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O tempo litúrgico

Sumário

1 O tempo na experiência humana

1.1 A dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do tempo

1.2 A “humanização” do tempo

2 O tempo na experiência cristã

2.1 O tempo na Sagrada Escritura

2.2 O culto como memorial

2.3 A compreensão litúrgica do tempo

2.3.1 O objeto da celebração cristã

2.3.2 Na história, em direção à plenitude do Reino

2.3.3 Círculo, linha, espiral

2.3.4 Ano, mês, dia e hora

3 O ano litúrgico cristão

4 A reforma do Vaticano II

4.1 A atual estrutura do ano litúrgico

4.1.1 O ciclo ou tempo de Natal

4.1.2 O ciclo ou tempo pascal

4.1.3 O tempo comum

4.1.4 Outras festas do ano litúrgico

4.2  O tempo litúrgico como mistagogia da Igreja

1 O tempo na experiência humana

O tempo é, acima de tudo, uma experiência fundamental e determinante do ser humano. Junto com o espaço, são as duas coordenadas fundantes de sua experiência: estamos e nos movemos em um lugar e em um devir. Todo ser humano é gestado, nasce e vive, até sua norte, imerso nessas duas dimensões. Desde o espaço protegido, quente e nutritivo do útero materno, drásticamente abandonado no nascimento, para dar entrada no grande espaço do mundo, muito menos amável que o seio da mãe, o ser humano transita, habita e domestica o espaço natural ou o que ele mesmo constrói para viver.

Isso acontece de modo análogo com o tempo, que o homem experimenta como uma evolução contínua (um contínuo devir), sem movimento para trás, perceptível na mudança, renovação e envelhecimento das coisas e das pessoas, impossível de parar. “Muda, tudo muda”, diz uma conhecida canção popular latino-americana, que expressa não apenas a experiência da inevitável mudança, mas também a da persistência da memória e dos valores humanos.

O tempo é a experiência de que tudo pode ser medido em termos de sua duração. Dá ao ser pensante um passado, um presente e um futuro, que é tanto individual quanto social. O tempo e o espaço determinam o homem como indivíduo e como ser social, possibilitando e limitando, ao mesmo tempo, sua existência, que é radicalmente espaço-temporal. O homem não pode escapar da realidade de estar situado em ambas as dimensões, e pode experimentá-las como áreas de liberdade ou, também, de limitação.

A experiência do tempo está na mente e nas emoções, mais do que nos sentimentos. É mais difícil apreender, definir, medir e controlar do que o espaço. É uma experiência que desperta a sensação de fragilidade, de desamparo, de dependência de forças incontroláveis. Por isso, o ser humano sempre procurou controlá-lo, dominá-lo e superá-lo, colidindo com a impossibilidade objetiva de fazê-lo, porque é como um rio caudaloso que não pode ser detido. Essa experiência leva ao sentimento religioso. A religião tem a capacidade de inclinar em favor do homem um devir que amedronta, dando-lhe significado; ou construir, através de sua ritualidade, a ilusão de controlá-lo e dominá-lo.

A primeira e mais difundida ação de controle do tempo pelo homem é sua mensuração e, para isso, tem a ajuda da própria natureza.

1.1 A dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do tempo 

Existem ritmos que ajudam o ser humano a medir o tempo. Entre aqueles que pertencem à própria natureza humana, estão os biológicos: as batidas do coração e a respiração são características de sua corporeidade. Entre aqueles que o homem observa na natureza estão os cósmicos, como o caminho diário do sol de leste a oeste, a sucessão do dia e da noite, os meses determinados pelas fases da lua e o movimento das estrelas que, ligado às estações da natureza, determina a duração de um ano.

Baseado nesses ritmos naturais, o homem criou ritmos sociais como a hora, a semana e o mês, que, em sua duração objetiva, variaram muito de tempos em tempos e de cultura para cultura. O ser humano não precisa apenas medir o tempo. Também é capaz de gerar um horizonte temporal e distinguir, em sua consciência, entre o momento presente, o passado e o futuro. Este horizonte depende da idade e do desenvolvimento intelectual e é determinado pela situação social de cada pessoa. Da mesma forma, o horizonte de tempo de um grupo humano depende, entre outros fatores, de seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

É preciso distinguir, portanto, entre o tempo subjetivamente experimentado e o tempo objetivamente medido. Em ambos os casos, se trata do tempo para o ser humano, uma vez que sua percepção e medição estão intimamente ligadas à consciência e inteligência do homem.

O tempo medido objetivamente pode ser determinado tanto pelos ritmos biológicos e cósmicos, quanto pelos sistemas de medida concebidos pelo ser humano. O tempo subjetivamente experimentado, no entanto, é determinado pelos eventos que resultam em vida humana pessoal ou social. Qualquer período da vida de uma pessoa é experimentado como “curto” ou “longo”, dependendo se é divertido ou chato, importante ou banal, feliz ou doloroso. Quem não experimenta como intermináveis os dez minutos de espera em uma fila de banco, e como curtíssimos  os mesmos dez minutos que compartilhamos com a pessoa amada? Portanto, não é o tempo em si, mas o que acontece nele, que determina a experiência temporal.

1.2 A “humanização” do tempo 

O ser humano tenta dominar o fluxo imparável do tempo através de sua medição e sua organização. No entanto, todas as formas de medição de tempo são baseadas em uma concepção prévia dele mesmo; essas concepções são basicamente duas: a cíclica e a linear.

A cíclica, expressa graficamente pelo círculo, é típica das culturas mais arcaicas, já que sua origem está nos ritmos da natureza. Isso explica por que as categorias do ano, do mês e do dia existem em todo o mundo: elas são facilmente apreensíveis na experiência cotidiana.

A forma linear percebe o tempo como um devir permanente, sem a possibilidade de retroceder, representado graficamente por uma linha que sempre avança. Sua medição consiste na segmentação dessa linha em períodos. Nela, adquire uma importância fundamental o objetivo, o “até onde” a linha vai, ou onde termina. A tradição judaico-cristã adere basicamente a esta concepção do tempo.

A alternância do dia e da noite é o padrão mais imediato para medir o tempo. Mas a duração da luz e da escuridão a que estão ligados varia muito de uma região para outra e de uma estação para outra. Assim, a engenhosidade humana inventou instrumentos que medem as horas do dia, independentemente do fator claro-escuro: relógios solares, relógios de água e, finalmente, somente no século XIV, o relógio mecânico. Esse massificou-se no século XIX pela produção em massa de relógios de bolso e de pulso. No início do século XX, o sistema temporal foi universalizado ao se estabelecer o horário de Greenwich (GMT – Greenwich Mean Time) como o padrão de tempo, o que favoreceu a organização do tempo para um mundo cada vez mais globalizado nas áreas da produção, transporte e mobilidade humana.

O mês, por outro lado, é uma unidade complexa. Apesar de ter evidente apoio natural nas fases da lua, é vivenciado como parte de um segmento maior, que é o ano. No entanto, a duração do ciclo solar, que chamamos de ano, não se encaixa com a divisão em meses com base no ciclo lunar. Isto levou a diferentes soluções: o calendário islâmico padronizou o ciclo solar e dividiu o ano em doze meses lunares, de modo que o ano é dez dias mais curto que o ano solar, ou como fez o calendário juliano, que tomou o ciclo solar como base e os doze ciclos lunares foram padronizados.

A semana é diferente do dia, mês e ano, porque não está relacionada a ciclos naturais, exceto nas culturas em que se impôs a semana de sete dias, que é quase um quarto do tempo do ciclo lunar, que tem 29,5 dias.

A semana é de origem cultural. Portanto, nos tempos antigos, era diferente em diversas sociedades. Na Mesopotâmia e em Israel a semana tinha sete dias. Os antigos romanos tinham uma semana de oito dias, os chineses, uma de dez, e em várias culturas da África Ocidental, do Sudeste Asiático e da América Central havia semanas com cerca de três e seis dias. O que era comum em todas elas era o padrão sempre recorrente de certos dias, provavelmente para regular certas atividades repetitivas, como os dias de mercado. Muitas sociedades conheciam, no sistema semanal, um dia de especial alívio, geralmente com fundamento religioso: o shabat do judaísmo, o domingo do cristianismo e a sexta-feira do islamismo.

2 O tempo na experiência cristã 

A experiência humana do tempo e sua organização social estão intimamente relacionadas com a consciência religiosa do homem. Em todas as religiões, o tempo desempenha um papel importante, mas a concepção do tempo e o comportamento religioso e cultual em relação a ele, que derivam desse entendimento, são muito variados. A concepção bíblica e litúrgica cristã é apenas uma delas.

2.1 O tempo na Sagrada Escritura 

A experiência bíblica do tempo está na base do significado que a liturgia cristã atribui a ela. O Deus cristão é o Deus-homem, o Deus-conosco, o Deus que encarna e assume não apenas a beleza de sua criação e de suas criaturas, mas também suas limitações e condicionamentos. É o Deus que se fez carne, frágil, limitada e corruptível, localizada nas coordenadas fundamentais do tempo e do espaço. Isso determina radicalmente a liturgia, assim como o mistério pascal de Cristo, que representa a superação de todo o condicionamento, também do tempo: o Ressuscitado introduz a humanidade na nova eternidade, em um novo tempo, que aguarda sua segunda vinda, a definitiva.

Na Bíblia predomina uma ideia de tempo que considera o âmbito da ação de Deus e da revelação do desígnio divino na história. É fundamentalmente uma concepção linear do tempo, com a exceção do livro Qohelet, que introduz uma concepção cíclica e fatalista, característica do mundo helênico, cuja cultura dominou a Palestina a partir das conquistas de Alexandre, o Grande, no século IV aC.

Antes de tudo, o tempo é, na Bíblia, a história da salvação. O tempo é a história na qual Deus revela seu projeto salvífico, manifesta sua vontade chamando pessoas concretas, convoca e reúne um povo de sua propriedade, libertando-o permanentemente da escravidão e do pecado, conduzindo-o até o cumprimento de suas promessas.

Essa promessa é plenamente cumprida em Jesus Cristo, a irrupção de Deus na história humana, na encarnação e em sua vida histórica. Esta irrupção, o dia favorável da salvação, não termina com a vida humana de Jesus de Nazaré, mas inaugura a eternidade definitiva, o tempo da plenitude que só aguarda sua consumação na parusia, a vinda definitiva do Cristo glorioso. O conceito de “reino” de Deus, inaugurado por Jesus Cristo, é um conceito temporal e não precisamente geográfico. É equivalente ao “reinado” de Deus, isto é, à instauração de sua soberania. Jesus afirmou que este reinado já estava no meio de seu povo por causa de suas intervenções salvadoras (Lc 11,20). Sua própria irrupção na história já era o começo do reinado, e a ressurreição dos mortos abriu a porta do tempo definitivo, lançando assim a linha para a consumação de sua vinda escatológica.

2.2 O culto como memorial 

Nesta ideia de tempo, o culto adquire um significado particular. Os grandes festivais anuais do Antigo Testamento, que em sua origem eram festas da natureza, cíclicas, foram historicizadas. Seu conteúdo original foi substituído por ações salvíficas de Deus na história. As festividades se transformaram em festas memoriais, que recordavam fatos salvíficos do passado. Através de palavras e ações rituais, esses eventos atualizavam (tornavam presente) a salvação de Deus e, ao mesmo tempo, prometiam a salvação definitiva para o futuro.

O ritual tornou-se um sinal memorial do que acontecera em algum momento, uma expressão de fidelidade aos preceitos divinos e um sinal de esperança no cumprimento futuro da promessa de Deus. É a sua fidelidade que atualiza no presente a salvação já realizada e promete para o futuro.

Esta compreensão do tempo e da ação cultual ao longo dele se dá tanto na liturgia da sinagoga como na liturgia da nossa Igreja cristã.

2.3 A compreensão litúrgica do tempo 

O tempo é obra de Deus e a Ele pertence, como tudo criado por Ele. Deus existe desde sempre e para sempre, isto é, fora do tempo e não sujeito ao seu domínio. O “tempo” de Deus é chamado eternidade. Ele é autor, criador e senhor do tempo.

No tempo, a vida humana se desenvolve, tomando consciência do devir, fazendo dele história. O cristianismo é uma religião histórica. Também sua liturgia é histórica, num duplo sentido: celebra a história e é celebrada na história.

2.3.1 O objeto da celebração cristã

O quê, precisamente, da história celebra nossa liturgia? O foco principal da liturgia cristã é o mistério pascal de Cristo, isto é, os eventos históricos de sua morte e ressurreição. Eles constituem o ápice e a articulação do tempo cristão. Na liturgia, celebra-se um Deus que, segundo a revelação, não é apenas o criador de tudo o que existe, mas também se manifesta libertando e salvando o homem na história, porque ele mesmo se fez história de salvação.

As intervenções libertadoras de Deus na história da salvação, passada, presente e futura, concentram-se no evento Cristo, no seu mistério pascal. E é precisamente este mistério pascal que a Igreja celebra sempre em todas as liturgias. Como o mistério pascal é a síntese da história da salvação, a liturgia é seu “momento” privilegiado, sua atualização. Ela celebra essa história na medida em que é preenchida pelas intervenções libertadoras de Deus, antes e depois da encarnação. Celebra não só a morte e ressurreição de Cristo, mas toda a sua vida, a terrena, a preexistente e a gloriosa, a sua mensagem e os seus próprios atos salvíficos.

2.3.2 Na história, em direção à plenitude do Reino

A liturgia é celebrada na história. Não é uma ação atemporal, não pretende “superar” o tempo. Não é celebrada de costas, mas imersa na história real, porque atualiza as irrupções salvíficas passadas de Deus na história presente, que é, também ela, a continuação da história da salvação.

A liturgia cristã não pretende, portanto, nem superar nem dominar o tempo, mas, ao contrário, nele, que é o cenário da história da salvação, “renasce” a história real dos seres humanos, submergindo-a no mistério de Cristo para que os crentes celebrem as intervenções libertadoras de Deus como um permanente dia de salvação: o hoje do mistério pascal que se faz presente na vida concreta da Igreja.

2.3.3 Círculo, linha, espiral 

Na liturgia, reúnem-se os três tempos que distinguem nossa consciência: o passado, com toda sua riqueza de intervenções de Deus, o presente, com as circunstâncias concretas e determinantes da assembleia que celebra, e o futuro, como meta escatológica que mobiliza a esperança e o compromisso dos cristãos: “Anunciamos a sua morte, proclamamos a sua ressurreição. Venha, Senhor Jesus!”, dizemos na aclamação, após o relato da instituição da eucaristia. A liturgia é celebrada na tensão de uma linha que avança para o encontro definitivo com o Senhor da história.

No tempo litúrgico cristão há uma síntese dos dois grandes sistemas de organização temporal, o cíclico e o linear. Organizado em torno dos ciclos naturais do dia, do mês e do ano e, acima de tudo, como o Concílio Vaticano II enfatizou, em torno do ciclo cultural-religioso da semana de sete dias, com o domingo como o dia principal. O mundo ocidental, influenciado pelo cristianismo, determinou o início de seu calendário, o ano zero, de acordo com o nascimento de Jesus Cristo. Hoje, graças a estudos que corrigiram cálculos do passado, sabemos que o nascimento de Jesus foi, de fato, entre os anos 4 e 7 antes do ano 0.

De acordo com a concepção cíclica, a liturgia cristã é ordenada pelas horas do dia, na sequência semanal marcada pelo domingo, e no ano, que recebe vários nomes: “ano litúrgico”, “ano eclesial”, “ano do Senhor”.  Para distribuir a riqueza da Bíblia nas leituras das várias celebrações, organiza-se o tempo litúrgico, desde a reforma do Concílio Vaticano II, num ciclo de três anos: A, B e C. A liturgia das horas organiza os textos bíblicos do ofício de leituras em um ciclo de dois anos, Par e Ímpar. A Igreja universal estabeleceu um ano jubilar a cada 50 anos. Todos esses padrões se repetem circularmente, uma unidade após a outra, sem mudança. Eles representam a continuidade da concepção cíclica no tempo litúrgico.

Ao mesmo tempo, a tensão subjacente do tempo litúrgico é claramente constituída por um entendimento linear: a Igreja, povo de Deus que nasce da Páscoa de Cristo, peregrina em direção ao “fim dos tempos”, à plenitude do Reino de Deus que será definitivamente instalado na segunda vinda de Cristo: a parusia.

Da síntese do círculo e da linha, surge a imagem mais apropriada do tempo da Igreja, que é o tempo litúrgico: a espiral ascendente. Contém tanto o movimento circular, de ciclos que se repetem sem mudança, como o movimento linear da história que avança sem nunca voltar atrás. Cada evolução da espiral ao mesmo tempo repete e renova, volta sobre si mesma e se move em direção ao que nunca foi percorrido antes. O que se repete no ano litúrgico, de fato, nunca se repete como no ciclo anterior, mas sempre em um nível superior, em um contexto novo e diferente, porque o mundo e a humanidade, os cristãos e aqueles que celebram não são os mesmos de um ano antes, e nem mesmo de um mês, de uma semana ou de um dia antes. Embora tudo na liturgia se repita, também é sempre novo, porque o mundo e a humanidade “mudam, tudo muda”.

2.3.4 Ano, mês, dia e hora

Como na sociedade civil, a principal unidade do tempo litúrgico é o “ano”, embora seja um “ano” particular, cujo início e fim não coincidem temporariamente com o ano civil. Seu valor é teológico, e não organizacional. Não é definido como uma mera magnitude temporal, mas como símbolo de uma realidade sobrenatural. Para o cristianismo, é a analogia de uma realidade espiritual muito mais profunda do que os dados cosmológicos de uma virada da Terra ao redor do sol. Tem profundas raízes bíblicas, cristalizadas nas expressões “ano da graça de Yahweh” (Is 61,2), “ano da graça do Senhor” (Lc 4,19), “plenitude dos tempos” (Gl 4,4; Ef 1,10), “Reino dos Céus” (Mt 3,2).

O fundamento cristão do ano é o próprio Senhor Jesus Cristo. O ano da graça do Senhor é o tempo da presença de Cristo que dura para sempre. O ano litúrgico é o símbolo da eternidade definitiva inaugurada por Jesus Cristo com a sua ressurreição e, por essa razão, torna-se um símbolo da vida plena do ressuscitado.

A liturgia, celebrando o mistério pascal de Cristo ao longo dos anos, meses, semanas, dias e horas, pascoaliza o tempo, colocando-o explicitamente na linha da história da salvação. Em outras palavras, o santifica.

No decorrer do dia, a Igreja celebra a eucaristia e a liturgia das horas. Com a liturgia das horas, a Igreja santifica os momentos do começo e do fim do dia – o nascer do sol e seu poente ­– com as orações das Laudes e das Vésperas, que considera “o duplo eixo sobre o qual se volta o Ofício diário” – e as horas principais, e também o meio-dia ou tempo intermediário, com as horas menores da Terceira, Sexta e Nona. Agrega o ofício de leituras e uma oração breve – as Completas – antes do descanso noturno.

A semana é marcada principalmente pelo domingo, que é a primeira festa dos cristãos, como enfatizou o Vaticano II. O ritmo semanal representa de maneira mais evidente a santificação do tempo litúrgico. A Páscoa semanal é a sequência fundamental do tempo litúrgico cristão.

O ano está claramente organizado no calendário romano, que foi inteiramente reformado pelo Concílio Vaticano II. O conceito bíblico e litúrgico de “ano santo” foi incorporado à Igreja no costume de instituir regularmente, a cada 25 anos, e também por ocasião de algum evento extraordinário, um ano festivo com esse nome.

3 O ano litúrgico cristão

O tempo litúrgico cristão adquiriu forma concreta, como parte da liturgia e como organização concreta das várias celebrações, como um “ano litúrgico”. Isso não se criou ou desenvolveu a partir de teoria, mas foi se formando a partir da prática em celebrar e aprofundar as verdades teológicas dos cristãos de vários lugares. Estabeleceu, desde o início, usos distintos e diferenças, que em parte foram unificados posteriormente para afirmar a comunhão da Igreja e em parte foram mantidos, alguns deles até hoje, como práticas distintas dentro da comunhão eclesial. Por exemplo, as Igrejas Orientais, mesmo aquelas em comunhão com Roma, celebram a Páscoa, a principal festa dos cristãos, em data diferente da católica romana. E a mesma coisa acontece com outras datas e tempos litúrgicos.

Como foi no começo? A partir da eucaristia semanal – os primeiros cristãos celebravam todos os “oitavos días”, que hoje chamamos de domingo (de dominica dies, “dia do Senhor”) – e da páscoa anual (celebração da Páscoa da Ressurreição uma vez por ano ), um rico ciclo de celebrações foi se desenvolvendo ao longo do ano.

As igrejas cristãs dos primeiros séculos, submetidas por longos períodos às perseguições do Império Romano, começaram a venerar seus mártires, que entregavam suas vidas e derramavam seu sangue por causa do evangelho, participando assim, do mistério pascal do Senhor. A recorrência anual da data dessas mortes deu origem ao que chamamos “martirológio”, isto é, a lista de todos os santos que veneramos na liturgia. O martirológio é enriquecido permanentemente por meio da beatificação e canonização de novos homens e mulheres, como aconteceu recentemente com monsenhor Oscar Romero, de El Salvador (canonizado em 14 de outubro de 2018, em Roma).

