Deus

Sumário

1 Introdução

2 A tradição judaico-cristã

2.1 O Deus do AT

2.2 O Deus de Jesus no NT

3 Inculturação: o grande desafio da evangelização

4 O Deus Trino da fé cristã

5 Perspectivas da teologia latino-americana

6 Rumo a uma nova imagem de Deus

7 Referências bibliográficas

1 Introdução

Quando começamos uma reflexão sobre “Deus”, encontramos uma realidade muito singular: falar de Deus não é o mesmo que falar sobre qualquer outro objeto de reflexão científica. Deus não é realmente um “objeto” ao lado dos outros, um ente a mais entre os outros seres deste mundo finito. É um conceito que, no campo das religiões, busca se referir precisamente a essa realidade que é diferente, porque é a realidade suprema. Com a palavra Deus se quer nomear o que constitui o princípio e o fundamento de tudo; que fornece alguma inteligibilidade e sentido ao resto da realidade.

A partir dessa característica singular, surgem duas primeiras dificuldades: por um lado, uma vez que não é um objeto do nosso conhecimento, um ente próprio do nosso mundo sensível, pertence ao conceito de Deus uma dimensão de mistério, impenetrabilidade, transcendência e infinito. Obviamente, isso variará muito de uma religião para outra, como cada uma entende e apresenta seu Deus, mas pode-se dizer que, em maior ou menor grau, a ideia de Deus sempre será acompanhada por uma certa inefabilidade que lhe é própria.

Por outro lado, a segunda dificuldade surge do fato que, precisamente porque é o fundamento da realidade e da existência, trata-se do ser diante do qual não pode existir uma atitude neutra, de objetividade total. Falar sobre Deus sempre envolve nós mesmos, nossa cultura, nossa idiossincrasia, nosso modo de entender o significado e o destino da história e da nossa própria existência.

Essas dificuldades, no entanto, não impedem que seja válido, possível e até mesmo inevitável fazer a pergunta sobre a possibilidade de um discurso racional sobre Deus. E, precisamente, esse é o objetivo da teologia. Se a questão sobre Deus implica a questão do fundamento último do mundo e do homem, se trata, sem dúvida, da questão mais fundamental de tudo, a que o homem não pode deixar de formular se quiser viver sua existência com plenitude de sentido (Cf. KASPER, 1982, p.13 et seq.).

2 A tradição judaico-cristã

A reflexão sobre Deus, precisamente porque é universal e envolve cada homem, nunca pode ter uma resposta única, absolutamente neutra, universal e objetiva. Quando se trata de falar sobre Deus, não podemos fazê-lo a partir de uma perspectiva que englobe todas as perspectivas culturais e religiosas. Aqui, só tentaremos oferecer uma primeira e breve abordagem da história da reflexão cristã sobre Deus e sua recepção particular na América Latina.

Pode-se dizer que a religião cristã foi marcada, desde os seus primórdios, pelo encontro entre duas tradições diversas: a cultura greco-latina e a cultura bíblica hebraica. Do entrelaçamento destas duas correntes nasceria, como nova síntese, a cultura do Ocidente. (Cf. ZARAZAGA, 2004, p.253) A pregação cristã seria um motor e agente fundamental desta nova configuração religiosa e cultural.

2.1 O Deus do AT

A história de Israel como povo é inseparável da história de sua religião. Israel elabora sua própria história interpretando os eventos que a marcam a partir da chave teológica de sua relação com Yahweh. Esta chave hermenêutica nos permite entender que o AT não procura realmente fornecer uma historiografia detalhada ou um relato preciso dos principais eventos que determinaram o curso da história de Israel. O que realmente pretende  é testemunhar a fé de que toda a história e a própria existência de Israel só se baseiam no mistério de sua eleição como povo da aliança por parte de Yahweh. Yahweh, por livre desígnio de seu amor e vontade, teria decidido escolher Israel para levá-lo a sua libertação e sua plena realização em um reino de paz, justiça e prosperidade.

