Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA)

Sumário

1 Introdução

2 A necessidade pastoral atual

3 A estrutura

4 O conteúdo

4.1 A primeira etapa da iniciação

4.1.1 O pré-catecumenato

4.2 A segunda etapa da iniciação

4.3 A terceira etapa da iniciação

4.3.2 Os sacramentos (àSacramentos, centro da liturgia)

4.3.2 A mistagogia

4.3.3 Orientações e adaptações

5 Conclusão

Referências

1 Introdução

Foi a pedido do Concílio Vaticano II (SC, n.64; CD, n.14; AG, n.14) que se restabeleceu o catecumenato de adultos, culminando, após a consideração das experiências de catecumenato em diversos países, na publicação do RICA, em 1972. O próprio desejo conciliar de restaurar o catecumenato expressa a consciência de que a iniciação cristã (à INICIAÇÃO CRISTÃ) de então havia perdido, ao menos em parte, seu sentido originário.

De fato, a iniciação cristã compreendia, até o século V, as seguintes etapas: 1) O anúncio de Jesus Cristo para suscitar a fé e a conversão; 2) o catecumenato, com duração aproximada de três anos; 3) inscrição dos eleitos e protocatequese (homilia) pelo bispo, durante a quaresma; 4) catequese mistagógica, durante o tempo pascal. (CAVALLOTTO, 1996, p.8-11).

A partir do século V, com a conversão massiva de cristãos, as exigências pastorais acabaram por simplificar drasticamente a iniciação cristã. Aprofundou-se paulatinamente a separação entre liturgia e catequese. Perdeu-se a unidade dos três sacramentos da iniciação: batismo, crisma e eucaristia (ANCILLI, 1985, p.200). Por fim, até o Concílio Vaticano II a catequese ficou praticamente reduzida à transmissão de verdades conceituais, em detrimento da linguagem litúrgico-simbólica da patrística; e os sacramentos passaram a ser compreendidos a partir de categorias filosóficas tais como hilemorfismo, causalidade, substância etc. (CHAUVET, 1988, p.87). É bem verdade que nesse longo período não faltaram tentativas isoladas de restauração da iniciação cristã, mas não alcançaram grande êxito.

Além disso, por detrás do restabelecimento do catecumenato, encontra-se não uma mera volta ao passado da iniciação cristã, mas a recuperação de um dado fundamental daquele período, a centralidade do mistério pascal de Cristo. Obviamente que essa centralidade do mistério esteve sempre “suposta”, mas nem sempre “significada”. Essa sutil distinção entre “supor” (supponieren) e “significar” (bezeichnen), proposta por K. Rahner (RAHNER, 1967, p.145-7),  nos ajuda a perceber que, de tanto estar implícita, a centralidade do mistério pascal de Cristo acabou por ficar em segundo plano, se não até esquecida, como insinua o próprio Concílio (SC, n.21).

Ora, é somente a partir do encontro pessoal com o mistério de Cristo que se inicia o processo da conversão que culminará na adesão livre à sua pessoa e missão, como explicita a Introdução ao Rito da Iniciação Cristã de Adultos, n.1:

Este rito de iniciação cristã é destinado a adultos que, iluminados pelo Espírito Santo, ouviram o anúncio do mistério de Cristo e, conscientes e livres, procuram o Deus vivo e encetam o caminho da fé e da conversão. Por meio dele, serão fortalecidos espiritualmente e preparados para uma frutuosa recepção dos sacramentos no tempo oportuno.

 Nessa breve introdução descortina-se todo um horizonte de “volta às fontes”, como desejavam os padres conciliares. A menção à iluminação pelo Espírito refere-se ao contexto profundamente mistagógico da iniciação cristã dos primeiros séculos, caracterizada, entre outras coisas, por uma pneumatologia e por uma cristologia mais explicitamente desenvolvidas. A expressão “ouviram o anúncio” refere-se à evangelização ou anúncio querigmático, que antecedia a iniciação cristã e a ela conduzia. Logo, a primazia do processo de atração e conversão à fé cristã passava pelo anúncio do kerygma e não tanto pelo anúncio de verdades abstratas. Por fim, o indicador de uma verdadeira iniciação à fé cristã se dava não tanto pelo domínio cognitivo da doutrina, mas, sobretudo, pela conversão ética, testemunhada particularmente pelos que mais proximamente acompanhavam o catecúmeno.