No quarto século, surgiu a festa do nascimento de Jesus, como consequência lógica da atenção dada a toda sua vida e obra, desde o momento de sua concepção e nascimento. Nos séculos subsequentes, outros eventos na vida de Jesus foram adquirindo o estatuto de festas litúrgicas. No mesmo século, a figura de Maria entrou na liturgia com grande força, na medida em que a teologia e a espiritualidade iam definindo e aprofundando seu papel essencial na história da salvação.

Desde o Concílio de Trento, no século XVI, o ano litúrgico, como toda a liturgia, estava formado em todas as suas estruturas fundamentais, que permaneceram sem mudanças de grande relevância até o Concílio Vaticano II em 1965. O CVII foi precedido por mais de um século de estudos litúrgicos científicos, que pouco a pouco foram questionando uma série de aspectos da liturgia que seriam reformados profundamente a partir da segunda metade do século XX.

4 A reforma do Vaticano II

Desde o Concílio Vaticano II, temos um ano litúrgico muito renovado sobre o passado. O enorme número de festas obrigatórias de santos que foram se acumulando ao longo da história levou gradualmente à perda da centralidade do mistério pascoal de Cristo e da importância do domingo. A consciência da importância fundamental da Sagrada Escritura para a fé e para a catequese da Igreja, tornou necessário repensar a sua presença na liturgia. O mesmo pode ser dito do uso das línguas de cada país ou grupo humano, chave para a compreensão e, acima de tudo, para a participação mais ativa das pessoas na celebração. A participação da assembleia foi uma das principais questões da reforma, que concebeu a liturgia não como uma função sagrada a que os fiéis assistem passivamente, ouvindo e repetindo gestos pré-definidos, mas sim como uma festa do povo de Deus, presidida pelo próprio Cristo em seus ministros, e caracterizada pela participação ativa de toda a assembleia litúrgica, cada qual segundo sua condição e função, e com maior espontaneidade e presença da vida concreta dos fiéis.

Levando em consideração estes e outros aspectos que necessitavam urgentemente de uma reforma, o Concílio renovou a liturgia e o ano litúrgico de maneira profunda. Reavaliou a centralidade do domingo, a celebração da “Páscoa semanal” e o ritmo fundamental do ano litúrgico. Outra grande riqueza da reforma é a presença renovada da Bíblia nas celebrações. Para a eucaristia aos domingos, foi elaborado um ciclo de três anos, no decorrer dos quais foram distribuídas leituras de toda a Bíblia, que permitem às comunidades conhecer os fundamentos da Sagrada Escritura nesse período.

4.1 A atual estrutura do ano litúrgico

A atual organização do ano litúrgico tem “tempos” e celebrações para a Igreja universal. Começa, na Igreja Católica, com as Primeiras Vésperas do Primeiro Domingo do Advento (isto é, no sábado depois da festa de Cristo Rei, à tarde). A data deste dia não é fixa, mas muda ligeiramente todos os anos. Uma vez que há quatro domingos de preparação para o Natal, retrocede-se do último domingo antes de 25 de dezembro para determinar a data do primeiro domingo do Advento. É sempre entre os últimos dias de novembro e os primeiros dias de dezembro. Com o Advento, inicia-se o ciclo de Natal (também chamado de ciclo de Manifestação do Senhor), que continua até a festa do batismo do Senhor, no primeiro domingo depois de 6 de janeiro.

O segundo tempo é o tempo comum, que inicia após a festa do batismo de Jesus e se estende até o início de Quaresma, tempo de preparação para a Páscoa da ressurreição. Nem mesmo essa data é fixa, pois é determinada pela data da Páscoa, estabelecida com base no calendário lunar, e não no solar: a Páscoa é sempre no primeiro domingo que se segue à lua cheia, após o equinócio da primavera. Oscila entre 22 de março e 25 de abril.

Começa então o ciclo pascal, que é constituído pela Quaresma, pela Semana Santa e a Páscoa, culminando com a solenidade de Pentecostes.

Na segunda-feira após o Pentecostes, o tempo comum é retomado e dura até o sábado posterior à solenidade de Cristo Rei. O tempo comum tem 33 ou 34 semanas e é o mais longo do ano litúrgico. Com as primeiras Vésperas no domingo posterior a essa festa, um novo ano litúrgico começa.

4.1.1 O ciclo ou tempo de Natal 

Este ciclo ou tempo, o segundo em importância do ano litúrgico, é também chamado de “ciclo da manifestação do Senhor”, porque celebramos Cristo que se revela a nós em suas manifestações na história humana. É organizado em torno da segunda grande festa do Senhor, o Natal, que celebra seu nascimento em Belém.

A “encarnação” de Deus, o fazer-se “carne” ou pessoa humana, é a condição necessária para que historicamente possa viver e morrer. O mistério pascal foi possível porque Deus se tornou humano. Este ciclo inicia o ano litúrgico da Igreja, o primeiro domingo do Advento. Seus principais momentos são:

– os quatro domingos do Advento, que constituem a preparação para o Natal e nos sensibilizam para a esperança da vinda definitiva do Senhor;

– o Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo em Belém;

– a Oitava do Natal, semelhante à da Páscoa, que continua a festa durante uma semana inteira; ela inaugura o “tempo de Natal”, que dura até o começo do tempo comum;

– a festa da Sagrada Família, no domingo depois do Natal;

– o dia da Oitava, 1º de janeiro e início do ano civil em grande parte do mundo, celebrando a solenidade de Santa Maria Mãe de Deus;

– a Epifania, em 6 de janeiro ou no segundo domingo após o Natal, que recorda a manifestação do recém-nascido a todas as nações, representadas nos magos do oriente;

– o batismo do Senhor, no domingo depois da Epifania, que faz memória do início do seu ministério messiânico, manifestando-se assim ao seu povo, Israel. Com esta festa, o “tempo de Natal” termina e a primeira semana do “tempo comum” começa.

4.1.2 O ciclo ou tempo pascal 

O ciclo, ou tempo, da Páscoa é o mais importante do ano litúrgico, porque no seu centro está a principal festa cristã, a Páscoa da Ressurreição. O ciclo começa na Quarta-feira de Cinzas, com a Quaresma, um tempo de conversão e reflexão que dura 40 dias e está orientado para a preparação da Páscoa. No final da Quaresma, vem a Semana Santa, a mais intensa do ano litúrgico, cujos dias mais importantes são:

– Domingo de Ramos, quando se inicia e comemora a entrada de Jesus em Jerusalém antes de morrer e ressuscitar;

– Quinta-feira Santa, em que se celebra a “missa crismal” do bispo com todos os seus colaboradores no ministério (sacerdotes e diáconos) e os óleos são benzidos para os batismos, confirmações, unções dos enfermos e ordenações do ano (existem dioceses em que esta missa é transferida para outro dia da Semana Santa); e, na noite da Quinta-feira Santa, a Ceia do Senhor em que celebramos a instituição da eucaristia e o sacerdócio ordenado;

– Sexta-Feira Santa, o dia em que lembramos a morte do Senhor; é o único dia do ano em que a eucaristia não é celebrada (por isso comungamos com as hóstias consagradas na Quinta-feira Santa);

– Sábado Santo, que culmina, à noite, com a vigília pascal;

– e a celebração dominical da ressurreição.

A celebração da ressurreição prolonga-se na Oitava da Páscoa, até o domingo seguinte, como “um único dia de festa”. Continua, além disso, para todo o quinquagésimo pascal ou período pascal, que são os cinquenta dias que culminam com a festa do Espírito Santo, Pentecostes. No 40º dia é celebrada a Festa da Ascensão do Senhor, que em muitos países é transferida para o domingo seguinte, que é aquele antes de Pentecostes.

4.1.3 O tempo comum 

Em todo o tempo que fica fora dos dois grandes ciclos anteriores, cuja duração é de 33 ou 34 semanas, nenhum aspecto particular do mistério pascal é celebrado, a não ser o mistério de Cristo e de sua Igreja como um todo. Os domingos são seus principais dias; a cada sete dias acontece a festa da ressurreição para os cristãos. Uma parte menor destes domingos, entre 5 e 9, se encontra  depois do ciclo da manifestação, a partir da festa do batismo do Senhor, e os restantes, depois do domingo de Pentecostes, até o sábado anterior ao primeiro domingo do Advento.

Quanto à leitura do evangelho, o evangelista Lucas foi designado para o ano A, os evangelistas Marcos e João para o ano B, e o evangelista Mateus para o ano C. A cada três anos, o ciclo recomeça, dando-nos a possibilidade de uma nova passagem pelos livros e textos mais importantes para a nossa fé. No tempo comum, os domingos e os dias da semana são a razão da celebração, especialmente o lecionário. Com as leituras dos anos A, B e C se dá sua unidade, que não é cortada por estar dividida em duas partes.

4.1.4 Outras festas do ano litúrgico 

No tempo comum, a Igreja coloca uma série de outras festividades importantes, entre as quais se destacam muitas festas da Virgem e dos santos, embora  essas também estejam distribuídas ao longo do ano, podendo estar nos ciclos da manifestação e da Páscoa. Os eventos mais importantes são os seguintes.

Em relação a Jesus Cristo: apresentação do Senhor (2 de fevereiro, na verdade, entra no complexo das festividades da manifestação); Exaltação da Cruz (14 de setembro ou 3 de maio); Santíssima Trindade (domingo após o Pentecostes; celebra o Pai, o Filho e o Espírito Santo); Corpus Christi (Corpo e Sangue de Cristo; segunda quinta-feira após Pentecostes); Sagrado Coração de Jesus (terceira sexta-feira após Pentecostes); Transfiguração do Senhor (6 de agosto); Cristo Rei (último domingo do ano litúrgico, isto é, antes do primeiro dia do Advento).

Em relação à Virgem Maria: Anunciação do Senhor (25 de março: nove meses antes do nascimento); Assunção de Maria (15 de agosto); Imaculada Conceição (8 de dezembro); Imaculado Coração de Maria (terceiro sábado após Pentecostes); e muitas invocações especiais, como Nossa Senhora de Lourdes (11 de fevereiro), Nossa Senhora de Fátima (13 de maio), e, especialmente na América Latina, o continente mariano por excelencia, cujos países veneram a Virgem Maria como padroeira em várias invocações: Nossa Senhora de Guadalupe (padroeira da América Latina, 12 de dezembro), Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro), Virgem de Luján (8 de maio), Nossa Senhora do Carmo (16 de julho) e muitas outras.

Em relação aos santos: Todos os santos (1º de novembro), São José (19 de março) e São José Operário (1º de maio), São João Batista (24 de junho), São Pedro e São Paulo (29 de junho) e outros próprios de cada país. O grande número de homens e mulheres que foram canonizados desde o pontificado de São João Paulo II deve-se ao desejo de enriquecer os calendários particulares com santos e santas locais, além daqueles do calendário universal.

Há ainda muitas outras festas da Virgem Maria e dos santos. Frequentemente estão mais ligadas à devoção pessoal ou a algumas regiões. Por sua importância para muitos católicos, devemos lembrar também a comemoração de Todos os mortos (2 de novembro), um dia de grande afluência aos cemitérios.

A comunhão não é uniformidade, mas unidade na riqueza da diversidade. Por esta razão, o ano litúrgico se torna local em cada Igreja particular, através de celebrações e festas próprias.

As celebrações têm suas próprias cores, que são usadas ​​em vestes litúrgicas e outros signos/símbolos  do espaço da celebração: verde para o tempo comum, tanto nos domingos como em festas e dias da semana; vermelho para o Domingo de Ramos, Sexta-Feira Santa e as festas dos apóstolos e mártires; roxo para o Advento, a Quaresma e as celebrações dos falecidos; e branco para a Páscoa, o Natal e as outras solenidades e festas de Cristo e da Virgem Maria. Em vários lugares, a cor azul foi popularizada pelas festas da Virgem. O significado das cores é convencional, pode mudar de cultura para cultura: vermelho para paixão, apóstolos e mártires que deram seu sangue, como Jesus Cristo, pelo evangelho. Branco, a cor por excelência de santidade e pureza, para as grandes solenidades do ano e para as festas da Virgem. Púrpura, cor originalmente penitencial, de recordação e conversão, para os tempos de preparação e para as celebrações da morte dos cristãos. Verde, a cor mais comum, para o tempo normal.

4.2 O tempo litúrgico como mistagogia da Igreja

O ano litúrgico não é uma mera organização das celebrações litúrgicas da Igreja no tempo. Muito mais do que uma estrutura simples, é na verdade uma mistagogia da Igreja, isto é, um itinerário formativo que introduz o mistério de Cristo e conduz para um aprofundamento cada vez maior do evangelho e de toda a doutrina cristã e, portanto, a um crescimento no compromisso dos fiéis com sua fé.

Comemora-se toda a riqueza do mistério de Cristo: seu nascimento, sua vida, sua paixão, morte e ressurreição, suas palavras e atos, sua Mãe Maria, os efeitos de sua mensagem sobre tantas testemunhas e mártires a partir das leituras bíblicas, a riqueza e a beleza dos textos litúrgicos elaborados pela Igreja, a experiência de celebrar em comunidade e participar ativamente de celebrações, de cantar e dialogar em ambientes fraternos, de experimentar os desafios a que o Senhor nos chama da celebração da fé; tudo isso é um caminho único de crescimento e aprofundamento da vida cristã para todos os fiéis.

Viver conscientemente o desenvolvimento do ano litúrgico, não só por um ano, mas pelos três anos do ciclo dominical, nos permite percorrer os fundamentos da revelação cristã através das leituras bíblicas, e também ajuda a gerar, na Igreja, a autêntica comunhão na diversidade e, em cada cristão, a consciência de uma fé e um compromisso que não são estáticos. São autênticas “histórias da salvação” vividas na evolução do tempo, sempre desafiadas a uma maior fidelidade ao evangelho e sempre atraídas pela esperança do Reino, ápice do tempo e do ano litúrgico.

Guillermo Rosas. Pontifícia Universidad Católica de Chile. Texto original em espanhol.

 Referências

CALENDARIO ROMANO GENERAL, 1969. Também a edição que contém o Missal Romano, 3ª edição típica, 2002.

CALENDARIA PARTICULARIA, Instrucción de la Sagrada Congregación para el Culto divino, 24 junio 1970.

PAULO VI. Msterii Paschalis, Motu proprio, 1969.

BERGAMINI, Augusto. Verbete Año litúrgico. In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid: Paulinas, 1987, p. 136-144.

CASTELLANO, Jesús. El año litúrgico. Memorial de Cristo y mistagogía de la Iglesia. Barcelona: Biblioteca litúrgica 1, Centre de Pastoral litúrgica, 1994.

DALMAIS I. H. El tiempo en la liturgia. In: MARTIMORT, A. G. La Iglesia en oración. Introducción a la liturgia. Nueva edición actualizada y aumentada, parte IV. Barcelona: Herder, 1987, p.889-895.

GOÑI, José Antonio. Historia del año litúrgico y del calendario romano, Biblioteca litúrgica 40. Barcelona: Centre de Pastoral litúrgica, 2010.

LÓPEZ MARTÍN, Julián. La voz: Calendario litúrgico. In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid: Paulinas, 1987, p.258-264.

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_____. El hoy de la salvación en la liturgia. Revista Medellín, v.XXIX, n.116, CELAM-ITEPAL, p.699-718, diciembre 2003.

______. El tiempo en la liturgia. In: CELAM. Manual de Liturgia, v. III: La celebración del misterio pascual. Fundamentos teológicos y elementos constitutivos. Bogotá: CELAM,  2003, p.545-57.

TRIACCA A. M. Verbete: Tiempo y liturgia. In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid: Paulinas, 1987.

Fé Cristã e práxis social

Sumário

Introdução

1 Autocompreensão da fé cristã

1.1 A fé cristã como caminho

1.2 A fé cristã como testemunho

1.3 A fé cristã como modo de vida

2 Práxis social cristã

2.1 Uma característica essencial, não opcional

2.2 Uma práxis individual e coletiva

2.3 Uma práxis transformadora

2.4 Dimensões da práxis cristã

3 A práxis social cristã na história e na atualidade

3.1 A práxis cristã como programa de ação

3.2 Movimentos históricos inspirados na práxis cristã

3.3 O magistério social inspirador do papa Francisco

Conclusão

4 Referências bibliográficas

Introdução

O propósito deste verbete é elucidar as relações entre fé cristã e prática social. Trata-se, por um lado, de mostrar a autocompreensão da fé cristã enquanto histórica e profética, cuja consistência se verifica através da prática de seus seguidores. Por outro lado, coloca-se a questão: o que se entende por práxis social cristã? Como essa práxis social se realizou nos caminhos da história, na busca de concretizar sua aspiração de ser uma práxis transformadora? Como se articulam a fé cristã e a práxis social?

O texto bíblico que nos pode acompanhar nesta reflexão é o do apóstolo S. Tiago em sua carta às primeiras comunidades cristãs, questionando uma fé sem obras, que, segundo o apóstolo, é morta em si mesma:

Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé e não tiver obras? Porventura essa fé pode salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e tiverem falta de mantimento cotidiano e algum de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos’; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito há nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma. Mas dirá alguém: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (Tg 2, 14-18).

 1 Autocompreensão da fé cristã

1.1 A fé cristã como caminho

Em suas raízes, a fé cristã não é, em primeiro lugar, um culto ou rito, ou um conjunto de verdades, mas um caminho, uma fé voltada para uma práxis de vida. Texto emblemático para o discipulado cristão é o da cura do cego Bartimeu, que pede a Jesus que o faça ver. Jesus lhe disse: “Vai, a tua fé te salvou”. A resposta do cego, curado de sua cegueira – de falta de fé – foi o seguimento de Jesus: “No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho” (Mc 10,52). A fé cristã é um caminho que conduz à vida, que leva à salvação. Isso a torna uma boa notícia para o homem todo e todos os homens, pois ela é o cumprimento de uma promessa de salvação, feita por Deus a seu povo, que ele acompanhou como pedagogo até a realização do prometido pela chegada do “Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11).

1.2 A fé cristã como testemunho

As primeiras comunidades cristãs se reuniam para dar testemunho do ressuscitado, para celebrar a ceia do Senhor, memorial de sua paixão. “Eles eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2,42).  A comunhão fraterna incluía o cuidado com as viúvas e com os pobres. Repartiam os bens entre todos, “conforme a necessidade de cada um” (At 2,45). As Escrituras Sagradas eram importantes para eles, mas eles não se caracterizavam como uma “religião do livro” (como se considera, por exemplo, o Islão), mas do testemunho vivo dos apóstolos. Segundo atesta o livro dos Atos, Jesus envia os seus como suas testemunhas: “mas recebereis o poder do Espírito Santo que virá sobre vós para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra” (At 1,8).

Pedro repete essa convicção em sua segunda carta, considerada seu testamento pastoral: “pois não foi seguindo fábulas habilmente inventadas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas sim por termos sido testemunhas oculares de sua grandeza” (2Pd 1,16). A confirmação do testemunho é a entrega da própria vida, o martírio como testemunho definitivo na vida do discípulo.

1.3 A fé cristã como modo de vida

A fé cristã não só anuncia o Reino de Deus, mas propõe o Reinado de Deus no mundo, o que requer conversão e adesão das pessoas ao projeto de Deus, traduzido em obras virtuosas. As obras revelam a autenticidade da fé, não a justificam. A fé cristã se inspira no modo de ser e agir de Jesus, em sua vida, seus gestos, suas ações e pregações. Jesus tinha como grande missão a vida plena das pessoas, sobretudo dos pequenos, dos excluídos e marginalizados da sociedade. Sua pregação se centralizava no anúncio do Reino de Deus e sua justiça. Seus gestos mais frequentes eram o ensino e o serviço aos doentes, que ele tocava e pelos quais ele se deixava tocar. Assim, o evangelista Lucas relata que “todos os que tinham doentes, com diversas enfermidades, os levavam a Jesus. E ele impunha as mãos sobre cada um deles e os curava” (Lc 4,40).

Jesus era movido por sentimentos de compaixão pelo povo: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas que não têm pastor. E começou então a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34). Percebia suas necessidades não só materiais mas também espirituais. Não só lhes deu um ensino, mas também pão material.

Jesus resumiu o modo de vida de seus seguidores na prática do amor fraterno, o “mandamento novo”: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). O amor se traduz no dom da própria vida, não só no martírio, mas no serviço quotidiano, inspirado na fé.

Essa compreensão da fé cristã como caminho, testemunho e modo de vida se manteve, com acentuações diversas ao longo da história. A vida de Jesus continua sendo a grande norma de vida dos cristãos. O Catecismo da Igreja Católica, expressão atualizada dessa fé, formula assim esse seguimento:

Incorporados a Cristo pelo Batismo, os cristãos estão ‘mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus’ (Rm 6,11), participando assim da vida do Ressuscitado. Seguindo a Cristo e em união com ele, podem “tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e andar no amor” (Ef 5,1-2), conformando seus pensamentos, palavras e ações aos “sentimentos de Cristo Jesus” (Fil 2,5) e seguindo seus exemplos (CIC § 1.694).