Hoje sabemos que essa convicção das origens ainda não implicava uma confissão monoteísta expressa. O culto a Yahweh provavelmente foi levado para a Palestina por volta de 1100 aC, por algum grupo ou tribo vinda do Sul, que fugiu da dominação egípcia (ḥabiru / hebreus), procurando algum lugar para se estabelecer com certa segurança e autonomia. Lá, eles teriam se misturado a outras tribos e grupos que estavam adotando o culto a Yahweh, provavelmente atraídos pelo perfil desse Deus libertador que não se colocou ao lado de imperadores e poderosos, mas dos pobres e oprimidos em busca de liberdade e salvação. Pode ser que aí se fundamente a gestação de uma espécie de memória mítica coletiva que combine as origens de Israel com um êxodo milagroso alcançado em virtude dos sinais do poderoso braço de Yahweh (cf. ALBERTZ, 1999, p.83-174; LIVERANI, 2005, p.49; RÖMER, 2015, p.82 et seq.).

As características desse Deus, insuficientemente conhecido, foram gradualmente explicitadas ao longo da história e da reflexão teológica de Israel. Muito provavelmente, no início, Yahweh foi entendido como o Deus de uma precária comunidade de tribos, mas sem excluir a adoração de outros deuses e cultos ligados à memória dos antepassados ​​e às práticas cultuais próprias da vida agrária e pastoral. As práticas de adivinhação, os cultos astrais, a veneração de alguma divindade feminina associada à fertilidade etc. eram comuns no ambiente cultural do Oriente Médio. Parecia óbvio, além disso, que cada povo tivesse seus próprios deuses e cultos, identificados com os interesses e a cultura de sua própria etnia, clã ou nação (cf. ALBERTZ, 1999, p.174 et seq.).

Foi através das vicissitudes da sua própria história que Israel foi reelaborando a compreensão de seu Deus (ver a síntese de RÖMER, 2015, em p.246 et seq.). As religiões dos povos vizinhos serviam como um quadro de referência para incorporar ou rejeitar, em Yahweh, os traços que elas atribuíam a seus próprios deuses. Se, durante a era monárquica, a teologia oficial começou a pensar que Yahweh deveria ser adorado como Rei dos deuses e outros seres da corte celestial, como poderoso Senhor dos Exércitos (Yhwh Şeba’ot) (cf. ALBERTZ, 1999, p.197 et seq., 219 et seq. e 243 et seq.; RÖMER, 2015, p.136 et seq.), mais adiante deverá rever esses aspectos diante do estrondoso fracasso desse projeto político.

Também durante o exílio babilônico, os teólogos de Israel tiveram que fazer um esforço enorme para reinterpretar a história e tentar entender os misteriosos desígnios de Yahweh para elucidar como ele agora levaria Israel ao pleno cumprimento de sua promessa. Lá, enquanto a fé em Yahweh e a fidelidade a sua aliança foram se convertendo no principal símbolo da identidade israelita,  aumentou a compreensão de seu campo de ação: se Yahweh pode cumprir suas promessas, se ele realmente pode libertar ao seu povo, então pode liderar os destinos da história. A introdução desta ideia de um “código da aliança” diretamente ditado por Yahweh a Moisés começou a se tornar o argumento fundamental da teologia javista: a história de Israel, o fracasso dos Reinos do Norte, primeiro, e depois do Sul, a destruição do templo e o exílio, tudo poderia ser explicado em virtude da infidelidade, do povo ou de seus líderes, com Yahweh e sua aliança (cf. ALBERTZ, 1999, p.471 et seq.; LIVERANI, 2005, p.271et seq.).

Mas essa mesma aliança lembrava, por sua vez, as promessas e a misericórdia de Yahweh. Era preciso continuar confiando que Deus não esqueceria seu povo. Se Israel voltasse a abraçar a Torá, se voltasse a cumprir suas leis e preceitos, obedecendo e amando apenas a Yahweh, sem dúvida poderia confiar na restauração das promessas de uma forma até mesmo superior à anterior.

Foi assim que, em tempos de exílio e diante do fim iminente do império assírio, começou a nascer a ideia que Yahweh  interviria mais uma vez na história, enviando um novo messias mediador, para libertar Israel através de um novo êxodo que lhe permitiria voltar à pátria e reconstruir o templo. Os capítulos do Deuteroisaías são particularmente indicativos dessa perspectiva teológica (cf. Is 40-55) (ver ALBERTZ, 1999, p.528 et seq.).