O RICA, portanto, não é mera coletânea de rubricas, gestos e palavras normativamente estabelecidas. É, antes de tudo, um itinerário que nasceu no seio das primeiras comunidades cristãs, visando conduzir não apenas aquele que deseja aderir à fé cristã, mas, juntamente com ele, toda a comunidade dos fiéis ao mergulho no mistério pascal de Cristo. Trata-se do caráter eminentemente soteriológico da iniciação cristã. Por isso o ritual não se destina tão somente ao catecúmeno, mas principalmente à comunidade cristã (RICA, Observações preliminares gerais, n.7) que uma e outra vez “volta às fontes” de sua própria razão de existir, porque ela é “ecclesia semper initianda” (OÑATIBIA, 2000, p.6). Daí a importância da unidade entre catequese, iniciação cristã e liturgia (DGC, n.66). Enfim, a iniciação cristã é algo que diz respeito a toda a comunidade cristã (RICA, n.41).

2 A necessidade pastoral atual

Considerando-se o fato inegável de que uma porção significativa dos batizados católicos não teve propriamente uma iniciação cristã; que os países de missão e até os países que outrora foram predominantemente católicos e que agora se deparam com um significativo contingente de adultos que se convertem ao cristianismo católico; que ainda persiste, em nossos dias, uma compreensão débil da vida cristã como frequência à liturgia e defesa de algumas verdades de fé, sem a consequente implicação ética; que a própria liturgia é muitas vezes desfigurada pelo ritualismo e rubricismo; e que ainda permanece certo distanciamento entre catequese, iniciação cristã e liturgia, compreende-se, ao menos em parte, por qual razão ainda urge que a comunidade cristã “volte às fontes”.

Se por um lado essa “volta às fontes”, alentada pelos padres conciliares, pode ser compreendida como um apelo para retornar-se à tradição mais antiga da fé, por outro, pode-se também compreendê-la, de modo ainda mais radical, como volta às fontes dos sacramentos da iniciação cristã e, por conseguinte, à fonte batismal. É aqui que o RICA oferece para toda a comunidade cristã uma “rica” possibilidade de renovação, na medida em que sua progressiva implementação pode conduzir todos os fiéis a reencontrarem não apenas as razões de sua fé, mas o próprio “autor e consumador da fé” (Hb 12,2).

3 A estrutura

Quanto à estrutura, pode-se notar que cada conferência episcopal fez pequenas adaptações, em função das necessidades pastorais locais.

Em linhas gerais a estrutura básica do RICA é a seguinte:

  • Observações gerais preliminares sobre a iniciação cristã
  • Introdução ao Rito da iniciação cristã de adultos
  • O catecumenato e suas etapas
  • 1ª etapa:
  • Entrada: acolhida, apresentação, exorcismos, entrega dos Evangelhos;
  • Catecumenato: exorcismos, bênçãos, unção, entrega do Símbolo, entrega da Oração do Senhor;
  • 2ª etapa: Tempo da purificação e iluminação:
  • Eleição
  • Tríplice escrutínio
  • 3ª etapa: Sacramentos da iniciação cristã
  • Batismo, confirmação e eucaristia
  • Mistagogia
  • Ritos especiais: ritos simplificados/abreviados, para adultos já batizados, para crianças, para acolhida dos batizados válidos em outras tradições cristãs

Na própria estrutura do RICA já aparece claramente o resgate da gradualidade do processo de introdução ao mistério da fé cristã. Além disso, o RICA demarca claramente a necessidade de um rito distinto para o batismo de adultos e outro para o de crianças, realidade que pastoralmente ainda não havia sido solucionada em todos os lugares.

No que tange à estrutura e ao conteúdo, o RICA se inspira basicamente na Tradição Apostólica de Hipólito (séc. III) e no Sacramentário Gelasiano (séc. V).