2 Práxis social cristã

2.1 Uma característica essencial, não opcional

A fé cristã não pode prescindir, de modo algum, do compromisso social, algo intrínseco ao modo de ser cristão. É algo professado e vivido ao longo da história do cristianismo. O Concílio Vaticano II buscou atualizar a fé cristã para os nossos tempos. Essa fé leva os cristãos a fazer suas as alegrias e as angústias da humanidade de nosso tempo, como dimensão essencial de sua mensagem de salvação:

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com efeito, a sua comunidade se constitui de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história (GS n.1).

Assim a fé cristã “[…] torna-se luz para iluminar as relações sociais” (GS n.40).

O papa Francisco reafirma a incidência social da fé cristã como característica imprescindível:

O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade (EG n.177).

A fé cristã tem uma dimensão pessoal, eclesial e histórica, que lhe é intrínseca. A própria fé cristã, pela sua natureza testemunhal, gera uma práxis transformadora. Tem impacto na vida social e exerce influência nas estruturas que dão forma à sociedade. Os cristãos são incentivados, por sua fé, a praticar a caridade social, não só através de ações e instituições de serviço ao próximo, sobretudo aos mais necessitados, mas através de pessoas que exercem uma função política e sociotransformadora.

A encíclica Octogesima Adveniens, de Paulo VI, afirma que a política é uma forma exigente de viver o compromisso cristão: “A política é uma maneira exigente, se bem que não seja a única, de viver o compromisso cristão, a serviço dos outros” (OA n.46). Também poderíamos formular assim essa afirmação: “A política é forma sublime de exercer a caridade”.

2.2 Uma práxis individual e coletiva

A práxis social cristã, para ser eficaz, será simultaneamente individual e coletiva. A dimensão individual, expressa em uma opção de vida, se traduz em ações e hábitos bons. Em linguagem tradicional, são virtudes ou hábitos virtuosos, “disposições habituais e firmes de fazer o bem” (cf. CIC 1883), e que tem valência social. Trata-se de virtudes humanas e teologais. Como virtudes cardeais temos a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Virtudes teologais são a fé, a esperança e a caridade, esta última chamada por Paulo de “vínculo da perfeição” (Cl 3,14) e “a maior entre todas” as virtudes (1Cor 13,13). Esses hábitos nascem e se fortalecem no contexto familiar e comunitário e dão uma feição cristã ao exercício da profissão e da vida social de cada um. Um profissional cristão usará de prudência e de fortaleza para pôr em prática ações que modifiquem situações injustas. Uma pessoa que pratica a justiça e a verdade suscita esperança de transformação. Disso falou o papa Francisco, em sua homilia em Villavicenzio, Colômbia, convidando à reconciliação e à rejeição da vingança: “Basta uma pessoa boa para que haja esperança. E cada um de nós pode ser esta pessoa! Isto não significa ignorar ou dissimular as diferenças e os conflitos. Não é legitimar as injustiças pessoais ou estruturais” (papa Francisco, 8 set 2017).

A práxis cristã individual tende a se difundir, a se coletivizar, e articulada com outros pode desencadear mudanças. Ela pode desencadear ações transformadoras realizadas em coletivos, que atuam no campo da economia, da política ou da cultura. Serão grupos de cidadãos, em movimentos organizados, inspirados nos valores da justiça e da solidariedade, e que privilegiem o diálogo como forma de busca do consenso. Daí pode nascer um novo ordenamento jurídico, mais justo e mais humano. Leis que traduzam aspirações de minorias e combatam a discriminação. No campo político, grupos e movimentos de um povo organizado podem construir um novo pacto social, mais democrático e participativo. Falando do diálogo social como contribuição para a paz, a Evangelii Gaudium formula assim esse processo de práxis social realizada pelo povo com sua cultura e não por elites ou minorias iluminadas:

O autor principal, o sujeito histórico deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fração, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projeto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento coletivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG n.239).

2.3 Uma práxis transformadora

Para ser transformadora, a ação deve ter caráter de uma verdadeira práxis, isto é, uma forma de ação que liga a teoria com a prática, de modo a se tornarem interdependentes. Teoria e prática questionam-se e se constroem reciprocamente. A teoria é um momento necessário da práxis. Na práxis, a teoria se torna realidade transformadora. A práxis se distingue de um modo de agir puramente repetitivo. A práxis é uma ação refletida e que faz refletir. O questionamento orienta à busca de coerência com os valores cristãos, como o amor, a justiça e a solidariedade.

A práxis cristã tem assim um caráter ético. Pretende provocar transformações, de situações menos justas para situações mais justas. Práxis é um modo de agir crítico, reflexivo, com finalidade transformadora. A compreensão da práxis social cristã foi estimulada pelas discussões em torno da filosofia da práxis (Gramsci). Aprender a refletir, criar o hábito da reflexão, é condição para a realização de uma práxis transformadora, que liga estrategicamente conceitos ou valores com ações, articulando a teoria com a prática. A reflexão crítica é fundamental para uma práxis transformadora consistente e duradoura. Podemos dizer, em resumo, que a práxis cristã é uma ação refletida que produz significado em termos de uma transformação ideada ou planejada e eticamente desejável.

2.4 Características da práxis cristã

A práxis cristã busca levar a uma compreensão do caminho da mudança e a um compromisso com a prática desse caminho, no contexto da comunidade eclesial. Implica um compromisso com a vida plena para todos e com a prática de relações sociais humanas e humanizadoras. Desta forma, empenha-se por superar uma visão fatalista diante da vida, de situações de miséria, injustiça ou exclusão e criar horizontes de esperança, desejos de uma nova realidade. Esse modo de agir caracteriza a práxis cristã como histórica, eclesial e profética.

Em primeiro lugar, é uma práxis histórica, situada, contextualizada, e que se vale da mediação das ciências sociais e da filosofia para alcançar um melhor conhecimento da realidade (mediação socioanalítica e hermenêutica). Toma consciência da mudança de época que vivemos, dos conflitos e das transformações do contexto de vida. O cristão se assume como sujeito dessa história, e como membro de um povo, com laços familiares e pertenças a grupos, a movimentos ou a agremiações partidárias. Se expressa na participação política, consciente e criativa.

Segundo, é uma práxis eclesial, adulta e corresponsável. Compromete-se com uma Igreja aberta ao mundo e ao diálogo social, ecumênico e inter-religioso. Esse diálogo tem duas mãos: no sentido de que a própria Igreja dê conta que precisa mudar; e no sentido da responsabilidade da Igreja (como povo de Deus) influenciar essas mudanças na linha de uma ética cristã. É importante que, hierarquia e povo, tenham consciência do papel da Igreja, de suas potencialidades e limites, da justa autonomia das realidades terrestres, mas sobretudo do papel do povo cristão na promoção da justiça, do bem comum e da defesa dos direitos dos mais fracos e excluídos.

Em terceiro lugar, a práxis cristã é profética, no duplo sentido de denúncia e de anúncio. Denúncia de situações históricas, estruturas mentais, hábitos e leis que agridem a dignidade e a integridade da vida humana, em todas as suas fases, situações ou leis nocivas ao bem comum ou que distorcem a função social da propriedade. Implica na denúncia de privilégios, da corrupção e da apatia política. A defesa dos mais fracos exige lucidez em perceber e coragem para denunciar situações, decisões e propostas prejudiciais aos pobres, às minorias, a setores ou grupos fragilizados. Requer também o apoio a iniciativas que promovam o bem comum e a sustentabilidade ambiental. O profetismo da Igreja ganha força através de gestos concretos que realizem no âmbito interno da Igreja aquilo que ela prega para os outros, por exemplo, pela observância dos direitos dos trabalhadores e o pagamento dos impostos e tributos devidos.

3 A práxis social cristã na história e na atualidade

3.1 A práxis social como um programa de ação

A reflexão e práxis social da Igreja ao longo dos últimos cento e cinquenta anos ganhou expressão em um corpo doutrinário próprio, original e sempre aberto – a chamada Doutrina Social da Igreja ou pensamento social cristão. Trata-se de um ensinamento evolutivo, respondendo a desafios históricos e incorporando reflexões e experiências, recebidas e formuladas em uma série de Encíclicas Sociais, textos do Concílio e outros documentos oficiais. A série de onze encíclicas sociais foi inaugurada pela Rerum Novarum, de Leão XIII (1891), sobre a Condição dos Operários. O Magistério da Igreja abraçou a missão de refletir sobre as grandes questões nos vários momentos da história, sempre à luz do Evangelho de Cristo, do ensinamento dos Santos Padres e da filosofia cristã.

As mais recentes são as encíclicas de Bento XVI Caritas in Veritate, “sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade” (2009), e a Laudato Sì, do papa Francisco, “sobre o Cuidado da Casa Comum” (2015), que analisa a crise ecológica intimamente conectada com a crise ambiental. Inserido nessa corrente de pensamento e conferindo autoridade máxima a esse ensinamento, temos o documento do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes, “sobre a Igreja no Mundo de Hoje” (1965). Foram definidos seis grandes princípios e quatro valores básicos da vida social. Eis os princípios: a dignidade da pessoa humana; o bem comum; a destinação universal dos bens; a subsidiariedade; a participação e a solidariedade. E os quatro valores: a verdade, a liberdade, a justiça e o amor.

O ensino social cristão nasce e se enriquece nas comunidades cristãs, desde os tempos dos apóstolos. Face à diversidade das situações, como escreve o papa Paulo VI na OA, o magistério não quer “propor uma solução que tenha valor universal”. Na verdade, “é às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria de seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras do Evangelho; a elas cumpre haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação na doutrina social da Igreja, como ela foi sendo elaborada no decurso da história”. A essas comunidades cabe discernir “as opções e os compromissos que convém tomar, para as mudanças que se apresentam como necessárias, com urgência, em não poucos casos”, em diálogo com a hierarquia, “com os outros irmãos cristãos e com todas as pessoas de boa vontade” (OA  n. 4).

No contexto atual, de uma sociedade pluralista e pós-moderna, é importante que as comunidades cristãs dialoguem com os diversos grupos e movimentos presentes na sociedade. Levando com clareza sua proposta em relação aos valores fundamentais da vida em comum, as comunidades cristãs estão dispostas a buscar, de forma conjunta, a proposta que melhor sirva ao interesse coletivo, como propõe a Evangelii Gaudium:

No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas (n.241).

 3.2 Movimentos históricos inspirados na práxis cristã

A práxis social da fé cristã deixou sua marca ao longo da história de muitas sociedades, nas quais ela esteve presente, atuando de formas variadas, mas sempre no sentido de concretizar valores cristãos. Desde que nada do que humano lhe é alheio, a práxis cristã, no contexto de cristandade, se concretizou em obras nas áreas de saúde (santas casas), educação (escolas e universidades) e cultura (canto sacro, belas artes, meios de comunicação). Num mundo secularizado, mesmo continuando sua ação através de instituições, sua presença tornou-se mais difusa, seja através de movimentos sociais, seja através do debate público (teologia pública).

Entre os movimentos no campo econômico e social podemos citar, por exemplo, a economia popular e solidária, centrada na pessoa, no atendimento das necessidades humanas e no cuidado com o meio ambiente, que se apresenta como uma alternativa para o capitalismo liberal, que é centrado no capital, na busca do lucro privado, na base da competição e na prática do desperdício. No surgimento do moderno movimento cooperativista, é notória a motivação religiosa de seus fundadores.

Num mundo dominado pela economia de mercado e pelo capitalismo financeiro, no qual cresce a concentração da riqueza, a competição, a desigualdade, a exclusão e o descarte da ética, propostas que buscam ativamente uma economia centrada na pessoa, num sistema de economia solidária, na busca da igualdade, da participação, da inclusão e da sustentabilidade, podem parecer como utopia, uma proposta incapaz de atender a demanda por bens e serviços de sete bilhões de habitantes do planeta. Fica aberta a questão até quando a humanidade poderá sobreviver neste sistema, que leva ao esgotamento de recursos naturais não renováveis e à degradação ambiental, numa corrida para o colapso de um sistema suicida. Cabe aqui lembrar essa advertência da Encíclica Laudato Sì, sobre nossa casa comum:

O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está acontecendo periodicamente em várias regiões (n.161).

Em apoio a muitos desses movimentos ou ações na base, a Igreja – sobretudo a partir do Vaticano II – criou pastorais específicas, de assessoria e promoção da ação social das bases. As “pastorais sociais” constituem, assim, tentativas de resposta histórica articulada, no âmbito eclesial, do compromisso social cristão nas mais variadas frentes. Com acompanhamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), contamos no Brasil com (ao menos) onze pastorais sociais nacionais, todas voltadas para a ação com grupos vulneráveis ou setores que pedem atenção especial: Pastoral da Criança, Carcerária, da Mulher Marginalizada, da Saúde, do Menor, do Povo de Rua, dos Migrantes, dos Nômades, dos Pescadores, Pastoral Operária, da Terra. Outros setores são muito próximos a essas pastorais, como a pastoral da educação, da cultura, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), a Comissão Brasileira Justiça e Paz e a Cáritas Brasileira. A própria Campanha da Fraternidade, em sua fase atual, propõe temas de caráter social, abordados anualmente em nível nacional. Em 2017, o tema foi: “Fraternidade, biomas e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” (Gn 2,15). Em 2018, refletiu-se sobre  “Fraternidade e superação da violência”, com o lema: “Vós sois todos irmãos” (cf. Mt 23,8).

3.3 O magistério social inspirador do papa Francisco

A práxis social cristã recebeu ultimamente uma forte inspiração no magistério do papa Francisco. Os grandes temas do seu magistério têm uma profunda orientação social: uma “Igreja em saída”, que sai de sua autorreferencialidade e vai às periferias geográficas, sociais e existenciais; a opção pelos pobres e marginalizados por uma cultura da indiferença e do descarte; a acolhida de migrantes e refugiados, que ninguém quer; o cuidado da casa comum, com a aposta em uma ecologia integral; a busca da paz, fruto do perdão, da reconciliação e da criação de condições dignas de vida para todos. Para sair de si, a Igreja deve assumir riscos: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, do que uma Igreja enferma pela oclusão e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG n.49).

A Igreja dos sonhos do papa é uma igreja pobre e para os pobres. Justificando a escolha do nome de Francisco – lembrando o pobre de Assis, Francisco, – declarou Jorge Mario Bergoglio: “Ah, como gostaria de uma Igreja pobre e pelos pobres!” (RV, 16 mar 2013).  Claramente, a crítica mais forte do papa é contra uma economia que serve ao deus dinheiro e que mata: “Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra” (papa Francisco aos Movimentos Sociais em S. Cruz de la Sierra, Bolívia, 10 jul 2015). A mudança das estruturas do atual sistema econômico é condição fundamental para a solução dos grandes problemas sociais do nosso mundo:

Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda política econômica (…)  (EG n.202-203)

A superação da desigualdade, da pobreza e da exploração, assim como a inclusão social dos pobres, só serão possíveis se for resolvida, simultaneamente, a questão ambiental. Na visão de Francisco, não existem duas crises separadas, mas uma única e complexa crise socioambiental:

É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza (LS n.139)

Conclusão

O tema fé cristã e práxis social nos reporta ao núcleo central do próprio cristianismo: o mistério da encarnação. Desde que o Filho de Deus se tornou homem, nada do que é humano é alheio à fé cristã. Mais que isso: o próprio Senhor quer ser identificado na pessoa do menor dos seus irmãos, como lemos no texto de Mateus sobre o julgamento das nações: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40). Esse texto não é senão a tradução histórica do duplo mandamento do amor. Para o cristão, a práxis social é parte essencial no exercício de sua identidade cristã, na vivência do amor-caridade. Sem a práxis social, a fé é morta, como lembramos no início deste verbete: “Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2.26).

Matias Martinho Lenz, SJ . Pontifícia Universidade Católica de Pelotas, Brasil. Texto original português.

 4 Referências

Encíclicas sociais em ordem cronológica, com sigla e ano de publicação:

LEÃO XIII. Rerum Novarum (RN). Sobre a condição dos operários, 1891.

PIO XI. Quadragesimo Anno (QA). Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica, 1931. 

JOÃO XXIII. Mater et Magistra (MM). Sobre a evolução contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, 1961.

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PAULO VI. Populorum Progressio (PP). Sobre o desenvolvimento dos povos, 1967.

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BENTO XVI. Caritas in Veritate (CV). Sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, 2009.

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______. Laudato Si’ (LS) – Louvado Sejas. Sobre o cuidado da casa comum, 2015. 

Outros documentos sociais oficiais da Igreja Católica

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______. Decreto Apostolicam Actuositatem (AA). Sobre o Apostolado dos Leigos, 1965.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Documento de Puebla (DP), 1979.

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PAULO VI. Octogesima Adveniens (OA). Carta Apostólica comemorativa dos 80 anos da Encíclica Rerum Novarum, 1971.  

Textos e livros de referência 

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FRANÇA FILHO, G. C.; LAVILLE, J.-L. Economia Solidária. Uma Abordagem Internacional. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2004.

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PIKETTY, T.  A Economia da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI). São Paulo: Paulinas, 2005.

SOUZA, A. R.; CUNHA, G. C.; DAKUZAKU, R. Y. (Orgs) Uma outra Economia é Possível. Paul Singer e a Economia Solidária. São Paulo: Contexto, 2003.

ZACARIAS, R.; MANZINI, R. (Orgs.) Magistério e Doutrina Social da Igreja. Continuidade e desafios. São Paulo: Paulus, 2016.

Teologia e pós-modernidade na América Latina e no Caribe

Sumário

1 Sobreviventes de um naufrágio

2 Um pouco de história

3 A subjetividade violada

4 As resistências múltiplas como resiliência

5 A gratuidade do gesto messiânico disruptivo

1 Sobreviventes de um naufrágio

O naufrágio do ego moderno está levando a civilização humana ao perigo de extinção devido à crise ecológica e social que o capitalismo e a revolução industrial desencadearam. Esta encruzilhada de aniquilação tornou-se mais evidente desde o reverso da história, isto é, desde o clamor dos povos subjugados e da natureza transformada em uma mercadoria com o modelo extrativista de estado. O metarrelato da emancipação do sujeito ocidental começou sua expansão em 1492, com a colonização da América e se impôs como uma racionalidade dominante, apresentada como um projeto único de civilização, unindo o pensamento eurocêntrico com o cristianismo greco-romano como principal legitimação de um modelo ocidental da sociedade.

Passaram-se cinco séculos para que surgisse a ideia da decolonialidade, como expressão de autonomia epistêmica, territorial e simbólica entre os povos indígenas da grande América. Surpreendentemente, o rio subterrâneo do conhecimento ancestral encontrou-se com  o fluxo do pensamento crítico moderno que já havia percebido o esgotamento da razão instrumental desde a segunda metade do século XX.

Certamente, a pós-modernidade, ou modernidade tardia, é de alguma forma a crise da modernidade como metarrelato da emancipação e da epopeia do eu. Mas esta crise não deixa de ser ocidental. É por isso que, em algumas comunidades indígenas, houve projetos de autonomia que incluem uma rebelião epistêmica (LEYVA em MENDOZA-ÁLVAREZ 2016, 168) como expressões das múltiplas epistemologias do Sul (SANTOS 2011 e SANTOS & MENESES, 2014).

Aqui analisaremos três eixos transversais do pensamento pós-moderno que encontram uma ressonância crítica no pensamento anti-sistêmico latino-americano, a saber: 1) a subjetividade violada; 2) as resistências múltiplas como resiliência; e 3) a gratuidade como um gesto messiânico disruptivo de contração da temporalidade violenta. Através destes conceitos-chave, propomos uma hermenêutica da pós-modernidade teológica latino-americana (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2015).

2 Um pouco de história

A teologia da libertação, nascida como uma recepção criativa do Concílio Vaticano II na América Latina e no Caribe há meio século, foi articulada como pensamento moderno, postulando duas mediações teóricas constitutivas, as quais privilegiam a experiência de amor de Deus pelos pobres e excluídos.  A primeira mediação foi chamada – de acordo com uma obra paradigmática daquela primeira geração – “mediação socioanalítica” (BOFF, 1980) porque incluía as ciências sociais como uma ferramenta crítica indispensável para a análise da realidade histórica em que o povo crente vivia a construção do Reino de Deus. A práxis da libertação se reconhecia inspirada pela força profética e mística que surge do seguimento de Jesus de Nazaré, que, pela Ruah, revelou a Deus como seu Abba e pai de misericórdia dos pequenos e dos pobres. A segunda mediação do discurso teológico libertador foi de natureza hermenêutica, porque foi proposta como uma interpretação crente da práxis histórica da libertação, resultado do seguimento de Cristo, e como a realização escatológica da graça no meio da história do infortúnio e da opressão. Por essa razão, a primeira geração de teólogos da libertação – a grande maioria, homens formados no pensamento teológico europeu moderno, mas com um perspicaz olhar sobre a realidade da exclusão e da pobreza dos povos oprimidos – privilegiou a experiência sociopolítica do compromisso cristão, embora sem ignorar a dimensão pneumatológica e mística do referido seguimento. A tese de Javier Vitoria, tomada por Jon Sobrino (SOBRINO, 2007, 100), postulando o princípio “extra pauperes nulla salus” é o melhor exemplo de tal reivindicação.

