Fé cristã e inculturação

Sumário

1 Itinerário conceitual

1.1 Inovações pré-conciliares

1.2 Assunção da Patrística no Vaticano II

1.3 Evangelii nuntiandi: a ruptura entre o Evangelho e a cultura

1.4 Inculturação latino-americana pós-conciliar

2 Escolhas conceituais

2.1 Culturas

2.2 Encarnação

2.3 Inculturação

3 Referências bibliográficas

A fé cristã, sua confissão em palavras e seus desdobramentos em obras, existe somente em determinadas configurações históricas e culturais. Culturas são sistemas sujeitos a câmbios históricos. Não obstante, setores fundamentalistas e, pretensamente, ortodoxos desejam desvendar os artigos da fé de seu caráter misterioso através de definições dogmáticas e procuram substituir a dimensão histórico-cultural dos artigos da fé por uma segurança atemporal e univocidade universal. No rastro do Vaticano II (1962-1965), o paradigma da “fé inculturada” assume a revelação de Deus na história e, por conseguinte, trabalha a história como lugar teológico. A revelação de Deus não acontece fora da história e a interpretação dessa revelação é igualmente histórica e culturalmente determinada.

Além desta premissa fundamental da historicidade, trata-se do paradigma da inculturação de uma transformação cultural. Ela pode ter duas finalidades diferentes: a transformação da cultura do destinatário da evangelização e a transformação da cultura do agente evangelizador. Ela pode aceitar a colonização como imposição da fé cristã em roupagem cultural forasteira ou pode reformular a roupagem cultural dos artigos da fé e as estruturas eclesiais do próprio evangelizador.

Em situações de uma longa tradição cristã, é preciso perscrutar a gênese da chamada primeira evangelização e perguntar se ela ocorreu em condições coloniais ou se ela, através do tempo, cristalizou certos momentos dessa primeira evangelização e perdeu a capacidade de ouvir a voz de Deus em novas configurações histórico-culturais. Deste modo, “inculturação” pode significar “descolonização”, onde a fé foi transmitida em condições coloniais, e “libertação” (desalienação), onde essa fé não responde mais às perguntas de seu tempo.

Por ser histórica, a própria inculturação só pode ser inconclusa. Na conquista das Américas se encontraram as tradições religiosas de muitos séculos, as tradições ameríndias e a tradição do cristianismo medieval. O reconhecimento recíproco dessas tradições exigiu o diálogo e a catequese do encontro. As razões econômicas exigiram submissão política e, em função dessa hegemonia político-econômica, imposição do credo do vencedor e colonização dos vencidos.

O paradigma da inculturação tem cabeça de Janus. Olhando para trás, e face ao cristianismo colonial, significa uma reparação histórica. Olhando para frente e ao lado, significa uma recuperação da credibilidade e das raízes fundantes do próprio cristianismo e das razões pelas quais o Verbo de Deus se fez carne: diálogo e libertação, reconhecimento na igualdade e shalom na diversidade. Ambos os olhares são precários. A voz de Deus clama sempre por uma escuta melhor e por uma prática mais relevante e radicalmente nova. Atrás do paradigma da “evangelização inculturada” está uma luta histórica, não pelo conceito, mas pela prática de uma evangelização pós-colonial e pelos artigos libertadores da fé, enraizados na vida dos povos (cf. SUESS, 1995).

1 Itinerário conceitual

O neologismo “inculturação” remete a desafios e práticas missionários, presentes na Igreja desde suas origens. Também Jesus, o missionário encarnado em sua cultura, não conseguiu plenamente transmitir os mistérios de Deus que não cabem nas culturas humanas. Procurou aproximar-se a esses mistérios não através de conceitos, mas de parábolas, que até hoje interpretamos porque não permitem desvendar plenamente seu sentido.

A partir da era constantiniana, o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano e de impérios posteriores, e a prática de expressar a fé na cultura do outro caiu progressivamente em desuso. Uma das premissas da inculturação, que é a desvinculação do poder em suas dimensões políticas, econômicas e ideológicas, raras vezes foi cumprida.

