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Trabalho

Sumário

1 Definição

2 O contexto do mundo do trabalho

3 Doutrina Social da Igreja

4 América Latina

5 Sistematização

6 Referências bibliográficas

1 Definição

O trabalho é o âmbito da existência em que a pessoa se depara com todos os aspectos que marcam sua identidade como indivíduo e como ser social. O verbo trabalhar vem do latim tripaliare (torturar), derivado de tripalium, uma espécie de instrumento de tortura composto de tres e palus. Em quase todos os idiomas, se utiliza esse verbo para expressar ideia de fadiga. O conceito alemão arbeit se usa com um significado equivalente. No idioma português e no espanhol, é derivado de tripalium, assim como travailler, em francês significou “sofrer” pelo menos até o século XVI.

Na história do Ocidente, o sentido do trabalho sofre mutações segundo os contextos históricos (cf. MERCURE e SPURK, 2005). Na civilização greco-romana, estruturada sobre o modo de produção escravista, o trabalho não era um elemento da vida boa. Em Histórias, Heródoto registra que os trabalhos manuais (cheirotecnai) eram rejeitados pelos homens livres. Filósofos como Platão ensinavam que tanto os cheirotecnai como o trabalho artesanal (banausia) eram atividades inferiores. Cícero classificava o trabalho manual no nível mais baixo da hierarquia dos valores. O trabalho para a sobrevivência era identificado à palavra negócio, literalmente, “negação do ócio”. O ócio era a forma nobre de ocupar o tempo com a arte do governo da pólis (política) e com a filosofia (contemplação das ideias). As atividades relacionadas com a sobrevivência material ficavam a cargo dos servos, escravos e camponeses, pessoas de segunda categoria (ARENAS POSADAS, 2003).

O Cristianismo inaugura uma lenta e progressiva mudança de perspectiva. Nela, os monges tiveram influência inquestionável. São Basílio (330-379) ensinava que “sobram palavras para mostrar os males da ociosidade, como ensina o Apóstolo: ‘Aquele que não trabalha que não coma’ (2Tes 3,10). Do mesmo modo que cada um tem necessidade do alimento, assim também deve trabalhar segundo suas forças” (BASÍLIO, 1857-1866, p.37).

Os monges não estavam submetidos a critérios econômicos, mas à espiritualidade. Isso explica sua preocupação com as distrações da vida contemplativa: “Ocupa-te em algum trabalho, de modo que o diabo te encontre sempre com as mãos na obra”, exortava São Jerônimo (347-420). A sentença ora et labora, da Regra de São Bento (século VI), é origem da moderna ética do trabalho. A regra sobre o trabalho manual – De opere manuum Quotidiano – instrui que a ociosidade é inimiga da alma; por isso, em determinados tempos, os monges ocupem-se dele. Os monges que se ocupavam em fazer cestas para rompê-las em seguida e refazê-las tinham como fim “juntar tesouros no céu” (Mt 6,20). O trabalho era motivado pela caridade. A preocupação em garantir o sustento estava acompanhada pelo socorro aos necessitados (JACCARD, 1971).

Santo Agostinho (354-430) aprofunda esta vinculação entre trabalho, oração e caridade. Em seu estado original, o trabalho era agradável ao corpo e à mente, um livre exercício da razão e uma forma de louvar a Deus. O cansaço é uma consequência da finitude humana e uma recordação da primitiva infidelidade. Seu extremo é a ociosidade. Monges de Cartago defendiam a renúncia ao trabalho manual para dedicar-se totalmente à contemplação. Em resposta, Agostinho escreveu o livro De Opere monachorum. A razão fundamental para o trabalho, sem dúvida, é a edificação da cidade de Deus, concretizando o conceito cristão de charitas na história da humanidade. O trabalho e os bens materiais bem ordenados ajudam a edificar a cidade de Deus – núcleo da intenção bem ordenada (AGOSTINHO, Cidade de Deus).

A tradição escolástico-tomista acentuou novos sentidos ao trabalho. Na Suma Teológica, de Tomás de Aquino (1225-1274), o trabalho é abordado a partir do princípio universal da preservação da vida. A necessidade de sobrevivência é sua primeira razão. O trabalho pertence à ordem da matéria e não se deve buscar mais do que o sustento. Outro critério é o da utilidade comum. O valor de uma coisa depende da sua utilidade para a comunidade (ST II-II q.179-189).

Na modernidade ocorre uma mudança radical no conceito de trabalho (DÍEZ, 2001). Abandona-se o sentido religioso em favor de fins primordialmente materiais. A revolução industrial irá solidificar este processo de mudança. John Locke, um dos pais da economia política do liberalismo, vê no trabalho a origem da propriedade privada (LOCKE, 1990). Adam Smith, fundador da moderna ciência econômica, vê no trabalho a principal origem da riqueza das nações (SMITH, 1996). Com a consolidação do capitalismo, o trabalho na indústria e a relação salarial passam a definir todas as demais relações sociais (PARIAS, 1965). O processo de proletarização é um acontecimento nuclear da consolidação da modernidade ocidental. Na economia de mercado, o valor dos bens é estabelecido pela lei da oferta e da procura. O salário é o preço da mercadoria trabalho (POLANYI, 2000). O indivíduo configura sua personalidade através do trabalho. Os “melhores” trabalhos são os mais bem remunerados e prestigiados. Max Weber (1864-1920), ao investigar as origens do racionalismo ocidental do Capitalismo, conclui que a espiritualidade do trabalho da Reforma Protestante impulsionou uma ética profissional (WEBER, 2004). A teoria da predestinação individual do calvinismo ampliou o conceito de vocação a todas as profissões honestas. O homem deve agradar a Deus com seu trabalho.

Para Karl Marx, o trabalho é, primeiramente, uma categoria antropológica, pois se trata de uma atividade essencial da natureza humana. O progresso econômico e cultural acontece em torno do aperfeiçoamento dos meios de trabalho (MARX, 2013). O trabalho livre é a essência do homem e o motor da história das civilizações. A história universal é a criação do homem pelo trabalho (cf. MARX, 2007). Contudo, a economia política o conduziu ao processo de degradação traduzido pelo conceito de alienação. O trabalhador foi convertido em uma besta de trabalho, cujas exigências são reduzidas a necessidades físicas essenciais dos animais (MARX, 2004). O mecanismo da mais-valia e a propriedade privada reduziram o trabalhador a esta condição (MARX, 2013). O trabalho alienado representa uma verdadeira mutilação da humanidade e uma nova forma de escravidão (cf. MARX, 2004). Aqui está a origem do conflito entre trabalho e capital, a luta de classes (cf. MARX, 2007).

 2 Mundo do trabalho em contexto

Desemprego e precariedade, capitalismo neoliberal globalizado e economia financeirizada, novas tecnologias e competitividade são conceitos que trazem nova maneira de compreender o trabalho. A convergência entre desenvolvimento tecnológico e informação produziu uma mutação profunda. As tecnologias  ajustam o ser humano ao mercado e o trabalhador às máquinas. O trabalho no chão da fábrica perde espaço para o trabalho imaterial, aquele que cria bens como o conhecimento, a informação, o design, a imagem, emoções e ideias (GÓRZ, 2005). As novas tecnologias reforçaram a capacidade de expansão do sistema financeiro. Enquanto a parte do capital aplicada à produção de bens e serviços diminui, aumenta o valor do capital aplicado às finanças. Empregos desaparecem na mesma velocidade do crescimento das finanças. O estatuto do trabalhador é substituído por contratos temporários (CASTEL, 1998). As políticas de terceirização eliminam os direitos garantidos em lei. Os sindicatos perdem capacidade de negociação. A classe trabalhadora tem um perfil mais heterogêneo, fragmentado e empobrecido. O trabalho em regime de escravidão é uma realidade.

O crescimento populacional inunda o mercado de trabalho com milhões de pessoas; o agronegócio expulsa os pequenos agricultores para as cidades, convertendo-os em reserva de mão de obra barata. Conflitos religiosos, políticos e econômicos e desastres ambientais forçam milhares de pessoas a se deslocarem em busca de sobrevivência, ficando expostas a uma situação de fragilidade que pode conduzi-las para a exploração.

A discriminação racial e de gênero é outra das características do mundo do trabalho. Negros e mulheres ganham proporcionalmente menos que homens brancos. O desemprego atinge de forma mais intensa a população negra. As mulheres negras são duplamente discriminadas, pela raça e sexo. A mulher vem ocupando espaços no mercado. Entretanto, essa incorporação tem sido desigual em relação ao homem. Os contratos costumam ser de curta duração e os salários inferiores. Muitas mulheres têm dupla jornada, ou seja, realizam o trabalho doméstico e na empresa. Mantém-se a divisão sexual do trabalho.

 3 Doutrina social da Igreja

a) Rerum novarum

O ponto de partida da consciência eclesial sobre a exploração do trabalhador imposta pelo capitalismo é a encíclica Rerum novarum (RN) de Leão XIII (1878-1903). A condição dos operários foi a razão da publicação da primeira encíclica social da DSI (GASDA, 2011). Os operários foram jogados em uma situação de infortúnio e de miséria imerecida e terrível (RN n.1). A ideia do trabalho como mercadoria é rejeitada pela Igreja: “É vergonhoso e desumano usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços” (RN n.10). O trabalho é um direito natural, é pessoal e necessário (RN n.32) e ao trabalhador correspondem os frutos do seu trabalho, ou seja, dá o direito de propriedade (RN n.3, 33). Pio XI, em 1931, faz eco dessas palavras: “O trabalho não é um simples produto comercial, mas deve reconhecer-se nele a dignidade humana do operário, e não pode permutar-se como qualquer mercadoria” (Quadragesimo anno n.5).

b) Concílio Vaticano II

O elemento teológico do trabalho humano é destacado no Concílio Vaticano II. Todo trabalho realizado para conseguir melhores condições de vida contribui de alguma forma na construção do Reino de Deus. A pergunta sobre o sentido da atividade humana (GS n.33) também é dirigida ao trabalho: “A atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus” (GS n.34). O trabalho pode ser uma coparticipação na obra da Criação:

Os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria atividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história (GS n.34).

É apontado o crescimento pessoal como um aspecto importante: “Quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo (…). Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens externos que se possam conseguir” (GS n.35). À luz da Revelação, o valor do trabalho é esclarecido plenamente em Cristo: “oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré” (GS n.67). O trabalho é um esforço temporal que interessa em grande medida ao Reino de Deus” (GS n.39).

Na vida socioeconômica (GS n.63-72), o trabalho é enquadrado no âmbito do princípio da dignidade humana: “o homem é o autor, o centro e o fim da vida socioeconômica” (GS n.63). Portanto, o trabalho é muito superior aos outros elementos da economia, uma vez que estes não têm outra função que a de instrumentos (GS n.67). Não há trabalho sem descanso. O esforço responsável e árduo dedicado ao trabalho deve ser seguido por “tempo de repouso e descanso que permita cultivar a vida familiar, cultural e religiosa. Ainda mais, que seja capaz de desenvolver livremente energia e qualidades, que no trabalho profissional apenas é possível preservar” (GS n.67).

c) Laborem exercens

A encíclica Laborem exercens (1981), de João Paulo II, é o texto mais importante da DSI neste tema. Nela, “a questão dos operários deixou de ser um problema de classe, e deve ser tomado em consideração no âmbito mundial das desigualdades e das injustiças” (LE n.2). O documento identifica a questão antropológica que está origem dos conflitos sociais. Trata-se de uma inversão na ordem dos conceitos, isto é, a primazia do “capital” sobre o “trabalho” que resulta na alienação da pessoa (GASDA, 2011b). O capital transformou o trabalho em instrumento de acumulação material (cf. LE n.13). É frente a esta inversão, que provoca a exploração, a escravidão e a alienação que o primado do trabalho sobre o capital deve ser reafirmado (LE n.11). O valor primordial do trabalho está vinculado ao fato que quem o executa é uma pessoa criada à imagem e semelhança de Deus (LE n.4). “Antes de tudo o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho” (LE n.6).

Desta essência do trabalho emergem seu sentido objetivo e o seu sentido subjetivo. O sentido objetivo refere-se ao conjunto de atividades, recursos, instrumentos, técnicas, formas de gestão e tecnologias. São fatores contingentes que variam nas suas modalidades com a mudança das condições técnicas, culturais, sociais e políticas (LE n.5). Em sentido subjetivo, é o agir humano enquanto leva a cabo as ações que pertencem ao processo do trabalho e correspondem à sua vocação. O trabalho procede das pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus, chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da Criação (LE n.6). A subjetividade impede considerar o trabalho como simples mercadoria. O trabalho é superior a todo e qualquer outro elemento da economia (LE n.10). Este princípio vale, em particular, no que tange ao capital (LE n.12). Também o capital é fruto do trabalho. Trata-se da “tradução, em termos econômicos, do princípio ético do primado das pessoas sobre as coisas” (LE n.12). A propriedade dos meios de produção deve estar a serviço do trabalho (LE n.14). A Laborem exercens insere os direitos trabalhistas no conjunto dos Direitos Humanos (LE n.16). Tais direitos se baseiam na natureza humana. Os sindicatos e as organizações de trabalhadores são expoentes da luta pela justiça social (LE n.20).

O sentido subjetivo do trabalho revela a dimensão espiritual da pessoa humana, sua abertura à transcendência, ou seja, a espiritualidade do trabalho. João Paulo II recupera os elementos teológicos desenvolvidos principalmente na GS em forma de síntese, nos quatro últimos parágrafos da encíclica (cf. LE n.25-27): o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, participa de sua obra criadora; tem em Cristo, o homem do trabalho e anunciador do Reino, seu ponto de referência. O mundo do trabalho é um lugar imprescindível para assumir este compromisso com a transformação da sociedade à luz do Reino (cf. LE n.27). Considerar o trabalho unicamente em seu sentido econômico é mutilá-lo em sua essência e reduzi-lo a uma tarefa mecânica. Deve-se pensar um trabalho que liberte as potencialidades para o cuidado e cultivo da Criação (Gn 2, 15).

d) Bento XVI e o trabalho decente

Bento XVI, em sintonia com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), insere os direitos trabalhistas no marco dos direitos humanos. Atualmente o Programa Trabalho Decente é o ponto de convergência das propostas e convenções da OIT. A qualidade do emprego é tão importante quanto a quantidade.

Bento XVI explica a palavra decência ao trabalho:

Significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa (CV n.63).

O conceito inclui todas as pessoas que vivem do seu trabalho. Por princípio, todo trabalho humano deveria ser decente, gerador de valores relacionais, éticos e espirituais.

A implementação do Programa Trabalho Decente depende da articulação dos próprios trabalhadores. A Igreja expressa seu apoio ao movimento sindical (RN n.34.39-40; GS n.68; CDSI, n.305-309). Os sindicatos enfrentam o desafio de redefinir-se diante das reconfigurações do mercado de trabalho (ANTUNES, 2005; GORZ, 1982). Bento XVI reconhece que “o conjunto de mudanças sociais e econômicas cria grandes dificuldades para as organizações sindicais no cumprimento de seu papel de representar os interesses dos trabalhadores” (CV n.25). Embora o movimento sindical lute pelos interesses da categoria, não pode ignorar os problemas de toda a sociedade (SANTANA e RAMALHO, 2003): “a sociedade civil é, de fato, o lugar mais apropriado para uma ação em defesa do trabalho, especialmente em favor dos trabalhadores explorados e sem representatividade, cuja amarga condição passa despercebida aos olhos distraídos da sociedade” (CV n.64).

e) Papa Francisco

Papa Francisco, na Laudato si (LS), articula a ecologia integral ao trabalho decente, à sustentabilidade e à justiça social: “uma ecologia integral exige que se leve em conta o valor subjetivo do trabalho aliado ao esforço de se prover acesso ao trabalho estável e digno para todos” (LS n.191). A ecologia integral envolve dois aspectos: a dignidade do trabalhador e o cuidado com o meio ambiente.

O trabalho sustentável passa por garantir acesso universal ao trabalho decente e ao fomento da saúde. Prover cada ser humano de educação e de recursos para assegurar uma condição de trabalho seguro. Incluir os vulneráveis habilitando-os a desenvolverem suas capacidades. Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial (LS n.129).

O trabalho sustentável implica o cuidado com o meio ambiente.

Da relação entre natureza, trabalho e capital depende o futuro da espécie humana. O mundo do trabalho é parte da solução da crise ambiental.

Em qualquer abordagem de ecologia integral que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do trabalho. Na narração bíblica da criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn 2, 15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar) (LS n.124).

Papa Francisco tem sido enfático na defesa dos trabalhadores: “Terra, teto e trabalho – isso pelo que vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso é a Doutrina Social da Igreja… Não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho” (Encontro Mundial de Movimentos Populares, Roma, 2014).

4 América Latina

O mundo do trabalho foi abordado nas Conferências do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano). Reunidos em Medellín, os bispos dirigiram-se

a todos aqueles que, com o esforço diário, vão criando os bens e serviços que permitem a existência e o desenvolvimento da vida humana. Pensamos muito especialmente nos milhões de homens e mulheres latino-americanos que constituem o setor camponês e operário. Eles, na sua maioria, sofrem, esperam e se esforçam por uma mudança que humanize e dignifique seu trabalho. Sem desconhecer a totalidade do significado humano do trabalho, aqui o consideramos como estrutura intermediária, enquanto constitui a função que dá origem à organização profissional no campo da produção (Doc. Justiça).

Em Santo Domingo, o tema foi tratado de forma mais sistemática no item n.2.2.5 – Trabalho). Uma das realidades que mais preocupa a Igreja em sua ação pastoral

é o mundo do trabalho, por sua significação humanizadora e salvífica, que tem sua origem na vocação cocriadora do homem como “filho de Deus” (Gn 1,26) e que foi resgatado e elevado por Jesus, trabalhador e “filho de carpinteiro” (Mt 13,55 e Mc 6,3). A Igreja, como depositária e servidora da mensagem de Jesus, vê o homem como sujeito que dignifica o trabalho realizando-se a si mesmo e aperfeiçoando a obra de Deus, para fazer dela um louvor ao Criador e um serviço aos irmãos (Santo Domingo n.182).

O mundo do trabalho é campo pastoral, por isso

alerta-se para uma deterioração em suas condições de vida e no respeito aos seus direitos; um escasso ou nulo cumprimento de normas estabelecidas para os setores mais débeis; uma perda de autonomia por parte das organizações de trabalhadores devido a dependências ou autodependências de diversos gêneros; abuso do capital que desconhece ou nega a primazia do trabalho; poucas ou nulas oportunidades de trabalho para os jovens. Alerta-se para a alarmante falta de trabalho ou desemprego com toda a insegurança econômica e social que isso implica (Santo Domingo n.183).

Diante desta dura realidade, a defesa intransigente dos direitos do trabalho impõe-se como o desafio mais importante: “Os direitos do trabalhador são um patrimônio moral da sociedade que deve ser tutelado por uma adequada legislação social e sua necessária instância judicial, que assegure a continuidade confiável nas relações de trabalho” (Santo Domingo n.184). São propostas três linhas pastorais: impulsionar e sustentar uma pastoral do trabalho em todas as nossas dioceses, a fim de promover e defender o valor humano do trabalho; apoiar as organizações próprias dos homens do trabalho para a defesa de seus legítimos direitos, em especial de um salário suficiente e de uma justa proteção social para a velhice, a doença e o desemprego; favorecer a formação de trabalhadores, empresários e gover­nantes em seus direitos e em seus deveres, e propiciar espaços de encontro e mútua colaboração (Santo Domingo n.185).

Em Aparecida, os bispos estimularam os empresários, os agentes econômicos da gestão produtiva e comercial, tanto da ordem privada quanto comunitária, a serem criadores de riqueza em nossas nações, quando se esforçam em gerar emprego digno. Igualmente, estimularam “os que não investem seu capital em ação especulativa, mas em criar fontes de trabalho, preocupando-se com os trabalhadores, considerando-os ‘a eles e a suas famílias’” (DAp n.404). Um dos maiores desafios consiste em

formar na ética cristã que estabelece como desafio a conquista do bem comum a criação de oportunidades para todos, a luta contra a corrupção, a vigência dos direitos do trabalho e sindicais; é necessário colocar como prioridade a criação de oportunidades econômicas para setores da população tradicionalmente marginalizados, como as mulheres e os jovens, a partir do reconhecimento de sua dignidade. Por isso, é necessário trabalhar por uma cultura da responsabilidade em todo nível que envolva pessoas, empresas, governos e o próprio sistema internacional (DAp n.406).

Foram indicadas duas linhas de ação voltadas para categorias sociais que mais sofrem no mundo do trabalho, os jovens e as mulheres: é imperativa a capacitação dos jovens para que tenham oportunidades no mundo do trabalho e evitar que caiam na droga e na violência (DAp n.446); promover o diálogo com autoridade para a elaboração de programas, leis e políticas públicas que permitam harmonizar a vida de trabalho da mulher com seus deveres de mãe de família (DAp n.458). Em Aparecida, levantou-se um desafio inédito: “a formação de pensadores e formadores opinião no mundo do trabalho, dirigentes sindicais, cooperativos e comunitários” (DAp n.492).

 5 Sistematização

A complexidade do mundo do trabalho envolve a antropologia, a política, o direito, a cultura, a economia e a filosofia. A relação do ser humano com Deus é a perspectiva do pensamento teológico sobre o trabalho. Qualquer reflexão sobre o trabalho deve ter como referência o princípio da dignidade humana. Cada pessoa, independentemente da idade, condição ou capacidade, é uma imagem de Deus e, portanto, dotada de um valor irredutível. Cada pessoa é um fim em si, nunca um instrumento valorizado pela sua utilidade. O reconhecimento desta dignidade é o primeiro critério para avaliar modelos econômicos e a organização da divisão do trabalho. Seu estatuto está consolidado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

O trabalho humano é uma atividade geradora de relações sociais. Em virtude da imago Dei, os seres individuais são também seres relacionais. Individualidade e sociabilidade se objetivam em estruturas e relações. O sentido do trabalho não se esgota no sucesso profissional. Minha relação no trabalho diz quem eu sou para outro. “O princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais são e devem ser a pessoa humana, a qual, por sua mesma natureza, tem absoluta necessidade da vida social” (GS n.25).

Colocar o trabalho a serviço da dignidade humana é ter como meta o bem comum (GS n.27). Nenhum grupo social, indivíduo, empresa ou estado pode desentender-se do bem comum. O trabalho humano está na origem da empresa como organização de pessoas. Por meio do trabalho, as empresas produzem muitas das condições importantes que contribuem para o bem comum da sociedade. A criação de postos de trabalho é um aspecto imprescindível para alcançar o bem comum. Não se entende o trabalho humano desconectado do descanso. Neste sentido, o

ápice do ensinamento bíblico sobre o trabalho é o mandamento do repouso sabático. A memória e a experiência do sábado constituem um baluarte contra a escravização do homem ao trabalho, voluntário ou imposto, contra toda forma de exploração, larvada ou manifesta. O repouso sabático, de fato, mais que para consentir a participação no culto de Deus, foi instituído em defesa do pobre; tem também uma função liberatória das degenerações antissociais do trabalho humano (CDSI n.258).

O povo de Israel, que começou com aquela experiência de libertação de um grupo de trabalhadores submetidos ao trabalho forçado, se alimenta do cumprimento da promessa da plena libertação, a irrupção do Reino e o descanso em Deus (cf. Hb 4,10-11). Na legislação de Israel, a instituição do sábado como memorial do êxodo da alienação do trabalho, é o alicerce que sustenta os seis dias restantes.

O Filho de Deus, ao assumir a condição de trabalhador braçal, redimensiona o sentido do trabalho. O mundo do trabalho é lugar de irrupção do Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33). Para os cristãos, o verdadeiro sábado é Cristo, celebrado no domingo. É ele o Senhor do sábado (Mc 2,27) que inaugurou o sábado eterno (Hb 4,10) já prefigurado no sétimo dia da criação (Gn 2,1-3). O domingo revela a dimensão escatológica do trabalho. O descanso é identificado com a situação da criação de Deus (Gn 2, citado em Hb 4,4). O domingo é uma prefiguração deste descanso, não é apenas uma pausa do trabalho. A autorrealização alcançada no trabalho sempre é penúltima. O trabalho é uma forma de expressão da identidade humana, mas não de toda a identidade.

A natureza também precisa descansar. O sétimo dia representa um limite ao poder transformador do trabalho humano entendido como proteção e cultivo da criação. No trabalho, a pessoa descobre-se criadora, mas também como criatura frágil. A humanidade, irmanada em sua capacidade de trabalho, também está irmanada em sua debilidade e nos limites da natureza.

Pio XI afirmou que o maior escândalo do século XIX foi a Igreja ter perdido a classe operária. Para que este escândalo não volte a repetir-se no século XXI, não basta acumular documentos e declarações de boas intenções. A solidariedade com os trabalhadores é uma maneira de concretizar a opção preferencial pelos pobres. “Os pobres aparecem, em muitos casos, como resultado da violação da dignidade do trabalho humano” (Laborem exercens, n.8). A partir da Revolução Industrial, a realidade dos pobres e o mundo do trabalho estão interconectados. A constituição de uma pastoral operária libertadora é o principal desafio para os cristãos na América Latina. O compromisso de libertar o trabalho de uma “economia que mata” (papa Francisco) e emancipar os trabalhadores está implícito na práxis dos cristãos. Libertar o trabalho dos interesses financeiros, da competitividade desenfreada e da obsessão pela riqueza. Resgatar a economia como instrumento a serviço da vida.

 Élio Gasda, SJ. FAJE, Belo Horizonte, Brasil. Texto original em português.

 6 Referências bibliográficas

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Justiça Social

Sumário

1 Status questione

2 Escolástica-tomista

3 Da justiça legal à justiça social

4 Doutrina Social da Igreja

5 Novos enfoques e perspectivas

6 Sistematização

7 Referências bibliográficas

1 Status questione

Ao se adentrar em um tema de tamanha complexidade, nos cabe indagar a possibilidade de realização da Justiça Social a partir das condições evidenciadas na realidade. As desigualdades sociais vêm aumentando. Para os defensores de um sistema capitalista neoliberal, a desigualdade não só é necessária, mas ela está na “essência” deste modelo de sociedade. A forte rejeição do capitalismo liberal à justiça social é um dado relevante. Ludwig von Mises, um expoente da Escola Austríaca de economia, justifica a desigualdade social nos seguintes termos: “A desigualdade de renda e de riqueza é uma característica essencial da economia de mercado. Sua eliminação a destruiria completamente” (MISES, 2010, p. 347-948).

Friedrich Hayek, um dos principais ícones do pensamento neoliberal, expressa toda sua aversão ao conceito de justiça social. Primeiro, desclassifica a Igreja:

Parece ter sido abraçada por amplo segmento do clero de todas as tendências do cristianismo, as quais, à medida que perderam a fé numa revelação sobrenatural, parecem ter buscado refúgio e consolo numa nova religião “social” que substitui uma promessa celeste de justiça por outra temporal, e esperam poder assim prosseguir na sua missão de fazer o bem. A Igreja Católica Romana, especialmente, fez da meta de “justiça social” parte de sua doutrina oficial (HAYEK, 1985, p. 84).

Ato seguido, desclassifica seus teóricos:

A expressão “justiça social” não é uma expressão ingênua de pessoas de boa vontade para com os menos afortunados, tendo, antes, se tornado uma insinuação desonesta. Para que o debate político seja honesto, é necessário que as pessoas reconheçam que a expressão é desonrosa do ponto de vista intelectual, símbolo de demagogia ou do jornalismo barato, que pensadores responsáveis deveriam envergonhar-se de usar (HAYEK, 1985, p. 118).

A Doutrina Social Igreja (DSI) é reconhecida até pelos seus maiores adversários como defensora da justiça social. A desigualdade social é intolerável e a humanidade vive uma grave situação de injustiça social provocada por uma economia que mata. A justiça é um conceito em torno do qual se estrutura o cristianismo (cf. verbete Fé e Justiça). Não se trata apenas de distribuição de renda.

Além das formas tradicionais de justiça herdadas do pensamento clássico (legal/geral, distributiva, corretiva), a DSI apresenta a categoria de justiça social:

 O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: a comutativa, a distributiva, a legal. Um relevo cada vez maior no Magistério tem adquirido a justiça social, que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da justiça geral, reguladora das relações sociais com base no critério da observância da lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções. (CDSI, 2005, n. 201)

 2 Escolástica-tomista

O conceito aristotélico-bíblico-patrístico de justiça foi reinterpretado na escolástica. Santo Tomás de Aquino, no Tratado Da Iustitia, introduziu o termo na teologia e o inseriu no quadro das virtudes, reformulando assim a justiça legal de Aristóteles (ST II-II qq. 58-122). Seu estudo é imprescindível para compreender o conteúdo da justiça social. A justiça é a disposição de caráter que faz as pessoas agirem justamente e desejarem o que é justo. É a virtude que rege as relações humanas. O homem justo (dikaios) é aquele que respeita as leis (justiça absoluta) e a igualdade (justiça particular). Ser justo é viver dentro da legalidade e respeitar a igualdade.

Na justiça geral, um ato justo é aquele em conformidade com a lei. A lei estabelece como devidas aquelas ações necessárias para que a comunidade alcance o bem comum e a eudaimonia. O termo “geral” refere-se à sua abrangência. A justiça particular é pautada pela noção de igualdade e subdivide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. Justiça distributiva se exerce nas distribuições de honras, riquezas e tudo aquilo que pode ser repartido. Na distribuição, considera-se a qualidade pessoal do destinatário. Na oligarquia, o critério de distribuição é a riqueza; na democracia, o cidadão livre; na aristocracia, a virtude. A justiça corretiva visa o restabelecimento do equilíbrio nas relações privadas, voluntárias (contratos) e involuntárias (ilícitos civis e penais).

Tomás de Aquino dá continuidade à tradição aristotélica, acrescentando-lhe elementos do Direito Romano, da Patrística e da Sagrada Escritura. Para designar a justiça geral, Tomás utiliza o termo justiça legal, uma vez que os atos devidos à comunidade para que alcance o bem comum estão dispostos em lei. Esta justiça diz respeito àquilo que é devido ao outro em comunidade. O objeto da justiça legal é o bem de todos. A justiça distributiva é aquela que reparte proporcionalmente o que é comum, trate-se de bens ou encargos, e visa garantir a igualdade na distribuição dos deveres e direitos. A justiça corretiva aristotélica é denominada comutativa em Tomás.

 3 Da justiça legal à justiça social

No século XIX os neotomistas recuperam o conceito de justiça legal em nova perspectiva. A Ilustração, o estado de direito e o liberalismo exigem repensar o conceito de justa distribuição. Seguindo Charles Taylor (TAYLOR, 2000, p. 242), a base de identificação social nas sociedades hierárquicas é a noção de honra. A honra é um pré-conceito de cada pessoa em sua condição que define privilégios e distinções por ocupar uma determinada posição (status). Em sociedades hierarquizadas, a justiça distributiva será o princípio ordenador da vida social. A regra de distribuição será: a cada um segundo sua posição social. Na sociedade democrática, na qual todos possuem a mesma “relevância”, substitui-se a noção de honra pela “noção de dignidade usada em sentido universalista e igualitário que permite falar de dignidade inerente aos seres humanos (…). A premissa é que todos partilham desta dignidade” (TAYLOR, 2000, p. 242). Ora, se a igualdade fundamental não é proporcional, mas absoluta, a justiça distributiva não pode ser o princípio ordenador da sociedade, mas sim a justiça legal, fundada na igualdade fundamental de todos os seres humanos. Como todos os membros de uma sociedade são iguais perante a lei, a justiça legal converte-se em justiça social, aquela em que todos têm o mesmo valor, e todo ato em conformidade com a lei beneficia a todos. O meio utilizado para alcançar o bem comum é o sujeito do bem comum – a sociedade em seus membros – justificando a mudança de denominação, de justiça legal para justiça social.

Neste contexto de transição, Louis Taparelli d’Azeglio (1793-1862), teólogo neotomista da Universidade Gregoriana, foi o primeiro a utilizar a expressão “justiça social” na obra Saggio teoretico di diritto naturale. Preocupado com as consequências do liberalismo, da rápida expansão do capitalismo, através da Revolução Industrial, este autor buscou uma base teológica que sustentasse a doutrina moral da Igreja. E conseguiu, pois seu pensamento influenciou a elaboração da Rerum Novarum. Porém, a expressão justiça social suscitou controvérsias entre setores conservadores da hierarquia e o “catolicismo social europeu”, pois se suspeitava de certa influência socialista. Esta parece ser a razão pela qual não foi adotada por Leão XIII.

Taparelli parte do pressuposto da existência de dois direitos. O direito individual refere-se a Deus e a si mesmo. O direito social especifica as relações humanas e deve fundamentar a justiça social. “A justiça social é a justiça entre homem e homem”. Entre os homens considerados somente em sua humanidade, sua racionalidade e liberdade, existem “relações de perfeita igualdade, por que homem e homem aqui não significa senão a humanidade reproduzida duas vezes” (TAPARELLI d’AZEGLIO, 1840-1843). A justiça social, portanto, em uma sociedade na qual as posições ocupadas por cada um são consideradas secundárias em matéria de justiça, tem por objeto aquilo que é devido ao individuo somente pela sua condição humana.

Os católicos sociais franceses do final do século XIX, principais responsáveis pela difusão do termo “justiça social” na Europa, também a vincularam à justiça legal. Antoine, em Cours d’économie sociale (1899), desenvolve uma teoria da justiça, em que reitera os significados de justiça legal, justiça distributiva e justiça comutativa. A justiça legal é a vontade constante dos cidadãos de dar à sociedade o que lhe é devido, a disposição habitual para contribuir, sob a direção da autoridade suprema, ao bem comum, eis o que nós chamamos de justiça legal. Portanto, ela se identifica com a justiça social, uma vez que há identidade de objeto, o bem comum. A justiça social consiste na observância de todo o direito, tem o bem comum por objeto e a sociedade civil como sujeito. A sociedade civil só existe na totalidade dos seus membros e todos eles devem colaborar na obtenção do bem comum (sujeito da justiça social) e todos devem participar do bem comum (termo da justiça social).