Mas a utopia da mudança social como mediação histórica da redenção – expressada como uma mudança de estruturas sociais, econômicas e políticas – deixou de ter referentes sociopolíticos com as crises do socialismo histórico, particularmente após a queda do Muro de Berlim e seu efeito dominó em outras latitudes do planeta. O orfanato foi aprofundado pelo endurecimento dos regimes socialistas latino-americanos, alguns deles atacados pelo capitalismo dos EUA – como no caso do Chile – e outros convertidos em ditaduras de um partido único como em Cuba e no México.

A última década do século XX foi assim marcada por uma reflexão crítica sobre o primado da mediação socioanalítica e pela abertura às subjetividades que foram invisibilizadas, mesmo por esse pensamento teológico libertador. É o que chamamos de uma segunda geração de teologias da libertação, representada por Ivone Gebara (GEBARA, 1995, 2000 e 2002), Elsa Tamez (TAMEZ, 1979, 1987 e 1989), Diego Irarrázaval (IRARRÁZAVAL, 1999); Eleazar López Hernández (HERNÁNDEZ, 1996 e 2004) e Pablo Suess (SUESS, 1983), entre muitos outros. Nos referimos, em primeiro lugar, às mulheres que realizaram uma desconstrução do metarrelato patriarcal e kyriarcal que as manteve submetidas há milênios na sociedade e nas igrejas, incluindo os movimentos de libertação (ver Teologia feminista). Mas não podemos esquecer os povos indios da América que iniciaram a reapropriação de suas tradições ancestrais em diálogo com o Evangelho (ver Teologias ameríndias). E, nos últimos anos, a teologia queer com Marcela Althaus-Reid (ALTHAUS-REID, 2005) e André Musskopf (MUSSKOPF, 2002 e 2005), por exemplo, foi construída pelas comunidades cristãs de diversidade sexual, que anunciam a “Raridade” do Deus encarnado em Jesus da Galileia como uma metáfora para a estranheza da condição humana, com a diversidade sexual que a caracteriza, sublinhando o reconhecimento inadiável do outro que inspira a Sabedoria divina no meio das sociedades de exclusão de gênero (ver Teologia e Gênero, Pastoral LGBT). Desde uma subjetividade tão violada e vulnerável assumida como um projeto contracultural, com um fundo ético-místico, essa teologia está propondo novos caminhos para a teologia da libertação da terceira geração.

Vejamos agora três categorias fundamentais de teologia pós-moderna em uma chave latino-americana que nos permitam compreender as contribuições criativas de pessoas e comunidades que assumem o colapso do metarrelato moderno como kairós. Ou seja, a irrupção do tempo da graça que subverte os processos de opressão, discriminação, invisibilização e submissão da humanidade e da casa comum à mentira de Satanás (GIRARD, 2002). Será possível vislumbrar aí, precisamente, nas feridas do corpo social da humanidade, a passagem da redenção, reinterpretando aquele oxímoro (ou contração de significados aparentemente contrários, mas abrindo um novo campo semântico) magistral do pensamento hebraico cristalizado pelo segundo Isaías em metade do exílio na Babilônia: “e por suas chagas nós somos curados” (Isaías 53, 5).

3 A subjetividade violada

Uma característica compartilhada pelo pensamento pós-moderno ocidental com o conhecimento dos povos indígenas da América é o que podemos chamar de compreensão relacional (ANDRADE, 1999) de pessoas e comunidades, o que supera o cogito cartesiano e sua expressão como metarrelato egóico. A abertura constitutiva para o outro – como “semelhante igual “, mas na “persistência da diferença”, porque não é uma assimilação ou colonização do outro, mas seu reconhecimento como outro – é uma característica típica da experiência pós-moderna de subjetividade.

No entanto, é necessário enfatizar imediatamente que o primeiro estágio de constituição desta relação não é neutro, conforme analisado no seu momento pela fenomenologia transcendental europeia, mas é marcado pela ambivalência do desejo e, portanto, pela presença do outro como um alter ego enquanto modelo de desejo, diferença que é enigma e clamor ao mesmo tempo. Assim, a subjetividade se descobre, mais cedo ou mais tarde, violada pela presença dos outros, seja por sua distância inapreensível, sua imposição com sonhos de onipotência, seja pelo seu clamor e sofrimento que é como uma ferida aberta da humanidade. Uma abertura constitutiva é então desenhada como o momento originário da pessoa em relação. Essa alteridade desenvolvida por Levinas na segunda metade do século 20 na Europa teve fortes ressonâncias na filosofia da libertação latino-americana.

Por outro lado, a essa experiência de fissura do ego moderno que vive o desejo como confronto, foi descrita pelas sabedorias ancestrais dos povos originais latino-americanos antes da colonização com mitos e histórias de gêmeos em mimetismo e rivalidade, como é o caso de a mitologia mexica que narra a lenda dos irmãos Coyolxauhqui e Huiztilopochtli como uma cosmogonia que explica o nascimento do deus da guerra.

Podemos encontrar vários exemplos da confluência de abordagens do Sul e do Norte nestas narrativas da violência original: alguns escritos como narrativa mitológica e outros como análises conceituais. Neste último sentido, a teoria mimética colocou sobre a mesa, desde há meio século, o mecanismo do desejo triangular que gera estranhamento, desejo e sacrifício da alteridade que nunca é alcançado. A este respeito, vale a pena notar as reflexões geradas na América Latina e o Caribe (ROCHA, 2014, SOLARTE, 2001, 2010, MENDOZA-ÁLVAREZ, 2016) para fazer uma recepção criativa da teoria mimética das culturas da América Latina e do Caribe. Por outro lado, a teologia índia na Mesoamérica tem expressado, com os símbolos próprios de outros saberes, esse mesmo processo de morte, enfatizando ao mesmo tempo o desejo de viver como parte de um todo com a comunidade, a Mãe Terra e a Sabedoria divina que é expressa de maneira multiforme como lar, alimento e mistério.

4 As resistências múltiplas como resiliência

As subjetividades pós-modernas reconhecem que a rede de relacionamentos originários de qualquer processo de subjetivação está ligada ao que Foucault (FOUCAULT, 1976) chamou de biopoder no Ocidente e que o pensamento anti-sistêmico latino-americano hoje chama a hidra capitalista (SANDOVAL, 2012; COMISSÃO SEXTO DO EZLN, 2015). Dois conceitos complementares para designar o crescente fenômeno do “estado de exceção” (AGAMBEN, 2003) na aldeia global, que sujeita os povos inteiros à marginalidade, à manipulação da mídia, à política extrativista dos governos ao serviço do mercado. Tais fenômenos adquirem um significado de justificativa transcendente com o surgimento das religiões sacrificiais que mantêm seus seguidores anestesiados através de ritos e crenças em uma divindade que exige o sofrimento e o sangue dos inocentes para conceder a purificação do mal e a violência que a humanidade anseia.

Diante dessa situação de subjugação estrutural, movimentos sociais, povos indígenas, culturas juvenis e comunidades de crentes de diferentes tradições realizaram práticas de resistência que buscam maneiras de superar essa escalada violenta de sacrifícios. É por isso que a teologia pós-moderna da América Latina e do Caribe – vivida e narrada por pessoas e comunidades em resistências múltiplas – adquire nuances contraculturais de práticas sexuais, políticas, culturais e religiosas de desconstrução da religião sacrificial e balbucio de experiências de gratuidade como indicador da mudança de mundo. Uma transformação integral que os povos nativos maias chamam de “o amanhecer”.

É, enquanto resistências múltiplas, uma espécie de resiliência radical – ou seja, a capacidade de suportar a dor e o sofrimento além do que é imaginável – como poder de subjetivação que enfrenta a lógica do pensamento abismal com o que ” (SANTOS, 2010) e que Silvia Rivera Cusicanqui chama de “práticas descolonizadoras” (CUSICANQUI, 2010).

A teologia cristã pós-moderna, por sua vez, é tecida como um diálogo de saberes por grupos em resistência com suas respectivas teologias contextuais índia, queer, migrante e feminista (AQUINO, 1992, ROJAS, 2010, entre muitas outras mais). Essas teologias assumem os processos de subjetivação que emergem da marginalidade como sinais dos tempos nos quais irrompe a vida divina, anunciada há dois milênios pela radical encarnação do Logos nas margens do Império Romano e da religião sacrificial de Israel, com Jesus de Nazaré

5 A gratuidade do gesto messiânico disruptivo

É por isso que a terceira característica da teologia pós-moderna latino-americana é a experiência da temporalidade messiânica em uma chave kairológica. Ou seja, um tempo intensivo de redenção. Nesta perspectiva, essa reflexão assume a contradição da história violenta da humanidade como o lugar teológico mais profundo para desvendar o Mistério amoroso do real que as religiões chamam de Deus.

A teologia europeia após a Shoah – elaborada por pensadores migrantes (PANNENBERG, 1993 e SÖLLE, 1978) – já viu a urgência de interpretar o tempo messiânico como “estilhas do tempo”, de acordo com a famosa tese de Walter Benjamin, o tempo que dói pelo clamor dos inocentes. Foi precedida por aqueles que não sobreviveram aos campos de concentração (BONHOEFFER, 1971) e depois desenvolvida por teólogos sobreviventes (METZ, 1996). Nesse teor de pensamento, meio século depois, Girard e Agamben – nos Estados Unidos e na Europa, respectivamente – radicalizaram o pensamento apocalíptico em termos de “contração messiânica” (MENDOZA, 2015).

Partindo do reverso da medalha, a teologia pós-moderna latino-americana vem recolhendo essa herança para pensá-la a partir do sofrimento dos inocentes como alteridades invisíveis. Mas o faz, para surpresa de muitos, sublinhando sua potência como pobres da terra que geram novos mundos a partir de sua pobreza e sua resistência autônoma. Assim, o pensamento anti-sistêmico latino-americano que surgiu nas primeiras décadas do século 21 anunciou “uma tempestade que se aproxima” porque a lógica da globalização do capital é implacável, mas também indicou os caminhos da redenção e de esperança na chave de resistências múltiplas

No seu sentido holístico como promessa de um amanhã para todos, a teologia pós-moderna da América Latina e do Caribe parte da lógica da superabundância divina que vem da gratuidade e explora os sinais de nutrição humano-divina como uma comunidade que está em processo de construção (MÉNDEZ, 2013). Esta teologia é feita a partir dos restos da modernidade, mas com o alimento da esperança que os justos da história semeiam através de seus atos de doação.

Deste modo, o tempo messiânico não é outro metarrelato de mudança social como uma utopia intra-histórica, mas uma fissura no meio dos sistemas de totalidade através da qual surge um vislumbre de esperança. Essa fenda é deixada aberta por pessoas justas, compassivas com seus atos disruptivos de amor incondicional no coração da lógica de dominação. Sem triunfalismo, esta teologia pós-moderna é inspirada nos gestos da gratuidade messiânica que rompem a lógica do pensamento único através de práticas e narrativas disruptivas que anunciam um mundo além da exclusão.

Em suma, o poder dos pobres e excluídos é designado pela teologia pós-moderna da América Latina e do Caribe – em clara continuidade com a experiência de Israel libertada da escravidão de Faraó pelo deus das estepes – como um horizonte de tempo contraído, a partir de experiências históricas de  resistências múltiplas experimentadas como gratuidade que vem da superação do mimetismo violento e como transformação do conflito através da justiça e da misericórdia unidas, para aprender a “viver como sobreviventes” no meio do colapso que nos espera.

Só então o anúncio da esperança cristã no Reinado de Deus faz sentido. Aquela que não desvia o olhar das feridas dos crucificados de sempre. Aquela que experimenta o consolo que vem do Mistério amoroso do real através dos gestos messiânicos que interrompem a temporalidade violenta. A esperança daqueles que estabelecem sinais patentes de compaixão no meio do desamor.

Carlos Mendoza-Álvarez, OP. Universidade Ibero-americana, México (México). Texto original em espanhol

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Teologia Política

Sumário

1 Expressão

1.1 Origem

1.2 Ambiguidade

1.3 Delimitação de enfoque

2 Abordagem teológica

2.1 Panorama histórico

2.1.1 Antiga teologia política

2.1.1 Nova teologia política

2.2 Características fundamentais

2.2.1 Função crítica e criativa

2.2.2 Teologia Fundamental Prática

2.2.3 Autoridade das vítimas

3 Relevância e limites

Referências

1 Expressão

Convém começar fazendo algumas considerações acerca da expressão “Teologia Política” (TP), pois ela nem surgiu nem foi utilizada sempre em contexto teológico-cristão e seu desenvolvimento propriamente teológico nem sempre foi expresso nesses termos. Daí a importância de indicarmos sua origem e as perspectivas em que foi desenvolvida e delimitarmos o enfoque de nossa abordagem.

1.1 Origem

A expressão TP não surgiu em ambiente cristão e, na verdade, só na segunda metade do século XX foi assumida e desenvolvida em sentido estritamente teológico-cristão. Isso não significa que não tenha havido uma teologia política ou uma reflexão teológica sobre a dimensão e as realidades políticas ao longo da história do cristianismo. Pelo contrário. Mas essa reflexão não foi formulada até recentemente em termos de TP.

Embora chegue a nós através de Agostinho em sua obra A cidade de Deus, a expressão TP remete à distinção estoica dos três gêneros ou tipos de teologia: mítica, física e política ou civil. Isso já aparece no médio estoicismo de Panécio de Rodes (+ 100? aC) e se consolida no ambiente cultural romano com Marcos Varão (+ 27 aC). Em sua obra enciclopédica De Antiquitatibus, citada por Agostinho, Varão explica esses três gêneros de teologia: “Chamam-no mítico porque usado principalmente pelos poetas, físico, porque o manuseiam os filósofos, e civil, porque o empregam os povos”. Segundo ele, “a primeira teologia é principalmente própria ao teatro, a segunda, ao mundo, a terceira, às cidades”. A teologia política ou civil, diz Varão, é aquela que “os cidadãos e de modo especial os sacerdotes devem conhecer e pôr em prática nas urbes. Nela se acha a que deuses se há de render culto público e a que ritos e sacrifícios está cada qual obrigado” (AGOSTINHO, 2016, p. 251-253).

É importante atentar aqui para duas questões que marcarão decisivamente a história da expressão TP. Em primeiro lugar, ela aparece em contexto filosófico-político como uma teologia subordinada e a serviço do Estado: controlada pelos agentes do Estado e com a função de sua legitimação ou justificação religiosa. Em segundo lugar, ela aparece em conflito com a doutrina cristã. Agostinho retoma a distinção estoica num tom claramente polêmico e de reprovação como se pode ver nos livros VI a VIII da obra A cidade de Deus. Não por acaso, a expressão TP é recordada na Idade Média apenas como “um dos muitos erros do paganismo” (SCATTOLA, 2009, p. 20). E, embora seja utilizada nos séculos XVI e XVII para “indicar as matérias comuns à administração religiosa e política”, referindo-se “a um dos vários campos de ação da autoridade do príncipe” (SCATTOLA, 2009, p. 21), só será retomada e desenvolvida de modo positivo a partir do século XIX em ambientes católicos conservadores e contrarrevolucionários (Bonald, De Maistre, Cortés, Schmitt etc.) e, em sentido contrário e agora estritamente teológico, na segunda metade do século XX com a “nova teologia política” (Metz, Moltmann, Sölle etc.) (cf. SCATTOLA, 2009, p. 34-40).

1.2 Ambiguidade

Além do caráter controvertido da expressão TP na tradição cristã desde os primeiros séculos, há uma ambiguidade que diz respeito ao próprio estatuto teórico dessa expressão. É que ela nem nasceu nem foi desenvolvida em ambiente cristão e, conforme já indicamos, só na segunda metade do século XX foi desenvolvida em sentido estritamente teológico. Nasceu no âmbito da filosofia estoica, foi assumida no âmbito jurídico, retomada no contexto da filosofia e das ciências políticas modernas e, finalmente, no âmbito da teologia.

A ambiguidade, aqui, diz respeito ao fato da expressão TP se referir à teologia, mas ser desenvolvida, sobretudo, filosófica, jurídica, social e politicamente. Na verdade, a expressão diz respeito muito mais à relação religião-política considerada pela filosofia e/ou por outras ciências que à teologia em sentido estrito enquanto intellectus fidei. Sem falar que a reflexão propriamente teológica sobre a relação religião-política, a modo de justificação ou de crítica, foi desenvolvida ao longo de história em outros termos.

1.3 Delimitação de enfoque

Essa ambiguidade teórica da expressão TP exige de nós uma delimitação clara de nossa abordagem. Não vamos tratar dos diversos enfoques da relação religião-política que subjazem à expressão TP. Uma visão panorâmica nessa direção pode ser encontrada na obra já referida de Merio Scattola (2009), Teologia Política, em que, numa visão diacrônica que justapõe e inter-relaciona perspectivas teóricas distintas, esboça a problemática da relação entre religião e política no Ocidente.

Nossa abordagem da TP será de ordem estritamente teológica, o que, embora não possa deixar de se referir e mesmo de se enraizar na história da teologia, é muito recente: nasce e se desenvolve na Alemanha na segunda metade do século XX. É verdade, como já advertimos, que a reflexão teológica sobre a dimensão e as realidades políticas é tão antiga como o cristianismo. Mas só recentemente isso foi formulado e desenvolvido explicitamente em termos de TP.

2 Abordagem teológica

O desenvolvimento estritamente teológico de uma TP na segunda metade do século XX está ligado a nomes como Jürgen Moltmann (cf. MOLTMANN, 2011, p. 389-418; 2004, p. 102-105), Dorothee Sölle (cf. SÖLLE, 1982) e, sobretudo, Johann Baptist Metz (cf. METZ, 1997). É com eles que a expressão TP adquire estatuto teológico e marca uma nova etapa na teologia europeia, caracterizada pela passagem de uma perspectiva de cunho transcendental-personalista-existencial para uma perspectiva marcadamente social e política.

Para uma melhor compreensão desse movimento teológico que teve uma importância muito grande no processo de renovação da teologia europeia em diálogo com o mundo moderno, bem como na teologia latino-americana que começava a despontar, convém fazer algumas considerações de ordem histórica e indicar suas principais características.

2.1 Panorama histórico

Antes de tudo, é importante situar esse movimento teológico no contexto mais amplo da teologia, particularmente no que diz respeito à problemática religião-política e à própria expressão TP. Aliás, esse foi um dos primeiros desafios com que Metz teve que se confrontar. É que a expressão TP, com a qual ele designava sua perspectiva e seu projeto teológicos, tem uma história muito controvertida que remetia à teologia política ou civil dos estoicos, ao cristianismo constantiniano e, mais proximamente, às discussões e controvérsias entre Carl Schmitt (SCHMITT, s/d) e Erik Peterson (PETERSON, 1999) na primeira metade do século XX.

Para livrar-se dessa carga histórica controvertida e demarcar as fronteiras de seu projeto teológico, Metz fala de “nova teologia política” em contraposição à “antiga teologia política” estoica e constantiniana (cf. METZ, 1997, p. 34-43; 2006, 252-257; 2013, p. 33-37; MOLTMANN, 2004, p.105). Certamente, não pretende nem chega a fazer um estudo exaustivo sobre a chamada “antiga teologia política”. Seu interesse é explicitar seu projeto teológico. Nesse sentido, a contraposição “antiga” X “nova” tem um caráter didático: a expressão “antiga TP” desempenha uma função negativa (dizer o que não é) em seu esforço de explicitar positivamente a “nova TP” (dizer o que é ou em que consiste). E acabou se tornando um recurso didático muito utilizado na apresentação histórico-sistemática de seu projeto teológico.

2.1.1 “Antiga teologia política”

A expressão “antiga teologia política” é tomada num sentido crítico-pejorativo e remete tanto à TP estoica quanto às diferentes formas de constantinismo ou instrumentalização política do cristianismo ao longo da história. Abrange um longo período que vai “do estoicismo até Carl Schmitt e seus desdobramentos no século XX” (METZ, 2013, p. 33). Essa compreensão abrangente, genérica e negativa da “antiga TP” tem o mérito de destacar seu caráter conservador e ideológico e de demarcar fronteiras em relação à “nova TP”. Mas tem uma dupla limitação teórica. Por um lado, ignora e ofusca as diferentes perspectivas com que a relação religião-política é tratada ao nomear com a mesma expressão abordagens de ordem filosófica, jurídica, sociopolítica e teológica. Por outro lado, simplifica a problemática como se toda abordagem (também teológica) da relação religião-política anterior tivesse sido de cunho conservador-ideológico.

Mas a questão é muito mais complexa do que parece. Do ponto de vista estritamente teológico, é preciso reconhecer que a abordagem da relação religião-política nem sempre se deu a modo de instrumentalização ideológica do cristianismo em função do Estado e/ou da conservação do status quo. Para além do uso da expressão TP, a abordagem teológica da política se deu tanto a modo de legitimação e subordinação, quanto a modo de crítica ou pelo menos de não subordinação total.

