a outras metáforas que tentam ser relevantes nos novos tempos: a alteridade, a linguagem, a práxis e o acontecimento. “A idade hermenêutica da razão” (GREISCH, 1985) parece ser o resultado de muitas viradas que deu a razão contemporânea: virada hermenêutica, virada linguística, virada pragmática, virada intersubjetiva, virada rumo à alteridade etc. (SCANNONE, 2009). Independente de qual seja a categoria vencedora, existem provas suficientes de que a crise seja um sinal dos tempos.

Se o que temos é um novo horizonte de pensamento, este, obviamente, afetará os interlocutores da fé: a razão e o conhecimento, a política e a justiça e nossos valores (estéticos e afetivos) e esperanças (religiosas e seculares). Voltamos a nos perguntar pela verdade que podemos conhecer com o uso do entendimento e da razão, pela justiça que devemos alcançar com nossas práticas éticas e políticas, pela beleza que nossos juízos estéticos e reflexivos modelam em cada cultura. Mas, obviamente, também afetam a própria experiência crente e religiosa, cuja virada foi expressa para a comunidade eclesial católica na renovação que fez o Concílio Vaticano II.

2 Fé e razão

2.1 Dois modos complementares e não contraditórios de acesso à verdade

“A fé e a raão são como duas asas com as quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. Fides et ratio, de João Paulo II, se conecta, assim, com o que o Vaticano II ensina-nos na Dei Verbum – que, por sua vez, segue quase literalmente os ensinamentos do Vaticano I em Dei Filius, que leva em conta os princípios do Concílio de Trento: “Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens, ‘para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana’”(DV n.6). Indicado o caminho da revelação, o Vaticano II aponta o caminho da razão citando o Vaticano I: “O sagrado Concílio professa que Deus, princípio e fim de todas as coisas, se pode conhecer com certeza pela luz natural da razão a partir das criaturas” (cf. Rm 1,20); mas ensina, também, que deve atribuir-se à Sua revelação “poderem todos os homens conhecer, com facilidade, firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é inacessível à razão humana, mesmo na presente condição do gênero humano” (DV n.6). A verdade alcançada através da reflexão filosófica ou das disciplinas científicas não se confunde nem se contradiz, mas é enriquecida com a verdade que vem da revelação. “Há duas ordens de conhecimento, distintas não só por seu princípio, mas também por seu objeto; por seu princípio, visto que uma conhecemos pela razão natural, e outra pela fé divina; e por seu objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode atingir, propõem crer nos mistérios escondidos em Deus, que não podemos conhecer sem a revelação divina” (Dei Filius, DS 3015).

O reconhecimento de uma diferença não implica qualquer dualismo ou contradição entre fé e razão, nem no plano epistemológico, opondo fé e conhecimento, nem no plano ontológico, defendendo duas realidades separadas. Fé e razão são medidas pela verdade, e a verdade é uma só, embora haja aspectos dela que só sabemos pela fé, porque Deus nos revelou. “O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé.  (…) Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização” (Fides et ratio n.16-17).

A contradição aparece quando uma e outra não respeitam suas respectivas áreas de competência. Racionalismo e fideísmo são a expressão clara do excesso de uma e outra. Então, o racionalismo é uma “concepção que considera que a razão pode ou deve fundamentar a fé, e que deve demonstrar sua verdade com argumentos de razão, ou pelo menos torná-la plausível” (KNAUER, 1989, p.257). Pelo contrário, a verdade da fé só pode ser reconhecida pela fé. A cor e a luz dos vitrais de uma catedral só podem ser vistas de dentro. Do lado de fora eles apenas parecem sombrios e cinzentos. A beleza de Deus é reconhecida a partir da experiência de fé, da acolhida na fé do que Deus revelou. Só pode entrar em comunhão com Deus quem acredita que é o próprio Deus que se autocomunicou. O fideísmo, enquanto isso, “argumenta que a fé não pode e não precisa ser justificada ante a razão” (KNAUER, 1989, p.258). Pelo contrário, a fé deve ser examinada pela razão para eliminar dela aquilo que possa contradizê-la. “Toda objeção contra a fé da parte da razão é refutada no mesmo campo da razão” (KNAUER, 1989, p.258).