Desde as origens do cristianismo, quando descartou a conversão de Israel e se dirigiu ad gentes, duas doutrinas e práticas missionárias estavam concomitantemente presentes. Uma declara que as culturas pagãs se encontram fora da história da salvação e nada podem acrescentar ao cristianismo que se considerou qualitativamente pleno. A plenitude quantitativa – a conversão de toda a humanidade ao cristianismo – se considerou tarefa da missão e de uma metodologia missionária que pôde variar entre convite desarmado até o uso da força militar. A outra corrente admitiu as culturas pagãs como precursoras e facilitadoras para o encontro com o Evangelho.

1.1 Inovações pré-conciliares

Através de experiências pastorais confrontadas com o olhar crítico das censuras e proibições da Cúria Romana de Pio XII, um setor profético da Igreja católica procurou, na primeira metade do século XX, responder à demanda histórica da descolonização e ao desafio de uma fé muito distante da realidade social. Esse setor procurou aproximar o cristianismo à realidade concreta dos povos e classes sociais. A presença das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld (1858-1916) junto ao povo Tapirapé, por exemplo, desde 1952 constituiu um referencial de inspiração para a ruptura com o trabalho missionário colonial no Brasil. Na mesma perspectiva vale lembrar a lucidez da opção pelos operários, de um Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária (JOC) e inspirador da Ação Católica, em 1925, com seu método da “revisão de vida”. Posteriormente, toda a Pastoral da América Latina e os documentos eclesiais se beneficiaram do método da JOC e do seu “ver-julgar-agir”. Também a sobriedade vivencial e pastoral do padre Antoine Chevrier (1826-1879) e dos seus seguidores no movimento do Prado (Lyon), o movimento dos padres operários e da Mission de France, o despojamento de um Abbé Pierre, fundador do movimento dos maltrapilhos-construtores de Emaús, já apontavam para a opção pelos pobres e pelos que mais sofrem.

Precursores pré-conciliares da inculturação havia também nos movimentos litúrgico e bíblico que abriram horizontes para a celebração da vida e a leitura da palavra de Deus histórica e vivencialmente contextualizada. Seguindo a reflexão teológica de um Melchior Cano, teólogo do Concílio Tridentino (1545-1563), que colocou a história como lugar teológico na pauta teológica de seu tempo, a hermenêutica da realidade como lugar teológico – a teologia das realidades terrestres de um padre Chenu, por exemplo – contribuiu para uma nova proximidade teológica e pastoral do mundo moderno.

No seu conjunto, todas essas práticas de inserção que precederam o Vaticano II, e a reflexão teológica que as acompanhou, foram consideradas marginais, suspeitas e, às vezes, abruptamente proibidas, como, por exemplo, a experiência dos padres operários. A maioria dos teólogos relevantes da época – Henri de Lubac, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu e Karl Rahner, entre outros – chegaram arrastados na corrente da proibição à porta do Concílio.

1.2 Assunção da Patrística no Vaticano II

O Vaticano II e, em seguida, o magistério universal da Igreja e o magistério latino-americano das Conferências Episcopais de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), resgataram alguns tópicos teológicos dos primeiros séculos do cristianismo, de Justino (…165), Irineu (…202), Tertuliano (…220) e Eusébio de Cesaréia (…339), por exemplo, que permitiram configurar o novo conceito da evangelização inculturada (cf. SUESS, 1986; 1994 p.41 et seq.).

Os padres conciliares, em sua maioria, admitiram encontrar nas culturas pagãs “lampejos da Verdade” (Nostra aetate, n.2) e “sementes do Verbo” (Ad gentes, n.11). Estes “lampejos” e “sementes” tampouco acrescentam algo à dimensão macroecumênica do cristianismo, porque lançam seus vestígios em outras religiões e culturas. A Gaudium et spes (n.57), com a sua recepção positiva do mundo, afirma, referindo-se a Irineu, que o Verbo de Deus, antes de encarnar-se para salvar e recapitular em si todas as coisas, já estava no mundo como “luz verdadeira que ilumina todo o homem” (Jo 1,9s).

Nas discussões em torno da “Constituição Pastoral Gaudium et spes” do Vaticano II (GS n.53-62), observa-se na Igreja católica uma preocupação coletiva com a relação entre fé e cultura e com a proximidade e a distância entre elas. O Concílio nomeou a busca de uma maior proximidade entre ambas com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento” e “adaptação” (SC n.37s; GS n.91), “autonomia da realidade terrestre” (GS n.36; 56) e da cultura, “sinais dos tempos” (GS n.4a; 11) e “diálogo” (ChD n.13b; UR n.4; ES, n.34-68), “encarnação” e “solidariedade” (GS n.32).