4 O conteúdo

As Observações preliminares gerais que abrem o RICA se destinam basicamente a apresentar uma profunda teologia do batismo, instruções práticas sobre os papéis de cada um com relação ao rito e ao batizado, as exigências básicas para a realização do batismo e possíveis adaptações. Especialmente o primeiro parágrafo é de uma capacidade de síntese teológica difícil de superar:

Os seres humanos, libertos do poder das trevas, graças aos sacramentos da iniciação cristã, mortos com Cristo, com ele sepultados e ressuscitados, recebem o Espírito de filhos adotivos e celebram com todo o povo de Deus o memorial da morte e da ressurreição do Senhor.

A longa Introdução (RICA, n.1-67) mescla orientações práticas, teologia da iniciação e uma verdadeira catequese mistagógica. Destacam-se o acento no papel do testemunho e da participação da comunidade cristã para a iniciação dos catecúmenos; as etapas e “tempos de informação e amadurecimento”; a recomendação de que determinadas etapas aconteçam concomitantemente ao ciclo pascal (RICA, n.1-8).

Além das observações prévias e da introdução geral, o RICA apresenta antes de cada rito uma série de novas orientações e observações. Todas elas serão analisadas conjuntamente aqui segundo a etapa da iniciação a que se referem.

Para a Liturgia da Palavra, o RICA oferece uma abundante e criteriosa seleção de textos bíblicos mais adequados ao contexto teológico de cada rito, além de acolher também algumas sugestões do Elenco das Leituras da Missa (RICA, n.92).

4.1 A primeira etapa da iniciação

4.1.1 O pré-catecumenato

Merece especial menção a importância dada na Introdução à evangelização ou pré-catecumenato. O texto insiste no anúncio querigmático como o caminho pelo qual o Espírito conduz a pessoa “simpatizante” (RICA, n.12) à experiência da fé (RICA, n.9-10). É somente após essa experiência inicial de ser alcançada pela graça que a pessoa é acolhida ao catecumenato. Essa preocupação com a evangelização prévia é bastante consequente, na medida em que, ao ignorá-la, corre-se o risco de reduzir novamente a iniciação cristã à apropriação de verdades doutrinais e manter o catecúmeno à margem da experiência salvífica do encontro com o mistério de Cristo, especialmente naqueles casos em que as motivações para a conversão são espúrias.

4.1.2 O catecumenato

A fim de evitar equívocos sobre o significado da etapa do pré-catecumenato, o RICA orienta para que se observe no candidato ao catecumenato os sinais ou as seguintes condições: o “início de conversão, de fé e de senso eclesial” (RICA, n.68), o “desejo de mudar de vida e entrar em relação pessoal com Deus em Cristo”, o “costume de rezar”, e a “experiência da comunidade e do espírito dos cristãos” (RICA, n.15). Só então o candidato poderia ser acolhido ao catecumenato.

Os ritos relativos ao catecumenato são divididos em dois momentos, o da celebração de entrada no catecumenato e os ritos relativos ao tempo do catecumenato propriamente dito. É importante notar que o catecumenato pode durar vários anos (RICA, n.98), ao longo dos quais os vários ritos propostos para o catecumenato são distribuídos. Especial lugar cabe às celebrações da Palavra de Deus que têm por finalidade: gravar nos corações dos catecúmenos o ensinamento recebido quanto aos mistérios de Cristo e a maneira de viver que daí decorre, levá-los a saborear a oração e introduzi-los na liturgia da comunidade (RICA, n.106).

A partir do rito de entrada no catecumenato, os catecúmenos “já fazem parte da família de Cristo” (RICA, n.18). Daí a importância da ativa participação de toda a comunidade (RICA, n.70). Essa celebração de acolhida ao catecumenato compreende apenas a recepção dos candidatos, que fazem uma primeira adesão a Cristo, a assinalação da fronte e dos sentidos, a Liturgia da Palavra e a despedida.

Durante o período do catecumenato propriamente dito, vários meios são oferecidos ao catecúmeno para sua maturação na fé: 1) a catequese, marcada pela liturgia, pelo conhecimento dos dogmas e preceitos e, fundamentalmente, pela “íntima percepção do mistério da salvação”; 2) a familiaridade com as práticas da vida cristã: testemunho, oração, caridade, progressiva conversão; 3) ritos litúrgicos e celebrações da Palavra para os catecúmenos; 4) a cooperação, através do testemunho e da profissão de fé, com a missão da evangelização; 5) os exorcismos, bênçãos e unções; 6) a escolha de padrinhos (RICA, n.19-20; 98-105).