Ambos os desentendimentos são superados ao se afirmar que a fé precisa da razão. Longe de ser uma inimiga da fé (porque a prejudicaria ou poderia contradizê-la) ou alguma coisa da qual a fé pudesse prescindir (porque bastando-se a si mesma não necessitaria de complementação), a razão é uma ajuda para a fé. Mas a fé não necessita dela para ser seu fundamento: a fé se fundamenta em si mesma, uma vez que se baseia na Palavra de Deus. Não necessita para que a prove ou a demonstre: o próprio Deus se mostra, se autocomunica na revelação. A fé é acolhida naquilo que Deus comunica. “A mensagem cristã se torna inteligível por si só; a fé somente pode explicar-se por si mesma” ( KNAUER, 1989, p.252). Portanto, não é possível provar a fé pela força das razões, não pode ser enquadrada no marco da razão, não pode ser subordinada como se sua fundamentação dependesse do nosso raciocínio. Da afirmação racional que Deus é o criador do mundo e todo-poderoso não é possível deduzir a possibilidade da comunhão com ele. Isso depende do próprio Deus, do seu amor gratuito e livre.

A fé precisa da razão, não como seu fundamento, mas com a função negativa de ser um filtro para si mesma. A razão é uma ajuda indispensável, ela nos ajuda a filtrar a fé de superstições, a purificá-la de irracionalidades, a ser peneira e crivo de possíveis fetiches. A mensagem cristã quer e deve ser examinada pela razão, pois não deve se acreditar em qualquer coisa que contradiga a razão em sua autonomia, “a autonomia da realidade criada não é interrompida nem debilitada em nenhum lugar pela comunhão com Deus (…) Isto exclui qualquer crença supersticiosa em milagres, que considera a interrupção de leis naturais como prova de especial intervenção divina” ( KNAUER, 1989, p.253-254).

Em resumo fé não se fundamenta na razão, mas pode ser examinada por ela. A revelação de Deus na qual se baseia não é dedutível do mundo; é reconhecível apenas pela a fé. Portanto, nenhuma afirmação da razão pode ameaçar a fé. “Como tendo fé já não se vive do temor, é possível usar a razão sem óculos” (KNAUER, 1989, p.257). Há mais duas ajudas disponíveis: oferece alguns pressupostos e ajuda a pensar, dar unidade e coerência ao conjunto do mistério cristão. Uma colaboração externa à fé, uma vez que “a fé pressupõe certas verdades que podem ser reconhecidas pela razão: o nosso próprio ser como criaturas e a nossa responsabilidade moral” (KNAUER, 1989, p.257). Uma colaboração interna à fé, porque “a razão ajuda a uma compreensão clara da fé. A razão, iluminada pela fé, abrange a unidade interna de todas as afirmações de fé” ( KNAUER, 1989, p.257). Colaboração que impede um conflito insolúvel entre a fé e a razão. Mas a historicidade da fé – expressa na doutrina da Igreja – e a historicidade da razão – expressa nas aquisições dos diversos saberes e ciências – não têm a e impedido a existência de múltiplos conflitos e divergências entre essa doutrina e essas aquisições ao longo da história.

 2.2 A história das relações entre fé e razão

Distante da contraposição entre crer e saber, que faz do primeiro um saber inseguro, a fé aparece como fundamento na Bíblia. Enquanto no AT se proclama a confiança em ser o povo escolhido e na esperança nas ações de Deus, no NT se trata de acreditar no que Deus já fez e manifestou em Cristo Jesus, que antecipa a plenitude escatológica:  “ A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11,1). O judeu-cristianismo, que acredita que o Deus salvador é o mesmo que o Deus criador, confia na razão humana e não tem medo de ser julgado por ela ao tentar dar razão para a sua esperança. A reprovação do Livro da Sabedoria para aqueles que “não foram capazes de conhecer, pelas coisas boas, Àquele que é (…) pois da grandeza e beleza das coisas criadas chega-se, por analogia, ao conhecimento do seu Autor” (Sb 13,1.5), reitera Paulo, aos que “aprisionam a verdade na injustiça (…) porque o invisível de Deus, desde a criação do mundo, revela-se à inteligência através de suas obras” (Rm 1,18.20). No início, São Pedro exorta os cristãos a estarem sempre prontos a dar resposta (apo-logia) a quem quer que perguntasse pelo logos (razão) de sua fé (cf. 1 Pd 3,15). São João não teme identificar Cristo com o logos e abre um caminho que percorrerão os Padres da Igreja que, de diferentes maneiras, identificarão sabedoria bíblica e filosofia grega na figura do logos. Justino é exemplar neste ponto e vê na fé cristã a verdadeira filosofia e, na filosofia, os precursores do cristianismo. “Isto significava que a fé bíblica devia entrar em discussão e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer, mediante a interpretação, a linha de separação, mas também a convergência e a afinidade entre elas na única razão dada por Deus” (BENTO XVI, 2005). Por isso, as Escrituras judaico-cristãs, o pensamento hebraico, não temerá medir-se e articular-se com o pensamento grego, e aqueles que, filosoficamente, o sucederão. Toda a história do cristianismo é testemunho dessa apropriação da racionalidade filosófica, em um esforço contínuo de tradução à linguagem dos cada vez mais novos destinatários da Boa Nova. O espírito secularista e desmistificador desta religião é a consequência desta disposição para ser purificada e criticada pela razão (TAYLOR, 2007).