O próprio Peterson, em confronto com Schmitt, ao tentar provar “a impossibilidade teológica de uma ‘teologia política’” (PETERSON, 1999, p. 123), contrapõe Agostinho a Eusébio de Cesareia (cf. PETERSON, 1999, p. 93-95) e, assim, acaba indicando, ainda que de modo apologético e um tanto simplista, duas perspectivas distintas de abordagem teológica da política ou, se quiser, de TP.

Se Eusébio é contado entre os “teólogos da corte bizantina” (PETERSON, 1999, p. 93) e apresentado como uma espécie de “publicista político” (PETERSON, 1999, p. 82) que reforça a ideia já difundida de que “a missão apostólica foi facilitada pelo império romano” e que vê no império romano a vitória sobre a “idolatria politeísta e demoníaca” e o cumprimento de todas as profecias sobre a “paz dos povos” (PETERSON, 1999, p. 79-84), Agostinho é contado entre os teólogos ortodoxos que desfizeram “o laço que unia o Evangelho ao império”. Segundo Peterson, “o que os padres gregos levaram a termo em relação à ideia de Deus”, ao contrapor o dogma da Trindade à concepção pagã e judaica de “monarquia divina”, esvaziando-a de seu “caráter político-teológico”, Agostinho realizou no Ocidente “com o conceito de paz”. Para ele, “a paz augusta, sobre a qual se havia construído na Igreja uma duvidosa teologia política, se apresentava […] como uma paz questionável” (1999, p. 93). E, assim, conclui, “não só se acabou teologicamente com o monoteísmo como problema político e se liberou a fé cristã do acorrentamento ao império romano, mas se levou a cabo a ruptura radical com uma ‘teologia política’ que degenerava o Evangelho em instrumento de justificação de uma situação política” (PETERSON, 1999, p. 95).

Peterson tem razão no que diz respeito à impossibilidade de uma teologia política que transforme o Evangelho “em instrumento de justificação de uma situação política”. Mas não pode concluir daí, como o faz, “a impossibilidade teológica de uma ‘teologia política’” sem mais. E nesse ponto Schmitt tem razão (s/d, p. 173). Tampouco poderia apelar para Agostinho como justificação teológica da impossibilidade de uma TP. Por mais que não se deva nem se possa atribuir a ele a paternidade do chamado “agostinismo político” medieval e sua teoria de uma “teocracia imperial”, prelúdio da “teocracia pontifícia” (cf. RAMOS, 2015, p. 202-204), tampouco se pode negar sua reflexão teológica sobre a política ou, se se quer, uma TP em Agostinho (cf. RAMOS, 2015, p. 185-208).

2.1.2 “Nova Teologia Política”

A “nova TP” surge no contexto mais amplo da pergunta pela possibilidade de uma “teologia do mundo” que leve a sério os processos da Aufklärung, da secularização e da emancipação em curso no mundo moderno (cf. METZ, 1997, p. 15, 75). Nasce como uma teologia “com o rosto voltado para o mundo” (cf. METZ, 1997, p. 7; 2006, p. 253, 257). Neste sentido, e em contraposição à “antiga TP” de cunho antimoderno e restauracionista, a “nova TP” surge como uma teologia moderna. Pensa a relação entre Igreja e sociedade/política não de modo “pré-crítico”, em contraposição à modernidade na linha de uma identificação entre ambas, mas de modo “pós-crítico”, no sentido de uma “segunda reflexão” que repensa criticamente/modernamente as relações Igreja/fé – sociedade/política (cf. METZ, 1997, p. 12, 27, 39).

Isso supôs e/ou implicou tanto uma nova compreensão do mundo, do “político” e da relação da Igreja com eles, quanto uma reviravolta no movimento teológico em curso que tentava um diálogo com o mundo moderno, e quanto, ainda, uma ruptura com e/ou superação dialética dos pressupostos filosóficos implicados nesse movimento.

A “nova TP” entende o mundo não como “cosmos” em contraposição à existência e à pessoa nem como “realidade meramente existencial ou pessoal”, mas como “realidade social em um processo histórico” (METZ, 1997, p. 15). E fala do político no sentido que essa expressão adquiriu no mundo moderno, seja no que diz respeito à distinção entre Estado e sociedade e à consequente superação do reducionismo do político a técnicas de administração do poder, seja no que diz respeito ao caráter crítico que deve caracterizar um discurso. Isso possibilitou uma nova compreensão da relação entre teologia e política, onde a Igreja se entende não em função do Estado, mas como “instituição crítico-social” com “tarefa crítico-libertadora” na sociedade ou como “lugar e instituição sócio-críticos da liberdade” e a TP é entendida como “consciência crítica das implicações sociais e das tarefas do Cristianismo” (cf. METZ, 1997, p. 15ss, 32, 35ss).

Essa nova compreensão do mundo, da política e da relação entre teologia e política implicou numa ruptura dialética com as correntes teológicas de caráter e/ou orientação existencial, personalista e transcendental que tinham tentado, nas últimas décadas, um diálogo crítico-produtivo com a modernidade, bem como com seus pressupostos teórico-filosóficos. Não obstante sua enorme importância no processo de renovação da teologia europeia, essas teologias foram em boa medida vítimas e cúmplices da moderna privatização da fé, da religião e da teologia. Não por acaso as categorias que elas utilizam para explicar a mensagem cristã são predominantemente “categorias do íntimo, do privado, do apolítico” (cf. METEZ, 1997, p. 10ss). Daí a necessidade de ruptura com e/ou superação dialéticas dessas teologias.

Metz fala de sua TP como passagem de uma teologia transcendental para uma teologia política (1997, p. 95; 2013, p. 34). Moltmann chega a uma “hermenêutica política” ou a uma TP como concretização de sua teologia da esperança e como consequência política de sua teologia da cruz (2011, p. 289ss; 2004, p. 102ss). E Sölle desenvolve sua TP em discussão crítica com a teologia de Bultmann (1982, p. 12). Em todos esses casos, foi decisivo o diálogo crítico-criativo com Marx, Bloch, a Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin) e o pensamento judaico, entre outros (cf. METZ, 1997, p. 95; MOLTMANN, 2004, p. 103).

A “nova TP” surge, portanto, em diálogo crítico-criativo com o mundo moderno, simultaneamente, como uma teologia moderna (crítica) e como uma teologia em ruptura (dialética) com a privatização moderna da fé, da religião e da teologia, bem como com as teologias de alguma maneira vítimas e/ou cúmplices dessa privatização.

2.2 Características fundamentais

Tendo situado a “nova TP” no contexto mais amplo da teologia e em contraposição à “antiga TP”, convém esboçar sistematicamente suas principais características e, com elas, sua estrutura teórica fundamental (cf. GIBELLINI, 1998, p. 301-321; TAMAYO, 2005, p. 870-879).

2.2.1 Função crítico-criativa

Em 1967, em uma conferência num Congresso Internacional de Teologia em Toronto, Canadá, intitulada O problema de uma “Teologia Política” (cf. METZ, 1997, p. 9-22) e considerada uma espécie de “manifesto programático” de sua TP, Metz indica uma dupla característica e/ou tarefa dessa teologia: “crítico-corretiva” frente à tendência privatizadora da teologia atual e “positiva”, enquanto intento de formulação da mensagem escatológica nas atuais condições de nossa sociedade (1997, p. 9).

A “nova TP” tem uma função crítico-corretiva frente à tendência moderna de privatização da religião presente nas várias teologias que tentaram um diálogo positivo com a modernidade. Uma das características da modernidade foi a separação entre religião e sociedade e o confinamento da religião à esfera privada com progressiva perda de relevância social. Isso se agrava com a crítica marxista da religião como superestrutura ideológica da sociedade. E as teologias que tentaram um diálogo positivo com a modernidade (transcendental, existencial, personalista) acabaram se tornando vítimas e cúmplices dessa tendência de privatização da religião, na medida em que se refugiaram na esfera do privado. É um tipo de teologia que “procura resolver o problema surgido com a Aufklärung, eliminando-o. Procura superar a Aufklärung sem ter realmente passado por ela”. Daí porque “para a consciência religiosa determinada por essa teologia a realidade sócio-política tenha apenas uma existência efêmera. As categorias que esta teologia utiliza para explicar a mensagem são predominantemente categorias do íntimo, do privado, do apolítico” (METZ, 1997, p. 10). É neste contexto que surge a “nova TP”. Ela surge em diálogo crítico-criativo com a modernidade e com as teologias modernas em curso e assume, modernamente/criticamente, a tarefa de desprivatização da religião cristã. Se Bultmann, por exemplo, se empenhou num projeto de “demitização” da teologia (Entmytologisierung) e produziu uma teologia de orientação existencial, Metz se empenha em um processo de desprivatização da teologia (Entprivatisierung) e desenvolve uma teologia de orientação política.

Mas além dessa função crítico-corretiva frente às teologias modernas em curso, a “nova TP” tem uma função positiva que consiste em explicitar e desenvolver as implicações sociopolíticas da mensagem cristã no contexto de uma sociedade moderna. Trata-se de repensar modernamente as relações entre religião e sociedade, entre fé e práxis social. Afinal, “a salvação a que se refere na esperança a fé cristã não é uma salvação privada” e seu anúncio tem dimensões e consequências públicas e sociais indiscutíveis como se pode verificar na cruz de Jesus (cf. METZ, 1997, p. 13). E, aqui, vai ser fundamental a retomada da dimensão escatológica da mensagem cristã e o desenvolvimento de sua dimensão histórico-público-social. A esperança cristã não é desprovida de dimensão, implicações e relevância sociais, mas desempenha uma função crítica e desabsolutizadora na sociedade e na própria Igreja. A categoria “reserva escatológica” (eschatologischer Vorbehalt) permitirá compreender modernamente a missão da Igreja como “tarefa crítico-libertadora” na sociedade e na Igreja e compreender a própria Igreja como “instituição crítico-social” (cf. METZ, 1997, p. 15ss). E a categoria “memória” (Erinnerug), com sua estrutura teórica de “narração” (Erzälung), será fundamental para o desenvolvimento da tese da fé como memoria passionis, mortis et resurrectionis Jesu Christi (cf. METZ, 1997, p. 47-57) que, graças ao seu caráter e poder prático-mobilizador, constitui-se como “memória perigosa” (gefährliche Erinnerung) que “acossa o presente e o questiona, porque nos lembra um futuro que ainda não chegou” (METZ, 1997, p. 49).

2.2.2 Teologia Fundamental prática

Já está claro que a “nova TP” nada tem a ver com politização da teologia ou instrumentalização ideológica da religião a modo da “antiga TP”. Mas ela também não pode ser compreendida como uma “teologia do político” ou mais uma das muitas “teologias regionais” em curso: teologia do trabalho, teologia da sexualidade, teologia da música etc. (cf. METZ, 1997, p. 43). Tampouco pode ser tomada simplesmente como uma nova disciplina teológica nem ser identificada com uma teologia social e menos ainda com o que se chama na teologia “ética política” (cf. METZ, 1997, p. 27-28, 71). Sequer pode ser tomada como uma espécie de aplicação prática de princípios e normas na ação sociopolítica dos cristãos (cf. METZ, 1997, p. 71).

Enquanto desenvolvimento da relação entre religião e sociedade ou da dimensão sociopolítica da mensagem escatológica cristã ou enquanto memoria passionais nas condições de nosso tempo, a “nova TP” emerge como reelaboração da mensagem cristã em sua totalidade à luz de sua relevância social no contexto de uma sociedade moderna. E, assim, emerge como desenvolvimento de um “traço fundamental da consciência crítico-teológica como um todo” que bem pode ser formulado em termos de uma “nova relação teoria-práxis”, no sentido que toda teologia deve ter uma orientação práxica fundamental (METZ, 1997, p. 28). Nesse sentido, pode-se falar, aqui, de uma “teologia fundamental práxica” ou de uma “teologia fundamental com intenção práxica” (cf. METZ, 1977) ou mesmo de uma “práxis apologética” (METZ, 1977, p. 9; 2006, 255ss). Trata-se de uma teologia articulada em torno de três categorias básicas: memória, narração, solidariedade (cf. METZ, 1977, p. 159-211) e uma teologia que busca dar razão ou explicitar os fundamentos práxico-sociais da mensagem escatológica cristã no contexto de uma sociedade esclarecida e secularizada que privatiza a religião e compromete sua dimensão sociopolítica.

2.2.3 Autoridade das vítimas

Uma teologia que se compreende como memoria passionis ou como confronto crítico-práxico da mensagem escatológica cristã com a sociedade atual se constitui como “memória perigosa” e só pode se desenvolver em “solidariedade” com as vítimas da história: do presente (“para frente”) e do passado (“para trás”) (cf. METZ, 1977, p. 204). Isso permite recuperar a centralidade da teodiceia na teologia cristã (cf. METZ, 2006, p. 3-34). Não como uma questão meramente teórico-especulativa, mas, antes, como uma questão práxica que se enfrenta e se traduz em termos de compaixão, amor e solidariedade com as vítimas e que tem uma dimensão sociopolítica fundamental.

Uma religião com o “rosto voltado para o mundo” (cf. METZ, 1997, p. 7; 2006, p. 253, 257) não pode ignorar a “história do sofrimento” e isso significa, para Metz, que não pode ser feita de costas para Auschwitz (2006, p. 35-68), isto é, “nem de costas para o holocausto e nem de costas para o sofrimento mudo dos pobres e oprimidos no mundo” (METZ, 1984, p. 38). Deve ser uma teologia com o “rosto voltado” para Auschwitz e para todas as vítimas da história. Trata-se, aqui, de uma solidariedade práxico-teórica com as vítimas que se concretiza tanto na ação dos cristãos quanto na reflexão teológica. Isso obrigou Metz a reconhecer a “autoridade dos que sofrem” no próprio teologizar (1997, p. 12-13). Eles são “investidos por Jesus de uma autoridade frente à qual não existe possibilidade de negar obediência. É unicamente nesta autoridade dos que sofrem que se manifesta a autoridade de Deus como juiz do mundo e de todos os seres humanos: Mt 25, 31-46” (METZ, 1997, p.13).

3 Relevância e limites

A “nova TP” teve uma importância muito grande no aprofundamento do diálogo crítico-criativo da Igreja com o mundo moderno e no processo de renovação da própria teologia europeia na segunda metade do século XX. Ela retomou e reelaborou em novos termos a problemática da relação Igreja-sociedade, superando modernamente a tendência moderna de privatização da fé e da religião e desenvolvendo a dimensão sociopolítica da mensagem cristã. Recuperou a relevância sociopolítica da fé e da Igreja e fez isso, não numa perspectiva restauracionista antimoderna (pré-crítica), mas no contexto de uma sociedade moderna (crítica) e numa perspectiva dialética de diálogo crítico com a modernidade (pós-crítica). Com isso, alargou os horizontes da teologia e de seu diálogo com o mundo moderno e possibilitou e provocou a superação dialética das teologias existencial, personalista e transcendental, na direção de uma teologia sociopolítica fundamental.

Além disso, a “nova TP”, em sintonia com o processo conciliar de renovação da Igreja, aguça a sensibilidade eclesial para os problemas do mundo e, sobretudo, para as situações de sofrimento e para as vítimas da história e, assim, confere nova centralidade à problemática da teodiceia no cristianismo. Faz isso numa perspectiva práxico-teórica na linha de solidariedade com as vítimas, de reconhecimento de sua autoridade e de inserção de sua voz no logos da teologia. Isso permite aprofundar a crítica ao cristianismo burguês que se desenvolveu no Ocidente (cf. METZ, 1984), estreita os laços com as teologias da libertação e abre perspectivas para crítica e autocrítica da “nova TP” no sentido de certa cumplicidade com a história ocidental dos vencedores.

Mas, não obstante a importância dessa teologia no diálogo crítico com a modernidade e com as teologias modernas em curso, na retomada e reelaboração do caráter fundamentalmente práxico da fé e da teologia e na solidariedade com as vítimas da história e com a “história do sofrimento”, ela tem limites que precisam ser reconhecidos e superados, o que implica, de certa maneira, sua própria superação enquanto perspectiva e projeto teológicos.

Antes de tudo, os teólogos latino-americanos, desde o início dos anos 1970, criticaram “certa insuficiência em suas análises da situação contemporânea” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 284; cf. RUBIO, 1977, p. 98ss). O caráter excessivamente abstrato de suas abordagens do mundo, a carência ou insuficiência de mediações sociopolíticas para analisar e transformar a realidade e a concentração na problemática da privatização da religião dificultaram ou mesmo impediram a “nova TP” descer às raízes mais profundas do mundo moderno e se enfrentar com seus problemas mais fundamentais. Além do mais, o impacto e a centralidade de Auschwitz e a pergunta fundamental: “como fazer teologia depois de Auschwitz?”, compreensível sob muitos aspectos, acabaram desviando o olhar das vítimas atuais do mundo e seus verdugos e comprometendo o caráter de “memória perigosa” que compete à teologia em cada tempo. Daí a denúncia poético-profética certeira do bispo Pedro Casaldáliga: “Como hablar de Dios despues de Auschwitz?, os preguntais vosostros, ahí, al otro lado del mar, en la abundancia. Como hablar de Dios en Auschwitz?, se preguntan aquí los compañeros, cargados de razón, de llanto y sangre, metidos en la muerte diaria de millones (…)” (1990, p. 45).

Mas não só isso. A própria formulação em termos de TP parece muito problemática. Seja pela ambiguidade da expressão, indicada e criticada desde o início, seja porque o “político”, mesmo se entendido no sentido moderno que essa expressão adquiriu e que foi utilizado por Metz (sociedade em sentido amplo e discurso crítico), parece limitado e incapaz de dar conta do todo da fé que a teologia procura compreender e teorizar. Já no início dos anos 1970, Kasper manifestava sua insatisfação com o marco assinalado pela “nova TP”: “Sob muitos pontos de vista é excessivamente estreito e conduz necessariamente a uma redução inadequada da mensagem cristã; e isto mesmo que os representantes da teologia política não o pretendam” (1982, p. 139-138). E, no final dos anos 1990, Moltmann reconhece que “talvez no final dos anos 1960 o político tenha sido superestimado”. Mas, a partir de 1989, no contexto da “globalização da economia”, em que a própria política encontra-se no “perigo de ser controlada” pelas grandes corporações econômicas e pelos mercados financeiros, a política passa a ter um alcance muito reduzido e “isso limita o alcance da ‘Nova Teologia Política’” (MOLTMANN, 2004, p. 105). De modo que, seja pelo alcance limitado da política no mundo atual (Moltmann), seja pela não redução da fé à sua dimensão social (Kasper), a TP, não obstante sua importância e seus ganhos irrenunciáveis, parece limitada e reclama um marco teórico-conceitual mais amplo capaz de articular e elaborar a fé em sua totalidade e complexidade.

Francisco de Aquino Júnior. Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Texto original português.

Referências bibliográficas

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CASALDÁLIGA, P. Todavia estas palabras. Estella: Verbo Divino, 1990.

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PETERSON, E. El monoteísmo como problema político. Madrid: Minima Trotta, 1999.

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Símbolo da fé

Sumário

Introdução

1 Do Evangelho às primeiras fórmulas de confissão de fé

2 Das fórmulas de confissão de fé ao Símbolo da Fé

3 O Símbolo Niceno-Constantinopolitano

Conclusão

4 Referências bibliográficas

Introdução

O Símbolo da Fé é o conteúdo resumido da fé dos cristãos. É o Credo cristão. Como tal, ele reúne as verdades centrais do ser-cristão e do para ser cristão. Ele expressa a fé que se professa no batismo, é a base de todo ensinamento catequético cristão e princípio normativo-doutrinal de toda a ortodoxia cristã. Supõe-se, portanto, que todo cristão não somente saiba recitar o Símbolo da Fé, mas que saiba viver e orientar sua vida de acordo com o que na fé professa. Sempre é bom lembrar que o ato de fé (fides qua) não termina nos enunciados sobre Deus do Símbolo da Fé, mas em Deus mesmo: “Actus credentis non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem” (TOMÁS DE AQUINO, STh II-II, q.1, a.2, ad 2m). A “coisa” (res) do ato de fé é o Deus Uno e Trino a quem o fiel existencialmente se dirige no ato mesmo de fé. O saber recitar o Símbolo não faz de alguém necessariamente um cristão. O Símbolo da Fé tem, pois, um caráter performativo. Ele contém uma rica antropologia teológica implícita, de modo que o que ali se diz expressamente de ou sobre Deus tem repercussões imediatas na autocompreensão de quem é o ser humano para Deus desde a perspectiva cristã da fé.

O que aqui oferecemos acerca do Símbolo da Fé não é senão um resumido desenvolvimento histórico-teológico-fundamental da fé cristã até a formulação do Símbolo que foi adotado oficialmente para toda a Igreja cristã: o Símbolo Niceno-Constantinopolitano.