Com crescente determinação, a fé de Israel reconfigurou a esperança em torno da convicção que, se Yahweh pode intervir ao longo da história, em qualquer momento e em qualquer lugar, é porque Yahweh não é apenas o Deus de Israel, mas Ele é o único Deus, o criador e o Senhor de todos os povos da terra (cf. RÖMER, 2015, p.252 et seq.; ALBERTZ, 1999, p.655 et seq.). Assim, através de tradições muito diferentes, memórias e narrativas mitológicas, reelaboradas, aumentadas e corrigidas repetidas vezes, Israel foi chegando a uma identificação cada vez mais plena de Yahweh com a própria essência da divindade: “Eu, eu mesmo, sou Yahweh. Nenhum deus há além de mim” (Dt 4,35; 32,39; Is 43,10-11; 44,6-8; 45,6.18.21). A fé em Yahweh foi capaz de explicar assim, após séculos, a sua natural tendência monoteísta (cf. RÖMER, 2015, p,218 et seq.).

A partir desta perspectiva teológica mais universalista, a missão e a vocação de Israel também tiveram que ser retrabalhadas para entender seu papel e o sentido de sua escolha. As antigas profecias sobre um rei messias, descendente de Davi, que viria  inaugurar um reino de paz e prosperidade, agora assumiram um novo significado: era na realidade Israel, como servo sofredor, que, por sua própria experiência histórica de pecado, fracasso e humilhação, foi escolhido e purificado para constituir uma nação sagrada e sacerdotal, e com sua fidelidade e amor a Yahweh se tornaria a luz das nações, e assim exercitaria a mediação universal que levaria todos os povos a submeterem-se ao reinado definitivo de Yahweh (cf. ALBERTZ, 1999, p.805 et seq.).

No retorno dos deportados, entretanto, as coisas não foram como era esperado. Israel não conseguiu realizar o reino da paz e da justiça que imaginava. Uma última pergunta surgiria na fé de Israel. Se Deus é o Senhor misericordioso da história, por que Ele permite esse mundo de injustiça e opressão? Por que não recompensar o bem e punir os bandidos? Por que os pobres continuam a sofrer e os ricos parecem apreciar a bênção de Deus? A teologia adquiriu então uma nova direcionalidade misturando as expectativas apocalípticas e escatológicas (cf. Is 24-27; Dn 2-7) (cf. ALBERTZ, 1999, p.783 et seq.). A ação de Yahweh não precisa limitar-se às estreitas margens do mundo e da história. Se Yahweh é o criador do universo, se ele criou o homem “à sua imagem e semelhança”, foi para tratá-lo como um filho, para protegê-lo e fazer com que ele compartilhe sua vida e eternidade. A ideia de uma retribuição pessoal dos justos seria, assim, transformada na esperança explícita de uma ressurreição dos mortos, pela qual Deus, o vencedor da morte, concederia a vida eterna aos pobres e justos de Yahweh (Is 25,8; 26,19; 2 Mac 7,9; 12,43-46, e Dn 12,2-3) (cf. ALBERTZ, 1999, p.800 et seq.).

Em Daniel, a espera por essa intervenção divina toma uma figura humana em um enviado, um messias celeste mediador, que virá sobre as nuvens do céu para estabelecer o reinado definitivo de Yahweh (Dn 7, 13-15) (cf. ALBERTZ,  1999, p.818 et seq.).

 2.2 O Deus de Jesus no NT

Dentro do quadro desta compreensão de Deus e dessas expectativas históricas, devemos situar a fé cristã (ver KESSLER, 1996, p.316-384). O cristianismo nasceu da convicção que Jesus de Nazaré era o Messias esperado por alguns grupos em Israel, mais ainda, era aquele em quem  Deus cumpriu suas promessas de maneira bem além de todas as expectativas. Apesar da rejeição de Israel, que condenou e crucificou o Messias, Deus o ressuscitou e o sentou à sua direita na glória para reinar com ele. A vida e a morte de Jesus, sua própria pessoa, foram definitivamente associadas ao plano de salvação de Deus e à sua plena realização escatológica. O evento Jesus Cristo seria, portanto, entendido como a plena autorrevelação escatológica do próprio Deus (cf. KASPER, 1976, p.151-196; SCHILLEBEECKX, 1983, p.99 et seq.).