As entregas do Símbolo e da Oração do Senhor podem acontecer durante o catecumenato ou serem adiadas para a segunda etapa, conforme se julgar mais oportuno (RICA, n.125).

4.2 A segunda etapa da iniciação

Segundo a Introdução, o tempo da purificação e iluminação, que normalmente deveria ocorrer durante a quaresma, se consagra a “preparar mais intensamente o espírito e o coração” (RICA, n.22) dos catecúmenos.

a) Eleição ou inscrição do nome

É nessa etapa que são “eleitos” aqueles catecúmenos que já alcançaram a maturidade suficiente da fé e da caridade e desejam participar dos sacramentos da iniciação cristã. A partir desse momento, esses catecúmenos passam a ser chamados “eleitos”, “copetentes” ou “iluminados”, referindo-se à luz da fé (RICA, n.22-24). A eleição marca o fim do catecumenato propriamente dito e só deve acontecer após a aprovação do catecúmeno por aqueles que o acompanharam de perto, entre eles, os padrinhos, que, a partir de agora, assumem diante da comunidade sua missão (RICA, n.133-139).

A celebração da eleição, que deveria ocorrer no primeiro domingo da Quaresma, compreende a Liturgia da Palavra, a apresentação dos candidatos, o exame e a petição dos candidatos, as orações e a despedida (RICA, n.140-150).

b)Tríplice escrutínio

A “purificação” própria desta etapa consiste em acentuar mais a vida interior que a catequese, nos exercícios do exame de consciência e da penitência, culminando nos escrutínios realizados aos domingos e que levam os eleitos a uma maior libertação do pecado e do mal. Já a “iluminação” refere-se especialmente à fé, ritualizada pela entrega do Símbolo, e a acolhida do espírito de filiação que permite chamar Deus de Pai e que é ritualizada pela entrega da Oração do Senhor (RICA, n.25-26).

O termo “escrutínio” significa, etimologicamente, o ato de examinar rigorosamente. No contexto do rito, o exame é feito pela própria Trindade, que nas preces pelos eleitos e nos exorcismos é invocada para sondar o eleito, purificá-lo, orientá-lo em seus propósitos, despertar-lhe a consciência do pecado e estimular-lhe a vontade e os desejos (RICA, n. 154-164). Por fim, os três escrutínios, realizados durante o 3º, 4º e 5º domingos da Quaresma, são tematizados em função dos respectivos Evangelhos: samaritana (água viva), cego de nascença (luz) e a ressurreição de Lázaro (ressurreição e vida).

A etapa da purificação e iluminação se conclui com uma celebração prevista para o Sábado Santo, antes da Vigília Pascal. Trata-se dos ritos da recitação do Símbolo, do Éfeta (Ouvir) e da escolha do nome cristão, se for o caso. (RICA, n.194-203)

4.3 A terceira etapa da iniciação

4.3.1 Os sacramentos (Sacramentos, centro da liturgia)

Esta etapa compreende os sacramentos do batismo, confirmação e eucaristia e conclui-se com a mistagogia. O RICA, embora não se estenda muito sobre a teologia dos sacramentos, apresenta de maneira sintética o sentido teológico de cada um dos três sacramentos. Sobre o batismo, destaca o seu caráter trinitário, a aliança que se realiza com Cristo, a participação em seu mistério pascal e em sua filiação e a consequente agregação ao povo de Deus, a importância do símbolo da água, dos ritos da renúncia e da profissão de fé (RICA, n.28-33, 210-211). Sobre a confirmação, acentua-se a efusão do Espírito como em Pentecostes e o nexo entre os sacramentos da iniciação (RICA, n.34-35, 229-231). E sobre a Eucaristia, destaca-se a elevação dos neófitos à dignidade do sacerdócio real, participando da “ação sacrifical” e recitando a Oração do Senhor, e, por fim, o sentido da comunhão do Corpo e Sangue do Senhor como confirmação dos dons recebidos e antegozo dos eternos (RICA, n.36).