1 Do Evangelho às primeiras fórmulas de confissão de fé

O núcleo da pregação de Jesus está resumido na fórmula: “Cumpriu-se o tempo, o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Crer no Evangelho é abrir-se para acolher confiantemente o Reino ou Reinado de Deus, cuja proximidade se anunciava e já se fazia sentir e experimentar nos gestos e palavras do próprio Jesus. No núcleo do anúncio pós-pascal dos apóstolos (kerigma) e seus sucessores encontra-se Jesus Cristo e sua obra: “E cada dia, no Templo e pelas casas, não cessavam de ensinar e de anunciar a Boa Nova do Cristo Jesus” (At 5,42). A Boa Nova do Cristo é a manifestação, nele, do Reinado de Deus (Mc 1,1s). A Palavra que eles “evangelizavam” (At 8,4.25.40; 14,7.15.21; 16,10), ou o “evangelho” (At 15,7; 20,24), concretiza-se na pessoa de Jesus (At 8,35), ressuscitado por Deus (At 13,32s; 17,18; cf.2,23; 9,20) e feito Filho de Deus com poder (cf. Rm 1,1s), Cristo (At 5,42; 8,12; c.f.9,22) e Senhor (At 10,36;11,20;15,35; cf. 2,36s). O Senhor Jesus Cristo feito Filho de Deus jamais é anunciado separado de Deus, o Pai, a quem o Reino é atribuído. “A todos que o receberam [o Verbo de Deus, do Pai], deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que creem em seu nome” (Jo 1,12).

A fé é um assentimento pessoal a Deus mediante a acolhida de sua Palavra, seu Filho, Jesus Cristo. A fé é, portanto, resposta humana ao amor de Deus, o Pai, manifestado em Jesus Cristo, seu Filho. “Deus amou tanto o mundo que enviou seu Filho ao mundo, a fim de que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Pai é o Senhor da vida e da morte, é aquele que ressuscitou Jesus, o Filho feito homem, dentre os mortos (At 2,32; 5,13; 10,40; 13,30.32.37; 1Cor 6,14; 15,15; 2Cor 4,14; Cl 2,12; Gl 1,1; 1Pd 1,21). E assim, ao modo de Jesus Cristo, é ao Pai que se dirige inicialmente o ato da fé dos cristãos.

O kerigma era um resumo muito condensado da fé cristã. Mas o missionário cristão, em seu exercício de comunicar a fé, deveria também poder explicar de modo mais distendido e compreensível o conteúdo nuclear do anúncio, instruir as pessoas, oferecer-lhes orientações prático-morais. Assim, os primeiros sumários ou fórmulas da fé tinham uma intenção claramente catequética, eram desdobramentos instrutivo-explicativos do kerigma, expressavam as verdades que constituíam a base da fé por referência à vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Elas se reportarão a Jesus Cristo, a Jesus Cristo com Deus Pai e com o Espírito Santo.

2 Das primeiras fórmulas de fé ao Símbolo da Fé

Desde suas origens, a Igreja cristã apostólica exprimiu e transmitiu a sua própria fé em fórmulas breves e normativas para todos, em resumos orgânicos e articulados. Essas sínteses da fé foram chamadas “profissões de fé”, porque resumiam a fé confessada, professada e testemunhada pelos cristãos.

Contudo, a confissão neotestamentária de fé não possuía um modelo único. O primeiro modelo é denominado “cristológico”. As confissões cristológicas de fé trazem simplesmente o nome de Jesus associado a um título, tais como: Jesus é o Senhor (cf. Rm 10,9; Fl 2,11; 1Cor 12,3); Jesus é o Cristo (At 18,5; 1Jo 2,22); Jesus é o Filho de Deus (At 8,36-38), ou narram de modo mais ou menos desenvolvido o advento de Jesus sublinhando seu mistério de morte e ressurreição (kerigma primitivo). O segundo modelo, denominado binário, é aquele que se refere a Deus-Pai e a Cristo e que encontra sua fórmula típica em 1Cor 8,6: “Para nós, só há um Deus, o Pai, de quem tudo procede, e para o qual nós vamos, e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e pelo qual nós existimos” (de modo similar em 1Tm 2,5-6; 6,13). O terceiro modelo, finalmente, é ternário, e o encontramos mais explicitamente na saudação do Apóstolo Paulo à comunidade de Corinto: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2Cor 13,13); no texto de 1Cor 12,4-6, onde se lê: “Há diversidade de dons da graça, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas é o mesmo Senhor; diversos modos de ação, mas o mesmo Deus que realiza tudo em todos”; e muito especialmente na ordem missionário-batismal do ressuscitado ao final do Evangelho de Mateus: “Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a guardar tudo o que vos ordenei” (Mt 28,19-20). Esta passagem de Mateus tornou-se a “célula-mãe” dos vários Símbolos da Fé empregados nas igrejas cristãs dos primeiros séculos (cf. SESBÖUÉ, 2002, p. 75-79; DENZINGER, 2007, n. 10-76).

Na Didaché (finais do século I) encontra-se a seguinte instrução:

No que se refere ao Batismo, batizai deste modo: uma vez expostas todas essas coisas, batizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo em água corrente. Se não tiveres água corrente, batizai em outra água (…).  Derramai água sobre a cabeça por três vezes, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. (Didaché, VII, 1-3)

Em pleno século II, São Justino fala dos que “receberam o banho da água em nome do Pai e Senhor Deus do universo, em nome do Senhor Jesus Cristo e em nome do Espírito Santo”. Neste tempo já está em uso no batismo a forma interrogativa: “Crês em Deus Pai, Senhor do universo? Crês em Jesus Cristo, nosso Senhor, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos? Crês no Espírito Santo, que falou pelos profetas?” (JUSTINO, I Apol. 13,1-3). Embora até o século III não haja fórmula única fixada para as igrejas cristãs, as várias fórmulas existentes apresentam, contudo, a estrutura trinitária fiel ao contexto litúrgico-batismal (RITTER, 1984, p. 405-408).

A primeira coletânea de regulamentações eclesiásticas e litúrgicas desde a Didaché encontramos nos inícios do século III na Igreja de Roma. É a Tradição Apostólica, de Hipólito de Roma, o ancestral direto e mais remotamente atestado daquilo que a Igreja ocidental chama até hoje de “Símbolo dos Apóstolos”. Este consiste basicamente na passagem da forma interrogativa dialogal (profissão de fé batismal) para a forma declarativa (SESBOÜÉ, 2002, p. 84).

A partir dos inícios do século IV, multiplicaram-se os sínodos locais e o uso normativo das fórmulas trinitárias de fé tornou-se uma prática comum. Muitas foram as formulações do Símbolo da Fé utilizadas pelas diversas igrejas cristãs da época: Roma, Cesareia, Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Constantinopla, Salamina, Mopsuéstia, Cartago, Milão, entre outras. A unificação do Símbolo da Fé tem seu início com o Concílio de Niceia (325), se completa no Concílio de Constantinopla I (381) e é oficialmente promulgada como o Credo oficial dos cristãos pelos Concílios posteriores.

A gênese dos Símbolos é significativa da passagem do discurso das Escrituras à literatura pós-apostólica. Na medida em que o Símbolo condensa numa unidade simples a rica diversidade do testemunho do Primeiro e do Segundo Testamentos, ele se apresenta como um ato de interpretação das Escrituras e, ao mesmo tempo, como a matriz do ensinamento catequético e ponto de partida do discurso dogmático, já que as primeiras definições de fé tomarão a forma de adendos ao Símbolo (SESBOÜÉ, 2002, p. 73).

A palavra símbolo (lat. symbolum; gr. Σύμβολον) reportava à forma antiga de as pessoas fazerem contratos ou alianças. O “símbolo” significava a junção de duas metades de um objeto partido (uma peça ou um selo) por ocasião da realização de um contrato, pacto ou aliança. A partir de então, o objeto simbólico cumpria a função de identificar os portadores e a relação estabelecida entre eles. A verdade da relação estabelecida se mostrava na justaposição das duas partes do objeto. Um segundo significado de “símbolo” é resumo, coletânea ou sumário, que reúne enunciados significativos devidamente organizados.

Os cristãos utilizaram o termo “símbolo” como sinal de identificação e de comunhão, tendo como centro a confissão de fé em Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16,16). A este sumário das principais verdades da fé cristã, duas ideias estão essencialmente relacionadas: a do princípio e a do efeito do simbolismo. O princípio nos remete à ligação mútua entre elementos distintivos cuja combinação é significativa; e o efeito aponta para a ligação mútua entre sujeitos que se reconhecem comprometidos um para com o outro num pacto, numa aliança, numa lei de fidelidade (cf. ORTIGUES, 1962, p. 60-61).

O Símbolo da Fé se compreende na comunidade de fé e na fé da comunidade. Com ele se confessa a fé da comunidade, na comunidade e perante a comunidade de fé (profissão) para ser inserido nela e tornar-se um membro dela, da Igreja do Filho, Jesus Cristo, reunida pelo (seu) Espírito. A primeira profissão de fé do cristão tem lugar no seu batismo. Fundamental era a profissão de fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus (cf. At 8,37-38). Contudo, a difusão e adoção do modelo trinitário (cf. Mt 28,19) pelas diversas comunidades a partir do século II referiu a profissão de fé batismal às três pessoas da Santíssima Trindade. As verdades da fé, ternariamente confessadas/professadas no batismo, fornecerão a estrutura fundamental do Símbolo: a primeira trata do Pai e da obra admirável da criação; a segunda, do Filho e do mistério da redenção dos homens; a terceira, do Espírito Santo, fonte e princípio da santificação.

O uso do termo “símbolo” se generalizará no Ocidente, onde passará da tríplice interrogação trinitário-batismal aos Credos declaratórios. No Oriente, o termo surgirá mais discretamente a partir do século IV (Concílio de Laodiceia, em 364, Cân.7). Ali verifica-se um relativo silêncio a respeito das formulações do Símbolo da Fé. O principal motivo de tal silêncio atribui-se comumente à disciplina do arcano, segundo a qual a chave dos mistérios cristãos não deveria ser posta por escrito para que não viesse a cair nas mãos de pagãos. Em todo caso, é no contexto do século IV que a necessidade de unificar as antigas fórmulas de fé se impõe. O Símbolo de Niceia (325) condensou e expressou a fé em Jesus Cristo em confronto com o gnosticismo e o arianismo, enquanto o Símbolo de Constantinopla (381) desenvolveu e expressou a fé no Espírito Santo em confronto com os macedonianos (ou pneumatômacos). E assim, o Símbolo que recolheu o ensinamento de Niceia e de Constantinopla passou a ser conhecido pouco a pouco em toda a Igreja cristã como “Símbolo Niceno-Constantinopolitano” (DENZINGER, 2007, n. 125-126; 150-151). O Concílio de Éfeso (431) o reconhece como oficial e decreta que não mais se faça adendos a esse Símbolo, anatematizando quem o viesse a fazer. Fiel a este princípio, a célebre definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451), acerca das duas naturezas de Cristo, será expressa num texto separado (SESBOÜÉ, 2002, p. 87). O Concílio de Constantinopla III (681) renovou a sanção do Concílio de Éfeso.

Foi a partir do século VI que o Credo Niceno-Constantinopolitano foi adotado como Símbolo batismal em praticamente todo o Oriente. Progressivamente, foi sendo utilizado no Ocidente até ser finalmente adotado na igreja de Roma no século IX. Foi nesta época que o uso do Filioque (o Espírito Santo procede do Pai e do Filho) no Símbolo, já em uso na Espanha pelo menos desde o III Sínodo de Toledo, em 589, reaparecendo em diversos concílios dessa cidade, em 633, 675, 693, se estendeu à Gália e à alta Itália, e seu uso litúrgico começou a se difundir. Sob a influência de Carlos Magno, em fins do século VIII e inícios do século IX, o acréscimo do Filioque ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano é decidido nos Concílios de Friuli (796) e de Aix-la-Chapelle (SESBOÜÉ, 2002, p. 281). Após várias décadas de resistências, a começar pelo papa Leão III, que havia sagrado Carlos Magno imperador em Roma, no ano 800, o Filioque foi finalmente adotado pela Igreja romana em 1014 sob o papa Bento VIII, a pedido do imperador Henrique II, acirrando as desavenças entre o Ocidente e o Oriente cristãos. O conflito em torno do Filioque, que há tempos se anunciava e que no contexto do século XI em muito extrapolava a esfera do meramente teológico-litúrgico-doutrinal, teve seu desfecho com o rompimento da unidade da igreja cristã em 1054 (cf. SESBOÜÉ, 2002, p. 281-282).

3 O Símbolo Niceno-Constantinopolitano

Dado que o conteúdo teológico-trinitário do Símbolo Apostólico, tão conhecido no Ocidente católico romano, está contido no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, apresentaremos aqui a formulação deste último, conforme encontramos no Missal Romano, seguido de alguns comentários teológicos breves a cada um dos seus artigos.

  • Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.
  • Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim.
  • Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai [e do Filho]; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. Amém.

“Creio em um só Deus” manifesta a atitude consciente do fiel de estar pessoal e existencialmente orientado unicamente para Deus. A expressão “um só Deus” caracteriza o monoteísmo cristão. “Pai” é o atributo designativo imediato de Deus que nos permite compreender a sua onipotência, assim como o que a ela imediatamente se segue: “criador do céu e da terra”. Ao dirigir o ato de fé a Deus Pai, onipotente, criador de tudo o que existe, o fiel se autocompreende como criatura de Deus, como posto na existência por livre disposição de Deus-Criador e, desde aí, há de compreender o significado de sua vida no regime do dom, da graça. Ao estender o âmbito do criado a “todas as coisas visíveis e invisíveis”, o símbolo recusa toda forma de maniqueísmo e de dualismo.

“Creio em um só Senhor, Jesus Cristo”. O termo grego κῡ́ρῐος (Senhor) fora utilizado na Septuaginta para traduzir o vocábulo hebraico “Adonai”, aplicado a Yahweh. Daí a primeira afirmação da igualdade divina de Jesus Cristo para com Deus. Sendo Jesus, o Cristo (Messias) é ele o ungido de Yahweh. Se um só é Deus, o Pai, segue-se que um só é o Filho; por isso se diz imediatamente “unigênito do Pai”. Para sublinhar uma vez mais sua divindade se diz “nascido do Pai antes de todos os séculos”, pois tudo o que não é Deus recebe o status de criatura. Do Filho divino se pode dizer agora que é “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” e “consubstancial ao Pai”. O termo “consubstancial” (ὁμοούσιος) fora empregado no Concílio de Niceia para afirmar a divindade de Jesus Cristo em oposição ao subordinacionismo ariano. A seguinte expressão, “Deus de Deus”, se explica pela afirmação anterior de que é consubstancial ao Pai. Com isso também se diz que não há hierarquia em Deus, a não ser no sentido que o Pai gera (e depois envia) o Filho, e não o contrário. “Luz da Luz” recolhe uma explicação tradicional de Santo Atanásio sobre a relação entre o Pai e o Filho eterno: eles são como a luz e o seu resplandecer; entre eles há diferença, mas não há distinção de natureza. “Por ele todas as coisas foram feitas” resgata a teologia do Prólogo de João (1,3) e, desta, a da criação do mundo que vem à existência pela Palavra de Deus (Gn 1 e 2).  “E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus” expressa o movimento que vai dar origem à Encarnação do Filho, não como uma simples e desinteressada expedição divina à sua criação, mas com uma finalidade precisa: a nossa salvação (cf. Rm 5,8; Jo 3,16-17; 1Jo 4,8-10). A salvação pela encarnação do Filho traz em si a possibilidade de sermos filhos de Deus no Filho de Deus (cf. Rm 8,14ss; Gl 4,6ss).

A Encarnação do Filho de Deus se dá “pelo Espírito Santo”, que, como tal, é Deus, é o Espírito de Deus, a vida de Deus. Com a expressão “no seio da Virgem Maria” tem início a cristologia histórica. O “se fez homem” completa a afirmação que Jesus Cristo é Deus conosco: “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem” como se dirá na célebre fórmula cristológica do Concílio de Calcedônia (DENZINGER, 2007, n.301).

“Também por nós foi crucificado” se compreende no horizonte salvífico aludido anteriormente: “por nós [=em prol de nós] e para nossa salvação”. Seu sangue foi derramado por nós para o perdão dos nossos pecados (cf. Mt 26,28; Mc14,24). “Sob Pôncio Pilatos” atesta o contexto histórico em que Jesus Cristo padeceu. “E foi sepultado” alude simplesmente ao destino comum dos que morreram e a prática vigente de sepultar os cadáveres. A expressão “desceu à mansão dos mortos”, do Símbolo Apostólico, não se encontra no Niceno-Constantinopolitano. Mas ela alude igualmente à participação real de Jesus no destino de todo homem mortal para também a partir daí poder ser, pela sua ressurreição, o Salvador de todos (cf. 1Tm 4,10).

“Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras” nos remete ao centro focal da confissão cristológica dos evangelhos e os seus relatos das aparições do ressuscitado ao terceiro dia. O terceiro dia confirma uma vez mais a realidade da morte do crucificado, já que não há reanimação de cadáveres dois dias depois da constatação fática da morte. Ao mesmo tempo, fala da esperança do justo na intervenção de Deus, que não o abandonará por mais tempo; e isso “conforme as Escrituras” (1Cor 15,4). “E subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai” alude à ascensão do Senhor, completando o kerigma primitivo e fundamentando a afirmação que Jesus foi constituído Senhor (Kyrios), colocado à direita do Pai. “E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos” atesta a esperança na vinda de Cristo em poder e glória para estabelecer definitivamente o Reinado do Pai (1Ts 1,9-10; 2Ts 1,7-10; Mt 24,29-30; Mc 14,62). Esta é uma forma apocalíptica de falar da consumação escatológica do Reino de Deus. A expressão “dos vivos e dos mortos” foi mantida porque não havia como determinar se pela ocasião da segunda vinda de Cristo todos deveriam primeiramente morrer para então serem por ele julgados, ou não. “E o seu reino não terá fim” é uma expressão que se entende em oposição aos subordinacionistas, segundo os quais Jesus entregará tudo ao Pai após ter cumprido sua missão terrena.

“Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida” é o modo de dizer a vida de Deus. O Espírito divino é o princípio vital por excelência, o sopro divino que faz do homem um ser vivente (Gn 2,7) e traz consigo a promessa de que um dia esse espírito seja a própria vida de Deus no vivente. É o Espírito que faz viver (Ez 37,14). O Espírito Santo também é chamado de Senhor (to Kyrios – na forma neutra). Sendo “Senhor”, o Espírito Santo é de natureza divina.

Ao invés do termo “consubstancial”, utilizado antes para sublinhar a divindade do Filho, se diz que o Espírito procede do Pai, e, em seguida, optou-se por uma expressão de corte mais bíblico para dizer de sua igualdade divina: “e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”. A fórmula “que procede do Pai” devia expressar, seguindo Jo 15,26, as relações intratrinitárias, tomando o Pai por fonte da procedência tanto do Filho quanto do Espírito. A formulação mantém o Espírito numa relação originária para com o Pai sem oferecer, contudo, maiores explicações quanto ao modo da procedência. O Símbolo Apostólico tampouco menciona explicitamente a procedência. “Que falou pelos profetas” destaca a ação do Espírito Santo na história da salvação. Só Deus revela Deus. O Primeiro e o Segundo Testamentos estão unidos pelo mesmo Espírito, tal como a promessa ao seu cumprimento (SESBOÜÉ, 2002, p. 111-113).

A Igreja é mencionada logo em seguida, dando sequência à ação do Espírito Santo na história. O Espírito Santo faz a Igreja. Creio/cremos em Igreja, junto-com, em comunhão com outros. Se o Espírito Santo não estivesse nos unindo, nos reunindo em Cristo, não haveria Igreja. Ela é “una” porque um só é o Pai, um só é o Filho e um só é o Amor divino que nos insere na comunhão divina; é “santa” porque está sendo santificada em cada um dos seus membros pela presença viva do Espírito Santo recebido no batismo; é “apostólica” porque finca raízes na fé e no testemunho dos apóstolos; e é “católica” pela sua universalidade, ou seja, ela não se restringe a um povo, a uma raça, a uma nação, a uma delimitação geográfica ou temporal.

“A comunhão dos santos” deriva da Igreja santa. Aqueles a quem o Espírito santifica pertencem e pertencerão a Deus em todos os tempos. No Espírito Santo, cremos “na remissão dos pecados” professando, para tanto, “um só batismo”. Salvação implica restabelecer a relação filial com Deus no Espírito – do Filho de Deus – que nos foi dado (Rm 5,5; 8,15, Gl 4,6; 1Cor 12,2; 1Jo 3,24). Enquanto a remissão dos pecados fala do passado, “a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir” diz respeito ao futuro na fé. Crer na ressurreição dos mortos (“da carne”, dirá o Símbolo Apostólico) é crer no amor vivificante de Deus que nos chama pelo nome à vida. O ato de fé tem como fundamento o amor de Deus. “Amém”: assim seja!, é tanto uma expressão de assentimento para com tudo o que antes foi confessado/professado como também uma expressão da esperança. Entende-se melhor o “amém” final por sua relação ao dito imediatamente antes: “E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”.