Como isso é possível? Como Jesus de Nazaré poderia ser elevado a uma condição própria do divino que era exclusiva de Yahweh? Sua ressurreição e glorificação à direita de Deus mostraram que o Messias não era apenas um homem escolhido, mas o Filho de Deus mesmo, enviado do seio do Pai como Palavra e Logos de Deus (Jo 1,1-3) (cf. PANNENBERG, 1986, v.I p.286 et seq.; v.II p.361 et seq., 371 et seq.). Os Evangelhos nascem, precisamente, como uma maneira de explicar narrativamente, e agora em grego, a vinda do Filho de Deus para a história dos homens e seu retorno ao reino dos céus. Nele, a salvação anunciada é cumprida e as promessas de Yahweh realizadas de forma definitiva, inesperada, supereminente e universal.

Entregando sua vida ao Pai na cruz, o Filho deu ao mundo o seu Espírito para convidar e liderar toda a humanidade como novo povo de Deus para o seu destino final e escatológico como Reino universal e eterno do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. PANNENBERG, 1986, v.I p.289 et seq.).

Existe, portanto, uma profunda transformação na compreensão de Deus. Se o AT confessou Yahweh como um Deus uno, único e absolutamente transcendente, agora esse Deus se mostra uno como amor trino, como o amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo que chama os homens a inserirem-se naquela dinâmica de amor. No Filho Encarnado, o Deus transcendente assume um rosto, torna-se parte da história, torna-se verdadeiramente homem para mostrar que assume em si mesmo a dor e o destino dos pobres e condenados deste mundo e se identifica com o seu destino para transformá-lo em vida e ressurreição.

3 Inculturação: o grande desafio da evangelização

A fé cristã nasceu, portanto, profundamente marcada por um desafio difícil: como pregar um Deus que é uno, mas que se manifestou como Pai, Filho e Espírito Santo?

A dificuldade de tal pregação pode ser entendida levando em conta que os primeiros cristãos tiveram que pregar sua fé no cenário de comunidades culturalmente forjadas no encontro entre o rígido monoteísmo judeu e a cultura grega marcada pela tendência decididamente unitária da racionalidade grega.

A cultura religiosa das comunidades de origem judaica entendia, como vimos, que Deus deveria ser compreendido como absolutamente uno e transcendente. Não era possível  ver seu rosto, nem mencionar seu nome.

O pensamento grego, por sua vez, também havia fundado sua compreensão do universo na ideia de um único princípio, um único arkhé, um único fundamento metafísico do real: além desse mundo sensível, mutável e passageiro, deve haver um fundamento imutável e eterno que é sua razão e sentido. Somente dessa maneira a constante permanência do ser pode ser explicada em um mundo físico em que tudo muda, passa e morre. O mundo das ideias de Platão, o mundo do eterno, do bem e do perfeito, se tornaria, para Aristóteles, a afirmação de uma substância suprema, racional e imaterial, um primeiro motor imóvel, perfeito, sem necessidade de movimento ou mudança . Esse é o fundamento, a causa final perfeita, que nos permite compreender a ordem que governa o universo, apesar de sua enorme multiplicidade, caducidade e contingência. Assim, na visão de mundo grega, a ideia do divino estava associada à de uma unidade primeira absoluta, eterna e imutável, que não sofre nenhuma alteração ou devir.

Por mais diferente que seja do comportamento apático do primeiro motor imóvel grego no que diz respeito ao Deus pessoal, fiel e misericordioso do AT, ambos concordaram em ser concebidos como uma unidade absoluta, o único fundamento absolutamente uno de todos (ZARAZAGA, 2004, p.253 et seq.).