Os três sacramentos da iniciação cristã são realizados de uma só vez, preferencialmente durante a Vigília Pascal. O RICA destaca a importância de se manter o rito da bênção da água, mesmo que os sacramentos não ocorram na Vigília Pascal, dada a função mistagógica dessa bênção.

4.3.2 A mistagogia

Quanto ao tempo da mistagogia, ele é definido como um tempo de “conhecimento mais completo e frutuoso dos ‘mistérios’ através das novas explanações e sobretudo da experiência dos sacramentos recebidos” (RICA, n.38).  O que se deseja é que os neófitos adquiram um “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” e estabeleçam um relacionamento mais proveitoso e estreito com os fiéis da comunidade (RICA, n.235). À mistagogia destinam-se especialmente as “missas pelos neófitos” ou as missas dos domingos de Páscoa (RICA, n.236).

O término do tempo da mistagogia coincide com o término do tempo Pascal.

4.3.3 Orientações e adaptações

A Introdução conclui-se com orientações práticas e exortações sobre a participação da comunidade em todo o processo da iniciação cristã, a começar pela evangelização ou pré-catecumenato. Estende-se sobre a função e importância do introdutor, do padrinho, do bispo local, dos presbíteros, dos diáconos e dos catequistas. E conclui com orientações sobre as adaptações possíveis do ritual da iniciação, conforme as exigências pastorais de cada lugar; e sobre os tempos mais adequados para cada etapa (RICA, n.41-67).

O RICA oferece uma série de ritos adaptados às diversas circunstâncias: 1) simplificado para os casos em que o candidato não pode percorrer todas as etapas da iniciação (RICA, n.240-277); 2) abreviado para adultos em perigo de morte (RICA, n.278-294); 3) para adultos batizados na infância e que não receberam a devida catequese (RICA, n.295-305); 4) para iniciação de crianças em idade de catequese e que não foram batizadas (RICA, n.306-369). O RICA conclui com um apêndice, em que se apresenta o rito para a admissão na plena comunhão da Igreja Católica das pessoas já batizadas validamente.

5 Conclusão

Considerando que o Concílio Ecumênico Vaticano II estava interessado sobretudo em atender às necessidades pastorais mais prementes da Igreja, em especial um diálogo mais profundo com o mundo, cabe destacar as principais contribuições possibilitadas pela restauração do catecumenato como proposto pelo RICA:

1) O resgate da iniciação cristã em seu vínculo com a liturgia, a catequese e a vida comunitária. A comunidade cristã é, em sua totalidade, aquela que, pela graça divina, conduz o candidato à participação progressiva no mistério de Deus. E enquanto faz a iniciação, a comunidade cristã é ela mesma reintroduzida no mesmo processo de volta às fontes da fé.

2) A recuperação da mistagogia, tão utilizada na Patrística. O termo mistagogia, utilizado pelos Padres, possuía inúmeros significados: a celebração dos sacramentos da iniciação cristã, a catequese sobre os sacramentos; uma teologia que se nutre da experiência litúrgica; o último período do catecumenato; o caminho de iniciação ao mistério de Deus etc. (FEDERICI, 1985, p.163-245). A mistagogia se apresenta, hoje, como muito propícia para o diálogo com o contexto pós-moderno, na medida em que ultrapassa aquele discurso excessivamente gnosiológico e racional da Idade Média tardia, acolhendo a riqueza do símbolo, da metáfora, da expressão e dos sentidos corporais para atrair, apresentar e introduzir os mistérios da fé cristã.