Em âmbito alemão, onde também há um retorno ao neotomismo, os editores da importante revista Stimmen aus Maria-Laach, Pesch, Gundlach, Messner, Nell-Breuning e Tischleder adotaram a expressão justiça social. Este fato foi decisivo para que o termo fosse acolhido pelo Magistério, pois tais autores colaboraram de forma decisiva na elaboração da encíclica Quadragesimo anno (1931), de Pio XI. Antes, somente Pio X, na encíclica Iucunda sane (1904), que comemorava São Gregório Magno, utilizou o termo ao qualificar o santo como defensor da justiça social. O conceito aparece na encíclica Studiorum Ducem (29 junho 1923), por ocasião do sexto centenário de canonização de Tomás de Aquino. Nela, Pio XI afirma que nos escritos do Aquinate encontram-se as refutações das teorias liberais da moral, do direito e da sociologia.

 4 Doutrina social da Igreja

O desenvolvimento do conceito de justiça social a partir da tradição aristotélico-tomista recebe impulso nas Encíclicas Sociais. O conceito foi introduzido por Pio XI na Quadragesimo Anno (1931). O termo é citado sete vezes e sempre acompanhado dos adjetivos comutativa, legal/geral. Trata-se de um conceito que traz exigências precisas, tendo como critério a dignidade humana, tal como definiu Taparelli.

A economia é seu campo de aplicação mais imediato. Para Pio XI, existe uma lei de justiça social que deveria reger qualquer modelo econômico:

 É necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros. (Q A 57)

Aplica-se à esfera econômica com a mesma universalidade da justiça legal. Portanto, “cada um deve, pois, ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social” (Q A 58). Também em Santo Tomás de Aquino a justiça legal ordena o homem imediatamente ao bem comum.

A justiça social considera o ser humano na sua condição de pessoa humana, seus direitos e deveres como membro da sociedade. Assim como todos têm obrigações, todos têm benefícios, uma vez que o bem comum realiza-se somente “quando todos e cada um tiverem todos os bens que as riquezas naturais, a arte técnica, e a boa administração econômica podem proporcionar.” (Q A 75). Na ordem econômica, a fórmula da justiça social seria: todos os bens necessários para todos.

Ainda na esfera da economia, o mundo do trabalho é o campo principal de aplicação da lei da justiça social. O salário é um dos seus instrumentos principais. Para valorizar com justiça o trabalho, deve-se considerar sua dimensão pessoal e social (QA 69). O bem comum exige que se promovam postos de trabalho como condição de segurança e bem estar. O desemprego é um reflexo de uma economia injusta. A justiça social deve regular e determinar o salário do operário e de sua família, dispensando a exploração do trabalho infantil e da mulher (Q A 71).

A justiça social não se aplica somente ao campo econômico. Também “as instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça social” (Q A 110). Os seres humanos, considerados como pessoas, são iguais e, portanto, toda desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, como é o caso das suas necessidades materiais básicas, deve ser eliminada. Não basta apelar à moralidade nas relações entre empresários e trabalhadores, pois o sistema de produção se desenvolve no interior de uma estrutura social. A justiça social inspira a reforma das instituições. O Estado tem um papel insubstituível na aplicação desta lei (Q A 79), sempre em colaboração entre Estado, empresa e sociedade: “É preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública” (Q A 88).

O Concílio Vaticano, na Gaudium et spes, confere duas fundamentações teológicas decisivas. A primeira é a dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus:

 A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião (…) Com efeito, as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional (GS 29).

A segunda fundamentação encontra-se na referência “à criação de algum organismo da Igreja incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações” (GS 90). A justiça social como exigência da dignidade humana tem alcance global e encontra sua fundamentação teológica no principio do destino universal dos bens: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade” (GS 69). Paulo VI, seguindo esta orientação do Concílio, cria a Comissão de Justiça e Paz (Motu próprio Catholicam Christi Ecclesiam, 6 janeiro1967).

João Paulo II mantém a justiça social como um eixo da doutrina social da Igreja. Para ele, a “questão social” é identificada como questão de justiça social em cuja origem se encontram as estruturas de pecado e os mecanismos perversos (Sollicitudo rei socialis). Ao situar o trabalho humano como chave da questão social, o compromisso com a justiça se concretiza, em primeiro lugar na luta pelos direitos trabalhistas (Laborem exercens). A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das exigências de justiça social e os sindicatos são os expoentes desta luta (LE 8). Bento XVI, em Caritas in veritate, recorda que a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que têm a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza (CiV 35).

Caberá ao papa Francisco ampliar o conceito de justiça social (TORNIELLI e GALEAZZI, 2016; FRANCISCO, 2016). Na Evangelii Gaudium, o pontífice recorda que “ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, pois ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (EG 201). E destaca que a justiça social deve estar na pauta do diálogo entre as religiões: o diálogo inter-religioso, fundado na atitude de abertura na verdade e no amor, deve procurar a paz e a justiça social, é um compromisso ético que cria novas condições sociais (cf. EG 250).

Na Laudato sí, o pontífice insere a justiça social no paradigma do cuidado da casa comum:

muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas (…) Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (LS 49).

O cuidado da casa comum aponta para a justiça intergeracional:

 Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que virão (LS 159).

 5 Novos enfoques e perspectivas

Na Conferência de Medellín (1968), o CELAM dedicou um documento inteiro ao tema da justiça. Nele, se denuncia que “a miséria marginaliza grandes grupos humanos em nossos povos. Essa miséria, como fato coletivo, é qualificada de injustiça que clama aos céus”. E proclamava a força libertadora do cristianismo: “Cremos que o amor a Cristo e a nossos irmãos será não somente a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social” (DM, Justiça, 1).

Em Puebla (1979), os bispos contemplaram a justiça social como um direito social que integra o processo de evangelização. “Os povos deste continente têm direito à educação, à associação, ao trabalho, à moradia, à saúde, ao lazer, ao desenvolvimento, ao bom governo, à liberdade e justiça social, à participação nas decisões que concernem ao povo e às nações” (DP 1272).

Em Aparecida, o conceito foi ampliado de forma notável. “Reino de Deus, justiça social e caridade cristã” é o título do primeiro item do capítulo 8. A justiça social se insere no amplo contexto do anúncio do Reino de Deus e da promoção da dignidade humana. Primeiramente, recorda que as obras de misericórdia estejam acompanhadas pela busca de uma verdadeira justiça social (DAp 385).

Em seguida, destaca que os novos pobres que emergem na atualidade transcendem a dimensão socioeconômica da justiça social:

 os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados (as), os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros. (DAp 402).

A justiça social não se reduz a políticas de distribuição mais equitativa da renda e riqueza. Um novo tipo de demanda articula a equidade econômica ao reconhecimento de grupos discriminados. A Igreja reconhece a partir da fé as sementes do Verbo presentes nas tradições e culturas dos povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias (cf. DAp 529-530). Também apoia “o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social” (DAp 533).

Entidades e movimentos organizados em torno da etnia, do povo, do gênero e da sexualidade, da profissão lutam para que suas identidades sejam reconhecidas. A reivindicação é ser “reconhecido” como ser humano em sua constituição plena” (HONNETH, 2003). A injustiça social também se expressa em formas de  discriminação cultural. As injustiças de natureza simbólica decorrente de modelos sociais de representação excluem o “outro” através de seus códigos de interpretação e de valores morais. Em muitos casos, a injustiça econômica é ampliada por este tipo de injustiça. As duas formas se reforçam. O pobre não é apenas pobre econômico, mas também é negro, é indígena, é mulher, é gay, é transexual etc. A superação da injustiça cultural está no reconhecimento das diversidades das identidades e seus modelos sociais de representação. Política de reconhecimento e política de redistribuição integram o conceito de justiça social. Ao combate à desigualdade socioeconômica somam-se as lutas pelo fim das discriminações. Uma ampla justiça social visa responder às duas reivindicações. O campo da justiça social é, simultaneamente, a redistribuição e o reconhecimento (FRASER, 2001).

 6 Justiça socioambiental

A distribuição dos bens, as taxas e responsabilidade pelo cuidado são o foco da justiça ambiental. As questões que envolvem a ecologia e a desigualdade social entrelaçam-se no conceito de justiça socioambiental. A definição clássica de justiça: “dar a cada um o que lhe corresponde” aplica-se também aos recursos naturais, não apenas aos direitos econômicos e sociais. A natureza é um bem público que todos os seres humanos devem desfrutar. A justiça social é um dos quatro tópicos da Carta da Terra: respeitar e cuidar da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social e econômica; democracia, violência e paz. As atividades e instituições econômicas em todos os níveis deveriam promover, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual. Eliminar a discriminação em todas as suas formas, como as baseadas em raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.

A quem pertencem as reservas de petróleo, os rios, as florestas, a atmosfera? Existem, em linhas gerais, os seguintes enfoques (IBANEZ, 2012): na justiça climática, os pobres são vistos como as principais vítimas da crise ambiental provocada pelos ricos. Portanto, os principais culpados pela crise devem pagar por ela; a justiça ambiental entende que o lixo tóxico e a sucata são depositados nos territórios mais pobres e nas periferias, afetando grupos específicos: afrodescendentes (racismo ambiental), pobres (classismo ambiental), mulheres (sexismo ambiental). Esta visão propõe uma distribuição mais justa dos recursos naturais de tal forma que nenhum grupo social possa ser prejudicado; os defensores da justiça ecológica incluem os animais não humanos na distribuição; a justiça socioambiental intergeracional contempla as gerações futuras como destinatárias da justiça.

7 Sistematização

O bem comum é o conteúdo da justiça social. A justiça social regula as relações do indivíduo com a comunidade na sua condição de membros da comunidade. Na justiça social, visa-se diretamente o bem comum e, indiretamente, o bem deste ou daquele individuo particular. O ser humano é considerado em comunidade.

O reconhecimento é a atividade própria da justiça social. Ela visa regular a prática social de considerar o outro como sujeito de direito (ou pessoa), como um ser que é “fim em si mesmo e possui uma dignidade” (Kant). Um sujeito de direito somente se constitui como tal se for reconhecido por outro sujeito de direito. A justiça social diz respeito a esta prática de mútuo reconhecimento no interior de uma comunidade. Ela suprime toda a sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os outros. Na medida em que os demais membros não reconhecem os direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer os direitos dos demais. O sujeito da justiça social é a alteridade.

A pessoa humana é um ser concreto existente. Tem uma natureza humana, um todo em si mesmo, não podendo ser reduzida a uma parte de um todo maior. A ela são devidos todos os bens necessários para sua realização nas dimensões concreta, individual, racional e cultural. A igualdade básica de cada pessoa é a igualdade nesta dignidade como conceito fundador da experiência jurídico-política contemporânea.

Mesmo que a justiça distributiva, aplicando critérios pertinentes, como a “cada um segundo sua contribuição” e “a cada um segundo sua necessidade”, esteja presente na partilha dos bens produzidos, ainda assim, o sistema econômico pode ser injusto do ponto de vista da justiça social, se viola a dignidade da pessoa humana (Mater et magistra 82).

Para determinar o que é devido em um caso concreto, em termos de justiça social, não basta seguir os cânones de igualdade proporcional da justiça distributiva, mas faz-se necessário atentar para os bens de que o ser humano é merecedor em virtude da sua condição humana. A justiça social contempla as seguintes dimensões: socioeconômica, jurídico-político-institucional, sociocultural, moral/subjetiva.

A justiça social é a sistematização, em termos da teoria da justiça, do valor da dignidade da pessoa humana presente no desenvolvimento da civilização: age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Kant). “Como quereis que os outros vos façam, fazei também vós a eles” (Lc 6, 31).

 Élio Gasda, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte). Texto original português.

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WALZER, M. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Pastoral dos LGBT

Sumário

1 Um novo contexto na sociedade e na Igreja

2 A Bíblia e a história

3 O ensinamento moral da Igreja em perspectiva inclusiva

4 Palavras e gestos proféticos

5 Caminhos a percorrer

6 Referências bibliográficas

1 Um novo contexto na sociedade e na Igreja

 Quando o papa Francisco retornou do Brasil a Roma, em 2013, disse algo que teve muita repercussão: “Se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar? […] Não se deve marginalizar estas pessoas por isso” (FRANCISCO, 2003b). Nesse mesmo ano, ele convocou o Sínodo dos Bispos para tratar da família e de seus desafios atuais. No questionário preparatório, enviado a todas as dioceses do mundo, perguntou-se que atenção pastoral se pode dar às pessoas que escolheram viver em uniões do mesmo sexo e, caso adotem crianças, o que fazer para lhes transmitir a fé (SÍNODO, 2013).

A Igreja Católica vive um tempo de renovação pastoral impulsionada pelo papa. Ele a convoca a ir às “periferias existenciais”, ao encontro dos pobres e dos que sofrem com as diversas formas de injustiças, conflitos e carências. É preciso abrir-se à novidade que Deus traz à nossa vida, que nos realiza e nos dá a verdadeira alegria e serenidade, porque Deus nos ama e quer apenas nosso bem. Francisco critica uma Igreja ensimesmada, entrincheirada em estruturas caducas incapazes de acolhimento e fechada aos novos caminhos que Deus lhe apresenta. A ação do Espírito Santo ergue o olhar dos fiéis para o horizonte, impelindo-os a essas periferias (FRANCISCO, 2013a).

Um dos sinais mais notáveis do mundo atual é a ampla visibilidade da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Convém esclarecer os termos. Travestis são pessoas que vivenciam papéis femininos, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres. Transexuais são pessoas que não se identificam com o sexo que lhes é atribuído ao nascerem, e sim com o outro sexo. Pode haver homem transexual, que reivindica o reconhecimento social e legal como homem, e mulher transexual, que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher. Tanto travestis como transexuais são transgênero, isto é, pessoas que não se identificam com o sexo que lhes é atribuído ao nascerem. O contrário são cisgênero, pessoas identificadas com o sexo atribuído ao nascerem (JESUS, 2012).

No passado, muitos deles viviam à margem da sociedade ou mesmo no anonimato. Vários gays e lésbicas se escondiam no casamento tradicional, constituído pela união heterossexual. Alguns formavam guetos em espaços de convivência bastante reservados, como forma de se protegerem. Mas hoje, os LGBT fazem grandes paradas, estão presentes em filmes e telenovelas, buscam reconhecimento, exigem ser respeitados e reivindicam os mesmos direitos e deveres dos demais cidadãos. Esta população está em toda parte. Quem não faz parte dela tem parentes próximos ou distantes que fazem, velada ou manifestamente, bem como vizinhos ou colegas de trabalho.

A ampla visibilidade também manifesta os problemas que afligem essa população. Há uma forte aversão a homossexuais: a homofobia; e a travestis e transexuais: a transfobia. Essa aversão produz diversas formas de violência física, verbal e simbólica contra estas pessoas. Há pais de família que já disseram: “prefiro um filho morto a um filho gay”. Entre os palavrões mais ofensivos que existem, constam a referência à condição homossexual e ao sexo anal, comum no homoerotismo masculino. Ou seja, é xingamento. Muitas vezes, quando se diz que alguém é “homem” ou “mulher”, entende-se que é heterossexual, excluindo da masculinidade ou da feminilidade a pessoa homossexual. No Brasil e em muitos países, são frequentes os homicídios, sobretudo de travestis. Há também suicídio de muitos adolescentes que se descobrem gays ou lésbicas, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por pressentirem a rejeição hostil da própria família e da sociedade. Tal hostilidade gera inúmeras formas de discriminação e, mesmo que não leve à morte, traz frequentemente tristeza profunda ou depressão.

O padre Júlio Lancellotti trabalha na cidade de São Paulo com a população de rua. Ele relata a situação dramática que encontra:

 Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBT que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abuso, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos das igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue e fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado! (LANCELLOTTI, 2015).

 Há também muitos LGBT na Igreja Católica. São pessoas que nasceram e foram criados neste ambiente, têm fé e em certo momento descobriram esta condição. Vários deles participam ativamente de suas comunidades, mas não poucos se afastaram, e se afastam, por se depararem com incompreensão e hostilidade. É preciso que eles encontrem fiéis e ministros religiosos sensíveis às suas feridas e dificuldades, e também aos seus talentos e potencialidades. Não há dúvida que os LGBT se situam nas periferias existenciais apontadas pelo papa. A solicitude pastoral da Igreja também deve contemplá-los. Com a devida compreensão da sua realidade, eles podem ser ajudados na busca de Deus e de sentido para a vida, no cultivo da vida espiritual e da autoestima, na cura de feridas exteriores e interiores, no fomento do apoio mútuo, da vida eclesial, do apostolado e da ação no mundo. Para melhor ajudá-los neste caminho, convém refletir sobre sua realidade com alguns subsídios teológico-pastorais.

 2 A Bíblia e a história

 A Igreja ensina que a lei de toda a evangelização é pregar a Palavra de Deus de maneira adaptada à realidade dos povos, como diz o Concílio Vaticano II (1962-1965). Deve haver um intercâmbio permanente entre a Igreja e as diversas culturas. Para isto, ela necessita da ajuda dos que conhecem bem as várias instituições e disciplinas, sejam eles crentes ou não. Os fiéis precisam saber ouvir e interpretar as várias linguagens ou sinais do nosso tempo para avaliá-los adequadamente à luz da Palavra de Deus, de modo que a verdade revelada seja melhor percebida, compreendida e apresentada de um modo conveniente (GS 44). A correta evangelização, portanto, é uma estrada de duas mãos, de intercâmbio entre a Igreja e as culturas contemporâneas. A fé cristã necessita dialogar com os saberes legítimos. Só se pode saber o que a Palavra de Deus significa hoje, e que implicações ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade atual, que inclui a visibilidade da população LGBT, o reconhecimento de seus direitos humanos e de sua cidadania.

Não se pode negligenciar o que o livro sagrado dos cristãos diz sobre a atração entre pessoas do mesmo sexo, nem os desdobramentos históricos que daí se seguiram. Mas é preciso se tratar deste assunto com a devida profundidade, indo além da leitura ao pé da letra. A Revelação divina testemunhada na Bíblia é expressa de diversos modos. Segundo o Concílio, o leitor deve buscar o sentido que os autores sagrados, em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretenderam exprimir servindo-se dos gêneros literários então usados. Devem-se levar em conta as maneiras próprias de sentir, dizer ou narrar em uso no tempo deles, como também os modos que se empregavam frequentemente nas relações entre os homens daquela época (DV 12).

No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se unirem e procriarem. Supõe-se uma heterossexualidade universal, expressa no imperativo “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28). Isto foi escrito no tempo do exílio judaico na Babilônia. Para o povo expulso de sua terra e submetido a uma potência estrangeira, crescer era fundamental para a sobrevivência da nação e da religião. Não se nega o desígnio divino que a humanidade se espalhe pela terra, mas a necessidade de sobrevivência do povo judeu naquele tempo era urgente.

O sêmen do homem supostamente continha o ser humano inteiro, e devia ser colocado no ventre da mulher assim como a semente é depositada na terra. Não se conhecia o óvulo. O próprio nome sêmen está ligado a semente. Ele jamais deveria ser desperdiçado, como mostra a história de Onã. Ele se casou com Tamar, viúva de seu irmão Her, que morreu sem ter descendente. Conforme a lei (Dt 25,5-10), Onã deveria suscitar uma posteridade a seu irmão, e o primeiro filho homem deveria ter o nome deste irmão falecido, Her. Mas Onã praticou coito interrompido, ejaculando fora da vagina de sua esposa e impedindo-a de conceber. Onã foi fulminado por Deus, como punição por esta transgressão (Gn 38,1-10).

É neste contexto que a relação sexual entre dois homens era inadmissível. Israel devia se distinguir das outras nações de várias maneiras, com o seu culto, sua lei e seus costumes, segundo o código de santidade do livro do Levítico. Aí se inclui a proibição do homoerotismo, considerado abominação (Lv 18,22). Proíbe-se também, e com rigor: trabalhar no sábado, comer carne de porco ou frutos do mar, aparar o cabelo e a barba, tocar em mulher menstruada durante sete dias, usar roupa tecida com duas espécies de fio, plantar espécies diferentes de semente em um mesmo campo e acasalar animais de espécies distintas. Quando o cristianismo, nascido em Israel, expandiu-se entre os povos não judeus, a santidade do Levítico não se tornou norma para estes povos, mas a proibição do homoerotismo sim, conforme se verá adiante.

A esta proibição somou-se a história de Sodoma e Gomorra, cujo pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). O pecado foi recusar a hospitalidade aos que visitavam o patriarca Ló, a ponto de tentarem violentar sexualmente estes visitantes. Com frequência, a violência sexual era uma forma de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos. Inicialmente, o delito de Sodoma era visto como “orgulho, alimentação excessiva, tranquilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente” (Ez 16,49). Através do profeta, o Senhor diz: “Tornaram-se arrogantes e cometeram abominações em minha presença” (Ez 16,50). Vários séculos depois, tal pecado foi identificado com o homoerotismo, mas na origem ele nada tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas do mesmo sexo.

No Novo Testamento, a Carta aos Romanos afirma que quem ama o próximo cumpriu a lei, pois os mandamentos se resumem em amar ao próximo como a si mesmo (Rm 13,8-10). Este é o espírito dos mandamentos e o critério de sua interpretação. Mas ao refutar o politeísmo, o apóstolo Paulo o associa ao homoerotismo (Rm 1,18-32). Os pagãos são acusados de não adorar o Deus único, mas as criaturas, e de permitir essa prática sexual vista como abominação pelos judeus. Tal comportamento é considerado castigo divino por causa de uma prática religiosa errada: “Por tudo isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas”. Outros escritos paulinos têm a mesma posição, em que prováveis referências ao homoerotismo estão ligadas à idolatria e à irreligião (1Cor 6,9-11; 1Tm 1,8-11). No contexto judaico-cristão da Antiguidade, este argumento era compreensível. Não havia o conceito de “orientação sexual”, estrutura profundamente enraizada na pessoa, com relativa estabilidade, levando-a à atração pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo. A “orientação sexual” nada tem a ver com a crença em um ou em vários deuses, ou com qualquer prática religiosa. Mas, no contexto da Antiguidade, a Igreja herdou a visão antropológica judaica da heterossexualidade universal com suas interdições. Hoje, tudo isto deve ser levado em conta.

A religião cristã se expandiu e se tornou hegemônica em muitos países, chegando a se tornar religião de Estado. O homoerotismo foi classificado como “sodomia” e criminalizado por muitos séculos. Para a Igreja, a sodomia era um crime horrendo: provocava tanto a ira de Deus a ponto de causar tempestades, terremotos, pestes e fome, que destruíam cidades inteiras. Era algo indigno de ser nomeado, um “pecado nefando” do qual nem se deve falar, e muito menos se cometer (VIDE, 2007, p. 331-332). Tribunais civis e mesmo eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados deste delito. Os culpados eram entregues ao poder civil para serem punidos, até mesmo com a morte.

Com o advento do Iluminismo e da razão autônoma, independente da Revelação, a prática sexual exercida sem violência ou indecência pública não devia cair sob o domínio da lei. Teve início uma crescente descriminalização da sodomia. A modernidade, impulsionada pelo Iluminismo, trouxe a separação entre Igreja e Estado, a autonomia das ciências e os direitos humanos, que restringem o poder do soberano sobre o súdito e ampliam a liberdade da pessoa em relação à coletividade. No século XIX, o termo sodomia foi substituído por “homossexualidade”. A questão é trazida do âmbito religioso e moral para o âmbito médico. O que até então era visto como abominação passa a ser considerado doença. Por muitas décadas, pessoas homossexuais eram internadas em sanatórios. Chegou-se até mesmo ao uso de choque elétrico no tratamento médico dessas pessoas.

A partir dos anos 1970, houve uma progressiva despatologização da homossexualidade, impulsionada pelo crescimento do movimento gay. Nos anos 1990, a Organização Mundial de Saúde a retirou da lista de doenças. Organizações de médicos e de psicólogos declararam que a homossexualidade não é doença, nem distúrbio, nem perversão; e proibiram seus profissionais de colaborarem em serviços que propõem o seu tratamento e cura. Assim, algumas pessoas são gays ou lésbicas e o serão por toda a vida. Não se trata de opção, mas de condição ou orientação. Com relação a travestis e a transexuais, permitem-se hoje tratamentos de transexualização, inclusive na rede pública de saúde. A mudança do nome social é prevista em certos casos, podendo-se até chegar à mudança do nome no registro civil.

 3 O ensinamento moral da Igreja em perspectiva inclusiva

 Alguns princípios da modernidade foram assimilados pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II. Além do novo enfoque da evangelização e da leitura da Bíblia, o Concílio legitimou a separação entre Igreja e Estado, a autonomia da ciência e reconheceu a liberdade de consciência, que é o direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência, e o dever de não agir contra ela. Nela está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se manifesta. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos outros homens no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social (GS 16). Nenhuma palavra externa substitui a reflexão e o juízo da própria consciência. O Catecismo da Igreja Católica aprofunda este ensinamento e cita o cardeal Newman: “a consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (n.1778). É ela quem primeiro representa Cristo para o fiel. A vida espiritual e a reflexão muito ajudam o fiel a ouvir a voz do Senhor e a discernir os seus sinais.

Certa vez, o papa Bento XVI afirmou que o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente (BENTO XVI, 2006). É muito bom que um Papa tenha reconhecido isto, pois há no cristianismo uma história multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na ameaça de condenação e no medo. Pode-se falar de uma “pastoral do medo”, que com veemência culpabiliza as pessoas e as ameaça de condenação eterna para obter a sua conversão. Isto não se restringe ao passado. Ainda hoje, em diversas igrejas e ambientes cristãos, muitos interpretam a doutrina de maneira extremamente restritiva e condenatória, com obsessão pelo pecado, sobretudo a respeito de sexo. As proibições ligadas à mensagem cristã frequentemente repercutem mais do que o seu conteúdo positivo. Isto se observa tanto dentro da Igreja, entre os fiéis, quanto fora, entre os que a criticam. Há um foco excessivo na proibição. É fundamental buscar na mensagem cristã o seu componente positivo, para que ela seja boa nova, Evangelho.

O papa Francisco segue esta linha com determinação. Ele diz que “o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa” (FRANCISCO, 2013c). Este anúncio deve concentrar-se no essencial, que é também o que mais apaixona e atrai, procurando curar todo tipo de ferida e fazer arder o coração, como o dos discípulos de Emaús que se encontraram com Cristo ressuscitado. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda e irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais. Nesta perspectiva, o confessionário não é uma sala de tortura, mas um lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor que pudermos (FRANCISCO, 2013c).

O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e nos salva, reconhecendo-o nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. A Igreja não deve ser uma alfândega dos sacramentos, mas a casa paterna onde há lugar para todos que enfrentam fadigas em suas vidas. Todos podem participar da vida eclesial e fazer parte da comunidade. A Eucaristia, plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os que necessitam de forças (EG 39 e 47).

O conhecimento da verdade é progressivo, observa o papa. A compreensão do homem muda com o tempo, e sua consciência se aprofunda. Recorde-se o tempo em que a escravatura era aceita e a pena de morte era admitida sem nenhum problema. Os exegetas e os teólogos, como também as outras ciências e a sua evolução, ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. Como consequência, há normas e preceitos eclesiais secundários que em outros tempos foram eficazes, mas que hoje perderam valor ou significado. Uma visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a ser defendido sem matizes é errada (FRANCISCO, 2013c). Portanto, os fiéis cristãos, incluindo os LGBT, devem procurar ser adultos na fé, atentos às contribuições das ciências que ajudam a Igreja a amadurecer seu juízo. Eles não devem se encapsular em posturas intransigentes avessas à reflexão crítica e ao diálogo.

O Concílio afirma que há uma ordem ou hierarquia de verdades no ensinamento da Igreja, segundo o seu nexo com o fundamento da fé cristã. Alguns conteúdos são mais importantes por estarem estreitamente ligados a este fundamento. Outros, por sua vez, são menos importantes por estarem menos ligados a ele (UR 11). Para Francisco, esta ordem é válida tanto para os dogmas de fé como para os demais ensinamentos da Igreja, incluindo a sua mensagem moral. Nesta, há uma hierarquia nas virtudes e ações. A misericórdia é a maior das virtudes. As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito. Os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus são pouquíssimos. E os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja devem ser exigidos com moderação, para não tornar pesada a vida aos fiéis e nem transformar a religião numa escravidão (EG 36-37 e 43).

Nesta moral matizada que o papa expõe, tem grande importância o bem possível. Sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que vão se construindo dia a dia. Um pequeno passo no meio de grandes limitações humanas pode ser mais agradável a Deus do que uma vida externamente correta, de quem não enfrenta maiores dificuldades. A consolação e a força do amor salvador de Deus devem chegar a todos. Deus opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas. Um coração missionário não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada (EG 44-45).

A moral sexual tem como uma de suas principais referências o mandamento do Decálogo “não pecar contra a castidade”. Originalmente, o mandamento é “não cometerás adultério” (Ex 20,14), mas a catequese cristã nele incorporou outros ensinamentos bíblicos e tradicionais relativos à sexualidade. O Catecismo define hoje a castidade primeiramente como a integração da sexualidade na pessoa, na sua unidade de corpo e alma (n.2337). Esta integração é um caminho gradual, um crescimento pessoal em etapas, que passa por fases marcadas pela imperfeição e até pelo pecado (n.2343). A gradualidade na aplicação da lei moral é quase desconhecida em muitos ambientes católicos, e por isso deveria ser amplamente ensinada. Muitas vezes há o triunfo do tudo ou nada, fruto de um radicalismo estéril, e não a busca do bem possível. E só pode haver uma integração bem-sucedida se a pessoa viver em paz com a sua própria sexualidade, amando o seu semelhante e a si mesma. Os caminhos e as condutas neste campo não podem prescindir jamais desta integração.

Uma carta pastoral da Cúria Romana afirma que nenhum ser humano é um mero homo ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de sua graça, que o torna filho de Deus e herdeiro da vida eterna (CDF, 1986, n.16). Isto também vale para o restante da diversidade sexual. Seja a pessoa LGBT ou não, ela é criatura divina, destinada a participar da vida em Cristo e da sua salvação. A carta acrescenta que toda violência física ou verbal contra pessoas homossexuais é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifique. Os atos homossexuais, por sua vez, são considerados intrinsecamente desordenados e, como tais, não podem ser aprovados em nenhum caso. Sobre a culpabilidade da pessoa, porém, deve haver prudência no julgamento. São reconhecidos certos casos em que a tendência homossexual não é fruto de opção deliberada da pessoa, e que esta pessoa não tem alternativa e é compelida a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, em tal situação ela age sem culpa. Alerta-se para o risco de generalizações, mas podem existir circunstâncias que reduzem ou até mesmo eliminam a culpa da pessoa (CDF, 1986, n.10, 3 e 11). Nesta situação, portanto, não se pode dizer jamais que a pessoa está em pecado mortal e que deve se afastar dos sacramentos.

Não é simples propor aos LGBT viverem a castidade no celibato. Como a castidade é a integração da sexualidade na pessoa, na sua unidade de corpo e alma, não se deve anular a pessoa afetiva e humanamente. Na formação para o sacerdócio, por exemplo, ensina-se que o caminho formativo deve ser interrompido no caso de um candidato ter excessiva dificuldade com o celibato, “vivido como uma obrigação tão penosa a ponto de comprometer o equilíbrio afetivo e relacional” (CEC, 2007, n.10). Esta norma é sábia. É algo que convém também aos religiosos de congregações e aos fiéis leigos, incluindo pessoas homossexuais e trans. Não se deve viver o celibato a qualquer preço.

As conferências episcopais também trazem contribuições importantes à pastoral, que são fruto de reflexões e práticas contextualizadas em diferentes realidades com suas necessidades e urgências. Francisco menciona um documento dos bispos franceses sobre o reconhecimento civil da união homossexual (EG 66, nota 60). Eles se opuseram à lei que equipara totalmente esta união à união heterossexual. Mas não só. Os bispos repudiam a homofobia, e felicitam a evolução do direito que hoje condena toda discriminação e incitação ao ódio em razão da orientação sexual. Reconhecem que muitas vezes não é fácil para a pessoa homossexual assumir a sua condição, pois os preconceitos são duradouros e as mentalidades só mudam lentamente, inclusive nas comunidades e nas famílias católicas. Estas famílias são chamadas a acolher toda a pessoa como filha de Deus, qualquer que seja a sua situação. E numa união durável entre pessoas do mesmo sexo, para além do aspecto meramente sexual, a Igreja estima o valor da solidariedade, da ligação sincera, da atenção e do cuidado com o outro (CEF, 2012).

Estes passos são muito importantes. Se não há um ambiente livre de hostilidade que possibilite às pessoas homossexuais assumirem a sua condição, se não há qualquer reconhecimento social ou estima pelas uniões entre indivíduos do mesmo sexo, a homofobia presente na sociedade as leva a contraírem uniões heterossexuais para fugirem do preconceito. Isto acontece há séculos e traz muito sofrimento às pessoas envolvidas. É necessário pôr fim a esta situação opressiva. Conforme o direito eclesiástico, o sacramento do matrimônio nestas circunstâncias é inválido (CDC, Cân. 1095, n.3). É preciso que os fiéis saibam disto. A união heterossexual não é solução para a pessoa homossexual.

Os bispos brasileiros têm um documento sobre a renovação pastoral das paróquias, em que se contemplam as novas situações familiares com realismo e abertura, incluindo as uniões do mesmo sexo. Os bispos reconhecem que, nas paróquias, participam pessoas unidas sem o vínculo sacramental e outras em segunda união. Há também as que vivem sozinhas sustentando os filhos, avós que criam netos e tios que sustentam sobrinhos. Há crianças adotadas por pessoas solteiras ou do mesmo sexo, que vivem em união estável. Os bispos exortam a Igreja, família de Cristo, a acolher com amor todos os seus filhos. Conservando o ensinamento cristão sobre a família, é necessário usar de misericórdia. Constata-se que muitos se afastaram e continuam se afastando das comunidades porque se sentiram rejeitados, porque a primeira orientação que receberam consistia em proibições e não em viver a fé em meio à dificuldade. Na renovação paroquial, deve haver conversão pastoral para não se esvaziar a Boa Nova anunciada pela Igreja e, ao mesmo tempo, não deixar de se atender às novas situações da vida familiar. “Acolher, orientar e incluir” nas comunidades os que vivem em outras configurações familiares são desafios inadiáveis (CNBB, 2014, n.217-218).