Conclusão

O Símbolo da Fé deve ser o conteúdo fundamental de toda catequese e de toda dogmática cristãs. Ao dizermos quem é Deus para nós, dizemos, ao mesmo tempo, quem somos nós para Deus, e reafirmamos a aliança nova e eterna com Deus em Cristo Jesus na força do Espírito Santo. Deus-Trindade é o amor misericordioso que respectivamente nos cria, nos redime/salva e nos santifica. A criação, a salvação, a santificação são o acontecer do amor misericordioso de Deus em nossa vida. É no horizonte do amor divino que se compreende o novo mandamento dado por Jesus aos seus discípulos: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,24). É amando que conhecemos Deus: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). E é conhecendo Deus como amor que descobrimos a razão e a finalidade da nossa existência como dom da bondade infinita de Deus, como graça. Nesse sentido, o Símbolo da Fé é o modo resumido que os cristãos têm para dizer: “Deus é Amor”.

Luiz Carlos Sureki, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original em português.

4 Referências bibliográficas

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DENZINGER Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.

KASPER, Walter. El Dios de Jesucristo. Santander: Sal Terrae, 2013. Col. Presencia Teológica.

LADARIA, Luís. O Deus Vivo e Verdadeiro. O mistério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005.

ORTIGUES, Edmond. Le Discours et le symbole. Paris: Aubier, 1962.

PEREIRA LAMELAS, Isidoro. Sim, Cremos. O Credo comentado pelos Padres da Igreja. Antologia comentada. Lisboa: Universidade Católica, 2013.

RATZINGER, Joseph.; BALTHASAR, Hans Urs von; RAHNER, Karl (et al.). Yo Creo. Ensayos 405. Madrid: Encuentro, 2010.

RITTER, Adolf Martin. Glaubensbekenntnis (V) – Alte Kirche. In: Theologische Realenzyklopädie, Band XIII. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1984. p.399-412.

SATTLER, Dorothea. Glaubensbekenntnis. In: Lexikon für Theologie und Kirche, Band 4. Herder: Freiburg-Basel-Rom-Wien, 1995, p. 702-707.

SESBÖUÉ, Bernard. História dos Dogmas. Tomo 1: O Deus da Salvação. Tradição e regra de fé e os Símbolos, a economia da salvação, o desenvolvimento dos dogmas trinitário e cristológico. São Paulo: Loyola, 2002.

Jesus, mediador entre Deus e os homens

Sumário

1 Introdução

2 O testemunho da Escritura

3 O que é uma mediação? A mediação de Cristo

4 Algumas testemunhas na tradição

4.1 Ireneu de Lião (ca. 140-202)

4.2 De Agostinho a Tomás de Aquino

4.3 Hoje

5 Referências

1 Introdução

Os termos “mediação” e “mediador” hoje talvez não nos digam muita coisa. Eles pertencem à linguagem jurídica ou à linguagem filosófica, e não os utilizamos com frequência. Eles exigem, efetivamente, alguma explicação. Mas desde que reflitamos, descobrimos que eles estão, de modo um tanto escondido, no coração de nossa linguagem cotidiana, seja qual for. Estão também no coração de nossa fé, pois é em torno deles que se organiza toda a teologia da redenção e de nossa salvação, ou seja, do êxito definitivo de nossa vida. Tentemos, portanto, acompanhar essa linguagem, primeiro na Sagrada Escritura e, depois, na tradição da Igreja até hoje, onde a encontramos no tema importante da reconciliação e no desenvolvimento contemporâneo da ideia de sacramento[i].

2 O testemunho da Escritura

O texto mais característico do NT acerca da mediação de Cristo Jesus é bem conhecido: “Há um só Deus e um só mediador entre Deus e a humanidade: o homem Cristo Jesus, que se entregou como resgate para todos” (1Tm 2,5-6).

Este texto paulino é na realidade uma fórmula abreviada da confissão de fé, próxima daquela que se lê em 1Cor 8,6. Ela apresenta o Pai e o Filho, mas sem desenvolver estes termos como farão as confissões de fé subsequentes. Ela comporta dois artigos. O primeiro é a retomada da confissão judaica fundamental: há um só Deus. O segundo artigo associa-lhe de maneira imediata a confissão de fé de Jesus Cristo, que compartilha com Deus a característica unicidade, maneira de dizer que ele não introduz o número em Deus. O único Deus e o único mediador constituem entre si uma só unidade divina. A particularidade deste segundo artigo consiste em apelar à noção de mediador, que aqui recapitula o sentido e a finalidade da vida e da morte daquele que nos foi enviado enquanto homem. Ele constitui com Deus um só, mas ele se tornou um ser humano, e esta novidade faz dele um mediador. De fato, é como homem, isto é, enquanto Deus que se tornou homem, que ele é mediador. O fim do texto é um resumo da atividade salvadora de Jesus: ele se deu em resgate por todos nós, evocação de sua morte e ressurreição, que nos reconciliaram com Deus.

Qual é o alcance desse texto, relativamente tardio na obra paulina? Será apenas um mero detalhe do pensamento do apóstolo, ou será a retomada, por ele, de um dado maior da revelação cristã? Para responder a esta pergunta, precisamos primeiro ver no AT, em razão deste grande princípio, aplicado pelos Santos Padres, que nos ensinam a sempre procurar o acordo entre os dois Testamentos como sinal de sua verdade.

A língua hebraica não possui um termo equivalente ao grego mesites, “mediador”. Contudo, os grandes personagens do AT já cumprem uma função mediadora. Abraão é aquele em quem “serão benditas todas as nações da terra” (Gn 12,3). Moisés teve por missão libertar Israel de seu cativeiro egípcio e concluir a primeira aliança entre Deus e seu povo. Sua mediação é, portanto, também descendente. Mas ele intervém, sobretudo, diante de Deus em favor de seu povo pecador. Paulo chega a dizer que a Lei foi promulgada “pelos anjos, pela mão de um mediador”, mesmo se “este mediador não é mediador de um só” (Gl 3,19). O NT compreende, portanto, o papel de Moisés como o de uma certa mediação (Gl 3,19-29). O sacerdócio levítico é, por sua vez, uma instituição de mediação no serviço do culto e da Lei. O rei, enquanto ungido de Yhwh, é investido de uma função de representação de seu povo diante de Deus. De maneira bem diferente, o profeta recebe a vocação de ser testemunha da palavra de Deus dirigida ao povo. Sua “mediação” é mais descendente que ascendente, à diferença daquela do sacerdote e do rei. Mas, por sua vez, ele intercede em favor do povo, em razão de sua solidariedade com ele. A figura misteriosa do Servo de Deus (Is 40–55) parece representar o pequeno resto de Israel e assumir uma função de mediação entre Deus e os homens. Ele carrega o pecado da multidão, ele assume os seus sofrimentos e oferece sua vida em expiação, o que lhe valerá uma posteridade viva. Este serviço antecipa a própria missão de Jesus, missão de reconciliação e de salvação, a de nosso único mediador.

Quando voltamos ao NT, encontramos raramente o tema da mediação de Cristo expresso de maneira formal, mas ele se encontra em afirmações categóricas e solenes e pertence à própria estrutura da revelação. Encontramo-lo na carta aos Hebreus, expresso de maneira bem determinada, referente à primeira aliança e aos diversos anúncios proféticos: “Cristo recebeu um ministério que é tanto superior quanto é melhor a aliança da qual ele é o mediador e fundada em promessas melhores” (Hb 8,6). O mesmo tema é desenvolvido com a linguagem do “Sumo Sacerdote”, do qual Jesus não atrai a glória a si mesmo, mas a recebe do Pai (Hb 5,5), enquanto responde a esse apelo dizendo com o próprio corpo: “Eis que eu venho” (Hb 10,5-7). A oferta do corpo de Cristo suprime os sacrifícios e as oblações da primeira Lei. Essa aliança é eterna, pois o Cristo “vive sempre para interceder por nós” (Hb 7,25). “Por isso ele é o mediador de uma nova aliança: sua morte redimiu as transgressões da primeira aliança, e assim os que são chamados recebem a herança eterna prometida” (Hb 9,15). Essa é a “nova aliança” prometida por Jeremias e inscrita nos corações (Jr 31,31-34). A expressão é retomada pela mesma epístola: “Jesus, o mediador da nova aliança e da aspersão com sangue mais eloquente que o de Abel” (Hb 12,24).

A grande novidade da mediação sacerdotal de Cristo é que ela é, antes de tudo, descendente. Os sumos sacerdotes da antiga Lei exerciam seu ministério num movimento principalmente ascendente e que nunca alcançava totalmente seu objetivo: restabelecer a comunhão do povo com seu Deus. Jesus se engaja num movimento gratuito e definidamente descendente, que o conduz ao rebaixamento e à morte. Exatamente porque ele vem de Deus e veio até nós rebaixando-se, ele pode “estabelecer realmente uma comunicação perfeita e definitiva entre o ser humano e Deus” (VANHOYE, 1980, p. 48). Enquanto os sumos sacerdotes faziam tudo para se separar do povo pecador, Jesus, o santo por excelência, faz tudo o que pode para assumir uma solidariedade plena com os pecadores. Assim, podemos encontrar nele um “Sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança” (Hb 2,17).

A Escritura exprime, ainda, a mediação do Cristo apelando ao tema do intercâmbio. Na pessoa de Jesus produz-se um misterioso intercâmbio entre Deus e os homens. Escreve Paulo: “Conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era tornou-se pobre por causa de vós, para vos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9). É também a troca de sua força por nossa fraqueza: “Decerto, ele foi crucificado na fraqueza, mas ele vive pela força de Deus. E nós também somos fracos nele, mas também viveremos com ele pelo poder de Deus em relação a nós” (2Cor 13,4). Este intercâmbio vai até o fim, pois torna-se o da santidade e do pecado: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21). Este versículo tem sido amiúde mal compreendido. Evidentemente, Jesus não foi feito pecador, mas carregou sobre si todas as consequências de nosso pecado, como nos mostra a imagem de seu corpo torturado. Na carta aos Gálatas, o intercâmbio é o da maldição e da bênção: “Cristo pagou para nos libertar da maldição da Lei, tornando-se ele próprio maldição em nosso favor, pois está escrito: “Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro” (Gl 3,13). Na cruz, Jesus tornou-se por sua vez alvo da maldição proclamada pela Lei, no exato momento em que ele nos justificava a todos nós. Até lá foi o seu amor.

3 O que é uma mediação? A mediação de Cristo

Podemos ser mais exatos no tocante à definição da mediação, que nos foi evocada na Escritura sob múltiplos aspectos. Trata-se, de fato, de um termo que utilizamos também na vida cotidiana, que está na base de nossa linguagem e funciona, sobretudo, na matemática. Façamos de imediato a distinção entre o intermediário e o mediador. O intermediário é um terceiro figurante externo às duas pessoas que, por exemplo, deveriam ser reconciliadas. Ele será o “homem do bom serviço”. Ele tem sua consistência própria, presente antes e depois do serviço prestado. O mediador é interno a cada um dos protagonistas e constitui uma unidade com cada um deles. O intermediário só pode, em parte, tornar-se intermediário se, por real solidariedade com um e outro, pode sentir-se sendo ele mesmo nos dois lados do conflito. Tomemos por exemplo um empregador em oposição a uma empregada imigrante. Nosso suposto mediador é, por uma parte, um empregador, amigo do acima mencionado, e de outra parte ele mesmo imigrante originário do mesmo país de onde vem a empregada. Ele sente em si mesmo a humilhação e um tratamento injusto que arrisca cair sobre ela. Ele participa do estatuto de mediador porque se identifica naturalmente com cada um dos dois parceiros. Mas, na medida em que sua mediação tem êxito, ela desvanece, assim como ele mesmo enquanto mediador.

A instância mediadora por excelência da comunicação entre as pessoas é a linguagem: ser é falar. Não por nada as modernas técnicas audiovisuais são chamadas media, ou mídia. A mídia está a serviço da comunicação entre as pessoas. Mas para que a linguagem possa funcionar, determinadas condições devem ser respeitadas. A mesma linguagem – a mesma língua – deve ser adquirida pelos dois interlocutores. Essa linguagem permitirá, então, que o mesmo pensamento ou a mesma informação esteja presente em cada um deles. A comunidade da linguagem permite a comunicação, talvez até a comunhão. Mas a linguagem desvanece constantemente, como o rolo de um filme ao ser projetado, permitindo assim que continue viva e possa criar uma comunhão de vida.

Além disso, toda argumentação em nossa linguagem apoia-se no funcionamento de “termos intermediários”, termos que são comuns a dois outros termos diferentes e permitem fazer passar nosso pensamento de um a outro. O silogismo pode ser extremamente simples, como aquele que vai nos servir de exemplo. Mas ele está presente também em argumentações extremamente complexas. Assim, por exemplo, o silogismo que desde séculos se repete nas escolas:

Todo homem é mortal. Sócrates é um homem. Portanto, Sócrates é mortal.

O problema consiste em poder justificar uma relação fundadora entre Sócrates e seu caráter mortal. Por que ele é mortal? Porque é homem! E este é o termo que nos vai servir de termo intermediário segundo uma proposição geral que vale para todos os homens. “Todo homem é mortal”, isso é certo porque evidente; portanto vale para o caso particular de Sócrates que é um homem. O termo homem serviu aqui como mediador entre a afirmação A e a afirmação B. Não lhe resta mais nada senão desaparecer. Este silogismo elementar, que não nos ensina nada, decompõe em todos os seus elementos uma afirmação que já conhecemos bem, porque ele repousa, para nós, de maneira inconsciente, sobre raciocínios desse gênero. A linguagem funciona porque ela é ao mesmo tempo nós mesmos e o outro: é ela que nos permite, de alguma maneira, passar de um ao outro. Ela é mediadora. Assim compreendemos por que a linguagem está no coração da reflexão filosófica.

Tomemos agora o exemplo da  matemática, na qual o sinal = funciona em qualquer teorema. Um teorema progride a partir de uma sucessão de equações. Mas em cada progresso da argumentação, os elementos da equação mudam, de um e do outro lado. O sinal = é o termo intermediário necessário para o progresso da argumentação. Mas em si mesmo ele não é nada: ele desvanece desde que tenha provado a perfeita equivalência dos dois lados da equação. Se em determinado momento a perfeita equação não foi respeitada, todo o raciocínio cai em ruínas.

Todas essas reflexões sobre a linguagem recebem um sentido extremamente forte para o cristão quando ele descobre que o evangelho de João chama a pessoa de Jesus de Verbo, ou seja, de Palavra. Nele, a palavra divina tornou-se palavra humana, o Verbo feito carne. Isso era indispensável para estabelecer uma comunicação plena entre a linguagem de Deus e a linguagem do ser humano. Em Jesus, Deus aprendeu nossa língua. Nele realiza-se a plena revelação e comunicação de Deus aos homens e a perfeita resposta do homem a Deus, na obediência e no amor. Em Jesus mediador, a comunhão imediata entre Deus e o homem se realiza num movimento constante de intercâmbio entre a revelação de Deus e a oração do homem. Este intercâmbio se realiza nele por nós, para nos colocar, por nossa vez, em comunhão imediata com o Pai. Mas a Palavra que é Jesus é divina: ela não desvanece como uma simples palavra humana. Convém dizer, simultaneamente, que ela se desvanece e que ela não se desvanece. Ela se desvanece, e ela manifestou esse desvanecimento na morte – a kénosis – na cruz, pois de outro modo ela não teria cumprido até o fim a mediação que permite nossa passagem até Deus. Ela não se desvanece, pois esse movimento do duplo “sim” de Deus ao homem e do homem a Deus é, doravante, eterno. Dele depende nossa comunhão com Deus de sempre para sempre.

O Cristo não estabelece competição entre Deus e o homem: ele é totalmente um e o outro. Todos os caminhos que vão de Deus ao homem e do homem a Deus cruzam-se nele. Nele, o inteiro mistério da Trindade entra em comunhão com a humanidade inteira. Aí está a origem e a realização dos dois movimentos do intercâmbio mediador, o movimento descendente que vai de Deus ao homem e o movimento ascendente que vai do homem a Deus. As grandes categorias da Bíblia e da Tradição acerca da redenção hão de se inserir espontaneamente neste duplo movimento. Apresentemos, pois, alguns exemplos.

4 Algumas testemunhas na tradição

Na Escritura, os testemunhos dados privilegiam claramente o movimento descendente da mediação, sem, contudo, esquecer o movimento ascendente. O Cristo nos salva, em primeiro lugar, porque é o revelador do conhecimento de Deus. O tema mais frequente é o da redenção, no sentido de resgate, ou seja, da liberação, e também o da libertação, realizada pelo combate vitorioso do Cristo contra as potências do mal. O Cristo é também aquele que nos traz a participação na divindade, o divinizador, do mesmo modo como ele realiza nossa salvação, simultaneamente como Deus e como homem, pois ele veio até os seus – e isso se refere a nós – em uma transmissão “de homem a homem”. Mas Jesus realiza também o dom sem retribuição do homem a Deus, pois do dom de Deus ao homem pode por ser acolhido e recebido. Assim como Deus se deu a si mesmo a nós, a retribuição não se pode realizar sem o dom de si do homem a Deus, dom que efetiva sua passagem em Deus. O dom de si é o sacrifício, que está ligado aos termos de propiciação, de satisfação (esta, amiúde demais mal-entendida, como se devesse provir de uma compensação) e de representação. Hoje, dá-se mais atenção ao tema da solidariedade assumida pelo único mediador com a humanidade.

4.1 Ireneu de Lião (de 140-202)

Ireneu de Lião tem meditado com atenção sobre os textos da Escritura que evocam a mediação de Cristo e até fez deles a teoria:

Ele então misturou e uniu o homem a Deus. Pois se se não fosse um homem que tivesse vencido o adversário do homem, o inimigo não teria sido vencido em toda justiça. Por outro lado, se não fosse Deus que nos tivesse outorgado a salvação, nós não a teríamos recebido de modo estável. E se o homem não tivesse sido unido a Deus, ele não teria podido receber em participação a incorruptibilidade. Pois era necessário que “o mediador de Deus e dos homens”, por seu parentesco com cada uma das duas partes, as conduzisse uma e outra à amizade e à concórdia, de modo que ao mesmo tempo Deus acolheu o homem e que o homem se ofereceu a Deus. Como poderíamos nós, de fato, ter parte à filiação adotiva, se não tivéssemos recebido, pelo filho, a comunhão com Deus? E como teríamos recebido a comunhão com Deus, se seu verbo não tivesse entrado em comunhão conosco tornando-se carne? (IRENEE DE LYON – III, 18,7, reed. 1984, p. 365-366).

Este belo texto de Ireneu nos explica com toda a clareza a mediação de Cristo. Ela tem por fundamento o duplo parentesco do Verbo encarnado com Deus e com o homem. É graças a isso que o mediador pode reconduzir as duas partes à amizade e à concórdia (ponto de vista redentor) e dar ao homem a filiação adotiva e a comunhão com Deus (ponto de vista divinizador). Mas há um outro traço que recebe a atenção de Ireneu. Para ele, a vitória do demônio sobre a humanidade foi profundamente injusta. Para que a justiça seja plenamente realizada, “é preciso” que o próprio vencido, isto é, o ser humano, consiga a vitória sobre o inimigo. Não se trata de modo algum de fazer justiça a Deus, mas ao homem, que injustamente foi feito pecador. Para Ireneu, há dois aspectos da mediação: “ela é redentora enquanto nos livra do pecado; ela é divinizadora enquanto nos dá a filiação adotiva:

“Pois esta é a razão pela qual o Verbo se fez homem e o Filho de Deus filho do homem: para que o homem, ao me misturar com o Verbo e ao receber assim a filiação adotiva se torne filho de Deus” (IRENEE DE LYON – III, 19,1, reed. 1984, p. 368).

Conforme as passagens, Ireneu realça uma dominante mais divinizadora ou mais “reconciliadora”:

É porque nos últimos tempos, o Senhor nos restabeleceu na amizade por meio de sua encarnação : tornado “mediador de Deus e dos homens” ele inclinou a nosso favor seu Pai contra quem tínhamos pecado e ele o consolou de nossa desobediência por sua obediência, e ele nos acordou a graça da conversão e da submissão a nosso criador. (IRENEE DE LYON – III, 17,1, reed. 1984, p. 619)

Cristo “inclinou” e “consolou” o Pai depois de nosso pecado: expressões antropomórficas, porém muito mais eloquentes e justas do que a ideia de “punição vingadora” e “compensação”.

Jesus é o mediador de nossa redenção porque antes foi mediador de nossa criação. “O Filho de Deus, que já se encontrava impresso em forma de cruz no universo” (IRENEE DE LYON, Démonstration (…) SC 406, p.131-133), “veio de modo visível no seu próprio domínio, se fez carne e foi suspenso no madeiro, a fim de recapitular todas as coisas em si mesmo” (IRENEE DE LYON – V, 18,3, reed. 1984, p. 625). Assim a humanidade de Cristo é a “placa giratória” da comunicação dos dons de Deus à nossa humanidade. Tertuliano retomará a mesma ideia, dizendo que “Cristo é a dobradiça da salvação” (TERTULLIEN, La résurrection (…) VIII ; PL 2, 806, ab).