Como pregar neste contexto, um Deus que é proclamado Pai, Filho e Espírito Santo, que se comove e envolve na história dos homens até encarnar-se, tornando-se um verdadeiro homem e morrer na cruz? Tal declaração só pode ser entendida como disparate e loucura para gregos e judeus (1 Cor 1,23). Todo o Novo Testamento pode ser entendido à luz desse contexto e deste desafio imposto pelo rígido monoteísmo judeu e pela necessidade de um fundamento único próprio da racionalidade grega.

4 O Deus Trino da fé cristã

É neste cenário cultural que o cristianismo teve que tentar explicar, e explicar-se a si mesmo, a particular e nova compreensão de Deus que surgia de sua fé. Se era proclamada a fé em Cristo como o Filho de Deus, morto e ressuscitado, se se batizava em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19), era uma tarefa teológica inevitável explicar como articular a afirmação do Deus uno com essa confissão trinitária.

A teologia dos primeiros séculos seria marcada por esta busca. Os dois primeiros grandes concílios (Niceia, em 325, e Constantinopla I, em 381) foram destinados a abordar claramente problemas trinitários decorrentes precisamente de tentativas fracassadas em harmonizar a unicidade de Deus com as diferenças que envolvia proclamá-lo como Pai, Filho e Espírito Santo. Esses erros procediam, basicamente, de salvaguardar a unicidade de Deus mostrando que o Filho e o Espírito Santo não eram propriamente Deus no mesmo sentido e nível do Pai. Os Concílios responderam a esses desvios afirmando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são coeternos e da mesma natureza divina (ver o verbete “Trindade”). A discussão foi colocada nos termos conceituais próprios desse ambiente cultural já fortemente influenciado pela terminologia grega. No âmbito deste sistema conceitual, os concílios procuraram, no entanto, salvaguardar a fé dessa racionalidade grega rígida. Assim, foi definido que Deus deve ser concebido como “uma única substância ou essência” (ousia), uma única natureza (physis), mas na qual subsistem três relações verdadeiramente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Para explicar o que esses três são, se diria que as relações divinas, internas à única substância, dão origem (eterna) a três subsistências ou pessoas distintas (três hypóstasis ou prósopa).

A história da compreensão de Deus no Ocidente seria marcada por esta teologia fruto do encontro entre o monoteísmo hebraico e a racionalidade grega que, apesar de suas muitas diferenças, tinham em comum, como dissemos, a primazia absoluta da unidade sobre a diferença. Ambos raciocinam a partir de um princípio irredutivelmente uno que é o fundamento e a razão única do universo finito.

No ano 380, com a conversão do Império Romano ao Cristianismo,  terminava por consolidar-se um imaginário que compreende o mundo como fundado em uma origem divina única e  destinado, apesar de toda sua aparente pluralidade, a formar uma estrutura única e unitária. A teologia cristã desde os Santos Padres até a Baixa Idade Média, passando pelos Padres Capadócios, Agostinho e Tomás de Aquino, consistiu na explicação e aprofundamento destes pressupostos básicos.

No processo, pode-se dizer que, até o século XV, a teologia ocidental assumiu essencialmente o imaginário piramidal de um mundo, uma sociedade e uma Igreja verticalmente concebidos, cuja unidade foi baseada na figura de um único Deus, Criador e Pai do universo. O Papa era na terra o vigário de seu Filho e o Imperador era o braço político e administrativo. A unidade do Universo (versus ad unum), da sociedade e da Igreja, tinha a sua fundação em única substância metafísica divina. Um determinado patrocentrismo, representado no ícone de um  Pantocrator impressionante, sentado em seu trono e armado com bastão de mando, resultava desse imaginário cultural. Neste cenário, as figuras do Filho e do Espírito Santo tendiam a ocupar um lugar algo derivado e secundário com relação ao Pai, mesmo que todas as definições conciliares tentassem evitá-lo.