 4 Palavras e gestos proféticos

 O Sínodo dos Bispos sobre a família gerou um debate amplo e fecundo, e teve como fruto uma exortação pós-sinodal do papa. Ele reitera o seu apelo à Igreja de ir ao encontro dos que vivem nas mais variadas periferias existenciais. A Igreja é chamada a conformar a sua ação à de Cristo, que em um amor sem fronteiras ofereceu-se por todos sem exceção. Aos que manifestam a orientação homossexual, deve-se assegurar um acompanhamento respeitoso para que possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar a vontade de Deus em suas vidas (AL 312 e 250). Francisco faz um alerta incisivo contra o moralismo que muitas vezes reina em ambientes cristãos e na hierarquia da Igreja Católica, visando fomentar o devido respeito à consciência e à autonomia dos fiéis:

 (…) nos custa dar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites, e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las. (AL 37)

 Além desta palavra oportuna, o papa fez um gesto surpreendente em 2015, recebendo em sua casa a visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua companheira. A história de Diego é emblemática da condição transexual, do preconceito atroz e do seu enfrentamento. Ele nasceu com corpo de mulher, mas desde criança sentia-se homem. No Natal, escrevia aos reis magos pedindo como presente tornar-se menino. Ao crescer, resignou-se à sua condição. “Minha prisão era meu próprio corpo, porque não correspondia absolutamente ao que minha alma sentia”, confessa. Diego escondia esta realidade o quanto podia. Sua mãe pediu-lhe que não mudasse o seu corpo enquanto ela vivesse. E ele acatou este desejo até a morte dela. Quando ela morreu, Diego tinha 39 anos. Um ano depois, ele começou o tratamento transexualizador. Na igreja que frequentava, despertou a indignação das pessoas: “como se atreve a entrar aqui na sua condição? Você não é digno”. Certa vez, chegou a ouvir de um padre: “Você é filha do diabo”! Mas, felizmente, ele teve o apoio do bispo de sua diocese, que lhe deu ânimo e consolo. Isto encorajou Diego a escrever ao papa Francisco e a pedir um encontro com ele. O papa o recebeu e o abraçou no Vaticano, na presença da sua companheira. Hoje, Diego Neria é um homem em paz (HERNÁNDEZ, 2015).

Ocorreram outros encontros do papa com LGBT, como a visita a um presídio na Itália, em que ele teve uma refeição à mesa na companhia de presos transexuais. Nos Estados Unidos, Francisco se encontrou, na nunciatura apostólica, com seu antigo aluno e amigo gay Yayo Grassi, e com o companheiro dele. Grassi já tinha apresentado o seu companheiro ao papa dois anos antes. Este relacionamento homoafetivo nunca foi problema na amizade entre Grassi e o papa (GRASSI, 2015). Sobre os encontros que teve com pessoas homossexuais, transexuais e seus respectivos companheiros, o papa comentou: “as pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. (…) em cada caso, acolhê-la, acompanhá-la, estudá-la, discernir e integrá-la. Isto é o que Jesus faria hoje” (FRANCISCO, 2016).

Gestos como estes do papa valem mais que mil palavras. Se todas as famílias que têm filhos ou parentes LGBT fizessem o mesmo, recebendo-os em casa com seus companheiros, muitos problemas e dramas humanos seriam resolvidos.

 5 Caminhos a percorrer

 A realidade dos LGBT é complexa e delicada, traz apelos urgentes e constitui um desafio à evangelização. A leitura crítica da Sagrada Escritura, a devida atenção aos resultados das ciências, os diversos matizes da moral e a fidelidade à própria consciência são elementos que tornam o ensinamento da Igreja um conteúdo rico e dinâmico na vida dos fiéis. Estes elementos podem ajudar muito a ação evangelizadora junto àquela população. Não se deve buscar no ensinamento da Igreja, e nem mesmo na Bíblia, um manual de instruções de eletrodoméstico ou um código moral completo, universal e imutável. Muitas vezes se fazem citações descontextualizadas da Bíblia e simplificações indevidas da doutrina, com extrema rigidez e um terrível ímpeto condenatório dirigido aos LGBT. Alguns falam de “textos do terror” ou de “balas bíblicas” usadas contra estas pessoas. A pregação, em vez de curar feridas e aquecer o coração, traz mais devastação, e a Palavra do Deus da vida se torna palavra de morte. Não se deve jamais tratar estes indivíduos como endemoninhados a serem exorcizados, ou submetê-los à oração de “cura e libertação” para mudarem a sua condição ou identidade.

Na Igreja Católica, hoje, há diferentes tipos de apostolado junto aos LGBT. Um deles é o grupo Courage, apoiado pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, que desaconselha pessoas homossexuais a se definirem primeiramente pela sua inclinação sexual, bem como de participarem de “subculturas gays”, que tendem a promover um estilo de vida imoral (USCCB, 2006, p.22 e nota 44). Há outros grupos cuja ênfase é a inclusão e a cidadania dos LGBT na Igreja e na sociedade, a cura das feridas, o crescimento na fé e o respeito pela consciência nas escolhas de vida. Estes grupos formaram a Rede Global de Católicos Arco-íris (GNRC, 2015). A Diocese de Westminster (Inglaterra), que abrange a cidade de Londres, possui a Capelania LGBT (LGBT Chaplaincy) para atendimento pastoral a estes fiéis. As Arquidioceses de Santiago, Chile (ALDEA, 2013), e de Belo Horizonte (CIPRIANI, 2017) possuem a Pastoral da Diversidade Sexual.

Não faltam divergências e conflitos a respeito da diversidade sexual e de gênero. Mas também não é necessário esperar a sua resolução. Há posições e práticas já legitimadas que podem ser adotadas e difundidas. A descriminalização da homossexualidade e da transexualidade no mundo inteiro deve ser defendida com vigor, bem como o enfrentamento da violência física, verbal e simbólica feita aos LGBT. O exemplo do papa Francisco, recebendo-os em sua casa com seus companheiros, deve ser seguido. É através deste acolhimento que o verdadeiro encontro se torna possível, dando às pessoas a oportunidade de se conhecer mutuamente e de interagir positivamente, sem escamotear realidades vitais e sem deixar que o preconceito e o medo criem fantasmas.

Acolher, orientar e incluir, como diz a CNBB sobre as novas configurações familiares, é uma ponte que conduz às periferias existenciais. Não faltam à Igreja recursos teóricos e testemunhos marcantes para pregar a Palavra de Deus de maneira adaptada à realidade dos povos, a fim de que a vida em Cristo seja comunicada, as feridas curadas e os corações aquecidos.

Certa vez, uma senhora devota me procurou desconsolada por descobrir que seu filho era gay. Tivemos uma boa conversa, e eu lhe recomendei o filme Orações para Bobby (MULCAHY, 2009). Tempos depois, ela me disse exultante: “Jesus tirou o preconceito do meu coração”! De fato, Jesus age na vida das pessoas e liberta do preconceito. O seu Espírito impele a Igreja a transpor as estruturas caducas, externas e internas, incapazes de acolhimento. Os discípulos de Jesus devem acolher com amor pessoas homossexuais e trans para manifestar ao mundo o rosto do seu mestre, e alegrar-se com as bênçãos de Deus Pai. Se muitos LGBT sentem que precisam da Igreja, cabe reconhecer que ela também precisa deles.

Luís Corrêa Lima, SJ. PUC-Rio. Texto original em português.

 6 Referências bibliográficas

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Creio na Ressurreição da carne

Sumário

1 A ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição

2 Fundamentos e características da ressurreição segundo São Paulo (1Cor 15)

3 Ressurreição da carne: antecedentes histórico-dogmáticos

4 Síntese sistemática

4.1 A ressurreição da carne implica a salvação da totalidade humana

4.2 Ressurreição da carne e consumação comunitária-social

4.3 Ressurreição da carne e consumação cosmológica

5 Referências bibliográficas

 1 A ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição

 A comunidade cristã celebra e continua proclamando ao mundo que Jesus de Nazaré, o crucificado, ressuscitou. Com esta mensagem sem precedentes culminam os quatro Evangelhos do Novo Testamento (Mt 28,5-7; Mc 16,5-7; Lc 24,4-7; Jo 20,12-13). Cristo ressuscitou vencendo a morte e sua vitória é uma antecipação daqueles que morreram, ensina São Paulo quando reflete sobre a fé na ressurreição (1Cor 15,20). “E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,14). A comunidade apostólica ensina que Jesus, o Nazareno, que “andou fazendo bem” (At 10,38) e realizando vários sinais, anunciando o reinado de Deus, foi condenado à morte numa cruz, pendurado em uma árvore, e esse mesmo Jesus foi ressuscitado por Deus e constituído Kyrios e Cristo, Senhor e Messias (At 2,14-36; 3,12-26; 4,8-12; 10,34-43; 13,16-41). Jesus é o Senhor (Kyrios) e Cristo porque o próprio Deus o ressuscitou no Espírito. Pelo mesmo motivo, desde o início da fé cristã existe a convicção que Deus antecipou em uma pessoa concreta, no Nazareno, o evento escatológico fundamental: a superação definitiva e permanente da morte, o Crucificado ressuscitou. No Cristo ressuscitado, todas as promessas de Deus são cumpridas e, portanto, ele é constituído Senhor da vida e da história humana, fundamento da nossa esperança e da nossa futura ressurreição.

O que Jesus viveu é uma esperança de salvação para todos nós: “porque se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10,9). Por esta razão, celebramos e fazemos festa na  permanente liturgia e louvor da Igreja, porque a morte já não tem a última palavra. Nossa vida não é mais a crônica de uma morte anunciada, mas, pelo contrário, é uma vida na qual já experimentamos o amor de Deus e sua presença constante, e onde por sua graça se podem antecipar sinais de alegria, paz, fraternidade e justiça que um dia viveremos plenamente. A esperança de uma vida eterna, de uma felicidade ilimitada, de uma comunhão plena de vida e amor com Deus e com todos os bem-aventurados já tem seu fundamento em Jesus Cristo ressuscitado. “E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos também dará vida a vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vós” (Rm 8,11).

2 Fundamentos e características da ressurreição de acordo com São Paulo (1Cor 15)

 A exegese considera que o capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios é fundamental para entender o alcance da fé na ressurreição. Na comunidade de Corinto, se manifestavam certas dificuldades doutrinárias devido à cultura do mundo grego ou a interpretações errôneas sobre a ressurreição. O mundo grego podia admitir facilmente a ideia de uma imortalidade da alma, mas teve sérias dificuldades em admitir a ressurreição. Para Paulo, “a negação de uma ressurreição corporal desintegra os próprios fundamentos da fé e termina com a genuína esperança da salvação, que só pode ser uma salvação encarnada e escatológica” (RUIZ DE LA PEÑA, 2000, p.153).

Sublinhando sua perspectiva cristocêntrica, Paulo reitera enfaticamente que o fundamento da ressurreição dos mortos é a ressurreição do próprio Cristo; os mortos ressuscitam porque Cristo ressuscitou (vv.12-19). Na mesma linha, o Cristo ressuscitado é chamado duas vezes de “primícias”, pelo qual “vem a ressurreição dos mortos” (vv.20-28). Para responder à pergunta sobre o modo da ressurreição (como ressuscitou?), Paulo escolhe um caminho analógico. Usa a imagem da semente; Deus dará um corpo segundo sua vontade: a cada semente (semeada) seu corpo. Descreve, em seguida, a relação entre o corpo terrestre, animado (psíquico) e o corpo do homem ressuscitado, corpo espiritual (soma pneumatikon), estabelecendo quatro antíteses delineadas nos seguintes termos: “Semeia-se o corruptível, ressuscita incorruptível; semeia-se miserável, ressuscita o glorioso; semeia-se o débil, ressuscita forte; semeia-se um corpo animado, ressuscita um corpo espiritual” (1Cor 15,42-44). Longe dos modelos de oposição e exclusão entre matéria e espírito, característicos do pensamento grego, o que propõem essas antíteses é estabelecer a continuidade e a descontinuidade entre o corpo terreno da condição peregrina e o corpo dos ressuscitados. Paulo mostra e ensina que a ressurreição dos mortos só pode ter seu fundamento na ressurreição de Jesus Cristo e

se esta não puder ser conceitualizada ou explicada adequadamente (…) tampouco aquela. No entanto, podemos falar de nossa ressurreição, em analogia com a de Cristo – como o faz Paulo – e proclamá-la como obra do poder de Deus efetuada através do Espírito vivificante (…) Por isso, podemos esperar que vivamos “sempre com o Senhor” e também com os demais ressuscitados. (KREMER, 1970, p.85)

 Para Paulo, é inimaginável a vida futura sem soma. Nas palavras de J. Gnilka “nesta totalidade (soma) sentimentos, pensamentos, experiências e ações não são separados um dos outros (…) Para Paulo, o corpo é absolutamente inseparável do eu humano” (1970, p.133). De qualquer forma, é um corpo que se transforma (1Cor 15,51) pela ação do Espírito, que “dá origem a um ‘corpo espiritual’, cheio de ‘poder’ e sem fraqueza, incorruptível e imortal”, explicita A. Puig i Tarrech (2014, p. 278).

Segundo J. Ratzinger, de acordo com o pensamento de Paulo, o modelo de interpretação para entender a corporeidade do homem ressuscitado surge da experiência do Cristo ressuscitado e da sua nova corporeidade. “Ao realismo fisicista não se contrapõe um espiritualismo, mas um realismo pneumático” (2007, p.185). O próprio teólogo faz ver que:

 Quanto à materialidade da ressurreição, praticamente tudo permanece aberto. Sua condição do totalmente diferente é afirmada. Não se pode dizer com certeza o que significa positivamente o seu realismo pneumático, que se contrapõe às espiritualizações. A ideia que, no final e, em todo caso, a totalidade da criação de Deus entra na salvação, é tão clara que qualquer sistematização reflexiva do material bíblico deve levar essa ideia em consideração (cf. especialmente 1Cor 15,20-28). (RATZINGER, 2007, p.187)

 Por sua vez, B. Sesboüé, também reiterando que a ressurreição de Jesus é modelo exemplar e causa da ressurreição dos mortos, acrescenta: “A afirmação da ressurreição geral dos mortos está em estreita correspondência com o interesse que Jesus mostra continuamente durante todo o seu ministério pelo corpo humano” (2000, p.612). O que a exegese bíblica quer enfatizar sobre o pensamento de Paulo é que

 [ele] não postula uma corporeidade imaterial ou uma espiritualidade separada do corpo. É uma unidade em que o material e o espiritual convergem. O pneuma é a força que informa o corpo. Soma não designa em Paulo uma parte do homem, mas todo o homem, sua própria realidade ontológica. “Corpo espiritual”, portanto, não significa um corpo de matéria etérea, mas o homem totalmente divinizado pelo Espírito do Senhor. (NOEMI, 1996, p.91-92).

 De fato, “o corpo não é dado somente de modo adâmico, de ‘corpo animado’, mas também ao modo cristológico devido à ressurreição de Jesus Cristo, enquanto corporeidade graças ao Espírito Santo” (RATZINGER, 2007, p.185).

Em resumo, São Paulo quer superar dois extremos possíveis em seu tempo: 1) o espiritualismo grego fundado exclusivamente na imortalidade da alma, e 2) a ideia judaica de identidade quase física do corpo ressuscitado com o mortal. Nada sugere que o corpo ressuscitado seja entendido como reanimação ou recuperação do cadáver. Mas tampouco pode ser entendido sem o soma transformado. Em suma, existe, entre o corpo do ser humano histórico-peregrino e o ressuscitado, descontinuidade e também continuidade (PUIG I TARRECH, 2014, p.276-278; SESBOÜÉ, 2000, p.610-612; KREMER, 1970, p.76-87; GNILKA, 1970, p.127-135; NOCKE, 1984, p.80-83).

3 Ressurreição da carne; antecedentes histórico-dogmáticos

Fica evidente, a partir dos antecedentes bíblicos, que o essencial é que a ressurreição de Jesus não é apenas o fundamento da nossa fé na ressurreição corporal, mas, de fato, torna possível e implica a ressurreição de todos os mortos no final da história. Os primeiros símbolos da fé refletem essa convicção fundamental de maneiras diferentes. Sobre isso, B. Sesboüé, mostra que

os dois credos cristãos usam, a esse respeito, uma linguagem algo diferente: Oriente (Niceia-Constantinopla) menciona “a ressurreição dos mortos e a vida do mundo futuro”; O Ocidente, por outro lado, fala da “ressurreição da carne e da vida eterna”. Por este termo “carne” é necessário compreender não a totalidade de nossos músculos, mas o “corpo” humano, enquanto humano e, como foi analisado aqui, de acordo com sua condição histórica, limitada e frágil. A linguagem de São João não hesita diante deste termo bastante “cru” de “carne”. É por isso que ele diz: “A Palavra se tornou carne” (Jo 1,14), isto é, assumiu verdadeiramente nossa condição humana corporal e carnal. (2000, p.611)

 Para refutar e se distanciar das reduções espiritualizantes da categoria “corpo espiritual”, que surgiram com os cristãos do segundo século sob influência gnóstica, começou-se a usar a expressão “ressurreição da carne”. Os especialistas mostram que, por esta razão, teria sido incluída no antigo símbolo romano para neutralizar as interpretações espiritualistas de tipo dualista e a mesma razão explica que a fórmula tenha sido transferida e mantida em muitos credos. C. Pozo observa que “inclusive deve se reconhecer uma progressiva acentuação do realismo nas fórmulas da fé: da fórmula ‘ressurreição da carne’, se começa posteriormente a sublinhar que a ressurreição se fará ‘nesta carne em que vivemos agora’ (Fides Damasi, DH 72)” (1993, p.42).

J. Ratzinger, em seu livro Escatologia, e depois de estudar o uso da fórmula “ressurreição da carne” nos três primeiros séculos (recolhendo as contribuições de Irineu de Lyon e Justino em polêmica com o gnosticismo de Valentin), conclui que “no final, ficou claro que a ‘ressurreição da carne’ significa a ressurreição das criaturas apenas na suposição que também signifique a ressurreição do corpo” (RATZINGER, 2007, p.191). Diante do risco de gnosticismo e dualismo, a defesa e valorização da “carne”, como uma expressão irrenunciável da corporeidade e integridade do ser humano, tornou-se, nos primeiros séculos, uma questão crucial.

Entre os Padres, Irineu de Lyon e Tertuliano destacam-se por sua manifesta opção nesse esforço e valorizam a salvação da carne como central para a fé e a esperança cristãs[1]. Comentando o mesmo texto Sobre a ressurreição da carne, de Tertuliano[2], que em outro lugar se refere à carne como “a irmã de Cristo” e ressalta que Deus “ama a carne”, Sesboüé observa que este escrito:

traz a marca dos acentos cordiais de um cristão do início do terceiro século: nossa “carne” é a irmã de Cristo. Se salvará na ressurreição, como na de Cristo, com o mesmo direito que tudo o que faz parte da nossa condição concreta, e com a mesma continuidade e a mesma descontinuidade entre nosso estado atual e nosso estado futuro (2000, p.613).

Confrontado com o dualismo, o Magistério sempre ensinou que os mortos ressuscitarão com seus próprios corpos. Ainda ecoam as palavras do XI Conselho de Toledo no ano 675: “acreditamos que ressuscitaremos, não em uma carne aérea ou de qualquer outro tipo como alguns deliram, mas nesta em que vivemos, subsistimos e trabalhamos” (DH 540). Ou seja, ressuscita um corpo humano e o mesmo corpo humano (identidade específica e numérica) transfigurado, corpo glorioso. Pela mesma convicção de unicidade da pessoa humana e do valor próprio do corpo, criatura de Deus, desde os primeiros séculos ouviram-se vozes críticas que não aceitaram a doutrina da transmigração de almas, entre outras razões, por causa de seu desprezo pela corporeidade. Além de Irineu e Tertuliano, destacam-se as opiniões de Justino, Minucio Felix, Teófilo de Antioquia e Santo Agostinho, que em diferentes momentos culturais manifestam a sua rejeição às teorias reencarnacionistas entre os séculos II e V (POZO, 1993, p.165-185). No ano 561, também o II Concílio de Braga rejeita ideias semelhantes defendidas pelas tendências maniqueístas dos seguidores de Prisciliano (DH 456). Na Idade Média, o IV Concílio de Latrão, XII ecumênico, realizado em 1215, em sua definição contra o dualismo radical dos cátaros, que também rejeitaram o corpo por o considerarem perverso, lembra que Jesus Cristo “deve vir no final dos tempos, há de julgar os vivos e os mortos e dará a cada um de acordo com suas obras, tanto aos réprobos quanto aos eleitos: os quais ressuscitarão todos com os próprios corpos que agora possuem” (DH 801).

Diante do desafio dualista em suas várias expressões, a teologia cristã sustenta a bondade da criação e das criaturas, da matéria e do espírito e, portanto, combina argumentos criacionais e escatológicos para afirmar tanto a bondade original quanto o destino eterno e glorioso do corpo humano.

Tanto o corpo como o espírito têm um futuro de plenitude pelo dom de Deus Criador e Consumador da história. O cristianismo acredita em um Deus Criador de tudo o que é visível e invisível, em um Deus que se define como Amor e que criou por amor a existência do outro, do diferente de si mesmo, em sua diversidade e pluralidade. Tanto matéria quanto espírito retornam a um único desígnio criador de Deus. O corpo é, portanto, tão digno, tão autêntico e completo como a alma. O ser humano, homem/mulher, é alma encarnada, síntese de matéria e espírito (PARRA, 2011, p.249).

Como ensina – nos tempos atuais – o Concílio Vaticano II:

Em sua unidade de corpo e alma, o homem, por sua mesma condição corporal, é uma síntese do universo material, o qual alcança, por meio do homem, sua mais alta elevação e levanta a voz para o livre louvor do Criador. Não deve, portanto, desprezar a vida corporal, mas, ao contrário, deve honrar e considerar bom seu corpo, como criatura de Deus há de ressuscitar no último dia. (GS, n.14)

 4 Síntese sistemática

1 A ressurreição da carne implica a salvação da totalidade humana

Com sua fé na ressurreição da carne, o cristianismo expressa sua esperança que toda a pessoa e todas as pessoas tenham um futuro que vá além da morte e que possam confiar que Deus cumprirá sua promessa de consumação. “Não há esperança apenas para uma parte da pessoa. À totalidade do ser humano pertencem sua corporeidade, sua sociabilidade e historicidade em relação à natureza” (PARRA, 2011, p.251).

É todo o ser humano, corpo e alma, que alcança – pela graça de Deus – sua plenitude. Com razão, Hans Urs Von Balthasar afirma que a ressurreição da carne seria melhor descrita como “ressurreição do homem” em sua totalidade “(2008, p.37-38). O que os teólogos querem enfatizar é que a corporeidade humana tem valor em si mesma, juntamente com todas as dimensões do humano. Nas palavras de J. Moltmann, “a esperança na ‘ressurreição da carne’ nos permite não menosprezar nem degradar a vida corporal nem as experiências dos sentidos, mas as afirma profundamente e concede sua suprema honra à ‘carne’ menosprezada” (2004, p.100).

Em analogia com a ressurreição do Crucificado e sua glorificação corporal (Fl 3,21),

os crentes também consideram sua morte como parte do processo em que toda esta criação mortal será glorificada e renascerá para o reino da glória. Pela “ressurreição da carne” entende-se a metamorfose dessa criação perecível que se tornará o reino eterno de Deus, e dessa vida mortal que se tornará vida eterna: vita mutatur, non tollitur[3] (MOLTMANN, 2004, p.112-113).

Gesché, com razão, observa que “é esse corpo aqui que ressuscitará (…_ Este corpo aqui é aquele que, como o grão de trigo, germinará na vida realizada, porque é a sua semente (…) O segredo do corpo (…) é ter um germe do corpo da glória” (1997, p.306). Lembremos que, de acordo com o pensamento de Paulo, o corpo semeado é aquele que ressuscita. Por esta razão, Gesché pode afirmar que “o corpo desta terra tem uma estrutura de ressurreição” (1997, p.306). Desde Cristo, o crucificado ressuscitado, “a ressurreição é agora o ato do Pai, em Jesus, pelo poder do Espírito, pelo qual ele remodela precisamente a criação” (GESCHÉ, 2002, p.203).

A partir daí, a ressurreição pertence à capacidade teologal do homem criado, Homo capax Dei, restituído assim à sua vocação de destino proposta na criação e remodelada na ressurreição, Homo capax resurrectionis. (…) A partir daí, o homem alcançará a salvação, isto é, o caminho do seu destino, sabendo dizer “sim” a sua natureza de ressurreição (GESCHÉ, 2002, p.204).

 Se a ressurreição da carne implica a ressurreição do homem em sua totalidade, isso significa que existe uma identidade pessoal entre o ser humano que se desenvolveu na história terrena e aquele que será ressuscitado. Para J. L. Ruiz de la Peña:

ressuscitar “com o mesmo corpo” significará (…) ressuscitar com um corpo próprio, isto é, um corpo que revela a própria e definitiva mesmidade, sem nenhum equívoco; um corpo que é mais meu que nunca, enquanto supremamente comunicativo do meu eu. O corpo glorioso (soma pneumatikon) de que Paulo fala é o eu que irradia a vida do Espírito, livre de todo automatismo inconsciente, o repositório de uma plenitude integral que vem do núcleo mais íntimo da pessoa e atinge e transfigura sua corporeidade. (2000, p.173-174)

 No mesmo sentido, o teólogo F. J. Nocke afirma que

 o corpo futuro, à diferença do presente, será imperecível; mas nosso corpo atual não será substituído por outro, mas transformado em outro (…) A esperança cristã não pretende que a existência atual seja simplesmente encurralada, jogada fora, esquecida em favor de outra existência totalmente distinta, mas que, em sua totalidade, seja elevada e transformada em uma existência indestrutível (1984, p.82).

 De acordo com o teólogo brasileiro L. C. Susin, “a ‘carne’ significa exatamente esse modo terreno, mortal, finito e frágil, marcado por lágrimas, alegrias, amores e trabalhos: esta carne, marcada pela história terrena, será transfigurada” (1995, p.127). Em suma,  ressurreição do corpo ou da carne significa que todo o ser humano – com a história de sua vida, com suas relações com os outros e com a natureza – tem um futuro e é redimido por Deus. Em uma palavra, ressuscita  a pessoa. Contra todo dualismo, que rejeita a carne ou o corpo, “a fé cristã defende a radical unicidade da pessoa humana: unicidade em sua origem, unicidade em seu destino final; e de uma pessoa que se desenvolve e cresce num mundo radicalmente bom por desígnio e graça de um Deus Criador e Consumador” (PARRA, 2011, p.249-250) do mundo e da história.

 4.2 Ressurreição da carne e consumação comunitária-social

O dom da plenitude consumada que traz consigo a ressurreição da carne não é um presente que receberá o indivíduo isolado do ambiente social e comunitário. Pelo contrário, a ressurreição da carne desejada e esperada será um evento comunitário e social, e que, portanto, integra a rede de relações humanas espaço-temporais que acompanhou sempre e historicamente o desenvolvimento de cada pessoa. Em suma, ressuscitamos não só porque Cristo ressuscitou dentre os mortos e a imagem do Cristo ressuscitado é causa exemplar nossa, mas também como membros participantes do corpo de Cristo. Com razão J. L. Ruiz de la Peña comenta sobre este último ponto: “a carne que ressuscita é, portanto, feita de proximidade, foi amassada no molde da sociabilidade. A ressurreição não será o resgate do náufrago solitário, mas a reconstituição da unidade original de toda a família humana” (2000, p.170).

Por ser precisamente uma esperança comunitária inseparável tanto da vida em comum como da comunhão, bem como do desejo de uma sociedade inclusiva e do bem comum na história, na esperança da ressurreição não pode estar ausente a questão da reconciliação final e da justiça. Refletindo sobre a necessidade de justiça e da reparação final de todo sofrimento injusto, Bento XVI declara que

Sim, existe a ressurreição da carne[4]. Existe uma justiça[5]. Existe a “revogação” do sofrimento passado, a reparação que restaura o direito. É por isso que a fé no Juízo Final é antes de tudo e sobretudo esperança, essa esperança cuja necessidade tornou-se evidente precisamente nas convulsões dos últimos séculos. (Spe Salvi, n.43)

A tradição cristã ensina que, finalmente, haverá justiça e que a verdade oculta de cada um será conhecida no momento da morte. A fé da Igreja sustenta que, imediatamente após a morte, pode haver comunhão com Deus e os bem-aventurados ou purificação escatológica, assim como também pode haver perdição ou autoexclusão eterna[6].

4.3. Ressurreição da carne e consumação cosmológica

Tanto o corpo como o espírito têm um futuro de plenitude pelo dom de Deus Criador e Consumidor da história. “O mundo material também participará da glorificação plena do homem.” (LIBANIO e BINGEMER, 1985, p.201).

A uma humanidade ressuscitada corresponde também um mundo transfigurado. Já foi dito que a promessa da ressurreição da carne assume o ser humano em sua integridade de maneira coerente com a antropologia cristã essencialmente não dualista. O cosmos criado sempre foi parte do plano salvífico que atravessa toda a história. A fé cristã concebe o fim do mundo que a parusia traz consigo como sua consumação e plenitude. A nova Terra e o novo céu esperados implicam transfiguração, nova criação como dom do Deus Criador e Consumador de tudo.

Para L. Boff,

em Jesus Cristo ressuscitado, temos um modelo que nos permite vislumbrar a realidade futura da matéria. Seu corpo material foi transfigurado pela ressurreição. Não deixou de ser um corpo e, por isso mesmo, uma porção da matéria. Mas essa matéria está tão penetrada por Deus e pela vida eterna, que revela maximamente Deus e com isso manifesta capacidades latentes na matéria, que agora são plenamente realizadas: tudo é glória, luz e comunhão, presença, transparência, ubiquidade cósmica. A matéria não é mais um princípio de limitação, peso e opacidade, mas uma expressão total do sentido, encarnação do espírito e princípio de comunhão e presença total. (1981, p.105-106).

O teólogo J. Ratzinger pensa que, na verdade, “é o homem inteiro que alcança a salvação, e é o mundo inteiro que participa nela” (1976, p.228). Sintetizando sua visão do mundo novo e a consumação que esperamos, o teólogo alemão reitera:

Como conclusão, vamos ficar com isso: não há como imaginar o mundo novo. Nem temos quaisquer tipos de enunciados concretos que nos ajudem a imaginar, de alguma forma, como o homem se relacionará com a matéria no mundo novo e como será o “corpo ressuscitado”. Mas temos a certeza que a dinâmica do cosmos leva a uma meta, a uma situação em que a matéria e o espírito estarão entrelaçados de forma nova e definitiva. Essa certeza ainda é hoje, e precisamente hoje, o conteúdo concreto da crença na ressurreição da carne (RATZINGER, 2007, p.210).

De fato, toda a criação é chamada a se transfigurar porque também tem que “ser libertada da escravidão da corrupção para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Retomando a sabedoria de São Bernardo de Claraval, o pensador francês J. L. Chrétien observou belamente que

Não é a presença, mas a ausência do corpo que impede a alma de “sair de uma certa maneira de si mesma e entrar toda ela em Deus”[7], numa eterna embriaguez. Pois tudo deve ser glorificado; nada deve faltar ao louvor, e no hálito com que damos graças a Deus, tudo deve estar presente para que não nos joguemos em Deus somente com nossa alma, mas com nosso corpo descoberto. Com o nosso corpo, também podemos dar-lhe tudo o que em nosso corpo trouxe a sua imagem, tudo aquilo diante do qual se manteve em pé, sinal do espírito, as montanhas e os rios, as árvores e as fontes, todo o mundo material santificado pela encarnação de Deus. Nada deve faltar ao  louvor (CHRÉTIEN, 2005, p.219).

No gozo da glorificação final participam todas as criaturas criadas por Deus e todos os seres louvarão Deus, seu criador (MOLTMANN, 2004, p.427-430). A glória de Deus comporta gozo e alegria eterna para todas as criaturas.

Destacando o dom da alegria da vida eterna na Spe Salvi, Bento XVI escreve que Jesus Cristo, “verdadeiro Pastor”, vencedor da morte, nos guia além da morte (n.6 e 27) e isso nos leva à vida. A esperança da vida verdadeira e eterna, que implica a ressurreição da carne, ultrapassa amplamente toda compreensão e representação (Spe Salvi, n.12-13). No entanto, algo podemos balbuciar: “quem foi tocado pelo amor começa a intuir o que seria propriamente a vida”. A vida verdadeira e eterna que, “totalmente e sem ameaças, é simplesmente a vida em toda a sua plenitude” (Spe Salvi, n.27), na qual seremos “inundados simplesmente pela alegria” (Spe Salvi, n.12).

O Concílio Vaticano II não só exclui a ideia de uma aniquilação do mundo no último dia, no evento consumador que traz a ressurreição final, como, enfatizando que é uma plenitude e felicidade que vão além das expectativas, também ensina a continuidade entre este mundo e a bem-aventurança eterna:

Ignoramos o tempo em que se dará a consumação da terra e da humanidade. Tampouco conhecemos de que forma o universo será transformado. A figura deste mundo, desfigurada pelo pecado, passa, mas Deus nos ensina que prepara um novo lar e uma nova terra onde habita a justiça, e cuja bem-aventurança seja capaz de satisfazer e superar todos os anseios de paz que surgem no coração humano. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado sob o signo de fraqueza e corrupção será revestido de incorruptibilidade e, permanecendo a caridade e suas obras, serão livres da servidão da vaidade todas as criaturas que Deus criou pensando no homem (GS, n.39).