3) O acento na verificação ética do processo iniciatório como critério para a recepção dos sacramentos da iniciação cristã; ao mesmo tempo em que se apresenta como um desafio para a sua implementação, valoriza a centralidade do seguimento de Jesus como o verdadeiro sinal da identidade cristã. Isso significa que não é tão somente a ortodoxia, mas sobretudo a ortopraxia que identifica o verdadeiro discípulo de Cristo, o que nada mais é do que a reafirmação do critério joanino: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, e odeia seu irmão, é um mentiroso” (1Jo 4,20). No entanto, a ética não é apenas o critério de entrada à comunidade dos cristãos. O próprio RICA, e por extensão toda liturgia cristã, visa a configurar a assembleia reunida a Cristo, levando-a a pensar, sentir e agir como Cristo. Trata-se, portanto, da recuperação do conhecido axioma teológico: lex orandi, lex credendi, lex agendi (a norma do orar é a norma do crer e do agir). Daí a insistência do RICA no tema da conversão ao longo dos vários ritos, utilizando-se com frequência, especialmente no caso do batismo, das antíteses “vida-morte”, “luz-trevas”, “velho-novo” etc. Eloquente a esse respeito é o rito de entrada no catecumenato, ao sugerir a seguinte alocução àquele que preside a celebração:

A vida eterna consiste em conhecermos o verdadeiro Deus e Jesus Cristo, que ele enviou. Ressuscitando dos mortos, Jesus foi constituído, por Deus, Senhor da vida e de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Se vocês querem ser discípulos seus e membros da Igreja, é preciso que vocês sejam instruídos em toda a verdade revelada por ele; que aprendam a ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo e procurem viver segundo os preceitos do Evangelho; e, portanto, que vocês amem o Senhor Deus e o próximo como Cristo nos mandou fazer, dando-nos o exemplo. (RICA, n.76)

4) A reiterada referência à centralidade do mistério pascal de Cristo. A implementação do RICA pode efetivamente ser uma fonte contínua de catequese e de espiritualidade para a comunidade cristã na medida em que, pedagogicamente, a conduz ao núcleo da fé cristã, o que favorece enormemente o discernimento sobre a hierarquia das verdades na Igreja, impedindo assim que o secundário acabe por ocupar o primeiro posto, coisa que infelizmente ainda aflige inúmeras comunidades cristãs.

5) A valorização da Bíblia para a introdução à fé. Todas as orações e gestos propostos pelo RICA são acompanhados de uma fundamentação bíblica em algum evento da história da salvação, como explicita de forma paradigmática a bênção da água para o batismo. Dessa forma, o RICA recoloca a liturgia e as Sagradas Escrituras como os lugares incontornáveis da catequese. De fato, uma catequese que se afaste da liturgia cristã e das Escrituras deixa de ser iniciação à fé cristã e torna-se possivelmente uma introdução fenomenológica à religião cristã. A diferença entre ambas é que naquela o indivíduo é conduzido à experiência da fé, e nesta à experiência cognitiva sobre a religião cristã. Naquela nasce um discípulo, nesta um conhecedor da religião.

6) O RICA ressitua, através de sua proposta, a liturgia como atualização da história da salvação através de ações simbólico-sacramentais (→SÍMBOLO E SACRAMENTO), como expressão da ação salvífica de Deus na história (SC, 9-10). E, justamente por seu caráter simbólico, a liturgia abre o fiel à infindáveis experiências com o mistério de Deus Uno e Trino. É nesse horizonte que a práxis humana é mistagogicamente movida à identificação com a causa e a pessoa de Jesus de Nazaré, na obediência ao Pai, na força do Espírito Santo.

7) Por fim, o RICA se apresenta como uma forma de resgate da liturgia como língua materna do crer. Antes mesmo que o catecúmeno compreenda mais profundamente o mistério da fé, ele é introduzido à nomeação de Deus feita pela comunidade cristã, valendo-se de termos como: Pai, Filho, Espírito Santo, Senhor, Luz, Amor, Criador, Redentor etc. Confirma-o, por exemplo, o rito de entrega do Símbolo ao catecúmeno, o rito de entrega da Oração do Senhor e o rito de entrega do Evangelho. Toda essa iniciação ao conteúdo da fé, que, insistimos, também é iniciação à linguagem da fé e, mais exatamente, iniciação à nomeação de Deus, expressa que a nomeação de Deus não é acessória, nem ingênua. O modo como Deus é nomeado liga-se estreitamente ao modo como Deus é compreendido e acolhido. De fato, por detrás de cada nomeação de Deus está uma peculiar revelação divina (LÖHRER, 1972, p.276-8).

Sérgio Mendes, PUC Rio, Original português.

6 Referências bibliográficas

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