A modernidade trouxe uma virada significativa. As descobertas de Copérnico, Galileu e Kepler significaram uma mudança radical na compreensão do universo. Apesar das aparências, a terra não é o centro do cosmos, mas é ela que gira em torno do sol. A realidade não é tão óbvia, transparente e objetiva quanto os sentidos reivindicam. Os relatos de Marco Polo, as descobertas de Colombo mostraram que o mundo, a cultura e a religião eram muito menos uniformes e homogêneos do que se supunha. A Bíblia mostrou que não poderia revelar todos os segredos do universo. As ciências e o conhecimento avançam revelando novos aspectos e dimensões da realidade. Se o sol e a sua luz são o centro do nosso universo, o homem e a luz de sua razão são o centro e o motor do saber e do conhecimento (cf. ZARAZAGA, 2017, p.20 et seq.).

O sujeito adquiriu, assim, uma nova centralidade baseada no poder de sua razão, autonomia e liberdade. A evolução filosófica do Ocidente será profundamente afetada por esta nova direção copernicana em direção a uma compreensão crítica e progressiva da realidade. Na teologia cristã, esse imaginário se manifestaria em uma compreensão de Deus não mais como essência ou substância primeira, mas como sujeito absoluto e suprema liberdade. A Reforma Protestante liderada por Lutero no século XVI pode ser entendida à luz dessas novas tendências que vinham questionar uma compreensão excessivamente metafísica e substancial de Deus e da natureza da Igreja. Por sua vez, sua compreensão mais pessimista do homem e da sua liberdade despertaria na Contrarreforma a necessidade de uma tematização mais profunda de uma antropologia cristã que repensasse a relação Criador-criatura, o significado da história e a relação entre razão, fé e liberdade humana. A partir desta luz, podemos entender a evolução do pensamento filosófico ocidental de Descartes a Hegel e de Nietzsche a Heidegger. Como pode haver espaço para a liberdade humana se for submetida a um Deus que é sujeito absoluto, liberdade absoluta e soberania? O ateísmo dos séculos XIX e XX expressa grande parte dessas questões e suspeitas. Embora a Igreja Católica tenha resistido, em grande medida, à influência desses pensadores, suas propostas e desafios foram moldando um novo cenário cultural que exigiu uma profunda reformulação da teologia cristã e sua maneira de dar conta de sua compreensão de Deus. A teologia, que é sempre reflexão sobre a fé da Igreja, mas a partir das coordenadas próprias e mutáveis de cada época e cultura, sentiu o impacto dessa mudança na compreensão do universo. Os fortes impulsos da renovação espiritual, litúrgica e pastoral começaram a se manifestar em áreas muito diferentes da vida eclesial. Importantes teólogos de grande renome e prestígio (especialmente nos âmbitos francês e alemão) assumiram o desafio de repensar a teologia a partir dessas novas coordenadas.

O trabalho teológico de pensadores como Teilhard de Chardin, Chenú, Congar, Lubac e K. Rahner, entre outros, logo fez sentir sua influência. A consciência da necessidade de uma urgente reação renovada foi se espalhando como um impulso incontrolável que resultou convocação do Concílio Vaticano II. Graças ao Concílio, a teologia tomaria consciência que até mesmo a compreensão de Deus precisava ser reformulada e expressada a partir de um novo sistema de categorias. A discussão trinitária do século XX testemunhou esse intenso processo de reformulação teológica. Enquanto alguns autores continuaram a afirmar a necessidade de postular a verdadeira existência de uma substância divina única, outros consideraram essencial superar as antigas categorias abstratas da metafísica para entender Deus em nova chave subjetiva: Deus não é uma distante e difusa essência divina, mas o sujeito de sua própria revelação (K. Barth), que se autocomunica de forma concreta e pessoal na economia da salvação (K. Rahner). Outros teólogos, entretanto, viram nisso a influência da filosofia moderna e o perigo de reduzir a Trindade das pessoas à identidade de um único sujeito absoluto. Assim, surgiu uma nova tendência teológica que buscava pensar em Deus em uma chave intersubjetiva, como uma realidade relacional e propriamente interpessoal (H. U. von Balthasar, J. Moltmann, W. Pannenberg).