Finalmente, e em conclusão, ao dizer “ressurreição da carne”, falamos de plenitude e extrema alegria do ser humano, de uma salvação do homem inteiro (corpo e alma), onde todas as suas relações fundamentais são consumadas em Deus Uno e Trino no mundo dado e transfigurado: um mundo de Deus onde, como ensina o Apocalipse, “não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou” (Ap 21, 4).

Fredy Parra. Faculdade de Teologia. Pontifícia Universidade Católica de Chile. Texto original em espanhol.

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[1] Segundo Irineu  “se a carne não devesse ser salva, não teria se encarnado o Verbo de Deus” (Irineu de Lyon,  Adv. haer., 5, 14, 1, PG 7, 116). No mesmo sentido, Tertuliano, no século III, pensa que “caro salutis est cardo”, “a carne é o princípio essencial da salvação” (Tertuliano, De carnis resurrectione, 8, 3; PL 2, 806).

[2] Tertuliano, De carnis resurrectione, 9; PL 2, 807 ab.

[3] Prefácio de Defuntos I, Missal Romano: “A vida não termina, mas será transformada”.

[4] Catecismo da Igreja Católica, n.988-1004.

[5] Catecismo da Igreja Católica, n.1040.

[6] Opções livres que “se estabeleceram no curso de toda a vida” podem ter como consequência “formas provisórias” de bem-aventurança ou condenação, de acordo com a ideia do judaísmo antigo sobre a condição intermediária entre a morte e a ressurreição que está presente na parábola do rico e o pobre Lázaro (cf. Lc 16,19-31). Imediatamente após a morte, pode haver comunhão com Deus e os bem-aventurados (Catecismo, n.1023-1029), bem como a perdição definitiva, uma “autoexclusão definitiva de comunhão com Deus e os bem-aventurados”, situação designada pela palavra “inferno” (Catecismo, n.1033). Para além dessas situações extremas, acrescenta Bento XVI, o mais normal é que em grande parte dos homens permanece, “na parte mais profunda de seu ser uma última abertura interior à verdade, ao amor, a Deus”, que requer purificação, no encontro com o Senhor, Juiz e Salvador (n.48), a fim de amadurecer plenamente para a comunhão definitiva com Deus (n.47), em um “tempo do coração”, momento da “passagem” para a comunhão com Deus no Corpo de Cristo (n.47, cf. Catecismo, n.1030-1032). O Papa reitera, mais uma vez, o caráter comunitário da salvação cristã, destacando a convicção – herdada do judaísmo antigo – que o falecido pode ser ajudado em sua condição intermediária através da oração (ver, por exemplo, 2Mc 12,38-45: 1º século aC). Cf. PARRA, 2011, p.265.

[7] Bernardo de Claraval, De diligendo Deo, III, 146.

Conferências do Conselho Episcopal latino-americano (CELAM)

Sumário

1 Antecedentes do CELAM

1.1 Os primeiros encontros episcopais latino-americanos

1.2 Criação do CELAM

2 As conferências gerais do episcopado latino-americano

2.1 Primeira Conferência: Rio de Janeiro, de  25 de julho a 4 de agosto de 1955

2.1.1 Contexto social e eclesial

2.1.2 Organização e principais acentos

2.2 Segunda Conferência: Medellín, de 26 de agosto a 7 de setembro de 1968

2.2.1 Contexto social e eclesial

2.2.2 Organização e principais acentos

2.3 Terceira Conferência: Puebla, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979

2.3.1 Contexto social e eclesial

2.3.2 Organização e principais acentos

2.4 Quarta Conferência: de Santo Domingo, de 12 a 28 de outubro de 1992

2.4.1 Contexto social e eclesial

2.4.2 Organização e principais acentos

2.5 Quinta Conferência: Aparecida, de 13 a 31 de maio de 2007

2.5.1 Contexto social e eclesial

2.5.2 Organização e principais acentos

3 Breves questões conclusivas

4 Referências bibliográficas

1 Antecedentes do CELAM

1.1 Os primeiros encontros episcopais latino-americanos

O episcopado latino-americano tem uma longa história como organismo colegiado que busca discernir o caminho do catolicismo do continente. Durante o período colonial foram realizados concílios provinciais ou conselhos eclesiásticos na Cidade do México e em Lima, mesmo antes da Real Cédula pós-tridentina de 1621.

Já em 1899, por iniciativa do bispo chileno Monsenhor Carlos Casanueva, o Papa Leão XIII convocou o Primeiro Concílio Plenário Latino-americano em Roma, por ocasião do 400º aniversário da chegada dos colonos espanhóis. Os treze arcebispos e quarenta bispos reunidos estavam principalmente preocupados em discutir mais do que questões doutrinais, questões relacionadas à disciplina eclesiástica, com o surgimento de problemas socioeclesiais comuns.

1.2 Criação do CELAM

O CELAM foi criado em 1956, em conexão com a Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano realizada no Rio de Janeiro em 1955. Sua origem legal remonta a 1958. A criação do CELAM precede à existência da maioria das Conferências Episcopais das igrejas locais. Portanto, não podemos ler seu surgimento como uma recepção regional de uma experiência local. Na reunião mencionada do final do século XIX, a consciência comum do episcopado latino-americano ainda não tinha surgido, uma vez que a Igreja, na América Latina, era a herdeira da cristandade rural, implantada em formas maciças e passivas de piedade popular no século XIX, rigorosos padrões sociais tradicionais de convivência, elites eclesiásticas de território etc. (HOUTARD, 1986, p.94). Nesse sentido, o CELAM não foi forjado em uma reflexão feita pelo corpo episcopal do continente. Foi institucionalizado como um corpo eclesial-episcopal por iniciativa de alguns bispos e o impulso das instâncias romanas. Com a renovação do Concílio Vaticano II, esta instituição eclesial latino-americana adquirirá progressivamente mais autoconsciência do significado de sentimento colegial e suas repercussões pastorais positivas.

Para que este Conselho Latino-americano funcionasse de forma eficaz, foi criada uma secretaria-geral como um órgão permanente para duas coisas: implementar resoluções do Conselho e coordenar as atividades das Secretarias Nacionais (IBAN, 1989, p.289). Em maio de 1956, o bispo Julián Mendoza foi eleito pelo Papa como primeiro Secretário Geral, e de imediato preparou a primeira reunião do Conselho Episcopal Latino-americano. Presidido pelo Núncio Apostólico da Colômbia, nessa ocasião, foram eleitos o presidente e os dois vice-presidentes do Conselho para o período 1957-1958. Por maioria, foram eleitos presidente o arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal Jaime de Barros Câmara, e como vice-presidentes mons. Miguel Darío Miranda, arcebispo primaz do México e mons. Manuel Larraín, bispo de Talca, no Chile.

O CELAM reuniu-se em Conferência Geral cinco vezes: 1955, 1968, 1979, 1992 e 2007, emitindo, em cada uma, um documento final como conclusão de trabalho. Esses documentos não são explicados de forma automática e independente, é necessária uma hermenêutica apropriada para avaliá-los e entender o que foi expresso ou omitido.

2 As conferências gerais do episcopado latino-americano

2.1 Primeira Conferência: Rio de Janeiro, de 25 de julho a 4 de agosto de 1955

2.1.1 Contexto social e eclesial

Dois eventos eclesiais marcaram a primeira Conferência Latino-americana do Episcopado, nomeadamente o XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro de 17 a 24 de julho, e o Segundo Encontro Latino-americano de Jovens da Juventude Operária Católica (JOC), com a presença do sacerdote belga Joseph Cardijn, fundador da JOC (DUSSEL, 1965, p.63). Lá ecoaram as vozes do laicato promotor de um catolicismo marcado pela preocupação da aplicação da Doutrina Social da Igreja no contexto latino-americano, a questão trabalhista e a vivência social da fé. A convocação, programação e presidência foram responsabilidades pontifícias, o secretário da Sagrada Congregação Consistorial, cardeal Giovanni Adeodato Piazza, trabalhou na preparação e direção junto com monsenhor Antonio Samoré, monsenhor Helder Câmara (Brasil) e os arcebispos de Concepción (Chile), Puebla (México) e Santo Domingo. Foram convidados observadores dos episcopados dos Estados Unidos, Canadá, Espanha, Filipinas e Portugal.

O Papa Pio XII esperava expressamente que os bispos da América Latina se encarregassem do problema da escassez de clero, considerado o principal problema para o catolicismo regional. Não houve menção expressa ao enorme problema social causado pela dependência latino-americana dos Estados Unidos. Havia começado a estabelecer-se, na região, a consolidação de governos nacionalistas e reformistas que procuravam distanciar-se da excessiva influência dos Estados Unidos na condução de suas políticas internas; frente a tais governos, os norte-americanos promoviam ações de desestabilização política e econômica. Tudo isso foi deliberadamente omitido. A principal preocupação foi centrada no aumento do protestantismo, que, na opinião do pontífice, estava diretamente relacionado à falta de atendimento pastoral do clero, deixando espaço livre para vários grupos sociais e religiosos que punham em risco a hegemonia da fé católica. Por esta razão, o trabalho na pastoral vocacional e os cuidados na formação do clero ajudariam a gerar mais e melhores padres locais; mas também era necessário encorajar a vinda de sacerdotes estrangeiros, de modo a renovar os métodos pastorais, mais apropriados às demandas do problema religioso da América Latina, superando a fragmentação e gerando mais intercâmbio entre as igrejas locais.

2.1.2 Organização e principais acentos

A realidade religiosa do continente marcou a agenda da Conferência. Para descobrir o rosto de Deus, em seu esplendor e deformações, o cardeal Piazza pediu um levantamento estatístico da situação pastoral, espiritual e social das igrejas locais. Metodologicamente, era uma questão de mapear localmente, para que, depois, as assembleias provinciais enviassem os resultados para a assembleia do Rio.

As sete comissões da Conferência – Clero, Auxiliares do clero, Organização e meios do apostolado, Protestantismo e outros movimentos anticatólicos, Atividades sociais católicas, Missões, índios e pessoas de cor, Imigração e pessoas do mar  – traçaram um perfil do catolicismo latino-americano, que enfrentava um processo de descristianização produzido, segundo os informes, pela falta de sacerdotes. Foi dada especial atenção à questão missionária, especialmente em relação à imigração rural e ao crescente aumento do protestantismo e das seitas, comprometendo-se com os imigrantes e a promoção de uma cultura autóctone. O potencial das várias formas de apostolado leigo contra formas de desintegração cristã foi destacado. A Conferência também propôs incentivar a criação de um jornal católico em cada país e limitar a influência do cinema ruim. Apesar de identificar o problema da escassez de clérigos, com uma eclesiologia muito autocentrada, houve uma sensibilidade real para os problemas sociais do momento e a influência positiva que um laicato melhor formado poderia trazer para o Continente.

A Conferência aprovou uma Declaração dirigida ao clero e a todos os fiéis da América Latina, bem como Resoluções que todo o episcopado da América Latina deveria levar em consideração. A principal seria, sem dúvida, a formação de um Conselho Episcopal Latino-americano (Conclusões, 82-84), que teria como preocupação essencial identificar os problemas comuns fundamentais, coordenar e promover as iniciativas católicas no continente.

2.2 Segunda Conferência: Medellín, de 26 de agosto a 7 de setembro de 1968

2.2.1 Contexto social e eclesial

A segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano também foi precedida por um Congresso Eucarístico Internacional realizado em Bogotá. Foi a primeira vez que um pontífice pisava em terras latino-americanas. Entre 1962 e 1965, o Concílio Vaticano II foi celebrado, trazendo consigo a cristalização de décadas de pensamento teológico renovador no catolicismo romano. Este magistério universal seria contrastado com dois documentos promulgados pelo Papa Paulo VI: a encíclica Populorum Progressio (PP), com muito boa recepção na América Latina, e a encíclica Humanem Vitae, que desencadeou uma amarga polêmica. O conteúdo de ambos os documentos delineou os discursos de Paulo VI em Bogotá, acrescentando inúmeras condenações à justificativa e à desculpa da violência, de acordo com a PP, que estabeleceu uma clara condenação da violência institucional como causa da instabilidade social.

Socialmente, o continente enfrentava uma desproporção acelerada entre progresso econômico e desenvolvimento social. Muitas igrejas locais, como as do Brasil, Chile, Venezuela, Colômbia, Equador e Costa Rica, apoiaram a criação de movimentos de inspiração cristã, como cooperativas e projetos de promoção humana. A Igreja também colaborou na criação de partidos políticos com inspiração cristã. Algumas reformas estruturais, como a reforma agrária, também foram impulsionadas pela Igreja.

A Conferência enfrentou esse modelo econômico neoliberal de desenvolvimento, juntamente com a convulsão dos estudantes de vários países do continente. Era imperativo assumir o desafio de falar de e para esse presente momento latino-americano.

2.2.2 Organização e principais acentos

Medellín pode ser entendida como a grande recepção continental do Concílio Vaticano II. Cerca de 750 bispos reuniram-se ao redor do tema “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concilio”. Junto à recepção conciliar, eles quiseram fazer uma recepção adequada da situação social, a partir da qual surgiram os temas de reestruturação eclesial, as comunidades de base e um novo método teológico, com fundamento na preocupação com os pobres e pela libertação. A partir dos pressupostos bíblicos e pastorais (ABALOS, 1969, p.115), é evidente que o novo paradigma eclesial que emerge em Medellín retoma um tema marginal nos debates conciliares, o modelo eclesiológico da Igreja dos pobres (SCATENA, 2008). Isso decantou na irrupção de uma autoconsciência eclesial continental que se tornará contribuição local para a catolicidade da Igreja. Desta forma, foi além de uma mera aplicação do magistério conciliar, propondo uma renovação das estruturas internas da Igreja, como sinal de uma presença libertadora no complexo contexto social (TAMAYO, 2000, p.11). Houve, também, uma valorização da ação política dos cristãos, como característica essencial da teologia e da pastoral do catolicismo do continente (MANZATTO, 2007, p.532). Os bispos Gregory, McGrath, Pironio, Proaño e Ruiz falaram, da tribuna da teologia, dos sinais dos tempos atendendo à passagem de Deus na história de um povo que busca a libertação em situações de opressão.

É também neste contexto eclesial e teológico-doutrinal que se inscrevem as primeiras sistematizações da chamada “teologia da libertação”, o grande contributo no método para a teologia universal. Libertação foi a categoria inventada, que contrastava com a clássica do desenvolvimento, utilizada nos modelos econômico-sociais da época (GUTIERREZ, 1988, p.17), embora o documento final se referisse a ambas (7 e 11) (OLIVEROS, 1977, p.127). Do ponto de vista do desenho eclesial, é em Medellín que se dá especial ênfase à organização e formação das Comunidades Eclesiais de Base, um modelo de Igreja que emerge de ambientes eclesiais de fronteira, a célula inicial das estruturas eclesiásticas (10-11). Na introdução do documento final, afirma-se claramente que o continente está sob o signo de transformação e desenvolvimento, na busca de todos os níveis de atividade humana, enfrentando uma nova época na história do continente (4).

 Mais do que a maturidade teológico-doutrinal local, Medellín demonstra, em seus resultados, uma Igreja que supera a cristandade (CANAVAUGH, 1994, p.68), a compreensão dualista, assumindo a autonomia das realidades terrenas com sua própria consistência, o que levou a Conferência a se empoderar diante das mudanças sociais, afastada da situação estabelecida e das oligarquias latino-americanas. Ela promove uma análise estrutural do neocolonialismo que afetava internamente e externamente os países pobres (9), aumentando o fosso da desigualdade (23). Esta Conferência se tornaria o lugar para auscultar a legitimidade eclesial no processo de libertação das comunidades cristãs do continente, um lugar para perceber o sensus ecclesiae nas décadas seguintes.

2.3 Terceira Conferência: Puebla, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979

2.3.1 Contexto social e eclesial

A extraordinária recepção da Evangelii Nuntiandi na Igreja latino-americana foi o cenário em que surgiu a ideia de convocar uma nova Conferência Geral do Episcopado no décimo aniversário de Medellín. A Igreja latino-americana foi amadurecendo entre Medellín e Puebla e esse seria o contexto que determinou a proposta temática: “Evangelização no presente e no futuro da América Latina”. O continente assistia a uma das épocas sociais mais complexas da história recente, enfrentava regimes ditatoriais, repressivos, violência institucionalizada, bloqueios, desmantelamento de revoluções, abstenções eleitorais, fronteiras de apoio político e militar de potências estrangeiras etc. (BORRAT, 1978, p.32-34).

A Igreja havia assumido, desta forma, num grande setor do continente, um papel de liderança religiosa em defesa dos direitos das pessoas, em um clima de tortura, desaparecimento e morte. A teologia da libertação havia se convertido, então, numa ferramenta eclesial militante que sistematizava as experiências de opressão e libertação a partir da opção de fé; um método de análise e uma linguagem apropriada para expressar de modo cristão a realidade, muito mais do que a doutrina social da Igreja (POBLETE, 1979, p.38).

2.3.2 Organização e principais acentos

O documento prévio de consulta às Conferências Episcopais foi, parcialmente, o resultado de sugestões feitas durante o quarto encontro episcopal regional de vários episcopados do Continente entre julho e agosto de 1977 (CELAM, 1978). No que diz respeito ao tema geral da Conferência, “Evangelização no presente e futuro da América Latina”, este documento faz um diagnóstico social, econômico e político, retomando os principais núcleos do pensamento social na Igreja. Adverte-se transversalmente que, apesar do desenvolvimento econômico, o fosso entre ricos e pobres é muito grande e que a existência da extrema pobreza desafia fortemente aos cristãos. O documento prévio teve uma socialização maciça, recebendo comentários de todas as conferências episcopais. Com os representantes das quatro regiões do continente, foram analisados e, a partir disso elaborado o documento base para a Conferência, que estava em continuidade temática com o documento prévio.

Os resultados no documento final foram notáveis. Significaram um passo adiante em relação ao encontro de Medellín. A recuperação da consciência histórica, na exigência de uma certa compreensão da missão, determinou a maneira pela qual a evangelização da cultura e da piedade popular foi compreendida; a opção preferencial da Igreja pelos pobres e oprimidos, pelos jovens, pela dignidade das pessoas, pela libertação integral. A Igreja demonstrou a capacidade de alcançar uma autoconsciência histórica totalizante de sua missão, fazendo sua própria leitura contextual católica da realidade do povo fiel, das alegrias e esperanças dos fiéis latino-americanos.

Em Puebla, se confirmam, em seu estatuto, as Comunidades Eclesiais de Base como caminho de construção de uma Igreja comunional e participativa (MANZATTO, 2007, p.538). O modelo da Igreja como o sacramento do Reino de Deus se instala, promovendo ativamente a participação ativa do leigo e o desenvolvimento dos ministérios. A Igreja é confirmada em sua irrenunciável missão religiosa de estabelecer uma comunidade mais humana frente à complexa situação sociopolítica enfrentada pela maioria dos países latino-americanos (42).

2.4 Quarta Conferência: Santo Domingo, de 12 a 28 de outubro de 1992

2.4.1 Contexto social e eclesial

Mais de vinte anos separam a quarta e a quinta conferências. Já em meados da década de 1980, considerou-se que o quinto centenário da presença da Igreja na América Latina seria um cenário apropriado para uma nova reunião episcopal. João Paulo II, abrindo em Porto Príncipe a XIX Assembleia Ordinária dos Bispos do CELAM, em 9 de março de 1983, sustentou que o continente precisava de uma nova evangelização: nova em seu ardor, em seus métodos, em sua expressão. Na preparação da IV Conferência, houve uma diminuição na participação, afetando sua recepção e impacto na vida da Igreja. Pela variedade de interpretações que suscita, a ocasião do Quinto Centenário provocou reações contrastantes em setores eclesiais bem definidos. A “nova evangelização” foi lida, em não poucos ambientes eclesiais, em termos ideológicos, como respaldo do catolicismo romano à atitude colonizadora  com os povos ameríndios. A vitalidade das Comunidades Eclesiais de Base, resultado da integração e participação social, foi progressivamente desfocada por outras instâncias, abertas com o incipiente processo de redemocratização da maioria dos países do continente. Isso também pretendia limitar os episcopados nacionais a suas próprias fronteiras, diminuindo o potencial do CELAM, que enfrentou, do mesmo modo, certas fricções com a Pontifícia Comissão para a América Latina.

2.4.2 Organização e principais acentos

Dois novos impulsos do papa foram especialmente significativos em Santo Domingo. O primeiro foi o que o levou a propor a iniciativa de um Sínodo dos Bispos de todo o continente americano. O segundo foi um forte apoio aos novos processos de integração que surgiram na América Latina desde o início da década de 1990.

O CELAM convocou a quarta conferência sob o tema “Nova Evangelização, promoção humana, cultura cristã. Jesus Cristo ontem, hoje e sempre (Hb 13,8)”, preparando um documento de consulta que não permeou todos os estamentos eclesiais e se mostrou insatisfatório para um grande número de bispos. Alguns bispos e teólogos prepararam o Segundo Relatório, ou Relatio, que parecia mais inspirador e profético e representaria a autêntica alma da Igreja latino-americana (HENNELLY, 1993, p.31); no entanto, o documento de trabalho final, recebido pelos conferencistas, modificou radicalmente o tradicional método teológico-pastoral utilizado nas Conferências anteriores.

O diagnóstico da realidade social e eclesial foi fraco, especialmente devido à mudança das categorias teológicas adquiridas para compreender essa realidade por outras mais genéricas e menos comprometidas. A catequese e a liturgia são supervalorizadas como canais de inculturação do Evangelho (42-53). A questão cultural deslocou, em grande parte, a ênfase sociopolítica e, desta forma, os documentos finais insistiram na afirmação da necessidade de evangelização a partir do paradigma da cultura da vida x cultura da morte, distanciando-se muito da assumida teologia positiva da história e da autonomia das realidades terrenas. Insistiu-se em um modelo de missão mais polarizado e menos penetrante, que defendia a exclusividade romano-católica (Cf. 275ss).

2.5 Quinta Conferência: Aparecida, de 13 a 31 de maio de 2007

2.5.1 Contexto social e eclesial

Nos quinze anos entre Santo Domingo e Aparecida, houve muitas mudanças sociais e eclesiais. A mudança de pontificado chegou a um continente em que as Conferências Episcopais locais e o próprio CELAM tinham perdido sua importância como órgãos colegiados para o impulso pastoral (MANZATTO, 2007, p.540). O surgimento maciço de novos movimentos religiosos mudou o rosto confessional em um continente que praticamente havia perdido a influência pastoral direta das comunidades cristãs de base.

Além disso, a América Latina e o Caribe foram afetados pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial, governada pelo neoliberalismo como sistema econômico e a globalização que permeava todas as esferas da sociedade.

2.5.2 Organização e principais acentos

Ao contrário da metodologia de outras Conferências, em que se enviava um documento de consulta que, depois de ser revisado e alterado, servia como documento de trabalho, para Aparecida o CELAM teve a intuição de propor um Documento de Participação (CELAM, 2005), com fichas de trabalho para as comunidades, a fim de incentivar a participação ativa dos diferentes setores e instâncias eclesiais. O tema de convocação era “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que os nossos povos nele possam ter vida. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).

Este processo de consulta durou cerca de três anos, em que também participaram novos movimentos eclesiais e novas comunidades, congregações religiosas e associações de fiéis. O documento mostrou uma grande preocupação em considerar integralmente a vida dos fiéis e, assim, gerar transformações sociais (BRIGHENTI, 2005, p.302-336). Foi, então, elaborada uma síntese que reafirmou a necessidade e o profundo desejo de uma Igreja aberta e participativa (CELAM, 2007). Esta síntese resultou em um documento base, que os bispos receberam no início da Conferência. Este material reflete a grande riqueza teológico-pastoral do continente que é afirmada no método “jocista” do ver, julgar e agir (BOFF, 2007, p.5-35).

O tema geral da Conferência, “Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que, nele, nossos povos possam ter vida: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (CELAM, 2007), estava em consonância com as categorias teológicas latino-americanas tradicionais, ou seja, o discipulado comunitário, a valorização da história concreta em que este discipulado se expressa e o seguimento do Verbo encarnado (61ss). Uma renovada compreensão da missão é concretizada na Conferência, mais aberta e inclusiva, sem os excessos de um eclesiocentrismo excludente (163ss) e mais atenta à reivindicação de pluralidade étnica na América Latina.

Mesmo que seja notada uma mudança de nomenclatura, por conta de um certo clima de oposição, não se falará mais de teologia da libertação como era tradicional desde Medellín (RICHARD, 2006), mas se falará de teologia latino-americana, sem renunciar à tradição teológico-pastoral do continente, conduzida pela irrenunciável opção preferencial pelos mais pobres (SOTER/AMERINDIA, 2006). Nesse sentido, enfatiza-se explicitamente a continuidade tanto com Medellín quanto com Puebla (19). Assim se leem as passagens nas quais reaparecem com força tanto a opção preferencial pelos mais pobres, contra a pobreza, como o apreço dos bispos por uma eclesiologia de base, com as Comunidades Eclesiais de Base (178-180); nesses pontos emerge a igreja em saída, tão característica desta Assembleia. Este tema, convertido em um paradigma eclesiológico, foi universalizado pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium. Em ambos os acentos, porém, a crítica dos bispos é claramente notada, foi perdida a urgência pastoral da opção pelos mais pobres em circunstâncias que aumentaram as formas de exclusão estrutural. Além disso, as Comunidades Eclesiais de Base não conseguiram se desenvolver, apesar do enorme valor que possuem, por causa das restrições que a própria Igreja local estabeleceu.

3 Breves questões conclusivas

As conferências do episcopado latino-americano marcaram, sem dúvida, a agenda do catolicismo no continente, deram-lhe novas linguagens pastorais, de modo que o povo crente latino-americano pudesse se aproximar do mundo com mediações mais próximas de sua própria realidade. As primeiras assembleias deram uma certa legitimidade aos movimentos sociais cristãos emergentes ou consolidados; as últimas, particularmente Aparecida, deram visibilidade, com solidez, a categorias de compreensão da realidade social e eclesial que se tornaram comuns, como a violência institucionalizada, a opção eclesial preferencial pelos mais pobres, a inculturação do Evangelho, a promoção da dignidade humana e seus direitos inalienáveis, a igreja inclusiva, emergindo para novas realidades e novos rostos.

Através destas Assembleias, percebe-se um continente mais maduro na busca e utilização de formas mais colegiadas de discernimento eclesial, embora ainda deixe a desejar, a criatividade latino-americana, no desenho de formas de governo mais representativas de todos os membros eclesiais. É evidente, além disso, que, na gestação do magistério local, é necessária a consideração de outras disciplinas na análise da realidade, bem como assessoria permanente daqueles que cultivam a disciplina teológica. O episcopado latino-americano amadureceu e isso deve ser projetado nas relações com outros corpos episcopais, bem como com a cúria romana. E essa maturidade deve ser traduzida em proatividade no desenho de políticas eclesiais locais para reverter a irrelevância que o catolicismo latino-americano adquiriu.

Sandra Arenas –  Faculdade de Teologia – Pontifícia Universidade Católica do Chile. Texto original em espanhol.

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Deus

Sumário

1 Introdução

2 A tradição judaico-cristã

2.1 O Deus do AT

2.2 O Deus de Jesus no NT

3 Inculturação: o grande desafio da evangelização

4 O Deus Trino da fé cristã

5 Perspectivas da teologia latino-americana

6 Rumo a uma nova imagem de Deus

7 Referências bibliográficas

1 Introdução

Quando começamos uma reflexão sobre “Deus”, encontramos uma realidade muito singular: falar de Deus não é o mesmo que falar sobre qualquer outro objeto de reflexão científica. Deus não é realmente um “objeto” ao lado dos outros, um ente a mais entre os outros seres deste mundo finito. É um conceito que, no campo das religiões, busca se referir precisamente a essa realidade que é diferente, porque é a realidade suprema. Com a palavra Deus se quer nomear o que constitui o princípio e o fundamento de tudo; que fornece alguma inteligibilidade e sentido ao resto da realidade.

A partir dessa característica singular, surgem duas primeiras dificuldades: por um lado, uma vez que não é um objeto do nosso conhecimento, um ente próprio do nosso mundo sensível, pertence ao conceito de Deus uma dimensão de mistério, impenetrabilidade, transcendência e infinito. Obviamente, isso variará muito de uma religião para outra, como cada uma entende e apresenta seu Deus, mas pode-se dizer que, em maior ou menor grau, a ideia de Deus sempre será acompanhada por uma certa inefabilidade que lhe é própria.

Por outro lado, a segunda dificuldade surge do fato que, precisamente porque é o fundamento da realidade e da existência, trata-se do ser diante do qual não pode existir uma atitude neutra, de objetividade total. Falar sobre Deus sempre envolve nós mesmos, nossa cultura, nossa idiossincrasia, nosso modo de entender o significado e o destino da história e da nossa própria existência.

Essas dificuldades, no entanto, não impedem que seja válido, possível e até mesmo inevitável fazer a pergunta sobre a possibilidade de um discurso racional sobre Deus. E, precisamente, esse é o objetivo da teologia. Se a questão sobre Deus implica a questão do fundamento último do mundo e do homem, se trata, sem dúvida, da questão mais fundamental de tudo, a que o homem não pode deixar de formular se quiser viver sua existência com plenitude de sentido (Cf. KASPER, 1982, p.13 et seq.).

2 A tradição judaico-cristã

A reflexão sobre Deus, precisamente porque é universal e envolve cada homem, nunca pode ter uma resposta única, absolutamente neutra, universal e objetiva. Quando se trata de falar sobre Deus, não podemos fazê-lo a partir de uma perspectiva que englobe todas as perspectivas culturais e religiosas. Aqui, só tentaremos oferecer uma primeira e breve abordagem da história da reflexão cristã sobre Deus e sua recepção particular na América Latina.

Pode-se dizer que a religião cristã foi marcada, desde os seus primórdios, pelo encontro entre duas tradições diversas: a cultura greco-latina e a cultura bíblica hebraica. Do entrelaçamento destas duas correntes nasceria, como nova síntese, a cultura do Ocidente. (Cf. ZARAZAGA, 2004, p.253) A pregação cristã seria um motor e agente fundamental desta nova configuração religiosa e cultural.

2.1 O Deus do AT

A história de Israel como povo é inseparável da história de sua religião. Israel elabora sua própria história interpretando os eventos que a marcam a partir da chave teológica de sua relação com Yahweh. Esta chave hermenêutica nos permite entender que o AT não procura realmente fornecer uma historiografia detalhada ou um relato preciso dos principais eventos que determinaram o curso da história de Israel. O que realmente pretende  é testemunhar a fé de que toda a história e a própria existência de Israel só se baseiam no mistério de sua eleição como povo da aliança por parte de Yahweh. Yahweh, por livre desígnio de seu amor e vontade, teria decidido escolher Israel para levá-lo a sua libertação e sua plena realização em um reino de paz, justiça e prosperidade.

Hoje sabemos que essa convicção das origens ainda não implicava uma confissão monoteísta expressa. O culto a Yahweh provavelmente foi levado para a Palestina por volta de 1100 aC, por algum grupo ou tribo vinda do Sul, que fugiu da dominação egípcia (ḥabiru / hebreus), procurando algum lugar para se estabelecer com certa segurança e autonomia. Lá, eles teriam se misturado a outras tribos e grupos que estavam adotando o culto a Yahweh, provavelmente atraídos pelo perfil desse Deus libertador que não se colocou ao lado de imperadores e poderosos, mas dos pobres e oprimidos em busca de liberdade e salvação. Pode ser que aí se fundamente a gestação de uma espécie de memória mítica coletiva que combine as origens de Israel com um êxodo milagroso alcançado em virtude dos sinais do poderoso braço de Yahweh (cf. ALBERTZ, 1999, p.83-174; LIVERANI, 2005, p.49; RÖMER, 2015, p.82 et seq.).

As características desse Deus, insuficientemente conhecido, foram gradualmente explicitadas ao longo da história e da reflexão teológica de Israel. Muito provavelmente, no início, Yahweh foi entendido como o Deus de uma precária comunidade de tribos, mas sem excluir a adoração de outros deuses e cultos ligados à memória dos antepassados ​​e às práticas cultuais próprias da vida agrária e pastoral. As práticas de adivinhação, os cultos astrais, a veneração de alguma divindade feminina associada à fertilidade etc. eram comuns no ambiente cultural do Oriente Médio. Parecia óbvio, além disso, que cada povo tivesse seus próprios deuses e cultos, identificados com os interesses e a cultura de sua própria etnia, clã ou nação (cf. ALBERTZ, 1999, p.174 et seq.).

Foi através das vicissitudes da sua própria história que Israel foi reelaborando a compreensão de seu Deus (ver a síntese de RÖMER, 2015, em p.246 et seq.). As religiões dos povos vizinhos serviam como um quadro de referência para incorporar ou rejeitar, em Yahweh, os traços que elas atribuíam a seus próprios deuses. Se, durante a era monárquica, a teologia oficial começou a pensar que Yahweh deveria ser adorado como Rei dos deuses e outros seres da corte celestial, como poderoso Senhor dos Exércitos (Yhwh Şeba’ot) (cf. ALBERTZ, 1999, p.197 et seq., 219 et seq. e 243 et seq.; RÖMER, 2015, p.136 et seq.), mais adiante deverá rever esses aspectos diante do estrondoso fracasso desse projeto político.

Também durante o exílio babilônico, os teólogos de Israel tiveram que fazer um esforço enorme para reinterpretar a história e tentar entender os misteriosos desígnios de Yahweh para elucidar como ele agora levaria Israel ao pleno cumprimento de sua promessa. Lá, enquanto a fé em Yahweh e a fidelidade a sua aliança foram se convertendo no principal símbolo da identidade israelita,  aumentou a compreensão de seu campo de ação: se Yahweh pode cumprir suas promessas, se ele realmente pode libertar ao seu povo, então pode liderar os destinos da história. A introdução desta ideia de um “código da aliança” diretamente ditado por Yahweh a Moisés começou a se tornar o argumento fundamental da teologia javista: a história de Israel, o fracasso dos Reinos do Norte, primeiro, e depois do Sul, a destruição do templo e o exílio, tudo poderia ser explicado em virtude da infidelidade, do povo ou de seus líderes, com Yahweh e sua aliança (cf. ALBERTZ, 1999, p.471 et seq.; LIVERANI, 2005, p.271et seq.).