Agostinho, “o mestre indiscutível da Alta Idade Média, cuja influência permanece durante todo o segundo milênio”, acredita que uma fé não pensada é uma fé morta e acredita que “o conhecimento do homem e o de Deus são convergentes”, porque a própria interioridade, “a subjetividade é o lugar por excelência para conhecer Deus” (ESTRADA, 1996, p.45). Por sua parte, Anselmo, o pai da escolástica, como um bom discípulo de Agostinho proclama os Fides quaerens intellectum: a fé em busca de sua inteligência. As palavras de Anselmo no Proslogion tornaram-se uma carta magna sobre a convergência harmônica entre fé e razão: “Senhor, não tenho a intenção de penetrar em sua profundidade: como eu poderia comparar a minha inteligência com o seu mistério? Mas quero entender, de algum modo, esta verdade que acredito e meu coração ama. Eu não procuro entender para crer, mas creio em primeiro lugar para, depois, fazer um esforço para entender. Porque acredito em algo: se eu não começo por acreditar, nunca vou compreender”. Nasce aqui uma teologia como Intellectus fidei, que tenta mostrar a razoabilidade da fé. Mas a razão encontra aquilo que a fé já sabe; o raciocínio serve para ajudar a descobrir a verdade, não para determiná-la. A fé, dom de Deus que a Palavra revelada suscita, deve ser assumida racionalmente para que seja humana. O esforço de intelecção não elimina, mas pressupõe a contemplação.

No século XIII, graças aos filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contato com o cristianismo medieval formado na tradição platônica. São Tomás de Aquino, de forma genial, entendeu que a ratio aristotélica poderia ser uma mediação mais apropriada do que a platônica para expressar fé dos homens de seu tempo. Ele foi capaz de mediar “o novo encontro entre a fé e a filosofia aristotélica, colocando, assim, a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante de seu tempo” (BENTO XVI, 2005). Com Tomás, as diferenças entre fé e razão estão claramente dispostas em relação à unidade e integridade da verdade, então a verdade não pode contradizer a verdade.

Essa clareza começa a desvanecer-se até escurecer com a chegada da modernidade, o desenvolvimento da ciência e a reivindicação de autonomia do mundo moderno. A própria articulação entre Atenas e Jerusalém para formar um ocidente que bebe da filosofia grega, do direito romano, da escolástica medieval, da Renascença europeia, oferece razões para que também a modernidade seja construída a partir de um ato de fé na razão humana. Mas a confiança na razão pode tornar-se excessiva, no caso de reivindicar-se somente pela razão o acesso exclusivo à verdade. Com a luz da razão pode ser superada a escuridão do mito e da religião. A reação defensiva da Igreja e seu refúgio nas apologias e condenações, nem sempre razoáveis, não contribuíram para melhorar as coisas. O épico caso de Galileu é apenas o sinal de uma disputa que irá aumentando com a só razão autossuficiente e uma revelação cada vez mais opaca e autoritária. A exortação kantiana para se atrever a pensar por si mesmo (o sapere aude) enfrenta, de modo desafiador, todos os guardiões que impedem a autonomia, entre eles a Igreja e fé. “O confronto da fé da Igreja com o liberalismo radical e também com umas ciências naturais, que tentam abranger, com seus conhecimentos, toda a realidade até os seus limites, propondo, teimosamente tornar inútil a ‘hipótese Deus’” (BENTO XVI, 2005), provocou, da parte da Igreja, no século XIX, “ásperas e radicais condenações desse espírito dos tempos modernos”. Também provocou, da parte dos representantes da idade moderna, “a rejeição drástica” à fé eclesial. É contra esta Igreja católica, fechada diante de um mundo moderno hostil e adverso, que o Vaticano II assume o desafio de “determinar de modo novo a relação entre a Igreja e a idade moderna” (BENTO XVI, 2005).