1.3 Evangelii nuntiandi: a ruptura entre o Evangelho e a cultura

As articulações entre fé, cultura e evangelho repercutiram dez anos depois do Vaticano II na “Exortação apostólica Evangelii nuntiandi” (1975), que resume as discussões do “Sínodo sobre a evangelização no mundo contemporâneo” de 1974. O lamento de Paulo VI chamou a atenção da Igreja: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas” (EN n.20). No referido Sínodo, os bispos da África divulgaram uma declaração onde afirmam que a aculturação religiosa produziu “um cristianismo insuficientemente encarnado e vivido, muitas vezes, como desde fora, sem vinculação real com os valores autênticos das religiões tradicionais” (SUESS, 1990, p.404).

Costurar a ruptura entre cultura e Evangelho e romper com uma evangelização “desde fora” é a intenção profunda da inculturação. O Evangelho não tem cultura própria. Por isso pode ir ao encontro de todas as culturas. A inculturação visa a uma nova proximidade entre a mensagem e doutrina da Igreja e a realidade em que vive a família humana.

A EN opera, ainda, com o conceito da “Evangelização das culturas” (EN n.20) que, embora sendo incorreto, prepara os conceitos posteriores da “assunção das culturas” (DP n.400) e da “inculturação” (DSD n.13). A “evangelização das culturas”, que tem como foco a mudança da cultura do outro enquanto não está de acordo com o Evangelho e que se serve apenas de “elementos da cultura” (EN n.20), não leva suficientemente em conta a cultura na qual o próprio Evangelho está sendo transmitido. Por apontar para uma “cultura pura” se esquece da historicidade das culturas.

1.4 Inculturação latino-americana pós-conciliar

No tempo pós-conciliar, a Igreja latino-americana assumiu intenções profundas do Vaticano II, cunhou expressões próprias e sacudiu as colunas de uma teologia dedutiva cristalizada. A teologia conciliar foi indutiva. A leitura latino-americana das palavras-chave dessa teologia indutiva, que constrói seu argumento a partir da realidade concreta (cf. GS n.62,2), forjou a Teologia da Libertação. Seu dicionário incorporou novos verbetes: “libertação” e “opção pelos pobres” (Medellín, 1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres (Aparecida, 2007). A Evangelii gaudium (2013), do Papa Francisco, com suas palavras-chave “diálogo” (EG n.142), “encontro” (EG n.239) e “Igreja em saída” (EG n.20 et seq.), oferece novos verbetes para esse dicionário.

Logo depois de Medellín, que enfatizava a questão da libertação dos pobres, alguns setores do magistério pensavam que a “questão da cultura” poderia se prestar como substitutivo da preocupação com a “questão da classe” e seu anexo da “opção pelos pobres”. No decorrer do tempo, a pretendida substituição da causa dos pobres pela causa dos outros não ocorreu, porque os pobres vivem numa multiplicidade de culturas, e os outros pertencem a determinada classe social. Também o outro-rico não deve ser colonizado no processo de sua evangelização.

O Documento de Puebla (DP, 1979), que destaca com certo peso a questão da cultura, nos fala da encarnação nos povos que acolheram o Evangelho e enfatiza a assunção de suas culturas, revalidando “o princípio da encarnação formulado por Santo Irineu: “O que não é assumido não é redimido” (DP 400).

Desde as Conclusões de Santo Domingo (DSD, 1992), o magistério latino-americano acrescentou, explicitamente, ao paradigma da libertação o paradigma da inculturação. A inculturação da fé e de todas as atividades eclesiais que emergem dessa fé (pastoral, liturgia, teologia, kerigma, obras sociais), são “imperativos do seguimento de Jesus” (DSD n.13) que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação.

O paradigma da inculturação, na síntese do DAp, foi novamente proposto como caminho para expressar cada vez melhor a catolicidade. Palavras como “assumir” (DAp n.280b, 330, 348), “contexto” (DAp n.276, 331), “inserir” (DAp n.329, 517h), e “presença” (DAp n.215, 474b) pertencem ao campo semântico da inculturação: “Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural” (DAp n.479).