Mas essa mesma aliança lembrava, por sua vez, as promessas e a misericórdia de Yahweh. Era preciso continuar confiando que Deus não esqueceria seu povo. Se Israel voltasse a abraçar a Torá, se voltasse a cumprir suas leis e preceitos, obedecendo e amando apenas a Yahweh, sem dúvida poderia confiar na restauração das promessas de uma forma até mesmo superior à anterior.

Foi assim que, em tempos de exílio e diante do fim iminente do império assírio, começou a nascer a ideia que Yahweh  interviria mais uma vez na história, enviando um novo messias mediador, para libertar Israel através de um novo êxodo que lhe permitiria voltar à pátria e reconstruir o templo. Os capítulos do Deuteroisaías são particularmente indicativos dessa perspectiva teológica (cf. Is 40-55) (ver ALBERTZ, 1999, p.528 et seq.).

Com crescente determinação, a fé de Israel reconfigurou a esperança em torno da convicção que, se Yahweh pode intervir ao longo da história, em qualquer momento e em qualquer lugar, é porque Yahweh não é apenas o Deus de Israel, mas Ele é o único Deus, o criador e o Senhor de todos os povos da terra (cf. RÖMER, 2015, p.252 et seq.; ALBERTZ, 1999, p.655 et seq.). Assim, através de tradições muito diferentes, memórias e narrativas mitológicas, reelaboradas, aumentadas e corrigidas repetidas vezes, Israel foi chegando a uma identificação cada vez mais plena de Yahweh com a própria essência da divindade: “Eu, eu mesmo, sou Yahweh. Nenhum deus há além de mim” (Dt 4,35; 32,39; Is 43,10-11; 44,6-8; 45,6.18.21). A fé em Yahweh foi capaz de explicar assim, após séculos, a sua natural tendência monoteísta (cf. RÖMER, 2015, p,218 et seq.).

A partir desta perspectiva teológica mais universalista, a missão e a vocação de Israel também tiveram que ser retrabalhadas para entender seu papel e o sentido de sua escolha. As antigas profecias sobre um rei messias, descendente de Davi, que viria  inaugurar um reino de paz e prosperidade, agora assumiram um novo significado: era na realidade Israel, como servo sofredor, que, por sua própria experiência histórica de pecado, fracasso e humilhação, foi escolhido e purificado para constituir uma nação sagrada e sacerdotal, e com sua fidelidade e amor a Yahweh se tornaria a luz das nações, e assim exercitaria a mediação universal que levaria todos os povos a submeterem-se ao reinado definitivo de Yahweh (cf. ALBERTZ, 1999, p.805 et seq.).

No retorno dos deportados, entretanto, as coisas não foram como era esperado. Israel não conseguiu realizar o reino da paz e da justiça que imaginava. Uma última pergunta surgiria na fé de Israel. Se Deus é o Senhor misericordioso da história, por que Ele permite esse mundo de injustiça e opressão? Por que não recompensar o bem e punir os bandidos? Por que os pobres continuam a sofrer e os ricos parecem apreciar a bênção de Deus? A teologia adquiriu então uma nova direcionalidade misturando as expectativas apocalípticas e escatológicas (cf. Is 24-27; Dn 2-7) (cf. ALBERTZ, 1999, p.783 et seq.). A ação de Yahweh não precisa limitar-se às estreitas margens do mundo e da história. Se Yahweh é o criador do universo, se ele criou o homem “à sua imagem e semelhança”, foi para tratá-lo como um filho, para protegê-lo e fazer com que ele compartilhe sua vida e eternidade. A ideia de uma retribuição pessoal dos justos seria, assim, transformada na esperança explícita de uma ressurreição dos mortos, pela qual Deus, o vencedor da morte, concederia a vida eterna aos pobres e justos de Yahweh (Is 25,8; 26,19; 2 Mac 7,9; 12,43-46, e Dn 12,2-3) (cf. ALBERTZ, 1999, p.800 et seq.).

Em Daniel, a espera por essa intervenção divina toma uma figura humana em um enviado, um messias celeste mediador, que virá sobre as nuvens do céu para estabelecer o reinado definitivo de Yahweh (Dn 7, 13-15) (cf. ALBERTZ,  1999, p.818 et seq.).

 2.2 O Deus de Jesus no NT

Dentro do quadro desta compreensão de Deus e dessas expectativas históricas, devemos situar a fé cristã (ver KESSLER, 1996, p.316-384). O cristianismo nasceu da convicção que Jesus de Nazaré era o Messias esperado por alguns grupos em Israel, mais ainda, era aquele em quem  Deus cumpriu suas promessas de maneira bem além de todas as expectativas. Apesar da rejeição de Israel, que condenou e crucificou o Messias, Deus o ressuscitou e o sentou à sua direita na glória para reinar com ele. A vida e a morte de Jesus, sua própria pessoa, foram definitivamente associadas ao plano de salvação de Deus e à sua plena realização escatológica. O evento Jesus Cristo seria, portanto, entendido como a plena autorrevelação escatológica do próprio Deus (cf. KASPER, 1976, p.151-196; SCHILLEBEECKX, 1983, p.99 et seq.).

Como isso é possível? Como Jesus de Nazaré poderia ser elevado a uma condição própria do divino que era exclusiva de Yahweh? Sua ressurreição e glorificação à direita de Deus mostraram que o Messias não era apenas um homem escolhido, mas o Filho de Deus mesmo, enviado do seio do Pai como Palavra e Logos de Deus (Jo 1,1-3) (cf. PANNENBERG, 1986, v.I p.286 et seq.; v.II p.361 et seq., 371 et seq.). Os Evangelhos nascem, precisamente, como uma maneira de explicar narrativamente, e agora em grego, a vinda do Filho de Deus para a história dos homens e seu retorno ao reino dos céus. Nele, a salvação anunciada é cumprida e as promessas de Yahweh realizadas de forma definitiva, inesperada, supereminente e universal.

Entregando sua vida ao Pai na cruz, o Filho deu ao mundo o seu Espírito para convidar e liderar toda a humanidade como novo povo de Deus para o seu destino final e escatológico como Reino universal e eterno do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. PANNENBERG, 1986, v.I p.289 et seq.).

Existe, portanto, uma profunda transformação na compreensão de Deus. Se o AT confessou Yahweh como um Deus uno, único e absolutamente transcendente, agora esse Deus se mostra uno como amor trino, como o amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo que chama os homens a inserirem-se naquela dinâmica de amor. No Filho Encarnado, o Deus transcendente assume um rosto, torna-se parte da história, torna-se verdadeiramente homem para mostrar que assume em si mesmo a dor e o destino dos pobres e condenados deste mundo e se identifica com o seu destino para transformá-lo em vida e ressurreição.

3 Inculturação: o grande desafio da evangelização

A fé cristã nasceu, portanto, profundamente marcada por um desafio difícil: como pregar um Deus que é uno, mas que se manifestou como Pai, Filho e Espírito Santo?

A dificuldade de tal pregação pode ser entendida levando em conta que os primeiros cristãos tiveram que pregar sua fé no cenário de comunidades culturalmente forjadas no encontro entre o rígido monoteísmo judeu e a cultura grega marcada pela tendência decididamente unitária da racionalidade grega.

A cultura religiosa das comunidades de origem judaica entendia, como vimos, que Deus deveria ser compreendido como absolutamente uno e transcendente. Não era possível  ver seu rosto, nem mencionar seu nome.

O pensamento grego, por sua vez, também havia fundado sua compreensão do universo na ideia de um único princípio, um único arkhé, um único fundamento metafísico do real: além desse mundo sensível, mutável e passageiro, deve haver um fundamento imutável e eterno que é sua razão e sentido. Somente dessa maneira a constante permanência do ser pode ser explicada em um mundo físico em que tudo muda, passa e morre. O mundo das ideias de Platão, o mundo do eterno, do bem e do perfeito, se tornaria, para Aristóteles, a afirmação de uma substância suprema, racional e imaterial, um primeiro motor imóvel, perfeito, sem necessidade de movimento ou mudança . Esse é o fundamento, a causa final perfeita, que nos permite compreender a ordem que governa o universo, apesar de sua enorme multiplicidade, caducidade e contingência. Assim, na visão de mundo grega, a ideia do divino estava associada à de uma unidade primeira absoluta, eterna e imutável, que não sofre nenhuma alteração ou devir.

Por mais diferente que seja do comportamento apático do primeiro motor imóvel grego no que diz respeito ao Deus pessoal, fiel e misericordioso do AT, ambos concordaram em ser concebidos como uma unidade absoluta, o único fundamento absolutamente uno de todos (ZARAZAGA, 2004, p.253 et seq.).

Como pregar neste contexto, um Deus que é proclamado Pai, Filho e Espírito Santo, que se comove e envolve na história dos homens até encarnar-se, tornando-se um verdadeiro homem e morrer na cruz? Tal declaração só pode ser entendida como disparate e loucura para gregos e judeus (1 Cor 1,23). Todo o Novo Testamento pode ser entendido à luz desse contexto e deste desafio imposto pelo rígido monoteísmo judeu e pela necessidade de um fundamento único próprio da racionalidade grega.

4 O Deus Trino da fé cristã

É neste cenário cultural que o cristianismo teve que tentar explicar, e explicar-se a si mesmo, a particular e nova compreensão de Deus que surgia de sua fé. Se era proclamada a fé em Cristo como o Filho de Deus, morto e ressuscitado, se se batizava em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19), era uma tarefa teológica inevitável explicar como articular a afirmação do Deus uno com essa confissão trinitária.

A teologia dos primeiros séculos seria marcada por esta busca. Os dois primeiros grandes concílios (Niceia, em 325, e Constantinopla I, em 381) foram destinados a abordar claramente problemas trinitários decorrentes precisamente de tentativas fracassadas em harmonizar a unicidade de Deus com as diferenças que envolvia proclamá-lo como Pai, Filho e Espírito Santo. Esses erros procediam, basicamente, de salvaguardar a unicidade de Deus mostrando que o Filho e o Espírito Santo não eram propriamente Deus no mesmo sentido e nível do Pai. Os Concílios responderam a esses desvios afirmando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são coeternos e da mesma natureza divina (ver o verbete “Trindade”). A discussão foi colocada nos termos conceituais próprios desse ambiente cultural já fortemente influenciado pela terminologia grega. No âmbito deste sistema conceitual, os concílios procuraram, no entanto, salvaguardar a fé dessa racionalidade grega rígida. Assim, foi definido que Deus deve ser concebido como “uma única substância ou essência” (ousia), uma única natureza (physis), mas na qual subsistem três relações verdadeiramente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Para explicar o que esses três são, se diria que as relações divinas, internas à única substância, dão origem (eterna) a três subsistências ou pessoas distintas (três hypóstasis ou prósopa).

A história da compreensão de Deus no Ocidente seria marcada por esta teologia fruto do encontro entre o monoteísmo hebraico e a racionalidade grega que, apesar de suas muitas diferenças, tinham em comum, como dissemos, a primazia absoluta da unidade sobre a diferença. Ambos raciocinam a partir de um princípio irredutivelmente uno que é o fundamento e a razão única do universo finito.

No ano 380, com a conversão do Império Romano ao Cristianismo,  terminava por consolidar-se um imaginário que compreende o mundo como fundado em uma origem divina única e  destinado, apesar de toda sua aparente pluralidade, a formar uma estrutura única e unitária. A teologia cristã desde os Santos Padres até a Baixa Idade Média, passando pelos Padres Capadócios, Agostinho e Tomás de Aquino, consistiu na explicação e aprofundamento destes pressupostos básicos.

No processo, pode-se dizer que, até o século XV, a teologia ocidental assumiu essencialmente o imaginário piramidal de um mundo, uma sociedade e uma Igreja verticalmente concebidos, cuja unidade foi baseada na figura de um único Deus, Criador e Pai do universo. O Papa era na terra o vigário de seu Filho e o Imperador era o braço político e administrativo. A unidade do Universo (versus ad unum), da sociedade e da Igreja, tinha a sua fundação em única substância metafísica divina. Um determinado patrocentrismo, representado no ícone de um  Pantocrator impressionante, sentado em seu trono e armado com bastão de mando, resultava desse imaginário cultural. Neste cenário, as figuras do Filho e do Espírito Santo tendiam a ocupar um lugar algo derivado e secundário com relação ao Pai, mesmo que todas as definições conciliares tentassem evitá-lo.

A modernidade trouxe uma virada significativa. As descobertas de Copérnico, Galileu e Kepler significaram uma mudança radical na compreensão do universo. Apesar das aparências, a terra não é o centro do cosmos, mas é ela que gira em torno do sol. A realidade não é tão óbvia, transparente e objetiva quanto os sentidos reivindicam. Os relatos de Marco Polo, as descobertas de Colombo mostraram que o mundo, a cultura e a religião eram muito menos uniformes e homogêneos do que se supunha. A Bíblia mostrou que não poderia revelar todos os segredos do universo. As ciências e o conhecimento avançam revelando novos aspectos e dimensões da realidade. Se o sol e a sua luz são o centro do nosso universo, o homem e a luz de sua razão são o centro e o motor do saber e do conhecimento (cf. ZARAZAGA, 2017, p.20 et seq.).

O sujeito adquiriu, assim, uma nova centralidade baseada no poder de sua razão, autonomia e liberdade. A evolução filosófica do Ocidente será profundamente afetada por esta nova direção copernicana em direção a uma compreensão crítica e progressiva da realidade. Na teologia cristã, esse imaginário se manifestaria em uma compreensão de Deus não mais como essência ou substância primeira, mas como sujeito absoluto e suprema liberdade. A Reforma Protestante liderada por Lutero no século XVI pode ser entendida à luz dessas novas tendências que vinham questionar uma compreensão excessivamente metafísica e substancial de Deus e da natureza da Igreja. Por sua vez, sua compreensão mais pessimista do homem e da sua liberdade despertaria na Contrarreforma a necessidade de uma tematização mais profunda de uma antropologia cristã que repensasse a relação Criador-criatura, o significado da história e a relação entre razão, fé e liberdade humana. A partir desta luz, podemos entender a evolução do pensamento filosófico ocidental de Descartes a Hegel e de Nietzsche a Heidegger. Como pode haver espaço para a liberdade humana se for submetida a um Deus que é sujeito absoluto, liberdade absoluta e soberania? O ateísmo dos séculos XIX e XX expressa grande parte dessas questões e suspeitas. Embora a Igreja Católica tenha resistido, em grande medida, à influência desses pensadores, suas propostas e desafios foram moldando um novo cenário cultural que exigiu uma profunda reformulação da teologia cristã e sua maneira de dar conta de sua compreensão de Deus. A teologia, que é sempre reflexão sobre a fé da Igreja, mas a partir das coordenadas próprias e mutáveis de cada época e cultura, sentiu o impacto dessa mudança na compreensão do universo. Os fortes impulsos da renovação espiritual, litúrgica e pastoral começaram a se manifestar em áreas muito diferentes da vida eclesial. Importantes teólogos de grande renome e prestígio (especialmente nos âmbitos francês e alemão) assumiram o desafio de repensar a teologia a partir dessas novas coordenadas.

O trabalho teológico de pensadores como Teilhard de Chardin, Chenú, Congar, Lubac e K. Rahner, entre outros, logo fez sentir sua influência. A consciência da necessidade de uma urgente reação renovada foi se espalhando como um impulso incontrolável que resultou convocação do Concílio Vaticano II. Graças ao Concílio, a teologia tomaria consciência que até mesmo a compreensão de Deus precisava ser reformulada e expressada a partir de um novo sistema de categorias. A discussão trinitária do século XX testemunhou esse intenso processo de reformulação teológica. Enquanto alguns autores continuaram a afirmar a necessidade de postular a verdadeira existência de uma substância divina única, outros consideraram essencial superar as antigas categorias abstratas da metafísica para entender Deus em nova chave subjetiva: Deus não é uma distante e difusa essência divina, mas o sujeito de sua própria revelação (K. Barth), que se autocomunica de forma concreta e pessoal na economia da salvação (K. Rahner). Outros teólogos, entretanto, viram nisso a influência da filosofia moderna e o perigo de reduzir a Trindade das pessoas à identidade de um único sujeito absoluto. Assim, surgiu uma nova tendência teológica que buscava pensar em Deus em uma chave intersubjetiva, como uma realidade relacional e propriamente interpessoal (H. U. von Balthasar, J. Moltmann, W. Pannenberg).

Para entender essas novas tendências e propostas, é necessário ter em mente que surgiram no contexto de uma época de mudança radical na compreensão do universo. Na verdade, o século XX nasceu da mão de uma verdadeira revolução científica. A teoria da relatividade de Einstein significou uma nova virada copernicana, uma transformação profunda da compreensão newtoniana do mundo. O universo não é, como se pensava, um grande recipiente, um espaço vazio tridimensional no qual os planetas estão localizados como corpos autônomos que exercem cada um, em virtude da densidade de sua própria massa, uma força de atração chamada gravidade. Pelo contrário, o universo não pode ser entendido a não ser que incorpore a dimensão temporal e relacional. O espaço também é matéria. Nele, tudo está em relação, troca e movimento. A velocidade e as dimensões são sempre relativas à localização e ao movimento do observador. O universo, agora ,é representado mais como um espaço em redes, um tecido em que o peso dos corpos curva o espaço, alterando a trajetória dos corpos vizinhos. A luz não está lá onde é vista. Ele realmente viaja por milhões de anos, fazendo com que agora vejamos imagens de uma configuração estelar que mudou há muito tempo. A teoria da relatividade veio, assim, transformar de forma profunda e definitiva nosso modo de entender o mundo, a realidade, o homem e sua evolução.

5 Perspectivas da teologia latino-americana

Diante desse panorama, o Concílio Vaticano II propôs o desafio de uma leitura mais atenta dos sinais dos tempos. Era essencial fortalecer o papel das igrejas particulares. Somente assim, poderia assumir-se o novo impulso missionário de renovar um diálogo inculturado com o mundo.

No entanto, na América Latina, a recepção do Concílio seria feita a partir de suas próprias coordenadas históricas e culturais. O problema central não foi dado pelo desafio do ateísmo e da secularização, mas pelo questionamento de uma realidade marcada por uma escandalosa injustiça social e o espetáculo de grandes maiorias sociais afundadas na miséria e na marginalidade. Esta situação de forte exclusão social, falta de educação, meios e oportunidades, num continente que se proclamou eminentemente católico, tornou-se um desafio inevitável para a Igreja e a teologia. A leitura dos sinais dos tempos não se concentrou no diálogo com a incredulidade, mas na opção preferencial pelos pobres (cf. CODINA, 2015, p.17 et seq.). A obra de Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação, apareceu em 1971, apenas seis anos após o fim do Concílio. No aspecto especificamente relacionado aos temas de Deus e da Trindade, a teologia da libertação enfatizaria o compromisso de Deus com a história, sua identificação com os pobres e sua prontidão em assumir a dor e a morte no caminho da libertação e redenção. A façanha da libertação do Egito e a solidariedade do Jesus histórico com a sorte e o destino da marginalização e morte dos mais fracos foi o modelo inspirador para a compreensão do cristianismo como um chamado para construir o reino de Deus como um reino de justiça, solidariedade e reivindicação dos pobres. Para Gutiérrez, a teologia é a reflexão sobre a fé a partir da práxis da libertação, e é essa perspectiva de libertação que oferece o ponto de partida apropriado para uma reflexão teológica que permita compreender integral e profundamente a mensagem evangélica da América Latina. O trabalho de Leonardo Boff, Jon Sobrino, Ignacio Ellacuría, Lucio Gera, Juan Carlos Scannone e muitos outros testemunha a continuidade desta nova perspectiva da teologia latino-americana que se compreendeu a partir do compromisso com o destino de um povo empobrecido.

6 Rumo a uma nova imagem de Deus

Pode-se dizer que esta abordagem também está passando, hoje, por um processo significativo de transformação. Uma nova sensibilidade e abertura exigem ouvir a voz e as reivindicações de outros grupos e setores discriminados: os direitos dos povos indígenas, das mulheres, das crianças, dos imigrantes, dos deficientes, convidam a assumir a realidade de uma grande diversidade de perspectivas, identidades e interesses como um novo sinal dos tempos. A categoria “povo” ou “pobres” parece ser insuficiente, atualmente, para capturar a riqueza desta paisagem plural e policromática. Na realidade, é uma característica de época, que vai muito além da esfera latino-americana. A globalização, apesar de todos os seus perigos e ambiguidades, trouxe consigo uma nova sensibilidade, uma nova consciência planetária que chama a atenção não só para os pobres, mas também para os diferentes, excluídos, para outros setores e grupos humanos que exigem integração e participação.

A teoria da relatividade, implicou, como dissemos, uma mudança copernicana na maneira de compreender o mundo e  todo o real. A teoria do Big Bang, as descobertas feitas no campo da física atômica, a mecânica quântica dos campos e os avanços tecnológicos que, a partir daí, foram desencadeados nas áreas da comunicação e da informática implicavam uma mudança radical do imaginário coletivo. O fundamento último do real deixa de estar ligado a um puro uno, não relacional, solitário e autônomo. A realidade começa a ser concebida como um conjunto de estruturas profundamente complexas, marcadas pela dualidade ondo-corpuscular (onda-partícula), a intrínseca ligação entre matéria-energia e espaço-tempo como dimensões inseparáveis, constitutivamente ligadas a todo o real.

Assim, todo o real é sempre sistema, relacionamento e troca, tanto em sua própria composição interna quanto em sua ligação ad extra. Os novos modelos atômicos trouxeram consigo a ideia de um mundo onde todas as partículas, cargas e energias existem e atuam sempre no jogo de uma troca de forças que as mantém relacionadas, unidas e separadas ao mesmo tempo, sempre em movimento e interagindo no contexto de um campo dinâmico aberto por elas mesmas. Campo e partículas estão envolvidos na simultaneidade relativa. A realidade é então entendida como uma rede onde o singular e o sistema são simultaneamente envolvidos no todo vinculado e vinculante do real. Todo o real é relativo, isto é, constitutivamente relacional e comunicativo (cf. ZARAZAGA, 2015, p.143 et seq.).

Obviamente, essa mudança científica e cultural, essa nova compreensão do mundo e da realidade exigem também uma reformulação teológica da nossa compreensão de Deus. Embora Deus e a fé não mudem, mudam os conceitos e as imagens com as quais os entendemos, explicamos e transmitimos. Nesse sentido, o caráter constitutivamente trinitário da compreensão cristã de Deus adquiriu hoje uma maior inteligibilidade e sentido. Deus não pode mais ser entendido como um ser isolado, como um puro uno, concebido como não relacional, um solitário amor de si. A partir daqui, entende-se por que os teólogos começaram a abandonar a ideia de Deus concebida como uma substância única e imutável. Nem a ideia de Deus como um sujeito absoluto, solitário e autônomo parece estar de acordo com esta criação constitutivamente plural e relacional. Somente um Deus que é uma constitutiva relacionalidade pericorética interpessoal pode fundar a unidade do mundo em sua própria diversidade.

Deus trino significa que ele é, em si mesmo, relação comunional de amor, comunicação de amor como unidade na diferença e diferença só possível na unidade indivisível do amor infinito. Que Deus seja trino significa que a origem e fundamento mesmo de todo o real é um Deus que é amor como comunicação e partilha, em que Pai, Filho e Espírito Santo realizam o amor como doação e recepção infinita de si, a partir e para o outro diferente de si. Cada um faz essa doação e recepção de si de uma forma única, irrepetível e insubstituível. O Pai como amor parental, o Filho como amor propriamente filial, o Espírito como o agápico amor horizontal. Unidade, alteridade e comunicação do amor estão envolvidas e incluem-se mutuamente na origem fontal divina de todo o real. É essa comunhão divina que cria e funda o mundo como âmbito, espaço e  rede para a troca de dons e vida, em que tudo adquire a sua própria identidade única e irrepetível, sob sua própria participação comunicativa. Porque Deus é amor e é comunhão é que ainda está vigente a intuição da teologia latino-americana: a fé sempre envolve a busca da justiça que é sinônimo de plena inclusão social, participação e troca de dons para uma vida propriamente humana e comunicativa, fundada em um Deus que é uno, porque ele é communio, ele é a infinita troca pericorética do amor interpessoal trinitário (cf. ZARAZAGA, 2004, p.302 et seq.).

Gonzalo Zarazaga, SJ. Facultad de Teología del Colegio Máximo de San José. Argentina. Texto original em espanhol.

 7 Referências bibliográficas

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Para saber mais

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Cristologia (I)

Sumário

1 Cristologia e seguimento

2 Método e ponto de partida

3 Retorno aos Evangelhos

4 Batismo e messianismo assuntivo

5 A centralidade do Reino

6 Os destinatários: pobres e excluídos

7 O Deus de Jesus

8 Referências bibliográficas

1 Cristologia e seguimento

A cristologia pré-conciliar consistia em dois tratados: De Iesu, legato divino e De Verbo incarnato (MOINGT, 1995b, p.7-16). O primeiro tratava de demonstrar que Jesus era o enviado por Deus e que não era um mero ser humano. Apoiava-se nos milagres como ações sobrenaturais. O segundo tratado explicava como aquilo que Jesus fazia era próprio da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo. No entanto, o assunto da ação e reflexão não era Jesus de Nazaré, mas sim o eterno Filho de Deus. A cristologia pós-conciliar, pelo contrário, entende que em Jesus existe uma unidade indissolúvel entre o humano e o divino, porque “aquele que é a imagem do Deus invisível (Col 1,15) é também o homem perfeito” fazendo com que “o mistério do homem [seja] apenas esclarecido no mistério do Verbo Encarnado” (Gaudium et Spes n.22).

A novidade conciliar levou a reflexão cristológica latino-americana a ser enquadrada dentro da práxis discipular que chamamos de seguimento, pois conhecer Cristo é seguir sua práxis histórica no meio dos pobres (SOBRINO, 1991, p.56). Isso significa que o conhecimento do relacionamento de Jesus com seu Pai e seu tempo é obtido pelos seus discípulos através do seguimento. Eles tiveram que lembrar de Jesus, suas palavras e gestos, tudo o que tinham testemunhado. Esta recordação primeiro levou à questão pelo sentido que começou a ser revelado no discernimento pós-pascal.

Portanto, mesmo se levarmos em conta o que se pode conhecer cientificamente sobre Jesus de Nazaré, a cristologia se baseia no que as testemunhas lembram e nos contam sobre ele, conforme o registraram no Novo Testamento e, especialmente, nos Evangelhos (DUNN, 2009, p.167). As pesquisas contemporâneas insistiram na importância de resgatar a história de Jesus ou o que tem de histórico e significativo para o seu tempo. Este é para nós o Jesus da história ou Jesus pré-pascal. No entanto, Jesus é muito mais do que os dados históricos que podemos conhecer sobre ele. É uma pessoa vista pela fé, revelada pelo Espírito (Jo 14,26) e atualizada no seguimento.

2 Método e ponto de partida

O estudo cristológico é motivado pela pergunta que Jesus fez a Pedro: “Quem os homens dizem que eu sou?” (Mc 8,27-30). Ao longo da história, manifestaram-se diferentes respostas. Cada uma pressupõe um ponto de partida metodológico. Podemos mencionar algumas (ver LUCIANI, 2005, p.17-116):

a) Afirmações dogmáticas: algumas investigações começam a partir dos dogmas definidos nos Concílios Ecumênicos. Este é o caso de Calcedônia (451 dC) quando afirmou que em Cristo coexistem duas naturezas, uma humana e outra divina, unidas, sem divisões. Importante considerar que os dogmas são sempre um ponto de chegada dos processos de reflexão eclesial e não um ponto de partida (ver RAHNER, 1961, p.51-92).

b) Afirmações bíblicas: outras pesquisas assumem como ponto de partida a proclamação da fé em Jesus a partir dos títulos cristológicos (Filho de Deus, Filho do Homem, Messias) ou desde as teologizações que foram feitas dos eventos mais importantes de sua vida (a Ressurreição). Deve ser especificado que o Novo Testamento é o Antigo Testamento acontecendo de forma completamente nova, definitiva e plena na pessoa de Jesus de Nazaré. Não podemos separar os dois testamentos, nem tratar as passagens bíblicas sem a sua correlação adequada com o nosso tempo.

c) O kerygma: de acordo com esta posição, o verdadeiro Cristo é o Cristo pregado pelos evangelistas, como sustentou Martin Kähler, em 1882, em sua palestra, O chamado Jesus histórico e o Cristo existencialmente histórico e bíblico. Para esta corrente, não podemos saber sobre sua vida histórica como tal

d) O culto: de acordo com outra corrente, o Cristo total só seria descoberto no culto eclesial. O perigo reside em cair em certos espiritualismos e subjetivismos que relativizam a experiência social e comunitária da fé em Jesus Cristo, além de entender a liturgia como fonte e não como uma celebração, colocando-a acima da Escritura.

e) Teologias pós-conciliares: o jesuíta Karl Rahner propõe uma virada antropológica em consonância com o Vaticano II. Ele entende que a humanidade de Cristo é sacramental e, portanto, sua carne, isto é, sua humanidade, é o caminho concreto para acessar o mistério de Deus. Isso dá lugar ao caminho antropológico como um lugar de conhecimento e encontro com Deus.

f) América Latina: a partir do Jesus histórico, convida-nos a ler os sinais dos tempos da nossa realidade atual para assumir o compromisso pela libertação de situações que negam a presença do Reino de Deus. O ponto de partida é o seguimento de Jesus, que sempre estabelece uma correlação entre a forma como Jesus viveu e assumiu o seu tempo e a consciência da realidade de injustiça que vivemos na nossa. Por esta razão, a cristologia latino-americana não parte de uma questão isolada sobre os dados recuperáveis ​​da vida histórica de Jesus. Aqui, o histórico é entendido como “as atividades de Jesus para operar na realidade social e transformá-lo na direção precisa do Reino de Deus. Histórico é o que desencadeia a história” (SOBRINO,1991, p.77). Rompe-se assim com a teologia da primeira fase iluminista, na qual apenas é libertado o pensamento, a razão, mas não a realidade sociocultural em todas as suas dimensões. Este ponto de partida exige um retorno a Jesus de Nazaré, ao Jesus dos Evangelhos e ao impacto de suas palavras e gestos para o mundo de hoje.

3 Retorno aos Evangelhos

Esta necessidade de retornar aos evangelhos proposta pelas pesquisas contemporâneas não procura reconstruir uma biografia de Jesus, mas sua práxis histórica como atual e interpelante. No entanto, a distância cultural entre as primeiras comunidades e nós significa que alguns termos não são claramente compreendidos hoje. Portanto, devemos ter em conta os gêneros literários do judaísmo e do helenismo e as características redacionais próprias de cada evangelista. Devemos distinguir entre fatos pré-pascais e interpretações pós-pascais, mas a partir da unidade indissolúvel existente entre o Jesus histórico e o Cristo da fé.

O diálogo entre a ciência histórica e a teologia protestante alemã permitiu resgatar a relação entre a pessoa de Jesus, pregada pelos discípulos depois da Páscoa, e sua mensagem do Reino, o foco indiscutível do Jesus pré-pascal. No entanto, a teologia dialética insistiu, então, na dificuldade de conciliar o caráter escatológico da mensagem de Jesus com os dados acessíveis pela ciência histórica. Desta forma, apenas poderia se chegar ao kerygma proclamado na Igreja. Esses primeiros debates levaram a posições fideístas, como a dos pós-bultmanianos, que sustentavam  poder acreditar em Jesus sem saber nada histórico sobre ele. Esses debates contribuíram para a necessidade de pensar  uma nova articulação do discurso sobre a relevância da história na teologia. Esta é a tarefa de hoje, isto é, estabelecer novamente a proclamação da fé, o kerygma, no relato evangélico que nos é dado como paradigma de discernimento e acompanhamento. O teólogo é desafiado a aprender a ler o evangelho à luz dupla da história e da fé, sabendo que essa relação não é necessariamente convergente, mas ela expressa a fé da Igreja.

A cristologia latino-americana ajudou a advertir que os textos do Novo Testamento não podem ser usados ​​isoladamente com a única preocupação de estratificá-los até que possam provar o que o próprio Jesus poderia ter dito ou feito e o que foi posteriormente construído pelas comunidades pós-pascais. Também não devem ser estudados com a única pretensão de compreender Jesus no quadro histórico do judaísmo do primeiro século. Um elemento-chave é ver a transcendência que surgiu do espírito com que Jesus viveu, o que provocou uma novidade radical em relação ao próprio judaísmo, a partir de sua opção pelo Reino de Deus. O desafio para a presente investigação é transmitir mais uma vez o impacto que a humanidade de Jesus produz no presente da nossa história, iluminando os grandes problemas que enfrentamos globalmente. Trata-se de correlacionar o modo como ele viveu – de acordo com as Escrituras e como ouvinte da palavra do Pai – com a maneira como, mais tarde, seus seguidores, impactados por esse estilo de vida, tiveram que transmiti-lo em um contexto hermenêutico judaico; e, dessa estrutura, podemos, então, correlacioná-lo com a maneira como somos chamados a atualizar sua mensagem em nossas realidades concretas.

Tal abordagem permitirá descobrir o processo de Jesus, como ele estava discernindo e assumindo os traços da humanidade que correspondiam fielmente ao projeto do Reino à luz das Escrituras, selecionando as tradições proféticas e sapienciais que melhor expressavam a imagem que surgia de sua experiência do Deus do Reino. Este processo começa com o evento representado pelo batismo de Jesus.