Para entender essas novas tendências e propostas, é necessário ter em mente que surgiram no contexto de uma época de mudança radical na compreensão do universo. Na verdade, o século XX nasceu da mão de uma verdadeira revolução científica. A teoria da relatividade de Einstein significou uma nova virada copernicana, uma transformação profunda da compreensão newtoniana do mundo. O universo não é, como se pensava, um grande recipiente, um espaço vazio tridimensional no qual os planetas estão localizados como corpos autônomos que exercem cada um, em virtude da densidade de sua própria massa, uma força de atração chamada gravidade. Pelo contrário, o universo não pode ser entendido a não ser que incorpore a dimensão temporal e relacional. O espaço também é matéria. Nele, tudo está em relação, troca e movimento. A velocidade e as dimensões são sempre relativas à localização e ao movimento do observador. O universo, agora ,é representado mais como um espaço em redes, um tecido em que o peso dos corpos curva o espaço, alterando a trajetória dos corpos vizinhos. A luz não está lá onde é vista. Ele realmente viaja por milhões de anos, fazendo com que agora vejamos imagens de uma configuração estelar que mudou há muito tempo. A teoria da relatividade veio, assim, transformar de forma profunda e definitiva nosso modo de entender o mundo, a realidade, o homem e sua evolução.

5 Perspectivas da teologia latino-americana

Diante desse panorama, o Concílio Vaticano II propôs o desafio de uma leitura mais atenta dos sinais dos tempos. Era essencial fortalecer o papel das igrejas particulares. Somente assim, poderia assumir-se o novo impulso missionário de renovar um diálogo inculturado com o mundo.

No entanto, na América Latina, a recepção do Concílio seria feita a partir de suas próprias coordenadas históricas e culturais. O problema central não foi dado pelo desafio do ateísmo e da secularização, mas pelo questionamento de uma realidade marcada por uma escandalosa injustiça social e o espetáculo de grandes maiorias sociais afundadas na miséria e na marginalidade. Esta situação de forte exclusão social, falta de educação, meios e oportunidades, num continente que se proclamou eminentemente católico, tornou-se um desafio inevitável para a Igreja e a teologia. A leitura dos sinais dos tempos não se concentrou no diálogo com a incredulidade, mas na opção preferencial pelos pobres (cf. CODINA, 2015, p.17 et seq.). A obra de Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação, apareceu em 1971, apenas seis anos após o fim do Concílio. No aspecto especificamente relacionado aos temas de Deus e da Trindade, a teologia da libertação enfatizaria o compromisso de Deus com a história, sua identificação com os pobres e sua prontidão em assumir a dor e a morte no caminho da libertação e redenção. A façanha da libertação do Egito e a solidariedade do Jesus histórico com a sorte e o destino da marginalização e morte dos mais fracos foi o modelo inspirador para a compreensão do cristianismo como um chamado para construir o reino de Deus como um reino de justiça, solidariedade e reivindicação dos pobres. Para Gutiérrez, a teologia é a reflexão sobre a fé a partir da práxis da libertação, e é essa perspectiva de libertação que oferece o ponto de partida apropriado para uma reflexão teológica que permita compreender integral e profundamente a mensagem evangélica da América Latina. O trabalho de Leonardo Boff, Jon Sobrino, Ignacio Ellacuría, Lucio Gera, Juan Carlos Scannone e muitos outros testemunha a continuidade desta nova perspectiva da teologia latino-americana que se compreendeu a partir do compromisso com o destino de um povo empobrecido.

6 Rumo a uma nova imagem de Deus

Pode-se dizer que esta abordagem também está passando, hoje, por um processo significativo de transformação. Uma nova sensibilidade e abertura exigem ouvir a voz e as reivindicações de outros grupos e setores discriminados: os direitos dos povos indígenas, das mulheres, das crianças, dos imigrantes, dos deficientes, convidam a assumir a realidade de uma grande diversidade de perspectivas, identidades e interesses como um novo sinal dos tempos. A categoria “povo” ou “pobres” parece ser insuficiente, atualmente, para capturar a riqueza desta paisagem plural e policromática. Na realidade, é uma característica de época, que vai muito além da esfera latino-americana. A globalização, apesar de todos os seus perigos e ambiguidades, trouxe consigo uma nova sensibilidade, uma nova consciência planetária que chama a atenção não só para os pobres, mas também para os diferentes, excluídos, para outros setores e grupos humanos que exigem integração e participação.