Depois desse “itinerário conceitual” e da compreensão normativa da inculturação como imperativo do seguimento de Jesus, precisamos delimitar alguns conceitos que configuram o campo semântico da inculturação e verificar seu uso correto ou incorreto na transmissão da fé.

2 Escolhas conceituais

No encontro entre fé e cultura, os evangelizadores procuram traduzir a mensagem do Evangelho nas línguas e linguagens, nos mitos e ritos, nos símbolos e sinais, nos costumes e no etos de todos os povos e grupos sociais. A relevância do Evangelho para o mundo de hoje – e este mundo pode ser um mundo secularizado e não-confessional, como pode ser um mundo tradicional e religioso – depende da capacidade de traduzir contribuições próprias do cristianismo em linguagens particulares e universais, privadas e públicas, religiosas e secularizadas, sem perder seu referencial e suas raízes. Sempre se trata da tarefa axial da Igreja, “enviada por Cristo para manifestar e comunicar a caridade de Deus a todos os homens e mulheres e povos” (Ad gentes, n.10). Nessa tarefa, os conceitos são instrumentos historicamente construídos, muletas de um coxo que procura aprender a caminhar.

2.1 Culturas

A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cunhou o conceito “cultura” para descrever a experiência humana. Originalmente, a noção de cultura era aplicada no singular, quase idêntica ao conceito de “civilização”. “A cultura” era a cultura do observador exógeno, do antropólogo, missionário ou viajante, que serviu como ponto de chegada.

Hoje, o conceito “culturas”, quase sempre usado no plural, nos permite observar a diversidade das experiências humanas, sem recorrer a esquemas meramente evolucionistas (primitivo x civilizado), racistas (inferior x superior) ou totalizantes (universalismo x relativismo). Não existe um ponto de chegada de uma cultura-civilização que possa servir para a constituição da identidade de todos os povos. Há, concomitantemente, diferentes experiências humanas, uma multiplicidade de culturas, todas elas válidas e precárias (cf. GS n.372 et seq.). A presença do Evangelho nas culturas é sempre precária, porque os mistérios de Deus não cabem nos vasos culturais, que são humanos. Também a “evangelização das culturas” é uma evangelização revestida com uma determinada cultura imperfeita que se aproxima de uma cultura que pretende aperfeiçoar e, parcialmente, desmontar.

A observação cultural lida sempre com uma dimensão sistêmica, com a sincronia estática, comparável à fotografia de um evento, e uma dimensão histórica, com a diacronia dinâmica que é como a filmagem do mesmo evento. Portanto, as culturas são construções históricas em processo, heranças sociais apreendidas que desafiam cada geração a discernir entre a conveniência de “assunção” e a necessidade de “transformação”. A vida humana é sempre cultural e socialmente vivida (cf. SUESS, 1997, p.22 e seg.).

No contexto da inculturação da fé, compreendemos as culturas como projetos históricos de vida, codificados nas diferentes esferas sociais: nos campos sociopolítico, econômico e ideológico. As culturas, enquanto projetos de vida, sempre lutam contra a morte. Por isso, não faz sentido falar em “cultura da vida” nem em “cultura da morte”. Se “cultura da vida” é o óbvio, a “cultura da morte” é o absurdo. Cada grupo social se junta para viver e não para se matar reciprocamente.

A afirmação de que nenhuma cultura é perfeita quer apenas enfatizar sua historicidade. Por causa dessa relatividade histórica, a cultura de um povo nunca é normativa para outro povo. Para os sujeitos que pertencem a uma determinada cultura, ela é, contudo, internamente normativa. Nenhuma cultura, porém, pode reivindicar sua normatividade frente a outras culturas. O equilíbrio entre a estima do próprio e o reconhecimento do alheio, às vezes, é difícil. Todos os grupos sociais são tentados pelo ufanismo, etnocentrismo e racismo (SUESS, 1994).

2.2 Encarnação

O paradigma da inculturação se inspira no mistério da encarnação do Verbo. Contudo, há uma diferença fundamental entre inculturação e encarnação. Trata-se apenas, com as palavras da Lumen gentium, de “uma não medíocre analogia” (LG n.8). Jesus, segundo sua natureza humana, nasceu em Belém e foi criado em Nazaré, onde se enculturou, quer dizer, onde aprendeu a sua própria cultura. Até aqui não houve inculturação numa cultura estranha. Desde criança, o Nazareno aprendeu a cultura dos nazarenos.