4 Batismo e messianismo assuntivo

A consciência histórica de Jesus é inicialmente enquadrada na espiritualidade dos pobres de Yahweh, compartilhada por sua mãe, como no discernimento pessoal que faz da sua vocação humana como seguidor do projeto do Reino, segundo foi pregado e acreditado por João Batista. Jesus não só foi batizado (Mt 3,13-15; Mc 1,9; Lc 3,21), mas também começou a praticar e encorajar o rito do batismo entre seus discípulos e seguidores (Jo 3,22-23.26; 4,1-3). O batismo é a chave hermenêutica para entender sua missão e seu processo de conversão pessoal ao Deus do Reino. Há uma continuidade inicial com o projeto de João, que encontra seu momento decisivo de ruptura após o se encarceramento e morte (Mc 6,17-29, Mt 14,14-13). Após este evento, Jesus entendeu que o tempo de preparação terminara e um novo estava começando, o da irrupção do reinado de Deus (Mt 4,23).

Os relatos das tentações que se seguem ao batismo tornam explícito este processo de discernimento e conversão que Jesus fez depois da morte de João. Quem foi o verdadeiro sujeito do Reino? Foi Deus Pai? O que implicava ser Filho de um Deus que era um Pai bom e misericordioso? (Lc 4,3; Mt 4,3) Como falar de um Reino que não tem rei ou exércitos? Poderia o Reino ser proclamado por meio de imposição, à espera de sua irrupção violenta, como Batista esperava? Jesus nunca se identificou com as expectativas messiânicas dominantes em seu tempo. Ele optou por um estilo de vida messiânico não político. Praticava um messianismo assuntivo (cf. LUCIANI, 2014, p.117-136) cujas consequências sociopolíticas e religiosas seriam inevitáveis, mas nunca provocadas ou forçadas por meio da violência e do exercício da força armada (Jo 18,36). Assume a causa dos pobres como algo desejado e favorável aos olhos  de Deus, o Senhor, Yahweh, com o novo tempo que ele inaugurava: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” (Lc 4,21). A época do Reino.

5 A centralidade do Reino

O tema do Reino é estrutural e estruturante de todo o trabalho teológico e da vida cristã. Quando a teologia alemã do século XIX levantou questões sérias sobre a impossibilidade de escrever sobre Jesus, em vez de apresentar um problema de interesse historiográfico ou biográfico, ela estava abrindo o caminho, talvez sem saber, para buscar a primazia do como e por que viveu o Jesus histórico sua vida de uma maneira determinada (para si) e determinante (para outros). Em outras palavras, o que o fez viver de uma maneira e não de outra. A investigação histórica permitiu a abordagem de novas perspectivas na investigação sobre a vida de Jesus de Nazaré, que aprofundavam não apenas a forma de sua revelação (problema clássico), mas também o seu conteúdo, referindo-se aos motivos para viver assim e as implicações que isto trouxe. Neste sentido, o tema do Reino de Deus como uma questão de supremacia e  absolutismo  frente ao relativo é o eixo central de toda a obra de Jesus de Nazaré.

A lógica do Reino de Deus implica uma inversão de valores: “muitos primeiros serão últimos, e muitos últimos serão primeiros” ou “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último e o servo de todos” (cf. Mt 19,30; Mc 10,31; Mt 20,16; Lc 13,30; Mc 9,35). Esta inversão é qualitativa e relacional. Inverteu relacionamentos estabelecidos que desumanizam por outros que humanizam. Podemos mencionar três exemplos. O primeiro é o relacionamento patrão-empregado, narrado pela parábola dos trabalhadores da vinha  (Mt 20,1-6), que receberam todos o mesmo salário no final do dia, porém aqueles que trabalharam mais protestaram. O segundo esquema é o Rei-súdito, o rei que convidou todos à sua mesa porque os que havia convidado primeiro não apareceram (Mt 22,1-10). O Rei não se relaciona mais com eles como seus súditos, mas reconhece-os como pessoas em toda a sua dignidade. O terceiro esquema refere-se ao pai-filho, como é dito na parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32). Nela, a proporção ou a correspondência não é o critério do discernimento do pai em relação às atitudes dos dois filhos, mas o da gratuidade. Os esquemas quantitativos de status ou posição social são superados pelos qualitativos, em que o primordial é o que humaniza e reconhece o outro como um irmão.

A noção do Reino expressa, portanto, uma maneira de viver o amor a Deus através do serviço ao irmão. Em Mt 22,40, é narrado: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Em Lev 19,8 já aparece a referência ao outro, e em Dt 6,4 (Shemá Israel) se fala do Outro, Deus. Jesus coloca ambos os critérios no mesmo nível prático, mas não ontologicamente. A consequência é que somente através do outro que é nosso irmão (fraternidade) podemos encontrar Deus como filhos (filiação). Aqui está a grande inversão. O horizonte da humanização se sobrepõe ao da lei e do culto. A experiência do Reino leva à construção da vida fraterna dos filhos/as de Deus.

Diversos tem sido os modelos teológicos europeus que explicam a noção do Reino. Podemos destacar alguns: a) Rudolf Bultmann desloca a mediação (o Reino de Deus) pelo mediador (Jesus Cristo) como o último. O importante é o kerygma, o anúncio do Jesus Cristo ressuscitado que é boa notícia para todos os homens. O Reino de Deus é reduzido ao quadro de uma fé individual; b) Wolfhart Pannenberg apresenta sua escatologia como uma antecipação do futuro último. A esperança relaciona a história com o futuro. Sua visão não leva em conta as condições do antirreino na história, mas as do indivíduo esperançoso (racionalmente) diante do futuro oferecido na Ressurreição; c) Jürgen Moltmann considera que o eschatón continua sendo o futuro que se manifesta na esperança do homem a Deus. Ele avisa que existem realidades históricas que contradizem o Reino de Deus. Portanto, o futuro deve ser crítico para a negatividade do presente; d) para Walter Kasper, o Reino de Deus “é a imposição e reconhecimento de Deus na história” (escatológico), “o dia em que Yahweh será tudo em todos” (soteriológico), e implica “superar os poderes do mal, destruidores, inimigos da criação e o início de uma nova era” (soteriológico); e) Edward Schillebeeckx enfatiza o caráter operacional do reinado de Deus. Para ele, a “soberania de Deus implica fazer a vontade de Deus”. Não é mais a esperança estética de esperar em Deus, mas a relação que se estabelece entre homens e Deus para prolongar aqui, na história, o poder de Deus, sua vontade salvífica. Mas “também é um julgamento sobre a nossa história”. Não só comunica uma boa notícia, mas também critica os antivalores presentes na história sob relações de dominação, ambição e poder. O reino de Deus é um “ainda por vir” (Mc 14,25; Lc 22,15-18) que começa a estar presente através da práxis de Jesus.

Já a abordagem teológica latino-americana levanta quatro grandes temas: a) na presença de e contra o antirreino: parte da realidade em toda a sua dureza e concretude, em que o pecado tornou-se estrutural e oprime um grande número de pessoas, para quem a vida é a sobrevivência. Essa realidade opressiva e destrutiva da vida é o antirreino, como Jon Sobrino o chama. A salvação é oferecida como sua libertação; b) os pobres como destinatários: neles Deus se revela e através deles Deus nos evangeliza, ajudando-nos a descobrir os valores de gratuidade e esperança, apesar do peso da vida. Jesus viveu oferecendo a Boa Nova do Reino aos pobres: curando-os, perdoando-os e comendo com eles; c) o histórico: o Reino anuncia o escatológico realizando-o a partir de agora, das relações constituídas no presente em todos os seus âmbitos, do social ao econômico e o político. Reino e história estão profundamente relacionados na pessoa de Jesus. Ele vive em uma cidade pobre e faz presente, com suas atividades, o amor de Deus que favorece os marginalizados e os oprimidos. “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura” (Lc 4,21), revela essa historicidade do reino e a ruptura de qualquer concepção dualista da história (sagrada-profana); d) o popular: há uma reciprocidade histórica, tanto soteriológica quanto escatológica, entre a presença do Reino de Deus e o povo de Deus. Ignacio Ellacuría propôs uma clara implicação do reino com a pertença a um povo histórico que, na América Latina, é o povo pobre e crucificado. Toda a mensagem bíblica é dirigida a sujeitos que vivem em uma cidade situada, em uma história concreta, ante a qual Deus oferece gratuitamente sua libertação contra todas as formas de opressão.

A partir desses eixos de reflexão, a cristologia latino-americana insiste na necessidade de tornar sincero nosso seguimento de Jesus. A construção do reinado de Deus hoje passa pela constituição de comunidades fraternas de filhos de Deus que assumem a causa dos pobres. Esta práxis é essencial para o modelo da Igreja como Povo de Deus, porque a Igreja realiza sua sacramentalidade anunciando o reinado de Deus na história. Neste sentido, estabelece-se uma bela analogia entre a cristologia do seguimento de Jesus e a eclesiologia do povo de Deus. Como Ellacuría explica:

Jesus era o corpo histórico de Deus, a atualidade plena de Deus entre os homens, e a Igreja deve ser o corpo histórico de Cristo, como Jesus o foi de Deus Pai. A continuação na história da vida e da missão de Jesus, que corresponde à Igreja, animada e unificada pelo Espírito de Cristo, faz dela seu corpo, sua presença visível e ativa. (1990, p.131).

E isso é feito no meio dos pobres, mas contra a pobreza. Tal cristologia passa pelo estabelecimento de relações concretas que nos ajudem a tornar-nos povo de Deus. Relações que, na América Latina, dada a situação da pobreza, exigem uma vida justa e equitativa.

6 Os destinatários: pobres e excluídos

Jesus orienta sua práxis para os marginalizados e excluídos. Diante da pergunta: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar algum outro?” Ele responde: “Voltem e anunciem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos veem, os mancos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as boas novas são pregadas aos pobres” (Mt 11,3-6). O Reino de Deus está sendo construído entre os “infelizes”, que são os pobres, os marginalizados e os que outros consideram pecadores.

Na lógica de Jesus, temos que sair e procurar a ovelha perdida para incluí-la, mesmo que tenhamos as outras noventa e nove conosco. Esta maneira de valorar não é algo pacífico, cria rupturas, desfaz as antigas maneiras de conhecer e muitas vezes cria conflitos. Por esta razão, Ele é criticado como “um comilão e amigo dos cobradores de impostos e pecadores” (Mt 11,9), mentalmente perturbado (Mc 3,21), sedutor (Mt 27,63) e até mesmo contado entre os delinquentes (Lc 22,37).

Um traço histórico muito característico de Jesus é comer com os marginalizados. A comida é uma maneira, dentro do mundo oriental, de honrar uma pessoa. Exprime um relacionamento de proximidade e acolhida. É um momento em que o perdão e a paz são dados. É o lugar do Shalom. O que é distintivo em Jesus não são os milagres, mas a coexistência fraterna com os deserdados, descartados e esquecidos. A comida simboliza uma escatologia já presente. Os pobres são incorporados à mesa da salvação, ao banquete de comunhão. Deste modo, o sectarismo é quebrado e a oferta da salvação é “universalizada” através da restauração da comunhão fraterna (GONZÁLEZ FAUS, 1984, p.88-89).

Servindo os pobres, Jesus chama aqueles que marginalizam e vivem com privilégios para que se convertam e se integrem no projeto do Reino. Este é o caso dos seguintes grupos: a) os ricos: em Lc 6,24 a riqueza desumaniza quando o rico se apega ao material como algo absoluto. Jesus chama o homem rico a ser justo e a servir os pobres (Lc 16,19). “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13; Mt 6,24). Servir Deus é servir os pobres. O homem rico não é questionado por ser rico, mas por sua atitude em relação à riqueza e em relação aos pobres; b) os escribas e fariseus: Jesus questiona o significado da lei. Chama de hipócritas (Mc 12,38) e opressores do povo (Mc 12,40) aqueles que a interpretam por acima do sujeito humano e suas condições de vida digna; c) os sacerdotes: em sua crítica ao Templo, enfrenta o sistema religioso de seu tempo, que dividia as pessoas em puras e impuras, dotando-as de privilégios e status. Jesus propõe um novo lugar de encontro com Deus, a comunidade fraterna, a mesa dos reunidos (Mt 18,19) em espírito e verdade (Jo 4,21).

7 O Deus de Jesus

A escolha de Jesus pelos pobres e excluídos é o fruto da sua fé em um Deus Pai que ama com a misericórdia de uma mãe. Em Hb 12,2 Jesus é apresentado como o iniciador e o cume da fé, como aquele que a viveu e, portanto, pode levá-la a sua consumação. A fé é o que o faz participar, em sua humanidade, da vida compassiva de Deus. Ela o faz assumir a vida como crente, discernindo tudo o que faz, reza e vive a partir do projeto do Reino. Jesus é ontologicamente Deus, mas, como ser humano, Ele precisa descobrir processualmente o que já é, porque sua divindade está incorporada em uma história e um tempo específicos. O caráter antropológico é o único meio de conhecer o ontológico. A fé de Jesus nos revela quem é Deus para Ele. Nesse sentido, Jesus teve que lidar com Deus a partir de seu próprio processo humano.

Jesus chama Deus de Abba. Ele o entende como um Pai que o ama como Filho. A experiência do Pai é a de quem se dá, enquanto a experiência do Filho é aquela de quem, gratuitamente, recebe tal amor e corresponde com sua entrega e obediência filial. Essa relação de filiação não significava, em momento algum, uma espécie de experiência intimista que o alienasse da existência dos outros. Por um lado, Jesus aprende a reconhecer no outro um irmão, e nestas relações de fraternidade ele pode viver como Filho, porque os irmãos são todos filhos do mesmo Pai bom. Por outro lado, essa experiência de filiação revela a maneira específica e única com que Deus trata Jesus, isto é, como seu Filho e, nesta relação filial, é possível entender a dimensão salvífica da fraternidade de todos os seres humanos.

No Antigo Testamento, a palavra Pai é usada 15 vezes para designar Deus, no entanto, a novidade radical não é encontrada ao chamar Deus de Pai, já que outros povos do Oriente antigo o faziam, mesmo expressando um caráter maternal em algumas expressões. “A novidade é que a eleição de Israel como primogênito se manifesta em um ato histórico: a saída do Egito” (JEREMIAS, 1989, p.20). A experiência de Israel é a experiência de um Salvador sempre transcendente, não de um Pai amoroso, por isso a palavra usada para designar a paternidade de Deus será Abí, entendendo o relacionamento com Deus a partir de ações históricas, de eventos históricos salvíficos, antes que  relações pessoais e filiais. A expressão Abí poderia significar o meu Pai, mas dentro de um sentido autoritário, solene e comunitário, e informado pela lógica da separação entre o divino, como absolutamente Santo (outro-distinto) e o humano. A palavra Abí emerge e se estende na era imperial, assumindo um caráter de submissão à autoridade paterna.

No Antigo Testamento também encontramos o uso das palavras Abbá, que significa papai, e imma, que significa mamãe. Essas palavras eram usadas na vida familiar diária. Abbá surge da linguagem infantil balbuciante (aba-abba). Portanto, poderia ser considerada uma falta de respeito dirigir-se a Deus com um termo tão próximo e familiar, já que Deus era sempre o Outro, o diferente, o Santo.

Esta experiência de Deus-Pai (Abbá) vivida por Jesus em sua fé e comunicada aos seus discípulos será assumida e transmitida pelas comunidades cristãs. Nos Evangelhos, o termo “Pai” aparece mais de 170 vezes nos lábios de Jesus. Em Marcos, 4 vezes, em Lucas, 15, em Mateus, 42 e em João, 109. Segundo Jeremias, “a nomeação de Deus como Pai começou a espalhar-se amplamente em um estágio anterior a Mateus dentro da tradição das palavras de Jesus”, mas “é nos escritos de João que o termo ho patér (o Pai), usado absolutamente, tornou-se sem dúvida o nome de Deus para os cristãos” (1989, p.41).

O uso desta palavra nos escritos do Novo Testamento encontra três razões básicas. Primeiro, é uma palavra autêntica de Jesus – na verdade, permaneceu em aramaico, a linguagem de Jesus, sem ser traduzida. Em segundo lugar, tem um sentido catequético, porque coloca a mensagem de Jesus ao alcance dos crentes. Em terceiro lugar, expressa uma referência teológica, revelando, com ela, um conteúdo e um rosto específico no atuar e proceder de Deus em relação ao ser humano, como um Pai amável e misericordioso que nos recebe como seus filhos, não por nossos méritos (lógica quantitativa), mas pelo fato gratuito de sermos seus filhos (lógica qualitativa).

Quando Jesus confia aos seus discípulos as palavras do Pai Nosso, não é apenas para ensiná-los a orar, mas está dando a eles o poder de dizer como ele, falar como ele com o seu Pai Deus. Além disso, dada a dimensão performativa da palavra no mundo hebraico, chamar Deus de Pai significa tratá-lo como Pai. Não estamos diante de um uso nominal da linguagem, mas sim realizador ou performativo. Jesus não só dá poder para chamar Deus como Pai, mas para tratá-lo e, assim, relacioná-lo com Ele como tal. A invocação não tem sentido se não for acompanhada pelo tratamento que está implícito nela.

Os evangelhos apresentam três expressões para se referir a Deus como Pai. A primeira, o Pai, representa um problema teológico, isto é, quem é Deus. A segunda, Vosso Pai, assim como a correspondente Pai Nosso, revela a condição fraternal da experiência teológica dos homens com Deus. Não se diz apenas que Deus é Pai, mas de quem é Pai. Ele é nosso Pai, de todos nós ao mesmo tempo, dos muitos, e não de alguns. Enquanto Pai denota a realidade de Deus e o que produz, a filiação (verticalidade),  Nosso, ressalta a realidade do Reino e o que a filiação produz, a fraternidade (horizontalidade). A terceira expressão, Meu Pai, representa um problema cristológico: o que Jesus revela de si mesmo quando chama Deus Abbá?

Rafael Luciani. Universidad Andres Bello. Caracas. Venezuela. Texto original em espanhol.

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Fé cristã e inculturação

Sumário

1 Itinerário conceitual

1.1 Inovações pré-conciliares

1.2 Assunção da Patrística no Vaticano II

1.3 Evangelii nuntiandi: a ruptura entre o Evangelho e a cultura

1.4 Inculturação latino-americana pós-conciliar

2 Escolhas conceituais

2.1 Culturas

2.2 Encarnação

2.3 Inculturação

3 Referências bibliográficas

A fé cristã, sua confissão em palavras e seus desdobramentos em obras, existe somente em determinadas configurações históricas e culturais. Culturas são sistemas sujeitos a câmbios históricos. Não obstante, setores fundamentalistas e, pretensamente, ortodoxos desejam desvendar os artigos da fé de seu caráter misterioso através de definições dogmáticas e procuram substituir a dimensão histórico-cultural dos artigos da fé por uma segurança atemporal e univocidade universal. No rastro do Vaticano II (1962-1965), o paradigma da “fé inculturada” assume a revelação de Deus na história e, por conseguinte, trabalha a história como lugar teológico. A revelação de Deus não acontece fora da história e a interpretação dessa revelação é igualmente histórica e culturalmente determinada.

Além desta premissa fundamental da historicidade, trata-se do paradigma da inculturação de uma transformação cultural. Ela pode ter duas finalidades diferentes: a transformação da cultura do destinatário da evangelização e a transformação da cultura do agente evangelizador. Ela pode aceitar a colonização como imposição da fé cristã em roupagem cultural forasteira ou pode reformular a roupagem cultural dos artigos da fé e as estruturas eclesiais do próprio evangelizador.

Em situações de uma longa tradição cristã, é preciso perscrutar a gênese da chamada primeira evangelização e perguntar se ela ocorreu em condições coloniais ou se ela, através do tempo, cristalizou certos momentos dessa primeira evangelização e perdeu a capacidade de ouvir a voz de Deus em novas configurações histórico-culturais. Deste modo, “inculturação” pode significar “descolonização”, onde a fé foi transmitida em condições coloniais, e “libertação” (desalienação), onde essa fé não responde mais às perguntas de seu tempo.

Por ser histórica, a própria inculturação só pode ser inconclusa. Na conquista das Américas se encontraram as tradições religiosas de muitos séculos, as tradições ameríndias e a tradição do cristianismo medieval. O reconhecimento recíproco dessas tradições exigiu o diálogo e a catequese do encontro. As razões econômicas exigiram submissão política e, em função dessa hegemonia político-econômica, imposição do credo do vencedor e colonização dos vencidos.

O paradigma da inculturação tem cabeça de Janus. Olhando para trás, e face ao cristianismo colonial, significa uma reparação histórica. Olhando para frente e ao lado, significa uma recuperação da credibilidade e das raízes fundantes do próprio cristianismo e das razões pelas quais o Verbo de Deus se fez carne: diálogo e libertação, reconhecimento na igualdade e shalom na diversidade. Ambos os olhares são precários. A voz de Deus clama sempre por uma escuta melhor e por uma prática mais relevante e radicalmente nova. Atrás do paradigma da “evangelização inculturada” está uma luta histórica, não pelo conceito, mas pela prática de uma evangelização pós-colonial e pelos artigos libertadores da fé, enraizados na vida dos povos (cf. SUESS, 1995).

1 Itinerário conceitual

O neologismo “inculturação” remete a desafios e práticas missionários, presentes na Igreja desde suas origens. Também Jesus, o missionário encarnado em sua cultura, não conseguiu plenamente transmitir os mistérios de Deus que não cabem nas culturas humanas. Procurou aproximar-se a esses mistérios não através de conceitos, mas de parábolas, que até hoje interpretamos porque não permitem desvendar plenamente seu sentido.

A partir da era constantiniana, o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano e de impérios posteriores, e a prática de expressar a fé na cultura do outro caiu progressivamente em desuso. Uma das premissas da inculturação, que é a desvinculação do poder em suas dimensões políticas, econômicas e ideológicas, raras vezes foi cumprida.

Desde as origens do cristianismo, quando descartou a conversão de Israel e se dirigiu ad gentes, duas doutrinas e práticas missionárias estavam concomitantemente presentes. Uma declara que as culturas pagãs se encontram fora da história da salvação e nada podem acrescentar ao cristianismo que se considerou qualitativamente pleno. A plenitude quantitativa – a conversão de toda a humanidade ao cristianismo – se considerou tarefa da missão e de uma metodologia missionária que pôde variar entre convite desarmado até o uso da força militar. A outra corrente admitiu as culturas pagãs como precursoras e facilitadoras para o encontro com o Evangelho.

1.1 Inovações pré-conciliares

Através de experiências pastorais confrontadas com o olhar crítico das censuras e proibições da Cúria Romana de Pio XII, um setor profético da Igreja católica procurou, na primeira metade do século XX, responder à demanda histórica da descolonização e ao desafio de uma fé muito distante da realidade social. Esse setor procurou aproximar o cristianismo à realidade concreta dos povos e classes sociais. A presença das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld (1858-1916) junto ao povo Tapirapé, por exemplo, desde 1952 constituiu um referencial de inspiração para a ruptura com o trabalho missionário colonial no Brasil. Na mesma perspectiva vale lembrar a lucidez da opção pelos operários, de um Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária (JOC) e inspirador da Ação Católica, em 1925, com seu método da “revisão de vida”. Posteriormente, toda a Pastoral da América Latina e os documentos eclesiais se beneficiaram do método da JOC e do seu “ver-julgar-agir”. Também a sobriedade vivencial e pastoral do padre Antoine Chevrier (1826-1879) e dos seus seguidores no movimento do Prado (Lyon), o movimento dos padres operários e da Mission de France, o despojamento de um Abbé Pierre, fundador do movimento dos maltrapilhos-construtores de Emaús, já apontavam para a opção pelos pobres e pelos que mais sofrem.

Precursores pré-conciliares da inculturação havia também nos movimentos litúrgico e bíblico que abriram horizontes para a celebração da vida e a leitura da palavra de Deus histórica e vivencialmente contextualizada. Seguindo a reflexão teológica de um Melchior Cano, teólogo do Concílio Tridentino (1545-1563), que colocou a história como lugar teológico na pauta teológica de seu tempo, a hermenêutica da realidade como lugar teológico – a teologia das realidades terrestres de um padre Chenu, por exemplo – contribuiu para uma nova proximidade teológica e pastoral do mundo moderno.

No seu conjunto, todas essas práticas de inserção que precederam o Vaticano II, e a reflexão teológica que as acompanhou, foram consideradas marginais, suspeitas e, às vezes, abruptamente proibidas, como, por exemplo, a experiência dos padres operários. A maioria dos teólogos relevantes da época – Henri de Lubac, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu e Karl Rahner, entre outros – chegaram arrastados na corrente da proibição à porta do Concílio.

1.2 Assunção da Patrística no Vaticano II

O Vaticano II e, em seguida, o magistério universal da Igreja e o magistério latino-americano das Conferências Episcopais de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), resgataram alguns tópicos teológicos dos primeiros séculos do cristianismo, de Justino (…165), Irineu (…202), Tertuliano (…220) e Eusébio de Cesaréia (…339), por exemplo, que permitiram configurar o novo conceito da evangelização inculturada (cf. SUESS, 1986; 1994 p.41 et seq.).

Os padres conciliares, em sua maioria, admitiram encontrar nas culturas pagãs “lampejos da Verdade” (Nostra aetate, n.2) e “sementes do Verbo” (Ad gentes, n.11). Estes “lampejos” e “sementes” tampouco acrescentam algo à dimensão macroecumênica do cristianismo, porque lançam seus vestígios em outras religiões e culturas. A Gaudium et spes (n.57), com a sua recepção positiva do mundo, afirma, referindo-se a Irineu, que o Verbo de Deus, antes de encarnar-se para salvar e recapitular em si todas as coisas, já estava no mundo como “luz verdadeira que ilumina todo o homem” (Jo 1,9s).

Nas discussões em torno da “Constituição Pastoral Gaudium et spes” do Vaticano II (GS n.53-62), observa-se na Igreja católica uma preocupação coletiva com a relação entre fé e cultura e com a proximidade e a distância entre elas. O Concílio nomeou a busca de uma maior proximidade entre ambas com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento” e “adaptação” (SC n.37s; GS n.91), “autonomia da realidade terrestre” (GS n.36; 56) e da cultura, “sinais dos tempos” (GS n.4a; 11) e “diálogo” (ChD n.13b; UR n.4; ES, n.34-68), “encarnação” e “solidariedade” (GS n.32).

1.3 Evangelii nuntiandi: a ruptura entre o Evangelho e a cultura

As articulações entre fé, cultura e evangelho repercutiram dez anos depois do Vaticano II na “Exortação apostólica Evangelii nuntiandi” (1975), que resume as discussões do “Sínodo sobre a evangelização no mundo contemporâneo” de 1974. O lamento de Paulo VI chamou a atenção da Igreja: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas” (EN n.20). No referido Sínodo, os bispos da África divulgaram uma declaração onde afirmam que a aculturação religiosa produziu “um cristianismo insuficientemente encarnado e vivido, muitas vezes, como desde fora, sem vinculação real com os valores autênticos das religiões tradicionais” (SUESS, 1990, p.404).

Costurar a ruptura entre cultura e Evangelho e romper com uma evangelização “desde fora” é a intenção profunda da inculturação. O Evangelho não tem cultura própria. Por isso pode ir ao encontro de todas as culturas. A inculturação visa a uma nova proximidade entre a mensagem e doutrina da Igreja e a realidade em que vive a família humana.

A EN opera, ainda, com o conceito da “Evangelização das culturas” (EN n.20) que, embora sendo incorreto, prepara os conceitos posteriores da “assunção das culturas” (DP n.400) e da “inculturação” (DSD n.13). A “evangelização das culturas”, que tem como foco a mudança da cultura do outro enquanto não está de acordo com o Evangelho e que se serve apenas de “elementos da cultura” (EN n.20), não leva suficientemente em conta a cultura na qual o próprio Evangelho está sendo transmitido. Por apontar para uma “cultura pura” se esquece da historicidade das culturas.

1.4 Inculturação latino-americana pós-conciliar

No tempo pós-conciliar, a Igreja latino-americana assumiu intenções profundas do Vaticano II, cunhou expressões próprias e sacudiu as colunas de uma teologia dedutiva cristalizada. A teologia conciliar foi indutiva. A leitura latino-americana das palavras-chave dessa teologia indutiva, que constrói seu argumento a partir da realidade concreta (cf. GS n.62,2), forjou a Teologia da Libertação. Seu dicionário incorporou novos verbetes: “libertação” e “opção pelos pobres” (Medellín, 1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres (Aparecida, 2007). A Evangelii gaudium (2013), do Papa Francisco, com suas palavras-chave “diálogo” (EG n.142), “encontro” (EG n.239) e “Igreja em saída” (EG n.20 et seq.), oferece novos verbetes para esse dicionário.

Logo depois de Medellín, que enfatizava a questão da libertação dos pobres, alguns setores do magistério pensavam que a “questão da cultura” poderia se prestar como substitutivo da preocupação com a “questão da classe” e seu anexo da “opção pelos pobres”. No decorrer do tempo, a pretendida substituição da causa dos pobres pela causa dos outros não ocorreu, porque os pobres vivem numa multiplicidade de culturas, e os outros pertencem a determinada classe social. Também o outro-rico não deve ser colonizado no processo de sua evangelização.

O Documento de Puebla (DP, 1979), que destaca com certo peso a questão da cultura, nos fala da encarnação nos povos que acolheram o Evangelho e enfatiza a assunção de suas culturas, revalidando “o princípio da encarnação formulado por Santo Irineu: “O que não é assumido não é redimido” (DP 400).

Desde as Conclusões de Santo Domingo (DSD, 1992), o magistério latino-americano acrescentou, explicitamente, ao paradigma da libertação o paradigma da inculturação. A inculturação da fé e de todas as atividades eclesiais que emergem dessa fé (pastoral, liturgia, teologia, kerigma, obras sociais), são “imperativos do seguimento de Jesus” (DSD n.13) que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação.

O paradigma da inculturação, na síntese do DAp, foi novamente proposto como caminho para expressar cada vez melhor a catolicidade. Palavras como “assumir” (DAp n.280b, 330, 348), “contexto” (DAp n.276, 331), “inserir” (DAp n.329, 517h), e “presença” (DAp n.215, 474b) pertencem ao campo semântico da inculturação: “Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural” (DAp n.479).

Depois desse “itinerário conceitual” e da compreensão normativa da inculturação como imperativo do seguimento de Jesus, precisamos delimitar alguns conceitos que configuram o campo semântico da inculturação e verificar seu uso correto ou incorreto na transmissão da fé.

2 Escolhas conceituais

No encontro entre fé e cultura, os evangelizadores procuram traduzir a mensagem do Evangelho nas línguas e linguagens, nos mitos e ritos, nos símbolos e sinais, nos costumes e no etos de todos os povos e grupos sociais. A relevância do Evangelho para o mundo de hoje – e este mundo pode ser um mundo secularizado e não-confessional, como pode ser um mundo tradicional e religioso – depende da capacidade de traduzir contribuições próprias do cristianismo em linguagens particulares e universais, privadas e públicas, religiosas e secularizadas, sem perder seu referencial e suas raízes. Sempre se trata da tarefa axial da Igreja, “enviada por Cristo para manifestar e comunicar a caridade de Deus a todos os homens e mulheres e povos” (Ad gentes, n.10). Nessa tarefa, os conceitos são instrumentos historicamente construídos, muletas de um coxo que procura aprender a caminhar.

2.1 Culturas

A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cunhou o conceito “cultura” para descrever a experiência humana. Originalmente, a noção de cultura era aplicada no singular, quase idêntica ao conceito de “civilização”. “A cultura” era a cultura do observador exógeno, do antropólogo, missionário ou viajante, que serviu como ponto de chegada.

Hoje, o conceito “culturas”, quase sempre usado no plural, nos permite observar a diversidade das experiências humanas, sem recorrer a esquemas meramente evolucionistas (primitivo x civilizado), racistas (inferior x superior) ou totalizantes (universalismo x relativismo). Não existe um ponto de chegada de uma cultura-civilização que possa servir para a constituição da identidade de todos os povos. Há, concomitantemente, diferentes experiências humanas, uma multiplicidade de culturas, todas elas válidas e precárias (cf. GS n.372 et seq.). A presença do Evangelho nas culturas é sempre precária, porque os mistérios de Deus não cabem nos vasos culturais, que são humanos. Também a “evangelização das culturas” é uma evangelização revestida com uma determinada cultura imperfeita que se aproxima de uma cultura que pretende aperfeiçoar e, parcialmente, desmontar.

A observação cultural lida sempre com uma dimensão sistêmica, com a sincronia estática, comparável à fotografia de um evento, e uma dimensão histórica, com a diacronia dinâmica que é como a filmagem do mesmo evento. Portanto, as culturas são construções históricas em processo, heranças sociais apreendidas que desafiam cada geração a discernir entre a conveniência de “assunção” e a necessidade de “transformação”. A vida humana é sempre cultural e socialmente vivida (cf. SUESS, 1997, p.22 e seg.).

No contexto da inculturação da fé, compreendemos as culturas como projetos históricos de vida, codificados nas diferentes esferas sociais: nos campos sociopolítico, econômico e ideológico. As culturas, enquanto projetos de vida, sempre lutam contra a morte. Por isso, não faz sentido falar em “cultura da vida” nem em “cultura da morte”. Se “cultura da vida” é o óbvio, a “cultura da morte” é o absurdo. Cada grupo social se junta para viver e não para se matar reciprocamente.

A afirmação de que nenhuma cultura é perfeita quer apenas enfatizar sua historicidade. Por causa dessa relatividade histórica, a cultura de um povo nunca é normativa para outro povo. Para os sujeitos que pertencem a uma determinada cultura, ela é, contudo, internamente normativa. Nenhuma cultura, porém, pode reivindicar sua normatividade frente a outras culturas. O equilíbrio entre a estima do próprio e o reconhecimento do alheio, às vezes, é difícil. Todos os grupos sociais são tentados pelo ufanismo, etnocentrismo e racismo (SUESS, 1994).

2.2 Encarnação

O paradigma da inculturação se inspira no mistério da encarnação do Verbo. Contudo, há uma diferença fundamental entre inculturação e encarnação. Trata-se apenas, com as palavras da Lumen gentium, de “uma não medíocre analogia” (LG n.8). Jesus, segundo sua natureza humana, nasceu em Belém e foi criado em Nazaré, onde se enculturou, quer dizer, onde aprendeu a sua própria cultura. Até aqui não houve inculturação numa cultura estranha. Desde criança, o Nazareno aprendeu a cultura dos nazarenos.