Bento XVI observa que “havia se formado três círculos de perguntas que aguardavam uma resposta. Em primeiro lugar, foi necessário definir, de um modo novo, a relação entre a fé e as ciências modernas” – tanto as ciências naturais como as ciências históricas. “Em segundo lugar, era preciso definir, de um modo novo, a relação entre a Igreja e o Estado moderno (…) Em terceiro lugar, e com isso estava relacionado, de forma mais gera, o problema da tolerância religiosa” – e a liberdade religiosa –, “havia uma questão que exigia uma nova definição da relação entre a fé cristã e as religiões do mundo” (2005) e as culturas em geral. São precisamente estes três problemas que podem ser abordados com uma renovada compreensão da relação entre a fé e a razão, a política e a cultura.

2.3 A virada hermenêutica da fé e a razão: da rejeição à mutua colaboração 

Hoje em dia, uma hermenêutica, tanto da fé como das ciências, torna propícia a finalização das condenações recíprocas e permite uma aproximação, reconhecendo cada uma o seu campo de ação. Houve um tempo em que as ciências modernas competiam e ameaçavam a fé, não só as ciências naturais, mas também a ciência histórica. As explicações religiosas e teológicas deviam recuar na explicação do mundo e também em relação à compreensão das próprias sagradas Escrituras, pela pretensão do método histórico-crítico em ser a última palavra na interpretação da Bíblia. Deste excesso da razão ilustrada, passou-se para uma atitude mais modesta.

“As ciências naturais foram começando a refletir, cada vez mais claramente, sobre seu próprio limite, imposto pelo seu próprio método que, apesar de realizar coisas grandiosas, não era capaz de entender a totalidade da realidade” (BENTO XVI, 2005). Abandonando todo positivismo e todo dogmatismo, a ciência torna-se mais modesta e já não pretende ser a única abordagem válida sobre a realidade. Com consciência hermenêutica, o sonho da modernidade ilustrada em possuir o ponto de vista único começa a reconhecer vários instrumentos, sejam afirmações lógicas ou matemáticas, das ciências naturais ou das ciências sociais, das humanidades ou da arte. A multiplicidade de saberes exige múltiplas abordagens. O caminho tem sido difícil desde a diferenciação entre as ciências da natureza e as ciências do espírito (Dilthey) para argumentar que quanto mais se explica melhor se compreende (Ricoeur), a partir do reconhecimento dos interesses dos diferentes tipos de conhecimento (Habermas) até a conclusão que o observador nunca é neutro e que, em certos casos, como a história, a linguagem ou a arte, ele pertence à realidade que investiga (Gadamer).

Enquanto isso, também o discurso da fé, as afirmações magisteriais e a teologia adquirem consciência hermenêutica. Também a teologia se tornou mais modesta e não pretende enfrentar as afirmações científicas ou históricas com afirmações bíblicas nem promover concordismos apaziguadores. O texto bíblico não quer substituir ou contradizer os conhecimentos adquiridos pela razão. Sua pretensão é salvífica e não científica. Como aprendemos com Galileu, a Bíblia não ensina como vai o mundo, mas para onde vai. Não há nenhuma razão para qualquer competição entre razão e fé, mas sim a necessidade de cooperação mútua. Vimos que a fé precisa da razão para purificar-se, para corrigir o curso se alguma das suas afirmações contradiz a razão. “Quando, por causa da verdade, alguém vira as costas para Cristo, corre diretamente para seus braços” (KNAUER, 1989, p.248). O cristianismo tem “a convicção que agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus” (BENTO XVI, 2006).

Mas também é possível sustentar o contrário? Que agir contra a fé está em contradição com a natureza humana. A razão necessita da fé? Fides et ratio afirma: “Conhecer a fundo o mundo e os eventos da história não é possível sem confessar, ao mesmo tempo, a fé em Deus que neles age (n.16). Caritas in veritate reitera isso, defendendo a interação de diferentes saberes, incluindo o papel da caridade: “A caridade não exclui o saber, mas o requer, o promove e anima a partir de dentro. O saber nunca é apenas obra da inteligência (…) Sem o saber, o fazer é cego, e o saber é estéril sem o amor” (n.30). Por um lado, “ao enfrentar os fenômenos que estão diante de nós, a caridade, na verdade requer, antes de tudo, conhecer e compreender”, respeitando a especificidade de cada saber. Por outro lado, “a caridade não é um acréscimo posterior, mas dialoga (com as disciplinas) desde o início. As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as condições das ciências não podem indicar por si só o caminho para o desenvolvimento humano integral. Sempre é preciso aventurar-se mais além: o exige a caridade na verdade” (n.30). Mas a caridade deve respeitar os mesmos limites que tem a fé. Tanto a caridade como a fé, e teríamos que adicionar a esperança, sabem que “ir além” do que elas encorajam, esta ampliação da razão, “nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não há inteligência e depois o amor: existe o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor (n.30).