Em que consiste essa “não medíocre analogia” entre encarnação e inculturação? Como pessoa divina, Jesus não era apenas um nazareno; era também filho de Deus, preexistente desde antes da criação do mundo. Podemos, portanto, analogicamente, dizer que Ele veio de sua “cultura” ou “pátria“ celeste para nascer em uma determinada cultura humana e se enculturou como criança e inculturou, como Deus, na cultura de Israel. Como ser humano aprendeu a cultura de seu povo e como Deus Ele trabalhou com o culturalmente disponível para falar ao seu povo dessa outra pátria, de onde o Pai o enviou (SUESS, 1998 p.127 et. seq.).

A encarnação, portanto, tem algo específico e não pode ser sem mais nem menos identificada com a inculturação. Precisamos sempre distinguir esses dois momentos: Deus despojou-se – São Paulo fala da kenose – de sua divindade e entrou na cultura de Israel (inculturação). Mas esse Deus também nasceu como pessoa humana e se enculturou aprendendo língua, religião e costumes com os nazarenos. A compreensão da encarnação como despojamento e proximidade, despojamento da própria cultura para poder assumir a cultura do outro, preparou o paradigma da inculturação. A analogia entre encarnação e presença cristã nas múltiplas culturas do mundo fez a reflexão missiológica cunhar o paradigma da inculturação (cf. Lumen gentium n.8; Santo Domingo n.30 e 243).

2.3 Inculturação

A inculturação é precedida pelo aprendizado da própria cultura em casa, na rua e na escola. A essa apropriação cultural denominamos enculturação, endoculturação ou socialização cultural. Nascemos “naturais” e morremos com os aprendizados culturais acrescentados a nossa “naturalidade”.

Ao lado desse primeiro aprendizado da própria cultura, chamado “enculturação”, existem outras possibilidades de aproximação cultural: a aculturação e a inculturação. A aculturação é, teoricamente, a aproximação de duas culturas diferentes. Cada uma aprende algo da cultura do outro e assim nasce uma nova cultura. Na realidade, a aculturação acontece em condições de assimetria social, devido à hegemonia política de uma das duas culturas sobre a outra. Nessa situação, a cultura politicamente dominante se impõe aos demais fazendo concessões periféricas ou folclóricas em campos secundários (comida, roupa, dança, enfeites). A cultura “subalterna” se descaracteriza progressivamente. A aculturação é quase sempre uma forma de colonização.

A inculturação é o intento de assumir a cultura de um outro grupo social, a fim de comunicar, reviver e assumir o Evangelho com expressões, linguagens, e em contextos históricos e sociais totalmente diferentes.

Com a inculturação, a Igreja se torna “um sinal mais transparente” e “um instrumento mais apto” (RMi n.52) para anunciar o Evangelho, não como uma alternativa às culturas, mas como uma das suas realizações possíveis. Na inculturação se entrelaçam meta e método, o universal da salvação com o particular da presença. O universal “tanto mais promove e exprime a unidade do gênero humano quanto melhor respeita as particularidades das diversas culturas” (GS n.54). A meta da inculturação é a libertação, e o caminho da libertação é a inculturação (cf. DSD n.243). A inculturação visa a descolonização de certas práticas históricas na comunicação do Evangelho e, ao mesmo tempo, uma proximidade respeitosa em face da alteridade, crítica frente ao pecado e solidária no sofrimento. A nossa aproximação – presença e participação – encontra a sua matriz na proximidade de Deus. Ela só vale a pena se nossa vida é marcada pelo Deus-conosco, sua abertura, gratuidade, liberdade e solidariedade. Na inculturação não se trata de uma identificação do Evangelho com uma determinada cultura, porque a Evangelização inculturada visa à libertação interminável de cada projeto de vida (cultura) “das estruturas de pecado” (DSD n.243) e “dos poderes da morte” (DSD n.13). A inculturação, enquanto inserção na cultura do outro, é um aprendizado sempre precário que tem como alvo a revisão da evangelização colonial e a correção das estruturas de pecado.

A inculturação que passou pela peneira da opção pelos pobres visa a assunção dos últimos como próximos e primeiros. Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. Se o ponto de partida da inculturação é a perseverança no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão como encontro, diálogo da fé e enredo de esperança.

Paulo Suess, ITESP. Texto original em português

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