Em que consiste essa “não medíocre analogia” entre encarnação e inculturação? Como pessoa divina, Jesus não era apenas um nazareno; era também filho de Deus, preexistente desde antes da criação do mundo. Podemos, portanto, analogicamente, dizer que Ele veio de sua “cultura” ou “pátria“ celeste para nascer em uma determinada cultura humana e se enculturou como criança e inculturou, como Deus, na cultura de Israel. Como ser humano aprendeu a cultura de seu povo e como Deus Ele trabalhou com o culturalmente disponível para falar ao seu povo dessa outra pátria, de onde o Pai o enviou (SUESS, 1998 p.127 et. seq.).

A encarnação, portanto, tem algo específico e não pode ser sem mais nem menos identificada com a inculturação. Precisamos sempre distinguir esses dois momentos: Deus despojou-se – São Paulo fala da kenose – de sua divindade e entrou na cultura de Israel (inculturação). Mas esse Deus também nasceu como pessoa humana e se enculturou aprendendo língua, religião e costumes com os nazarenos. A compreensão da encarnação como despojamento e proximidade, despojamento da própria cultura para poder assumir a cultura do outro, preparou o paradigma da inculturação. A analogia entre encarnação e presença cristã nas múltiplas culturas do mundo fez a reflexão missiológica cunhar o paradigma da inculturação (cf. Lumen gentium n.8; Santo Domingo n.30 e 243).

2.3 Inculturação

A inculturação é precedida pelo aprendizado da própria cultura em casa, na rua e na escola. A essa apropriação cultural denominamos enculturação, endoculturação ou socialização cultural. Nascemos “naturais” e morremos com os aprendizados culturais acrescentados a nossa “naturalidade”.

Ao lado desse primeiro aprendizado da própria cultura, chamado “enculturação”, existem outras possibilidades de aproximação cultural: a aculturação e a inculturação. A aculturação é, teoricamente, a aproximação de duas culturas diferentes. Cada uma aprende algo da cultura do outro e assim nasce uma nova cultura. Na realidade, a aculturação acontece em condições de assimetria social, devido à hegemonia política de uma das duas culturas sobre a outra. Nessa situação, a cultura politicamente dominante se impõe aos demais fazendo concessões periféricas ou folclóricas em campos secundários (comida, roupa, dança, enfeites). A cultura “subalterna” se descaracteriza progressivamente. A aculturação é quase sempre uma forma de colonização.

A inculturação é o intento de assumir a cultura de um outro grupo social, a fim de comunicar, reviver e assumir o Evangelho com expressões, linguagens, e em contextos históricos e sociais totalmente diferentes.

Com a inculturação, a Igreja se torna “um sinal mais transparente” e “um instrumento mais apto” (RMi n.52) para anunciar o Evangelho, não como uma alternativa às culturas, mas como uma das suas realizações possíveis. Na inculturação se entrelaçam meta e método, o universal da salvação com o particular da presença. O universal “tanto mais promove e exprime a unidade do gênero humano quanto melhor respeita as particularidades das diversas culturas” (GS n.54). A meta da inculturação é a libertação, e o caminho da libertação é a inculturação (cf. DSD n.243). A inculturação visa a descolonização de certas práticas históricas na comunicação do Evangelho e, ao mesmo tempo, uma proximidade respeitosa em face da alteridade, crítica frente ao pecado e solidária no sofrimento. A nossa aproximação – presença e participação – encontra a sua matriz na proximidade de Deus. Ela só vale a pena se nossa vida é marcada pelo Deus-conosco, sua abertura, gratuidade, liberdade e solidariedade. Na inculturação não se trata de uma identificação do Evangelho com uma determinada cultura, porque a Evangelização inculturada visa à libertação interminável de cada projeto de vida (cultura) “das estruturas de pecado” (DSD n.243) e “dos poderes da morte” (DSD n.13). A inculturação, enquanto inserção na cultura do outro, é um aprendizado sempre precário que tem como alvo a revisão da evangelização colonial e a correção das estruturas de pecado.

A inculturação que passou pela peneira da opção pelos pobres visa a assunção dos últimos como próximos e primeiros. Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. Se o ponto de partida da inculturação é a perseverança no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão como encontro, diálogo da fé e enredo de esperança.

Paulo Suess, ITESP. Texto original em português

3 Referências bibliográficas

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PAULO VI. A Evangelização no mundo contemporâneo (Evangelli Nuntiandi). São Paulo: Loyola, 1976.

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TAVARES, S. S. (org.) Inculturação da fé. Petrópolis: Vozes, 2001.

Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA)

Sumário

1 Introdução

2 A necessidade pastoral atual

3 A estrutura

4 O conteúdo

4.1 A primeira etapa da iniciação

4.1.1 O pré-catecumenato

4.2 A segunda etapa da iniciação

4.3 A terceira etapa da iniciação

4.3.2 Os sacramentos (àSacramentos, centro da liturgia)

4.3.2 A mistagogia

4.3.3 Orientações e adaptações

5 Conclusão

Referências

1 Introdução

Foi a pedido do Concílio Vaticano II (SC, n.64; CD, n.14; AG, n.14) que se restabeleceu o catecumenato de adultos, culminando, após a consideração das experiências de catecumenato em diversos países, na publicação do RICA, em 1972. O próprio desejo conciliar de restaurar o catecumenato expressa a consciência de que a iniciação cristã (à INICIAÇÃO CRISTÃ) de então havia perdido, ao menos em parte, seu sentido originário.

De fato, a iniciação cristã compreendia, até o século V, as seguintes etapas: 1) O anúncio de Jesus Cristo para suscitar a fé e a conversão; 2) o catecumenato, com duração aproximada de três anos; 3) inscrição dos eleitos e protocatequese (homilia) pelo bispo, durante a quaresma; 4) catequese mistagógica, durante o tempo pascal. (CAVALLOTTO, 1996, p.8-11).

A partir do século V, com a conversão massiva de cristãos, as exigências pastorais acabaram por simplificar drasticamente a iniciação cristã. Aprofundou-se paulatinamente a separação entre liturgia e catequese. Perdeu-se a unidade dos três sacramentos da iniciação: batismo, crisma e eucaristia (ANCILLI, 1985, p.200). Por fim, até o Concílio Vaticano II a catequese ficou praticamente reduzida à transmissão de verdades conceituais, em detrimento da linguagem litúrgico-simbólica da patrística; e os sacramentos passaram a ser compreendidos a partir de categorias filosóficas tais como hilemorfismo, causalidade, substância etc. (CHAUVET, 1988, p.87). É bem verdade que nesse longo período não faltaram tentativas isoladas de restauração da iniciação cristã, mas não alcançaram grande êxito.

Além disso, por detrás do restabelecimento do catecumenato, encontra-se não uma mera volta ao passado da iniciação cristã, mas a recuperação de um dado fundamental daquele período, a centralidade do mistério pascal de Cristo. Obviamente que essa centralidade do mistério esteve sempre “suposta”, mas nem sempre “significada”. Essa sutil distinção entre “supor” (supponieren) e “significar” (bezeichnen), proposta por K. Rahner (RAHNER, 1967, p.145-7),  nos ajuda a perceber que, de tanto estar implícita, a centralidade do mistério pascal de Cristo acabou por ficar em segundo plano, se não até esquecida, como insinua o próprio Concílio (SC, n.21).

Ora, é somente a partir do encontro pessoal com o mistério de Cristo que se inicia o processo da conversão que culminará na adesão livre à sua pessoa e missão, como explicita a Introdução ao Rito da Iniciação Cristã de Adultos, n.1:

Este rito de iniciação cristã é destinado a adultos que, iluminados pelo Espírito Santo, ouviram o anúncio do mistério de Cristo e, conscientes e livres, procuram o Deus vivo e encetam o caminho da fé e da conversão. Por meio dele, serão fortalecidos espiritualmente e preparados para uma frutuosa recepção dos sacramentos no tempo oportuno.

 Nessa breve introdução descortina-se todo um horizonte de “volta às fontes”, como desejavam os padres conciliares. A menção à iluminação pelo Espírito refere-se ao contexto profundamente mistagógico da iniciação cristã dos primeiros séculos, caracterizada, entre outras coisas, por uma pneumatologia e por uma cristologia mais explicitamente desenvolvidas. A expressão “ouviram o anúncio” refere-se à evangelização ou anúncio querigmático, que antecedia a iniciação cristã e a ela conduzia. Logo, a primazia do processo de atração e conversão à fé cristã passava pelo anúncio do kerygma e não tanto pelo anúncio de verdades abstratas. Por fim, o indicador de uma verdadeira iniciação à fé cristã se dava não tanto pelo domínio cognitivo da doutrina, mas, sobretudo, pela conversão ética, testemunhada particularmente pelos que mais proximamente acompanhavam o catecúmeno.

O RICA, portanto, não é mera coletânea de rubricas, gestos e palavras normativamente estabelecidas. É, antes de tudo, um itinerário que nasceu no seio das primeiras comunidades cristãs, visando conduzir não apenas aquele que deseja aderir à fé cristã, mas, juntamente com ele, toda a comunidade dos fiéis ao mergulho no mistério pascal de Cristo. Trata-se do caráter eminentemente soteriológico da iniciação cristã. Por isso o ritual não se destina tão somente ao catecúmeno, mas principalmente à comunidade cristã (RICA, Observações preliminares gerais, n.7) que uma e outra vez “volta às fontes” de sua própria razão de existir, porque ela é “ecclesia semper initianda” (OÑATIBIA, 2000, p.6). Daí a importância da unidade entre catequese, iniciação cristã e liturgia (DGC, n.66). Enfim, a iniciação cristã é algo que diz respeito a toda a comunidade cristã (RICA, n.41).

2 A necessidade pastoral atual

Considerando-se o fato inegável de que uma porção significativa dos batizados católicos não teve propriamente uma iniciação cristã; que os países de missão e até os países que outrora foram predominantemente católicos e que agora se deparam com um significativo contingente de adultos que se convertem ao cristianismo católico; que ainda persiste, em nossos dias, uma compreensão débil da vida cristã como frequência à liturgia e defesa de algumas verdades de fé, sem a consequente implicação ética; que a própria liturgia é muitas vezes desfigurada pelo ritualismo e rubricismo; e que ainda permanece certo distanciamento entre catequese, iniciação cristã e liturgia, compreende-se, ao menos em parte, por qual razão ainda urge que a comunidade cristã “volte às fontes”.

Se por um lado essa “volta às fontes”, alentada pelos padres conciliares, pode ser compreendida como um apelo para retornar-se à tradição mais antiga da fé, por outro, pode-se também compreendê-la, de modo ainda mais radical, como volta às fontes dos sacramentos da iniciação cristã e, por conseguinte, à fonte batismal. É aqui que o RICA oferece para toda a comunidade cristã uma “rica” possibilidade de renovação, na medida em que sua progressiva implementação pode conduzir todos os fiéis a reencontrarem não apenas as razões de sua fé, mas o próprio “autor e consumador da fé” (Hb 12,2).

3 A estrutura

Quanto à estrutura, pode-se notar que cada conferência episcopal fez pequenas adaptações, em função das necessidades pastorais locais.

Em linhas gerais a estrutura básica do RICA é a seguinte:

  • Observações gerais preliminares sobre a iniciação cristã
  • Introdução ao Rito da iniciação cristã de adultos
  • O catecumenato e suas etapas
  • 1ª etapa:
  • Entrada: acolhida, apresentação, exorcismos, entrega dos Evangelhos;
  • Catecumenato: exorcismos, bênçãos, unção, entrega do Símbolo, entrega da Oração do Senhor;
  • 2ª etapa: Tempo da purificação e iluminação:
  • Eleição
  • Tríplice escrutínio
  • 3ª etapa: Sacramentos da iniciação cristã
  • Batismo, confirmação e eucaristia
  • Mistagogia
  • Ritos especiais: ritos simplificados/abreviados, para adultos já batizados, para crianças, para acolhida dos batizados válidos em outras tradições cristãs

Na própria estrutura do RICA já aparece claramente o resgate da gradualidade do processo de introdução ao mistério da fé cristã. Além disso, o RICA demarca claramente a necessidade de um rito distinto para o batismo de adultos e outro para o de crianças, realidade que pastoralmente ainda não havia sido solucionada em todos os lugares.

No que tange à estrutura e ao conteúdo, o RICA se inspira basicamente na Tradição Apostólica de Hipólito (séc. III) e no Sacramentário Gelasiano (séc. V).

4 O conteúdo

As Observações preliminares gerais que abrem o RICA se destinam basicamente a apresentar uma profunda teologia do batismo, instruções práticas sobre os papéis de cada um com relação ao rito e ao batizado, as exigências básicas para a realização do batismo e possíveis adaptações. Especialmente o primeiro parágrafo é de uma capacidade de síntese teológica difícil de superar:

Os seres humanos, libertos do poder das trevas, graças aos sacramentos da iniciação cristã, mortos com Cristo, com ele sepultados e ressuscitados, recebem o Espírito de filhos adotivos e celebram com todo o povo de Deus o memorial da morte e da ressurreição do Senhor.

A longa Introdução (RICA, n.1-67) mescla orientações práticas, teologia da iniciação e uma verdadeira catequese mistagógica. Destacam-se o acento no papel do testemunho e da participação da comunidade cristã para a iniciação dos catecúmenos; as etapas e “tempos de informação e amadurecimento”; a recomendação de que determinadas etapas aconteçam concomitantemente ao ciclo pascal (RICA, n.1-8).

Além das observações prévias e da introdução geral, o RICA apresenta antes de cada rito uma série de novas orientações e observações. Todas elas serão analisadas conjuntamente aqui segundo a etapa da iniciação a que se referem.

Para a Liturgia da Palavra, o RICA oferece uma abundante e criteriosa seleção de textos bíblicos mais adequados ao contexto teológico de cada rito, além de acolher também algumas sugestões do Elenco das Leituras da Missa (RICA, n.92).

4.1 A primeira etapa da iniciação

4.1.1 O pré-catecumenato

Merece especial menção a importância dada na Introdução à evangelização ou pré-catecumenato. O texto insiste no anúncio querigmático como o caminho pelo qual o Espírito conduz a pessoa “simpatizante” (RICA, n.12) à experiência da fé (RICA, n.9-10). É somente após essa experiência inicial de ser alcançada pela graça que a pessoa é acolhida ao catecumenato. Essa preocupação com a evangelização prévia é bastante consequente, na medida em que, ao ignorá-la, corre-se o risco de reduzir novamente a iniciação cristã à apropriação de verdades doutrinais e manter o catecúmeno à margem da experiência salvífica do encontro com o mistério de Cristo, especialmente naqueles casos em que as motivações para a conversão são espúrias.

4.1.2 O catecumenato

A fim de evitar equívocos sobre o significado da etapa do pré-catecumenato, o RICA orienta para que se observe no candidato ao catecumenato os sinais ou as seguintes condições: o “início de conversão, de fé e de senso eclesial” (RICA, n.68), o “desejo de mudar de vida e entrar em relação pessoal com Deus em Cristo”, o “costume de rezar”, e a “experiência da comunidade e do espírito dos cristãos” (RICA, n.15). Só então o candidato poderia ser acolhido ao catecumenato.

Os ritos relativos ao catecumenato são divididos em dois momentos, o da celebração de entrada no catecumenato e os ritos relativos ao tempo do catecumenato propriamente dito. É importante notar que o catecumenato pode durar vários anos (RICA, n.98), ao longo dos quais os vários ritos propostos para o catecumenato são distribuídos. Especial lugar cabe às celebrações da Palavra de Deus que têm por finalidade: gravar nos corações dos catecúmenos o ensinamento recebido quanto aos mistérios de Cristo e a maneira de viver que daí decorre, levá-los a saborear a oração e introduzi-los na liturgia da comunidade (RICA, n.106).

A partir do rito de entrada no catecumenato, os catecúmenos “já fazem parte da família de Cristo” (RICA, n.18). Daí a importância da ativa participação de toda a comunidade (RICA, n.70). Essa celebração de acolhida ao catecumenato compreende apenas a recepção dos candidatos, que fazem uma primeira adesão a Cristo, a assinalação da fronte e dos sentidos, a Liturgia da Palavra e a despedida.

Durante o período do catecumenato propriamente dito, vários meios são oferecidos ao catecúmeno para sua maturação na fé: 1) a catequese, marcada pela liturgia, pelo conhecimento dos dogmas e preceitos e, fundamentalmente, pela “íntima percepção do mistério da salvação”; 2) a familiaridade com as práticas da vida cristã: testemunho, oração, caridade, progressiva conversão; 3) ritos litúrgicos e celebrações da Palavra para os catecúmenos; 4) a cooperação, através do testemunho e da profissão de fé, com a missão da evangelização; 5) os exorcismos, bênçãos e unções; 6) a escolha de padrinhos (RICA, n.19-20; 98-105).

As entregas do Símbolo e da Oração do Senhor podem acontecer durante o catecumenato ou serem adiadas para a segunda etapa, conforme se julgar mais oportuno (RICA, n.125).

4.2 A segunda etapa da iniciação

Segundo a Introdução, o tempo da purificação e iluminação, que normalmente deveria ocorrer durante a quaresma, se consagra a “preparar mais intensamente o espírito e o coração” (RICA, n.22) dos catecúmenos.

a) Eleição ou inscrição do nome

É nessa etapa que são “eleitos” aqueles catecúmenos que já alcançaram a maturidade suficiente da fé e da caridade e desejam participar dos sacramentos da iniciação cristã. A partir desse momento, esses catecúmenos passam a ser chamados “eleitos”, “copetentes” ou “iluminados”, referindo-se à luz da fé (RICA, n.22-24). A eleição marca o fim do catecumenato propriamente dito e só deve acontecer após a aprovação do catecúmeno por aqueles que o acompanharam de perto, entre eles, os padrinhos, que, a partir de agora, assumem diante da comunidade sua missão (RICA, n.133-139).

A celebração da eleição, que deveria ocorrer no primeiro domingo da Quaresma, compreende a Liturgia da Palavra, a apresentação dos candidatos, o exame e a petição dos candidatos, as orações e a despedida (RICA, n.140-150).

b)Tríplice escrutínio

A “purificação” própria desta etapa consiste em acentuar mais a vida interior que a catequese, nos exercícios do exame de consciência e da penitência, culminando nos escrutínios realizados aos domingos e que levam os eleitos a uma maior libertação do pecado e do mal. Já a “iluminação” refere-se especialmente à fé, ritualizada pela entrega do Símbolo, e a acolhida do espírito de filiação que permite chamar Deus de Pai e que é ritualizada pela entrega da Oração do Senhor (RICA, n.25-26).

O termo “escrutínio” significa, etimologicamente, o ato de examinar rigorosamente. No contexto do rito, o exame é feito pela própria Trindade, que nas preces pelos eleitos e nos exorcismos é invocada para sondar o eleito, purificá-lo, orientá-lo em seus propósitos, despertar-lhe a consciência do pecado e estimular-lhe a vontade e os desejos (RICA, n. 154-164). Por fim, os três escrutínios, realizados durante o 3º, 4º e 5º domingos da Quaresma, são tematizados em função dos respectivos Evangelhos: samaritana (água viva), cego de nascença (luz) e a ressurreição de Lázaro (ressurreição e vida).

A etapa da purificação e iluminação se conclui com uma celebração prevista para o Sábado Santo, antes da Vigília Pascal. Trata-se dos ritos da recitação do Símbolo, do Éfeta (Ouvir) e da escolha do nome cristão, se for o caso. (RICA, n.194-203)

4.3 A terceira etapa da iniciação

4.3.1 Os sacramentos (Sacramentos, centro da liturgia)

Esta etapa compreende os sacramentos do batismo, confirmação e eucaristia e conclui-se com a mistagogia. O RICA, embora não se estenda muito sobre a teologia dos sacramentos, apresenta de maneira sintética o sentido teológico de cada um dos três sacramentos. Sobre o batismo, destaca o seu caráter trinitário, a aliança que se realiza com Cristo, a participação em seu mistério pascal e em sua filiação e a consequente agregação ao povo de Deus, a importância do símbolo da água, dos ritos da renúncia e da profissão de fé (RICA, n.28-33, 210-211). Sobre a confirmação, acentua-se a efusão do Espírito como em Pentecostes e o nexo entre os sacramentos da iniciação (RICA, n.34-35, 229-231). E sobre a Eucaristia, destaca-se a elevação dos neófitos à dignidade do sacerdócio real, participando da “ação sacrifical” e recitando a Oração do Senhor, e, por fim, o sentido da comunhão do Corpo e Sangue do Senhor como confirmação dos dons recebidos e antegozo dos eternos (RICA, n.36).

Os três sacramentos da iniciação cristã são realizados de uma só vez, preferencialmente durante a Vigília Pascal. O RICA destaca a importância de se manter o rito da bênção da água, mesmo que os sacramentos não ocorram na Vigília Pascal, dada a função mistagógica dessa bênção.

4.3.2 A mistagogia

Quanto ao tempo da mistagogia, ele é definido como um tempo de “conhecimento mais completo e frutuoso dos ‘mistérios’ através das novas explanações e sobretudo da experiência dos sacramentos recebidos” (RICA, n.38).  O que se deseja é que os neófitos adquiram um “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” e estabeleçam um relacionamento mais proveitoso e estreito com os fiéis da comunidade (RICA, n.235). À mistagogia destinam-se especialmente as “missas pelos neófitos” ou as missas dos domingos de Páscoa (RICA, n.236).

O término do tempo da mistagogia coincide com o término do tempo Pascal.

4.3.3 Orientações e adaptações

A Introdução conclui-se com orientações práticas e exortações sobre a participação da comunidade em todo o processo da iniciação cristã, a começar pela evangelização ou pré-catecumenato. Estende-se sobre a função e importância do introdutor, do padrinho, do bispo local, dos presbíteros, dos diáconos e dos catequistas. E conclui com orientações sobre as adaptações possíveis do ritual da iniciação, conforme as exigências pastorais de cada lugar; e sobre os tempos mais adequados para cada etapa (RICA, n.41-67).

O RICA oferece uma série de ritos adaptados às diversas circunstâncias: 1) simplificado para os casos em que o candidato não pode percorrer todas as etapas da iniciação (RICA, n.240-277); 2) abreviado para adultos em perigo de morte (RICA, n.278-294); 3) para adultos batizados na infância e que não receberam a devida catequese (RICA, n.295-305); 4) para iniciação de crianças em idade de catequese e que não foram batizadas (RICA, n.306-369). O RICA conclui com um apêndice, em que se apresenta o rito para a admissão na plena comunhão da Igreja Católica das pessoas já batizadas validamente.

5 Conclusão

Considerando que o Concílio Ecumênico Vaticano II estava interessado sobretudo em atender às necessidades pastorais mais prementes da Igreja, em especial um diálogo mais profundo com o mundo, cabe destacar as principais contribuições possibilitadas pela restauração do catecumenato como proposto pelo RICA:

1) O resgate da iniciação cristã em seu vínculo com a liturgia, a catequese e a vida comunitária. A comunidade cristã é, em sua totalidade, aquela que, pela graça divina, conduz o candidato à participação progressiva no mistério de Deus. E enquanto faz a iniciação, a comunidade cristã é ela mesma reintroduzida no mesmo processo de volta às fontes da fé.

2) A recuperação da mistagogia, tão utilizada na Patrística. O termo mistagogia, utilizado pelos Padres, possuía inúmeros significados: a celebração dos sacramentos da iniciação cristã, a catequese sobre os sacramentos; uma teologia que se nutre da experiência litúrgica; o último período do catecumenato; o caminho de iniciação ao mistério de Deus etc. (FEDERICI, 1985, p.163-245). A mistagogia se apresenta, hoje, como muito propícia para o diálogo com o contexto pós-moderno, na medida em que ultrapassa aquele discurso excessivamente gnosiológico e racional da Idade Média tardia, acolhendo a riqueza do símbolo, da metáfora, da expressão e dos sentidos corporais para atrair, apresentar e introduzir os mistérios da fé cristã.

3) O acento na verificação ética do processo iniciatório como critério para a recepção dos sacramentos da iniciação cristã; ao mesmo tempo em que se apresenta como um desafio para a sua implementação, valoriza a centralidade do seguimento de Jesus como o verdadeiro sinal da identidade cristã. Isso significa que não é tão somente a ortodoxia, mas sobretudo a ortopraxia que identifica o verdadeiro discípulo de Cristo, o que nada mais é do que a reafirmação do critério joanino: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, e odeia seu irmão, é um mentiroso” (1Jo 4,20). No entanto, a ética não é apenas o critério de entrada à comunidade dos cristãos. O próprio RICA, e por extensão toda liturgia cristã, visa a configurar a assembleia reunida a Cristo, levando-a a pensar, sentir e agir como Cristo. Trata-se, portanto, da recuperação do conhecido axioma teológico: lex orandi, lex credendi, lex agendi (a norma do orar é a norma do crer e do agir). Daí a insistência do RICA no tema da conversão ao longo dos vários ritos, utilizando-se com frequência, especialmente no caso do batismo, das antíteses “vida-morte”, “luz-trevas”, “velho-novo” etc. Eloquente a esse respeito é o rito de entrada no catecumenato, ao sugerir a seguinte alocução àquele que preside a celebração:

A vida eterna consiste em conhecermos o verdadeiro Deus e Jesus Cristo, que ele enviou. Ressuscitando dos mortos, Jesus foi constituído, por Deus, Senhor da vida e de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Se vocês querem ser discípulos seus e membros da Igreja, é preciso que vocês sejam instruídos em toda a verdade revelada por ele; que aprendam a ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo e procurem viver segundo os preceitos do Evangelho; e, portanto, que vocês amem o Senhor Deus e o próximo como Cristo nos mandou fazer, dando-nos o exemplo. (RICA, n.76)

4) A reiterada referência à centralidade do mistério pascal de Cristo. A implementação do RICA pode efetivamente ser uma fonte contínua de catequese e de espiritualidade para a comunidade cristã na medida em que, pedagogicamente, a conduz ao núcleo da fé cristã, o que favorece enormemente o discernimento sobre a hierarquia das verdades na Igreja, impedindo assim que o secundário acabe por ocupar o primeiro posto, coisa que infelizmente ainda aflige inúmeras comunidades cristãs.

5) A valorização da Bíblia para a introdução à fé. Todas as orações e gestos propostos pelo RICA são acompanhados de uma fundamentação bíblica em algum evento da história da salvação, como explicita de forma paradigmática a bênção da água para o batismo. Dessa forma, o RICA recoloca a liturgia e as Sagradas Escrituras como os lugares incontornáveis da catequese. De fato, uma catequese que se afaste da liturgia cristã e das Escrituras deixa de ser iniciação à fé cristã e torna-se possivelmente uma introdução fenomenológica à religião cristã. A diferença entre ambas é que naquela o indivíduo é conduzido à experiência da fé, e nesta à experiência cognitiva sobre a religião cristã. Naquela nasce um discípulo, nesta um conhecedor da religião.

6) O RICA ressitua, através de sua proposta, a liturgia como atualização da história da salvação através de ações simbólico-sacramentais (→SÍMBOLO E SACRAMENTO), como expressão da ação salvífica de Deus na história (SC, 9-10). E, justamente por seu caráter simbólico, a liturgia abre o fiel à infindáveis experiências com o mistério de Deus Uno e Trino. É nesse horizonte que a práxis humana é mistagogicamente movida à identificação com a causa e a pessoa de Jesus de Nazaré, na obediência ao Pai, na força do Espírito Santo.

7) Por fim, o RICA se apresenta como uma forma de resgate da liturgia como língua materna do crer. Antes mesmo que o catecúmeno compreenda mais profundamente o mistério da fé, ele é introduzido à nomeação de Deus feita pela comunidade cristã, valendo-se de termos como: Pai, Filho, Espírito Santo, Senhor, Luz, Amor, Criador, Redentor etc. Confirma-o, por exemplo, o rito de entrega do Símbolo ao catecúmeno, o rito de entrega da Oração do Senhor e o rito de entrega do Evangelho. Toda essa iniciação ao conteúdo da fé, que, insistimos, também é iniciação à linguagem da fé e, mais exatamente, iniciação à nomeação de Deus, expressa que a nomeação de Deus não é acessória, nem ingênua. O modo como Deus é nomeado liga-se estreitamente ao modo como Deus é compreendido e acolhido. De fato, por detrás de cada nomeação de Deus está uma peculiar revelação divina (LÖHRER, 1972, p.276-8).

Sérgio Mendes, PUC Rio, Original português.

6 Referências bibliográficas

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RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. 6.ed. São Paulo: Paulus, 2010.

O Bem Comum

Sumário

1 Definição

2 História

2.1 Platão

2.2 Aristóteles

2.3 Cícero

2.4 Agostinho

2.5 Tomás de Aquino

3 Magistério eclesial católico

4 Reflexão teológica católica

4.1 Moral social

4.2 Bioética

4.3 Ecologia

5 Conclusão

6 Referências bibliográficas

1 Definição

O bem comum diz respeito à realização última das capacidades individuais, seja em relação a cada indivíduo em particular, seja no grupo. O bem comum não é a soma dos bens desejados e buscados individualmente, nem o que concerne a cada um na busca de obter aquilo que se deseja. O bem comum não é nem mesmo aquilo que a coletividade impõe de modo totalizante e que não considera ou absolutamente elimina a atenção a cada cidadão e à autonomia individual.

Tanto no Norte do mundo industrializado (WARD & HIMES, 2014), como no Sul do mundo, em via de desenvolvimento (OROBATOR, 2010), injustas desigualdades caracterizam o contexto social, econômico e político. Ao contrário, o bem comum é restritamente conexo à justiça social e à igualdade. Através da opção preferencial pelos pobres, o bem comum está a serviço da busca de uma maior igualdade, através de um empenho firme e eficaz para reduzir e, oxalá, eliminar a causa da injusta desigualdade e para promover o bem comum em nível global.

Na tradição e reflexão católicas, o bem comum depende tanto da fé cristã, que se preocupa com o bem de cada um, quanto da reflexão racional sobre a experiência humana, partilhada por cada um, independente de toda a diferença cultural, religiosa, linguística, social e política. Deste modo, o bem comum é, ao mesmo tempo, específico da tradição católica cristã e caracterizante da experiência humana, além de toda a diferença histórica, cultural, religiosa, política e social.

Na reflexão contemporânea, o bem comum é definido de vários modos[1]. Em primeiro lugar, o bem comum é identificado com o bem-estar geral, isto é, o bem maior que é possível conseguir para um maior número de cidadãos. Em tal definição se reconhece o influxo do pensamento utilitarista. Considerar o bem comum deste modo privilegia uma aproximação quantitativa (o bem maior) e distributiva (para o maior número de cidadãos). Ocorre também verificar se o acesso ao bem comum é garantido a todos os cidadãos igualmente ou se existem cidadãos aos quais o acesso ao bem comum é limitado, ou se até chegam a ser excluídos de participarem da promoção do bem comum.

Em segundo lugar, o bem comum é considerado um bem público, isto é, um bem de todos, que é disponível a cada membro da comunidade civil para todos, ou para ninguém. Por exemplo, quando um Estado está em paz, a paz é um bem público, pertence a todos e todos se beneficiam, sem exclusão. Ao contrário, se a paz é uma ameaça por alguma guerra, ninguém pode beneficiar-se. Isto pode ser afirmado também por outros bens públicos: a saúde, o trabalho, o ambiente ecológico sadio, a beleza natural e a fertilidade da natureza. Além disso, o bem comum fundamental, e o bem público por excelência, diz respeito à pertença de cada indivíduo à comunidade humana e a certeza de que não pode ser excluído dela. Finalmente ocorre precisar que há a responsabilidade em proteger e promover tais bens públicos, garantido o acesso a cada um.

Em terceiro lugar, o bem comum pode ser definido como um bem institucional, para indicar as condições sociais e institucionais que são necessárias para promover o bem comum de cada cidadão e de toda a coletividade. Este modo de compreender o bem comum é considerado por importantes documentos do magistério católico.

Na carta encíclica Mater et magistra (1961), o papa João XXIII afirmou que o bem comum é “o conjunto daquelas condições sociais que consentem e favorecem nos seres humanos o desenvolvimento integral da sua pessoa” (João XXIII, 1961, n.51). Poucos anos depois, o Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, a Gaudium et spes, indicou que “o bem comum é o das condições da vida social que permite tanto aos grupos, quanto a cada um de seus membros atingir de maneira mais completa possível a própria perfeição” (CONCILIO VATICANO II, 1965a, n.26). Outros documentos do magistério católico tem confirmado esta questão: a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae do Concílio Vaticano II (CONCILIO VATICANO II, 1965b, n.6), o Catecismo da Igreja Católica (1992, n.1006) e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE, 2004, n.164).

Deste modo, o bem comum institucional enfatiza a importância dos bens comuns produzidos no contexto social, graças aos processos produtivos, econômicos e financeiros (por ex. alimentos, serviços sanitários e empregos). Além disso, o bem comum institucional exige verificar como tais bens são distribuídos, quem beneficia e quem é excluído.

Em quarto lugar, o bem comum é relacional ou solidário, para indicar que se trata de um bem partilhado entre todos os agentes morais e realizado junto, através de interações e colaborações. O bem de cada um não se persegue de modo isolado porque o bem de cada um não é separável do bem de todos, mas é interdependente. Ao mesmo tempo se define sobre o que o bem comum implica e exige. O bem comum da coletividade inteira se realiza no conjunto com respeito e sustentação recíprocos. Além disso, o papa João Paulo II afirmou que a interdependência que o bem comum pressupõe não é contingente, não é só um dado de fato – vivemos juntos no planeta terra. Ao contrário, trata-se de uma interdependência do tipo moral, que depende da dignidade de cada um e que visa a realização e o bem de todos (João Paulo II, 1987, n.26). Em consequência, como sublinhou João Paulo II, o bem comum depende das realizações de solidariedade que existem na sociedade civil, incluindo aqueles que são mais pobres e necessitados (João Paulo II, 1987, n.38).