A teoria da relatividade, implicou, como dissemos, uma mudança copernicana na maneira de compreender o mundo e  todo o real. A teoria do Big Bang, as descobertas feitas no campo da física atômica, a mecânica quântica dos campos e os avanços tecnológicos que, a partir daí, foram desencadeados nas áreas da comunicação e da informática implicavam uma mudança radical do imaginário coletivo. O fundamento último do real deixa de estar ligado a um puro uno, não relacional, solitário e autônomo. A realidade começa a ser concebida como um conjunto de estruturas profundamente complexas, marcadas pela dualidade ondo-corpuscular (onda-partícula), a intrínseca ligação entre matéria-energia e espaço-tempo como dimensões inseparáveis, constitutivamente ligadas a todo o real.

Assim, todo o real é sempre sistema, relacionamento e troca, tanto em sua própria composição interna quanto em sua ligação ad extra. Os novos modelos atômicos trouxeram consigo a ideia de um mundo onde todas as partículas, cargas e energias existem e atuam sempre no jogo de uma troca de forças que as mantém relacionadas, unidas e separadas ao mesmo tempo, sempre em movimento e interagindo no contexto de um campo dinâmico aberto por elas mesmas. Campo e partículas estão envolvidos na simultaneidade relativa. A realidade é então entendida como uma rede onde o singular e o sistema são simultaneamente envolvidos no todo vinculado e vinculante do real. Todo o real é relativo, isto é, constitutivamente relacional e comunicativo (cf. ZARAZAGA, 2015, p.143 et seq.).

Obviamente, essa mudança científica e cultural, essa nova compreensão do mundo e da realidade exigem também uma reformulação teológica da nossa compreensão de Deus. Embora Deus e a fé não mudem, mudam os conceitos e as imagens com as quais os entendemos, explicamos e transmitimos. Nesse sentido, o caráter constitutivamente trinitário da compreensão cristã de Deus adquiriu hoje uma maior inteligibilidade e sentido. Deus não pode mais ser entendido como um ser isolado, como um puro uno, concebido como não relacional, um solitário amor de si. A partir daqui, entende-se por que os teólogos começaram a abandonar a ideia de Deus concebida como uma substância única e imutável. Nem a ideia de Deus como um sujeito absoluto, solitário e autônomo parece estar de acordo com esta criação constitutivamente plural e relacional. Somente um Deus que é uma constitutiva relacionalidade pericorética interpessoal pode fundar a unidade do mundo em sua própria diversidade.

Deus trino significa que ele é, em si mesmo, relação comunional de amor, comunicação de amor como unidade na diferença e diferença só possível na unidade indivisível do amor infinito. Que Deus seja trino significa que a origem e fundamento mesmo de todo o real é um Deus que é amor como comunicação e partilha, em que Pai, Filho e Espírito Santo realizam o amor como doação e recepção infinita de si, a partir e para o outro diferente de si. Cada um faz essa doação e recepção de si de uma forma única, irrepetível e insubstituível. O Pai como amor parental, o Filho como amor propriamente filial, o Espírito como o agápico amor horizontal. Unidade, alteridade e comunicação do amor estão envolvidas e incluem-se mutuamente na origem fontal divina de todo o real. É essa comunhão divina que cria e funda o mundo como âmbito, espaço e  rede para a troca de dons e vida, em que tudo adquire a sua própria identidade única e irrepetível, sob sua própria participação comunicativa. Porque Deus é amor e é comunhão é que ainda está vigente a intuição da teologia latino-americana: a fé sempre envolve a busca da justiça que é sinônimo de plena inclusão social, participação e troca de dons para uma vida propriamente humana e comunicativa, fundada em um Deus que é uno, porque ele é communio, ele é a infinita troca pericorética do amor interpessoal trinitário (cf. ZARAZAGA, 2004, p.302 et seq.).

Gonzalo Zarazaga, SJ. Facultad de Teología del Colegio Máximo de San José. Argentina. Texto original em espanhol.

 7 Referências bibliográficas

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