A inclusão do amor nos aproxima de nossa práxis e reflexão sobre a relação entre fé e política, que deverá considerar a relação entre amor e política. Terminemos com uma consideração final sobre se a razão necessita da fé e do amor cristão. Em seu famoso diálogo com Habermas, Ratzinger encoraja essa sugestão. Sem aceitar o discurso positivista que a gradual eliminação e superação da religião é o caminho do progresso humano, da liberdade e da tolerância universal, admite a existência de “patologias da religião” (do mais extremo fundamentalismo ao mais sutil integrismo), para as quais o diálogo com a razão é uma cura saudável. Mas continua a apontar uma condição que se torna cada vez mais evidente no mundo de hoje: a “patologia da razão”. “Antes havia surgido a questão se devia-se considerar a religião como uma força moral positiva; agora, deve surgir a dúvida sobre a confiabilidade da razão. No final das contas, a bomba atômica é um produto da razão; e também a produção e seleção de homens foram criadas pela razão. Neste caso, não haveria que colocar a razão sob observação? Mas por meio de quem ou de quê? Ou talvez não deveriam se circunscrever reciprocamente a religião e a razão, mostrarem mutuamente os respectivos limites e se ajudar a encontrar o caminho? (RATZINGER, 2008, p.43-44).

Ante as patologias da razão, devemos também exigir à sua hybris (com perigos tão ameaçadores como a bomba atômica e o ser humano entendido como um produto) “reconhecer os seus limites e aprender a ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade” (RATZINGER, 2008, p.53). “Por isso, podemos falar de uma correlação necessária de razão e fé, razão e religião, que são convidadas a se purificar e regenerar mutuamente, que se necessitam reciprocamente e devem reconhecê-lo” (RATZINGER, 2008, p.53). Mas se adverte que, no contexto intercultural de hoje, os dois atores principais, a fé cristã e a racionalidade secular ocidental, não podem ignorar outras culturas e devem escutá-las para não repetir um falso eurocentrismo. Só com esta correlação polifônica poderá adquirir “nova força efetiva entre os homens o que dá coesão ao mundo” (RATZINGER, 2008, p.54). Ratzinger está falando aqui dos fundamentos morais e pré-políticos do estado liberal, da necessidade de “encontrar uma evidência ética eficaz que tenha suficiente força de motivação e que seja capaz de responder a estes desafios e ajudar a superá-los” (RATZINGER, 2008, p.44).

Deste modo existe uma dupla ajuda da razão à fé e da fé – e do amor – à razão.  A razão pode ajudar a fé eliminando contradições errôneas ou supérfluas que dificultam e impedem que o mundo de hoje possa entender o Evangelho em toda a sua grandeza e beleza. A razão não pode abolir as contradições entre o Evangelho e os erros e pecados dos seres humanos. A igreja se aproxima do mundo para servi-lo, anunciando a Boa Nova, evitando a tentação de mundanizar-se. Existe a distância cristã, que preserva de qualquer acomodação ou adaptação espúria, pois o Evangelho e a Igreja continuam sendo “sinal de contradição”. A razão só nos ajuda a eliminar falsos escândalos (formas que serviam em outros tempos e que agora já não são válidas) para que brilhe o verdadeiro escândalo, a cruz que é loucura para os gregos e escândalo para os judeus. A reforma promovida pelo Concílio para tornar compreensível o Evangelho ao mundo de hoje é um novo momento nesta longa história entre a fé e a razão.

A fé cristã no reino de Deus volta a abrir passagem entre o racionalismo e o fideísmo, contornando as diferentes versões que se repetem tanto na modernidade ilustrada (no positivismo científico, no marxismo totalitário ou no economicismo neoliberal) como no romantismo pós-moderno (nos fanatismos e fundamentalismos religiosos ou nos fundamentalismo seculares de algumas versões do ecologismo, do indigenismo, do populismo). Além de se deixar ajudar para evitar que nela aconteçam “patologias da religião”, a fé, o amor e a esperança cristã podem ajudar a razão contemporânea nos desafios que enfrenta o nosso mundo. Podem ajudar a detectar e denunciar as “patologias da razão”, as desumanizações que prejudicam o desenvolvimento integral. Podem colaborar na busca dessa “evidência ética eficaz” desses fundamentos morais e pré-políticos que não pretendem substituir a autonomia da moral e da política, mas que podem enriquecer com amor a nossa busca por justiça e impregnar de esperança os anseios de cada uma das nossas culturas.

 Eduardo Silva S.J. Universidad Católica de Chile y Universidad Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol 

3 Referências Bibliográficas

Textos magisteriais

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