2 História

O bem comum é um conceito com uma longa história. No âmbito judeu cristão, o mandamento bíblico que exorta a amar o próximo como a si mesmo pede que se faça o quanto possível para promover o bem de cada pessoa – perto ou longe, conhecido ou desconhecido, inclusive. Este mandamento do amor propõe o bem comum, tende para a sua realização e o torna possível.

2.1 Platão

No contexto filosófico grego, em Platão (428-348 aC) o bem comum é aparentemente ausente, mesmo sendo explícita a procura do bem em si mesmo.  Buscando o bem em si, Platão o identifica como a ideia suprema da qual depende o mundo inelegível. A deia do bem é a fonte do conhecer, do ter e do ser e, portanto, de todas as outras ideias, como é indicado no mito da caverna (PLATÃO, VII, 514 b–520 a). Como o sol ilumina e torna visível todas as coisas concretas, assim a ideia do bem torna inteligível às outras ideias. Além disso, as ideias são valores morais; a ideia suprema, da qual dependem as outras ideias, é o supremo valor moral do bem. O bem em si permite precisar a eudaimonía, isto é a capacidade de conduzir uma vida boa, feliz, virtuosa.

A felicidade pode ser alcançada somente na vida política, por isso a comunidade perfeita e feliz é a comunidade política e, mediante as leis, a realização da pólis precede aquela de um indivíduo ou de classes particulares. Portanto, para Platão, o bem é o bem comum. A reflexão sobre a vida boa na pólis depende da pólis ideal da qual a pólis concreta é só uma aproximação. O risco é que isso faça perder de vista o bem de cada um.

2.2 Aristóteles

Para Aristóteles (384-322 aC), a política consente definir aquilo que é o bem para o ser humano. “O bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (ARISTÓTELES, I, 1, 1094a, 3) e o tratado sobre o bem é um tratado de política (ARISTÓTELES, I, 2, 1094b, 11). Por consequência, o bem do ser humano, qual animal social, político (zôon politikón), é inseparável daquele da pólis. É só na pólis que a vida boa e virtuosa do corpo social é possível. Além disso, o bem da pólis tem a supremacia sobre o bem do indivíduo, porque o bem cumulativo da coletividade é mais importante do que o bem de cada indivíduo. A pólis grega, porém, é de elite. É a união de muitas cidades, famílias, estirpes e o bem da pólis diz respeito apenas aos que são considerados cidadãos, mas não as mulheres, os escravos e os estrangeiros.

Tanto Platão como Aristóteles situam o tema do bem em um contexto político. O bem compreende a coletividade, todos aqueles que são considerados cidadãos. Em consequência, no mundo antigo, a compreensão do termo “bem comum” não indica uma carência, mas uma superabundância. Era necessário falar do bem comum, pois era implícito e pressuposto que o bem não pudesse ser senão comum – ao menos para aqueles que eram considerados cidadãos.

2.3 Cícero

Com Marco Túlio, Cícero (106-143 aC) traz uma visão crítica do bem público (res pública) porque, nos dez anos que precedem o nascimento de Jesus, o império romano não possui a capacidade de tender ao bem público, comum, necessário para ser povo. Não obstante isso, o bem pessoal e social são inseparáveis (Cícero I, 25,39). Pelo contrário, ocorreria antepor a utilidade geral à própria. Além disso, a existência da res pública exige  um acordo entre a pessoa e aquilo que seja correto, justo e sobre o bem que se compartilha em comum (HOLLENBACH, 2002, p.122). Tanto para Cícero, como para Aristóteles, a igualdade entre os cidadãos não é inanimada.

2.4 Agostinho

Em Agostinho (354-430), a expressão bem comum, que os tradutores reaproximam em suas obras, é utilizada para traduzir múltiplas expressões em textos que lidam com questões do tipo político. Em particular, o bem comum é aquilo que a comunidade civil ama. Em consequência, ocorre que o bem comum seja intencionalmente procurado individualmente pelas autoridades civis. Para o jesuíta David Hollenbach, isso o leva a afirmar que Agostinho pressupõe a possibilidade de uma forma de vida política com objetivos comunitários (HOLLENBACH, 1988, p.85).

Agostinho afirma, de um lado, a necessidade de refletir sobre o bem comum detendo-se sobre a cidade terrena e, de outro lado, convida a concentrar-se sobre a cidade eterna, reconhecendo Deus, o sumo bem, como único bem comum. Deste modo, o bem comum admite combinar duas tensões: de um lado a possibilidade de viver a radicalidade do mandamento evangélico de amar o próximo na vida social graças a Deus, sumo amor incondicional e gratuito; de outro lado, o bem comum permite interagir com igualdade, reciprocidade, mutualidade e colabora na sociedade civil buscando definir e promover o bem comum para todos os cidadãos, vivendo de tal modo o amor que foi recebido gratuitamente.  Em consequência, para Hollenbach, Agostinho propõe uma modalidade de presença na esfera civil onde a comunidade cristã é diferenciada da esfera pública, porém sem isolamento ou dominação sobre ela (HOLLENBACH, 2002, p.121).

Agostinho afirma com clareza que nenhuma cidade terrena poderá realizar a plena comunhão com Deus que caracterizará a cidade de Deus, mas já agora é possível a vida comum de uma res pública com o bem comum partilhado (HOLLENBACH, 2002, p.126). Em outras palavras, a visão teológica agostiniana não é um obstáculo para a vida comum. De tal modo, Agostinho integra a crítica de Cícero valorizando a relação fundada sobre a amizade e o amor, que caracterizam a experiência de cada pessoa e que consentem em construir o bem comum da sociedade.

Além disso, Agostinho pressupõe que o bem comum de uma sociedade precisa concordar com o que é verdadeiramente justo, visando o amor recíproco e exprimindo, assim, o amor de Deus doado a cada um gratuita e incondicionalmente.

O bem comum pode ser encontrado em seu sentido absoluto só na cidade celeste, mas, em sentido relativo, ele plasma a cidade terrena, a exemplo das estruturas necessárias para garantir os bens essenciais para viver e morrer bem (saúde, alimento, abrigo, segurança, educação, trabalho, cultura, possibilidade de viver e de praticar o próprio credo religioso etc). Agostinho portanto, não partilha da afirmação de Aristóteles que o bem da polis é o máximo bem humano (HOLLENBACH, 2002, p.124-5). Deste modo, o bem comum político é a imagem imperfeita da vida eterna. Preservar a paz terrena faz parte, portanto, do bem comum. Em consequência, podemos também afirmar que o respeito à diversidade e o prover os bens essenciais a todos os cidadãos fazem parte do bem comum.

Em conclusão, para Agostinho o bem comum terreno é imagem do bem comum celeste. Enquanto, por um lado, ele dessacraliza a política e insiste sobre a transcendência da cidade de Deus, por outro, ele tutela a capacidade do âmbito político de se tornar uma parcial e imperfeita encarnação do bem humano total e de perseguir os bens, entre os quais os bens comuns que caracterizam a cidade terrestre (HOLLENBACH, 2002, p.125, 127-9).

2.5 Tomás de Aquino

No conjunto de sua obra, Tomás de Aquino (1225-1274) não consagrou um tratado completo sobre o bem comum. Ele refletiu primeiramente sobre a noção de “bem” em relação à noção do “ser” e da “bondade divina”; em segundo lugar, ele precisou o “bem” moralmente, e, em terceiro, conotou o bem de modo político mediante a noção do bem comum.

No âmbito do pensamento medieval, ao mesmo tempo que assinala que o bem comum realizado na comunidade civil é mais divino que o bem de cada pessoa, Tomás não indica como buscar o bem comum nas diversas circunstâncias, mesmo o aplicando em situações específicas (por exemplo, o assassinato do outro para legítima defesa; o assassinato de outros em casos de guerra; a propriedade privada). Todavia, o bem comum é o critério ético que guia o comportamento individual e social porque é a finalidade do civitas, isto é, da sociedade política. Devemos também compreender se o adjetivo “comum” para Tomás compreende uma civitas identica à pólis aristotélica, ou se se refere a grupos em posições de poder dentro dela, ou, se diz respeito apenas à autoridade cujas funções são especificadas (por isso, seria mais público do que o bem comum), ou se inclui a humanidade inteira.

Tomás esclarece, definindo o bem comum de três modos: primeiro, o bem comum é o bem que diz respeito a cada pessoa, que é predicável a cada um (por exemplo, a natureza humana é comum a todos); segundo, o bem comum é aquele partilhado por todos e que pertence a todos (por exemplo, a vitória por um exército); terceiro, o bem comum define os bens comuns de utilidades, que são ligados à justiça distributiva, isto é, que dizem respeito à distribuição dos bens a serviço do bem comum (por exemplo, dinheiro, água e recursos médicos). Enfim, na comunidade política, estes três significados de bem comum são inseparáveis porque cada pessoa consegue a felicidade (um bem predicamente comum) só como parte da ordem civil (um bem causal comum), que é mantido por uma justa distribuição dos bens comuns de utilidade (FROELICH, 1989, p.55).

Além disso, para Tomás, o adjetivo “comum” pode indicar aquilo que é comum a muitos por motivo de sua natureza (secundum res), como um lugar comum no qual nos reunimos, ou então secundum rationem, isto é, que pertence a muitos, mas do qual a unidade depende de uma abstração, como o gênero animal (TOMÁS DE AQUINO, I, q. 13, a. 9).

O bem comum não é somente o bem individual, nem a soma aritmética dos bens individuais e privados. Isto criaria divisões na sociedade. Ao contrário, o bem comum almeja uma ordem social de grau mais elevado em relação ao que se pode conseguir somando os bens de cada cidadão. Portanto, em Tomás, a noção de bem comum depende da convicção que a pessoa humana é intrinsecamente social, orientada naturalmente ao bem e parte de um universo ordenado naturalmente. Finalmente, o princípio do bem comum tem um componente sobrenatural (Deus é o sumo bem comum) e um natural (a exigência prática do viver social).

Como em Agostinho, também para Tomás o bem último de toda a criatura, o bem comum, no sentido mais pleno e completo, é Deus, enquanto é de Deus que depende o bem de todas as coisas. Os seres humanos se realizam plenamente somente quando estão unidos a Deus, e, deste modo, unidos uns aos outros e unidos à criação.

Por causa da tensão entre o bem temporal e o bem último, entre o cidadão, a civitas e Deus, a sociedade política é essencialmente relação e é caracterizada pelas relações dinâmicas entre indivíduos, sociedade de Deus. Quanto mais se compreende e se vive tais relações, tanto mais cada cidadão compreende e vive na sociedade política perseguindo o bem comum da sociedade civil. Ao mesmo tempo, cada uma destas relações, e todas juntas, constituem aproximações do bem comum, em menor medida do bem comum temporal e, em grau máximo, do bem comum último. Como consequência, ao se pretender definir o bem comum de modo não aproximado se recai num bem particular. Tomás define três aproximações.

A primeira aproximação do bem comum indica que o ser humano é naturalmente social, político e, portanto, destinado a viver em comunidade, tendendo ao bem pessoal e comunitário.

A segunda aproximação do bem comum é o bem-estar da comunidade social, isto é, do corpo político. Para Tomás, a comunidade não é um fim em si mesma, mas existe para facilitar e promover o bem comum, de modo que todos os cidadãos se beneficiem. Isto requer uma definição articulada da virtude da justiça, capaz de distinguir uma justiça “particular”, que Tomás elabora a partir de Aristóteles e do direito romano (segundo o qual um dá a cada um o quanto lhe cabe), e uma justiça geral, que concerne ao bem comum. As autoridades políticas têm o dever de oportunizar ao povo o bem comum, sem excluir o bem particular de cada um. Além disso, em âmbito político e deliberativo, as virtudes da compaixão e da prudência orientam e enriquecem a capacidade dos cidadãos de promoverem o bem comum (BUSHLACK, 2015). À luz das contribuições dos papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco, podemos acrescentar a caridade e a solidariedade à lista das virtudes de Tomás de Aquino.

Enfim, a terceira aproximação do bem comum diz respeito à bondade universal de Deus, que transcendendo o universo nutre, sustenta e abraça o todo e cada uma de suas partes.

Em conclusão, ainda que Tomás não descreva como se busca praticamente o bem comum da comunidade, ele pressupõe uma interação dinâmica entre o bem humano, o bem individual e o bem da comunidade, entre a justiça que concerne o cidadão singular e a justiça que diz respeito a toda a comunidade.

3 Magistério eclesial católico

A Doutrina social católica pede de cada crente, ou melhor, de cada cidadão, um agir com justiça. Neste sentido, as encíclicas sociais, algumas de modo explícito, outras implicitamente, se voltam a todos os homens de boa vontade para reafirmar os direitos e deveres de cada um e para convidar a trabalhar juntos por uma sociedade mais justa (CURRAN, 2002, p.40).

No magistério católico recente, a atenção privilegiada aos menos favorecidos, aos pobres, é a prioridade que guia o agir moral orientado para o bem comum à luz do mandamento do amor evangélico. O bem comum permite afirmar que todos, e em particular os mais pobres, devem dispor do que seja indispensável para viver. Além disso, a sociedade civil deve prover as necessidades concretas dos mais necessitados, também em detrimento da abundância dos mais ricos.

Enfim, juntos, como coletividade, deve haver o esforço de compreensão para mudar as circunstâncias que não favorecem os cidadãos partilharem os benefícios do bem comum. O princípio do bem comum favorece tal processo transformador no mundo contemporâneo, globalizado, interdependente e pluralista.

Assim como em Tomás de Aquino, nos documentos magisteriais, a autoridade pública é considerada um agente moral importante, com a responsabilidade específica de promover e realizar o bem comum. A Carta Encíclica do Papa Leão XIII, Rerum novarum (1891), afirma que esta é uma visão autoritária e paternalista do Estado, que não distingue entre sociedade e estado, no qual o bem comum da sociedade, incluindo o bem religioso e moral de todos os cidadãos, é confiado aos governantes. Todo o poder provém de Deus e os governantes participam governando não para o seu próprio bem, mas para o bem de todos ((Leão XIII, 1891, n.26).

Para o Papa Pio XI, na Encíclica Quadragesimo anno (1931), a autoridade pública declara o que pode ser considerado o bem comum (PIO XI, 1931, n.49).

O Papa João XXIII, na Encíclica Mater et magistra (1961), afirma que o Estado existe para organizar o bem comum, com a responsabilidade de promover a justiça social (GIOVANNI XXIII, 1961, n.12 e 41).

Também na Encíclica Pacem in terris (1963), João XXIII pede que os poderes públicos se esforcem para realizar o bem comum, promovendo os bens materiais e espirituais, criando uma comunidade mundial na qual todos os cidadãos sejam iguais. Ainda exorta que sejam protegidos e promovidos os direitos humanos (GIOVANNI XXIII, 1963, n.35 e 40). Como na Mater et magistra, a Pacem in terris  de João XXIII alarga a perspectiva de pertença de toda a humanidade ao bem comum (GIOVANNI XXIII, 1963, n.54).

A Gaudium et spes (1965), a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, que emerge do Concílio Vaticano II, de um lado afirma que o bem comum é responsabilidade da autoridade estatal e dos corpos sociais intermediários; de outro lado, entende que o bem comum mantém um caráter dinâmico (CONCILIO VATICANO II, 1965a, n.74). Entre os corpos intermediários, são consideradas as organizações profissionais, os sindicatos, os organismos internacionais, as famílias, os grupos sem fins lucrativos, assim como os econômicos, sociais, políticos e culturais.

O Papa João Paulo II, na encíclica Centesimus annus (1991), reitera que o Estado deve harmonizar e orientar o desenvolvimento econômico para proteger o bem comum, bem como fazer intervenções suplementares no sistema social e/ou produtivo, que ocorrem em “situações excepcional e limitadas no tempo” (JOÃO PAULO II, 1991, n.11 e 48). Além disso, João Paulo II afirma que “uma economia social que oriente o funcionamento do mercado em direção ao bem comum deve ser construída em nível nacional e internacional” (JOÃO PAULO II, 1991, n.52).

Reconhecendo a importância da participação individual dos cidadãos na promoção do bem comum, o Catecismo da Igreja Católica também aceita que é sobretudo a comunidade política encarregada desta tarefa (1992, 1913 e 1910). O Catecismo afirma que os estados também devem apontar para o bem universal comum, tanto nas áreas da vida social como na gestão da saúde e emergências políticas, como refugiados e emigrantes (1992, 1911 e 2241). Além disso, é no Estado que a tarefa de proteger o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos corpos intermediários é reconhecida (1992, n.1910).

Além disso, a participação dos cidadãos na vida política e o respeito pelas autoridades responsáveis pela promoção do bem comum não devem ser separados do controle dos cidadãos diante destas autoridades, a fim de evitar possíveis abusos e assegurar que o que é exigido pelas autoridades políticas não é contrário aos requisitos morais da consciência justa. O bem comum é, portanto, apresentado como critério de discernimento e validação pela autoridade (1992, n. 2242, 1903 e 1900).

Além dos corpos intermediários, o princípio da subsidiariedade é também uma instância crítica e transformadora, que é acompanhada por reflexão sobre o bem comum, esclarecendo e qualificando-a. Este princípio foi proposto por Pio XI na encíclica Quadragesimo anno, para proteger os direitos das comunidades ou grupos menores de interferências do Estado (PIO XI, 1931, n.81). Em Mater et magistra, ao reafirmar isso, João XXIII reformulou esse princípio, indicando a obrigação do Estado, ou da autoridade mundial, de intervir contra as injustiças sofridas por associações e grupos dentro do país (JOÃO XXIII, 1961, n.40).

Lisa Cahill observa que uma compreensão renovada do bem comum pode dar valor a redes hierárquicas mais amplas e menos ordenadas, por exemplo, compostas por organizações, associações e grupos, mas que são capazes de trabalhar efetivamente para a promoção do bem comum (CAHILL 2004c, 2005a, p.130). Para Cahill, portanto, diante dos desafios atuais da descentralização progressiva e do aumento da mobilidade mundial, a multiplicação de redes e instituições internacionais atestam o princípio do bem comum (CAHILL, 2005a, p.132) .

Uma nova compreensão do princípio da subsidiariedade, que enfatiza a participação e a igualdade, e que também se expressa em formas de ação social a partir da base, oferece novas possibilidades. Na verdade, promove a participação cidadã na promoção do bem comum, por exemplo, delegando poderes a cidadãos, grupos e organismos internacionais, porque é dever de todos os agentes sociais definir melhor o que constitui o bem comum, o que requer e como pode ser alcançado (CATHOLIC BISHOPS CONFERENCE OF ENGLAND AND WALES, 1996, n.22 e 52; CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, 2003, n.13).

Refletir sobre a subsidiariedade exige agir de forma sólida e optar preferencialmente pelos últimos. No Magistério católico, a ênfase na importância da solidariedade e a opção preferencial pelos pobres emergiu gradualmente. Nos anos 1980 e 90, durante o pontificado de João Paulo II, a partir das contribuições da teologia da libertação na América Latina, a opção preferencial pelos pobres e a solidariedade se tornaram os critérios orientadores para a compreensão do bem comum e para sua implementação. Em particular, João Paulo II afirmou que a solidariedade “não é um sentimento de compaixão vaga ou intenção superficial pelos males de tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a firme e perseverante determinação de se envolver no bem comum: isto é, para o bem de todos e de cada um, pois somos todos verdadeiramente responsáveis por todos” (JOÃO PAULO II, 1987, p.38).

Para o Papa Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate (2009), “querer o bem comum e trabalhar para isso é uma exigência de justiça e caridade. O compromisso com o bem comum é cuidar, por um lado, e usar, por outro lado, esse complexo de instituições que legalmente, civilmente, politicamente e culturalmente estruturam a vida social, que se torna uma cidade” (BENTO XVI, 2009, n.7). Além disso, a atividade econômica “deve ser voltada para a busca do bem comum, e deve ser cuidada, sobretudo, pela comunidade política” (BENTO XVI, 2009, n.36).

Concentrando-se na situação do continente africano, Agbonkhianmeghe Orobator S.J., lembra-nos, no entanto, que cada vez que refletimos sobre o bem comum é preciso prestar atenção a contextos particulares, como questões relacionadas ao desenvolvimento econômico, à dinâmica política e ao papel marginal atribuído a mulheres. Em outras palavras, a promoção do bem comum universal deve considerar as especificidades de contextos particulares (OROBATOR, 2010). Outros autores também convidam a refletir sobre outros contextos particulares (NEUTZLING, 2003).

Finalmente, o Papa Francisco, na sua exortação apostólica Evangelii gaudium (2013) convida a perseguir com determinação o bem comum como meio de promover a paz social e reafirma que “a dignidade de toda pessoa humana e o bem comum são questões que devem estruturar toda a política econômica” (FRANCISCO, 2013, n.203).

4 Reflexão teológica católica

A reflexão teológica enfatiza que o bem comum não é a soma dos bens particulares, nem a soma dos bens possuídos por muitos cidadãos, visando a sua utilidade pessoal, nem alguma coisa a ser alcançada (uma herança comum), contribuindo o mínimo possível e nem substituindo os bens individuais. O bem comum também não é o bem da maioria dos membros da comunidade (NEBEL, 2006). O bem comum inclui todos os bens sociais, também os espirituais, morais e materiais, que o homem busca sobre a terra de acordo com as necessidades de sua natureza pessoal e social.

O bem comum visa a realização de uma convivência social caracterizada por uma verdadeira solidariedade, o que implica a vontade de servir aqueles que, na sociedade civil, têm mais necessidades e são menos beneficiados. Consequentemente, o bem comum exige justiça, ordem, paz e bem-estar social. Uma vez que a autoridade política é a principal responsável pelo bem comum, é responsabilidade das várias autoridades do Estado proteger e promover o bem comum de todos, sem preferência de algum cidadão ou grupos sociais, com exceção da opção preferencial pelos pobres. O objetivo é favorecer a promoção social daqueles atualmente excluídos, marginalizados ou socialmente desfavorecidos.

Ao mesmo tempo, não se deve esperar que somente o Estado promova e realize o bem comum como o fim da sociedade. Mesmo os cidadãos individuais, grupos e organizações civis têm responsabilidades sociais e contribuem para o bem comum. Isso permite que a realidade social seja valorizada em seus aspectos diversificados e em sua riqueza, no atual contexto globalizado e plural (VALADIER, 1980, p.128-9). No contexto político, o bem comum é, portanto, uma dinâmica, um processo que requer a contribuição de todos os agentes sociais, desde o Estado até as organizações sociais e os cidadãos individuais.

Por esta razão, na reflexão católica magisterial e teológica, o bem comum exige fortalecer e diversificar o princípio da subsidiariedade, a fim de continuar e amplificar o dinamismo dos grupos e dos corpos intermediários a serviço da coletividade, para o bem desta e dos sujeitos lhe pertencem.

Além disso, a reflexão teológica chama a atenção para o que já está sendo implementado na sociedade civil – por exemplo, através das ciências sociais (FINN, 2017) – mesmo quando é tematizada como uma promoção do bem comum. Somos convidados a reconhecer e identificar o que realmente promove o bem comum local e universal (MICHELINI, 2007).

Muitos cidadãos e muitas associações, por exemplo, estão comprometidos com o bem universal, que é a qualidade de vida no planeta Terra, procurando proteger a qualidade climática e preservar o ecossistema. Outros promovem condições de desenvolvimento no planeta e a saúde local e global. Outros, ainda, estão construindo projetos concretos para salvar e usar recursos de energia mais eficientes, de curto, médio ou longo prazo, não reproduzíveis. Entre esses, acrescenta-se a abnegação daqueles que lutam de maneira não violenta pela promoção do bem comum que é a paz, que permite o desenvolvimento das pessoas, dos povos e da humanidade. Trata-se de prestar atenção, reconhecer (com o olhar agudo e respeitoso de contemplação e sabedoria do místico) e discernir as muitas maneiras em que o compromisso com o bem comum já está presente no contexto histórico, político e cultural contemporâneo, e o quanto ainda pode ser feito para aumentar esse compromisso de promover o bem comum.

Na realidade contemporânea, caracterizada por desigualdades extremas e injustiças entre continentes, países e mesmo no interior dos estados, recuperar o bem comum como justiça geral, assim como na visão tomística, implica um favorecimento para com os mais pobres, aqueles que foram e continuam sendo defraudados de bens, respeito, direitos e liberdades e cujo progresso humano, social e cultural é dificultado por violações manifestas em termos econômicos, políticos, religiosos e intelectuais, omissões e satisfações menos graves (CHARTERINA, 2013).

4.1 Moral Social

O bem comum é a categoria clássica do pensamento social cristão e é o fim da sociedade civil (DIETRICH, 2003). Ao mesmo tempo, a ênfase na importância da dignidade da pessoa, presente na recente reflexão magisterial e teológica, faz do bem comum da humanidade o fim de todo esforço humano, tanto dos indivíduos como da comunidade (PORCAR REBOLLAR & COMISIÓN PERMANENTE DE LA HERMANDAD OBRERA DE ACCIÓN CATÓLICA, 2015).

A opção preferencial pelos pobres caracteriza ulteriormente o empenho pelo bem comum. Tal opção é específica da doutrina social da Igreja Católica. Esta opção funda-se na Bíblia, é encontrada na experiência espiritual e na vida cristã ao longo da história do cristianismo e constitui o compromisso diário de muitos cristãos e não cristãos. É uma opção prioritária e urgente. Além disso, esta eleição inclui e reforça a subsidiariedade e a atenção para o que já existe e é implementada em termos de promoção do bem comum. A opção preferencial pelos pobres convida a sustentar, aprofundar e ampliar os processos de transformações da sociedade e do mundo com empenho educativo e formativo apropriado.

Como vários autores apontam, é possível buscar e realizar o bem comum em uma comunidade civil que seja  caracterizada por sólidas formas de solidariedade entre todos os participantes da comunidade – seja entre indivíduos, grupos ou instituições. A solidariedade pressupõe não só o envolvimento dos múltiplos agentes morais, mas também sua igualdade (HOLLENBACH, 2002,  p.189; VIDAL, 1995; MEDINA VILLAGRÁN, 2014).

Lisa Cahill acrescenta que, como parte de uma abordagem abrangente destinada a alcançar a justiça social, o bem comum pressupõe a dignidade e a socialidade dos seres humanos, seus direitos e deveres, bem como a interpretação da dignidade, da socialidade, dos direitos e deveres no contexto das muitas e interconectadas esferas religiosas, políticas, culturais e econômicas que visam a plena realização dos indivíduos e dos diversos contextos sociais (CAHILL, 1987, p.393).

4.2 Bioética

Ao abordar as muitas questões que caracterizam a reflexão da bioética no âmbito teológico, Lisa Cahill sempre recorreu à moral social católica, uma vez que as questões de bioética dizem respeito à sociedade como um todo. Consequentemente, o bem comum é eminentemente representado em todos os recursos éticos que nos permitem examinar e enfrentar os desafios contemporâneos da bioética. Cahill mostrou que a justiça social e a busca do bem comum que a caracteriza são essenciais para refletir sobre questões bioéticas no tocante ao início da vida humana (desde o aborto até técnicas de procriação medicamente assistida), à saúde global e local (da pandemia da AIDS aos sistemas nacionais de saúde), à pesquisa médica avançada (por exemplo, a genética) e às questões de bioética relacionadas ao fim da vida humana (CAHILL, 1987; 2000; 2001; 2004a; 2004b; 2004c; 2005a; 2005b).

Além disso, para Cahill, o bem comum na esfera social exige a promoção da comunicação social e da cooperação (CAHILL, 2004a, p.8). No atual contexto globalizado, os problemas individuais e sociais causados pela pobreza, pelo sexismo e pelo racismo aumentaram o número de pessoas vulneráveis a doenças. Por esta razão, no campo católico, a bioética deve favorecer o compromisso de promover a justiça social e o bem comum (CAHILL, 2004a, p.75-6).

Essa abordagem que considera questões bioéticas como questões sociais e enfatiza a importância de promover o bem comum não está isolada. Na Grã-Bretanha, os bispos católicos indicaram repetidamente o bem comum como um recurso e um objetivo ético tanto para enfrentar os desafios políticos como bioéticos (CATHOLIC BISHOPS OF ENGLAND AND WALES SCOTLAND AND IRELAND JOINT COMMITTEE ON BIO-ETHICAL ISSUES, 2001; CATHOLIC BISHOPS CONFERENCE OF ENGLAND AND WALES, 1996, n.66-68).

Muitos autores compartilham essa ênfase (RYAN, 2004; ARIAS, 2007; VICINI, 2011), enquanto outros afirmam que a necessidade de promover o bem comum exige solidariedade (HOSSNE & LEOPOLDO E SILVA, 2013; GARRAFA & PEREIRA SOARES, 2013).

Para o brasileiro Márcio Fabri dos Anjos, o bem comum exige uma abordagem legislativa nacional e internacional, uma vez que muitas empresas de biotecnologia são multinacionais e porque muitas populações, que são objeto de pesquisas genéticas – como tribos amazônicas e grupos étnicos em várias partes do mundo – são geneticamente estudados sem a necessária proteção (FABRI DOS ANJOS, 2005, p.152-3).

No campo da saúde, o bem comum pressupõe o direito à saúde para todos os cidadãos, independentemente da renda ou das habilidades de trabalho. Além disso, cada um é chamado a contribuir para a realização do bem comum no campo da saúde, uma vez que a saúde – pessoal, local, nacional e global – depende do envolvimento diversificado de todos, daqueles diretamente envolvidos na promoção da saúde, médicos, enfermeiros (CAMPOS PAVONE ZOBOLI, 2007), técnicos de saúde, administradores, a políticos, legisladores e líderes nacionais (responsáveis pelo desenvolvimento do sistema de saúde em cada país), grupos, organizações, fundações e instituições que estão a serviço da saúde global por exemplo, Parceiros na Saúde, Médicos Sem Fronteiras, Fundação Bill & Melinda Gates, Centros para o Controle e Prevenção de Doenças e Organização Mundial de Saúde) e também cada cidadão.

Para explicitar seu empenho em favor da promoção do bem comum, no âmbito sanitário, em dezembro de 2016, a revista Health Progress da Catholic Health Association – a associação de saúde católica que atende os 639 hospitais católicos dos Estados Unidos (ASSOCIAÇÃO DE SAÚDE CATÓLICA, 2016) – dedicou toda a questão ao bem comum [por exemplo: (NAIRN, 2016; CLARK, 2016; SPITALNIK, 2016)].

4.3 Ecologia

Na encíclica Laudato Si (2015), sobre o cuidado da casa comum que é a nossa terra, o papa Francisco expande a compreensão e o uso do bem comum para promover a justiça e a sustentabilidade no contexto ecológico. O papa afirma que “o clima é um bem comum, de todos e para todos. Existe um consenso científico muito grande que indica que estamos na presença de um aquecimento preocupante do sistema climático” (FRANCISCO, 2015, n.23). Além disso, “a ecologia integral é inseparável da noção de bem comum, um princípio que desempenha um papel central e unificador na ética social” (FRANCISCO, 2015, n.156). Finalmente, reafirma todo o ensinamento magisterial e a reflexão teológica sobre o bem comum, afirmando que:

O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana como tal, com direitos fundamentais e inalienáveis ​​ordenados para seu desenvolvimento integral. Também requer sistemas de segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermediários, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre eles, a família é especialmente a célula primária da sociedade. Finalmente, o bem comum exige a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma determinada ordem, que não se realiza sem atenção especial à justiça distributiva, cuja violação sempre levanta violência. Toda a sociedade – e especialmente o Estado – tem a obrigação de defender e promover o bem comum (….) Sob as condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e cada vez mais pessoas que estão sendo privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum se torna imediato, como consequência lógica e inevitável, em um apelo à solidariedade e em uma opção preferencial pelos mais pobres. (FRANCISCO, 2015, n.157-158)

Deste modo, o papa Francisco acrescenta as vozes de muitos que nos convidam a tomar consciência da urgência em proteger nosso planeta, o bem comum da humanidade (CASTILLA, 2015; SCHEID, 2016).

Para os cristãos, a terra e os recursos naturais terrestres foram criados por Deus como bens comuns e confiados ao uso responsável da humanidade, para que todos possam se beneficiar num nível suficiente, correspondente às necessidades de cada um e, ainda, respeitando a dignidade de cada um. O compromisso com o bem comum requer uma conversão pessoal e coletiva, implica reconhecer a terra como um dom de Deus e exige promover a vida comum na terra, habitando-a e tornando-a cada vez mais o lugar de bênção prometido para a humanidade e para as gerações futuras (FRANCISCO, 2015, n.159).

5 Conclusão

Como é possível definir e promover o bem comum nas sociedades civis multiculturais e pluralistas contemporâneas? Nas sociedades contemporâneas, buscar e promover o bem comum requer a participação e colaboração de todos os cidadãos e grupos no contexto social pluralista. Além disso, são necessários compromissos políticos para enfrentar as muitas desigualdades que afligem diferentes sociedades em nível mundial. Diferentes religiões têm o potencial e a responsabilidade de contribuir para a promoção do bem comum (VOLF, 2015; 2011).

Enfim, os múltiplos significados do bem comum e as várias dimensões que precisam ser consideradas para promovê-lo pressupõem que os cidadãos se esforcem para viver com virtuosidade. Além disso, são necessárias várias iniciativas políticas – no nível de grupos, associações, instituições, nações e organismos internacionais – e elas devem ser avaliadas à luz dos dados e análises que as ciências sociais e políticas oferecem sobre a situação social, política e produtiva contemporânea, seja no nível dos países seja no nível mundial.

O bem comum pressupõe um grande senso de responsabilidade. A esperança cristã espera que a humanidade possa promover o bem comum de maneira realista e eficaz.

Andrea Vicini, S.J. Boston College (USA). Original italiano. Tradução Valdete Guimarães

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[1] Nesta seção me refiro a um artigo não ainda publicado do professor David Hollenbach, S.J., apresentado e discutido no contexto do seminário de Ética, em Boston College em setembro de 2014.