4.2 De Agostinho a Tomás de Aquino

Entre Ireneu e Agostinho, Orígenes voltou à temática da mediação. Nos séculos IV e V os grandes debates sobre a Trindade e a cristologia encontraram seu argumento soteriológico principal na afirmação das condições que permitam ao Cristo ser um autêntico mediador entre Deus e os homens. Se não é verdadeiramente Deus, igual e “consubstancial” ao Pai, ele não pode divinizar-nos (Atanásio contra Ário). Se não é verdadeiramente homem, tendo participado plenamente em nossa condição comum, então não é a nós que ele assumiu, e nós ficamos fora da salvação que ele trouxe (Gregório Nazianzeno). Se ele não é um só e o mesmo como Deus e como homem, o ligame que ele quer constituir entre Deus e nós é rompido e não há mais mediação nem salvação. “É preciso que ele possua o que é nosso para que possuamos o que é dele” (CYRILLE, Le Christ (…) 722 a-b ;  S.C 97, reed. 1964, p. 327-329), diz Cirilo de Alexandria no seu debate com Nestório. Mas olhemos antes o testemunho de Agostinho, para o qual a mediação de Cristo não é somente uma afirmação doutrinal essencial, mas também o lugar de uma experiência pessoal, particularmente libertadora.

Encontramos nele uma análise bem exata daquilo que é a mediação salvífica de Cristo: a presença coexistente nele da divindade humana e da humanidade divina.

Ele é mediador de Deus e dos homens, porque ele é Deus com o Pai e homem com os homens. O homem não poderia ser mediador, separadamente de sua divindade ; Deus não poderia ser mediador, separadamente de sua humanidade. Eis o mediador: a divindade sem a humanidade não é mediadora; a humanidade sem a divindade não é mediadora; mas entre a divindade sozinha e a humanidade sozinha se apresenta como mediadora a divindade humana e a humanidade divina do Cristo (AUGUSTIN, Sermon 47, 21; PL 38, 310; Vivès 16, p. 307).

Mas Agostinho não para neste ponto; nos meandros de sua própria conversão ele fez uma experiência desta afirmação doutrinal. Ele não podia chegar ao verdadeiro conhecimento de Deus porque se recusava a reconhecer Jesus Cristo, o único mediador.

Eu buscava a via, para adquirir o vigor que me tornaria capaz de gozar de ti; e não encontrava, enquanto eu não tivesse abraçado “o mediador entre Deus e os homens, o Homem Jesus Cristo, que está acima de tudo, Deus bendido para sempre” (1Tm 2,5); ele chama e ele diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); e a comida que por fraqueza eu não podia tomar, ela se mistura à carne, pois “ o Verbo se fez carne” (Jo 1,14), a fim de que por nossa infância tua sabedoria se tornasse leite, ela por quem tu cristes todas as coisas.

É que eu não era suficientemente humilde, para possuir, meu Deus, o humilde Jesus, e eu não sabia qual ensinamento dá sua fraqueza. (AUGUSTIN, Confessions, VII, 18,24;  p. 631)

É realmente admirável esta última fórmula. Para Agostinho, o que levou Cristo à aniquilação (a kénosis) da cruz foi sua humildade. E esta é também a grande originalidade do cristianismo. Decerto, Agostinho tinha lido nos platônicos que no princípio havia o Verbo, mas “Quanto a isto: ‘Ele veio no seu próprio domínio e os seus não o receberam, mas aos que o receberam ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus crendo em seu nome (Jo 1,11-12), isso eu não li” (AUGUSTIN, Confessions, VII, 9,13; p. 609).

Agostinho, enfim, fez a experiência de toda a sua fraqueza e aceitou ir até a humildade que lhe permitia entrar em comunhão com a humildade do único mediador. Este, então, o liberava de suas amarras e o colocava em comunhão com Deus mesmo. Deus veio a nós para que nós pudéssemos ir até ele.

Agostinho passou do termo “mediação” para o de sacramento, que em seu texto não tem exatamente o sentido preciso que nós lhe damos hoje, mas dele se aproxima bastante. Para Agostinho, o sacramento é um mistério, ou seja, uma realidade que associa um gesto humano que tem sentido em nosso mundo a um dom propriamente divino que o transcende. O batismo é um rito exterior de ablução e de purificação. Mas o batismo, objeto de um mandamento de Jesus a seus discípulos, é rico do dom transcendente de Cristo que nos lava de todo pecado e nos faz participar de sua vida divina. O gesto humano é o signo exterior do dom divino que o ultrapassa infinitamente. O primeiro nos revela o mistério do segundo, o visível é o signo do invisível. O sacramento é, assim, o mediador visível de um mistério divino invisível. Por trás deste sacramento está a humanidade do próprio Cristo, que pode ser considerado como o sacramento primeiro e fundador da Igreja, que por sua vez se tornou sacramento, e também dos sete sacramentos:

a humanidade de Cristo é o sacramento da presença e da atividade do Verbo; a morte na cruz é o sacramento da misericórdia de Deus, do ato pelo qual ele nos comunica a vida divina. Vê-se e não se vê. Vê-se o Cristo morrer, mas essa morte é comunicação da vida divina à humanidade, eficácia em e através de um acontecimento na história e um evento sensível e corpóreo (AGAËSSE, 1980, p. 59).

Mas demos a palavra ao próprio Agostinho:

Revestido de uma carne mortal, morrendo só por meio dela, ressuscitando só por meio dela, só por ela ele se pôs em uníssono conosco para a morte e para a ressurreição, tornando-se por ela sacramento para o homem interior e exemplo para o homem exterior. (AUGUSTIN. La Trinité, IV 3,6 ; BA 15, 1955, p. 351)

            A Idade Média acompanhou sem dificuldade esse passo, associando mediação e reconciliação, como mostra este texto singelo de Tomás de Aquino:

O ofício do mediador consite em unir aqueles entre os quais ele exerce esta função: pois os extremos são juntos pelo termo mediano. Ora, perfazer a união dos homem com Deus convém sem nenhuma dúvida ao Cristo, já que, por ele, os homens são reconciliados com Deus, segundo esta palavra da epístola aos Coríntios: “Deus reconciliava o mundo com ele mesmo no Criso” (2Cor 5,19). Em seguida o Cristo, enquanto que, por sua morte, ele reconciliou o gênero humano com Deus, é o único e perfeito mediador entre Deus e os homens. (SAINT THOMAS. Commentaire sur les sentences, L. IV, D. 48, Q.1, a. 2, sol.)

4.3 Hoje

O tema da mediação única de Cristo está sempre presente na teologia da época moderna e dos dias de hoje. Ele até conhece uma renovação a partir do tema da reconciliação, que é muito caro a nosso tempo. No século XIX, ele se encontra em Matthias Scheeben (1947, p. 410-419):

Jesus Cristo é, efetivamente, o mediador entre Deus e o homem, porque nele a reconciliação do homem e seu ser reconciliado com Deus se tornaram um único e mesmo acontecimento. A existência de Jesus Cristo (…) é toda inteira, ela não é outra coisa que seu ser e sua obra de mediação. Em outros termos, Jesus Cristo é o único mediador entre Deus e os homens. (BARTH, 1968, p. 129)

Do lado católico, Karl Rahner aborda a mediação de Cristo do ponto de vista da teologia transcendental que lhe é familiar. O próprio desta teologia consiste em interpretar a transcendência que habita todo ser humano, isto é, seu desejo incoercível de ultrapassar todas as coisas criadas para chegar até Deus, o único que pode fundar sua existência e lhe conferir sentido. Esta teologia se coloca sempre a pergunta das condições de possibilidade existindo no homem para que possa aderir aos diversos aspectos do mistério cristão. Onde, portanto, situa-se se no homem a pressuposição da mediação de Cristo? Ela repousa simplesmente no fato de que o homem é um ser que vive da intercomunicação de todos os seres humanos entre si. Esse dado inscreve o ser humano em uma multidão de mediações, visto que ele chega da parte deles e doando-se por sua vez a eles. Esse intercâmbio constante não é outra coisa que a circulação do amor humano; cada um só pode se realizar abrindo-se aos outros, acolhendo o dom que lhe é oferecido. Mas este intercâmbio pressupõe um amor absoluto que o fundamenta e o torna possível. Esse amor só pode ser propriamente divino. A intercomunicação dos seres humanos entre si só pode ter seu cume e seu fim na pessoa de Cristo, mediador absoluto dado por Deus.

Outros teólogos, como Yves de Montcheuil e Edward Schillebeeckx aproximaram – como anteriormente Agostinho – o tema da mediação e o do sacramento. Assim, o sacrifício de Cristo, ou seja, o dom total de sua vida até a morte na cruz que efetiva a sua passagem para Deus, é o sacramento mediador do sacrifício de toda a humanidade e da passagem para Deus de toda a humanidade.

O sacrifício de Cristo é (…) o sacramento do sacrifício da humanidade (…) O sacrifício histórico realizado uma vez em um momento do tempo e em um lugar determinado é o sacramento do sacrifício realizado pelo Cristo total. Encontramos aqui a ideia (…) de que Cristo é o primeiro sacramento, o grande sacramento (MONTCHEUIL, 1951, p. 53).

A vida da humanidade através dos tempos é comparada a um único e longo sacrifício, isto é, ao dom de si mesma, que a faz passar progressivamente em Deus. O sacrifício de Jesus na cruz é ao mesmo tempo o mediador e o sacramento.

Do mesmo modo, para E. Schillebeeckx, Cristo é o sacramento ou a mediação do encontro de todos os homens em Deus. De fato, o encontro do Cristo terrestre é o sacramento do encontro com Deus. Todos os atos da vida de Jesus foram ao mesmo tempo a manifestação do amor divino à humanidade e a atuação do amor humano para com Deus. Mas este deve conservar através do tempo tal visibilidade concreta. Tal é o papel da Igreja, sacramento fundado por Cristo, que permanece o único sacramento fundador, Igreja que é o signo vivo e que assim exerce também o ministério da única mediação de Cristo.

Chamamos hoje o sacramento da penitência de sacramento da reconciliação. Vocabulário certamente mais feliz que o anterior, pois este sacramento é o encontro mediador e salvífico, realizado visivelmente na Igreja, do cristão sempre pecador com o Cristo, sacramento antigamente visível e hoje invisível de nossa salvação, e único mediador entre os homens e Deus, o eterno Deus, que aceitou tornar-se homem por nós.

Bernard Sesboüé, SJ. Centre Sèvres, Paris. Texto original francês. Tradução J. Konings.

5 Referências bibliográficas

AGAËSSE, P. L’anthropologie chrétienne selon saint Augustin. Image, liberté, péché et grâce. Paris: Centre Sèvres, 1980.

AUGUSTIN. Confessions VII, 18,24. livres I-VIII. 9. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1966 (Tradução portuguesa : Confissões. 8. ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1975)

______. Sermon, Patrologiae latinae: Sancti Aurelii Augustini Opera omnia. Paris: J. P. Migne, 1841 V. 38 Pt 5/1. (Series Latina, 38)

______. La trinité (livres I-VII). Paris: Desclee de Brouwer, 1955 613 p. V. 15. (Bibliotheque augustinienne). (Tradução portugues: A Trindade. Sao Paulo: Paulus, 1995)

BARTH, K. Dogmatique, IV, 1,1, 58; Genève : Labor et Fides, 1968, t. 17.

CYRILLE D’ALEXANDRIE. Le Christ est un. In Coll. Source Chrétienne 97, Paris: Cerf, 1964.

IRENEE DE LYON. Contre les hérésies. Dénonciation et réfutation de la gnose au nom menteur, III, 18,7 ; trad. A. Rousseau. Paris : Cerf, 1984.

______.  Démonstration de la prédication apostolique, 34. In Source Chrétienne, 406, 1995.

______. Contre les hérésies, V, Paris: Cerf, 1969 .

MONTCHEUIL, YVES DE. Mélanges théologiques. Paris : Aubier, 1951.

SAINT THOMAS. Commentaire sur les sentences, L. IV, D. 48, Q.1, a. 2, sol. (ver edição digital : http://docteurangelique.free.fr/bibliotheque/sommes/SENTENCES4.htm)

SCHEEBEN, M. Les mystères du christianisme, 62. trad. A. Kerwoorde. Paris: D.D.B. 1947.

TERTULLIEN. La résurrection de la chair, VIII; PL 2, 806, ab. (versão origianl digital : https://books.google.com.br/books?id=O5JBAAAAcAAJ&pg=PA811&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false)

VANHOYE, A. Prêtres anciens et prêtre nouveau selon le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1980.

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A cristologia nos séculos II e III

Sumário

Introdução

1 Panorama geral da cristologia nos séculos II e III

2 Os principais eixos da reflexão cristológica

3 A cristologia de Ireneu

4 A cristologia de Orígenes

Conclusão

5 Referências

Introdução

A fé em Jesus Cristo, transmitida pela pregação dos apóstolos e, mais amplamente, pelos diversos escritos do NT, suscitou nos séculos seguintes intensa reflexão no seio das comunidades cristãs. Se essa reflexão foi particularmente aprofundada na segunda metade da época patrística (graças às controvérsias que ensejaram os concílios de Éfeso, em 431, e Calcedônia, em 451), ela provocou, contudo, notáveis desenvolvimentos já nos séculos II e III. Isso se explica pelo fato que os cristãos dessa época eram conduzidos, como por uma espécie de necessidade interna, a entrar em uma compreensão mais profunda de sua fé em Cristo; mas isso tem a ver também com as discussões ou controvérsias que os opuseram aos judeus, aos pagãos e aos que, apesar de se valerem do Evangelho, lhe deformaram gravemente o significado (a saber, os adeptos da corrente chamada de “gnosticismo”).

Ofereceremos aqui, primeiramente, um panorama geral da cristologia nos séculos II e III e uma apresentação de suas principais orientações, para, em seguida, nos determos, de modo particular, nos Santos Padres que, por esse tempo, contribuíram de modo bem especial à reflexão sobre o Cristo: Ireneu e Orígenes[i].

1 Panorama geral da cristologia nos séculos II e III

Importa recordar a importância que os textos litúrgicos atribuem ao Cristo, quer por meio de breves fórmulas, como se vê no “Símbolo dos Apóstolos” (cujos principais enunciados são bem antigos), quer pela formulação que era utilizada na liturgia batismal. Durante essa liturgia, o celebrante dirigia ao catecúmeno a seguinte pergunta:

Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu pelo Espírito Santo da Virgem Maria, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, foi morto, ressuscitou no terceiro dia vivo dentre os mortos, subiu aos céus e está sentado à direita do Pai; que virá julgar os vivos e os mortos? ” (HIPOLLYTE DE ROME, La Tradition apostolique – 21, p. 85-87)

Além destes textos litúrgicos, entre os quais também a Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos (La Doctrine des douze apôtres – coll. Sources Chrétiennes, n.248), os inícios da literatura patrística revelam uma grande diversidade de escritos, que, cada qual a seu modo, dão testemunho de Jesus Cristo afirmando sua humanidade e sua divindade, bem como o alcance único de sua oferenda em favor da humanidade. Um dos mais antigos, Clemente Romano, em sua carta aos fiéis de Corinto (de 96-98 dC), apresenta o Cristo como mediador da salvação no seio da humanidade. Pouco depois, Inácio de Antioquia, enquanto se prepara para vencer o martírio (pela segunda metade do século II), escreve diversas cartas a comunidades cristãs e ataca exatamente os “docetas”, isto é, aqueles que dizem que o Filho de Deus teria assumido apenas uma aparência humana; ele lhes opõe a plena realidade da encarnação:

Sejais então surdos quando vos falam de outra coisa que de Jesus Cristo, da raça de Davi, [filho] de Maria, que verdadeiramente nasceu, comeu e bebeu, que foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pilatos, que foi verdadeiramente crucificado e morreu, aos olhos do céu, da terra e dos infernos, que verdadeiramente ressuscitou dentre os mortos (IGNACE D’ANTIOCHE, Aux Tralliens – IX, 1-2, p.119).

 Outros gêneros de escritos poderiam ser mencionados, inclusive em forma poética (como as passagens cristãs da coleção conhecida sob o nome de Oráculos Sibilinos, ou ainda, as Odes de Salamão), bem como os relatos de martírio que são característicos dessa época em que os cristãos às vezes eram submetidos a violentas perseguições e, precisamente nesta situação, alguns dentre eles testemunhavam até o fim sua fidelidade a Cristo.

Acrescenta-se a isso a literatura chamada “apócrifa”, que são textos cuja origem se desconhecia ou textos que circulavam sob nome falso (por exemplo, a Carta de Barnabé), ou ainda textos considerados como não aptos a figurar no “cânon” das Escrituras (cânon este que se constituiu progressivamente, pelo menos quanto ao essencial, ao longo de século II). Certo número desses textos veiculava afirmações heterodoxas, particularmente, afirmações “docetas”, o que contribui a explicar, por força do contraste, o vigor dos desenvolvimentos de Inácio de Antioquia e outros Padres a respeito da verdadeira humanidade de Cristo.

Além de todos esses escritos, que, como se pode ver, são de natureza diversificada, a literatura patrística dos séculos II e III nos legou obras que aportaram uma contribuição cristológica de primeiro plano: além de Inácio de Antioquia, já mencionado, cabe mencionar o apologeta Justino na metade do século II; Ireneu de Lião e Clemente de Alexandria lá pelo fim do mesmo século; e, depois, o grande exegeta Orígenes, que viveu sucessivamente em Alexandria e em Cesareia da Palestina; ou ainda Tertuliano, na África do Norte. Voltaremos mais precisamente a dois desses autores: Ireneu e Orígenes. Mas antes disso convém precisar os eixos maiores em torno dos quais se desdobra, em meio à diversidade de seus escritos, a literatura cristológica do período aqui considerado.

2 Os principais eixos da reflexão cristológica

A cristologia dessa época desenvolve-se numa situação histórica em que os cristãos, bem minoritários e às vezes ameaçados, devem defender sua fé frente às objeções formuladas contra eles. Isso se manifesta, sobretudo, nos escritos dos “Padres apologetas” no século II. A obra de Justino, “filósofo e mártir”, é significativa a este respeito (ver: JUSTIN, 1994). Por uma parte, contém um escrito de controvérsia com um judeu – o Diálogo com Trifão: neste escrito, Justino refuta as afirmações de seu interlocutor, que nega que Jesus crucificado possa ser o Messias. Por meio de uma exegese dita “tipológica” (alguns personagens ou episódios da Bíblia são entendidos como “figuras” do Cristo) e uma exegese “profética” (alguns oráculos ou salmos são lidos como anúncios velados daquilo que aconteceria com Jesus), Justino mostra que as Escrituras antigas haviam, de fato, predito a Paixão. Ele sublinha também que o Messias crucificado e ressuscitado há de voltar na glória e que, assim, haverá uma segunda “parusia” do Cristo no fim dos tempos. Por outra parte, a obra de Justino contém também uma Apologia, que pretende refutar as objeções que vêm do mundo pagão. O apologeta escreve, entre outras coisas, que a fé no Logos de Deus não deveria ser desprezada como uma crença inverossímil, visto que as tradições da Antiguidade grega elas mesmas exibem crenças inauditas:

Quando dizemos que o Logos, o primogênito de Deus, Jesus Cristo nosso Mestre, foi gerado sem união carnal, que após ter sido crucificado, morto e ressuscitado, ele subiu ao céu, nós nada mais anunciamos que o inaudito com relação aos que vós chamais filhos de Zeus (JUSTIN, Apologie pour les chrétiens – 21, 1, p.187).

Mas Justino sublinha, sobretudo, a superioridade e mesmo a unicidade do Filho de Deus em relação às figuras mitológicas – sendo que a crença em tais figuras deve ser explicada como obra dos “demônios” que tentaram afastar os homens da verdade. Aliás, ele não se satisfaz com tal refutação das acusações pagãs. Mais exatamente, como essas acusações atraíam a atenção sobre a data tardia da Encarnação invocada pelos cristãos e nisso encontravam motivos de objeção contra a doutrina cristã, ele explica que o Logos de Deus, embora só recentemente manifestado na história, se comunicava já de alguma maneira nos séculos anteriores à sua vinda; e assim chega a escrever:

Os que viveram segundo o Logos são cristãos, mesmo se são tidos por ateus, como por exemplo, entre os gregos, Sócrates, Heráclito e outros parecidos a eles e, entre os bárbaros, Abraão, Ananias, Misael, Elias e quantidade de outros, dos quais renunciamos por enquanto a enumerar as obras e os nomes sabendo que seria muito longo fazer isso (JUSTIN, Apologie pour les chrétiens – 46, 3, p.251).

Essa perspectiva, decerto, não impediu Justino de sublinhar a superioridade de Jesus em relação a Sócrates; fica claro que, em favor de sua controvérsia com os pagãos, ele chama a atenção para a universalidade do dom de Deus, do qual os próprios pagãos se beneficiaram nos séculos antigos. Retomando e transferindo a expressão estoica do Logos spermatikos, explica que o Logos de Deus é “disseminado” no mundo das “nações”: assim ele introduz o conhecido tema das “sementes do Verbo”, que será reencontrado pela teologia do século XX, de modo que o Concílio Vaticano II lhe fará referência expressa. Através de tal tema, que, depois de Justino, é amplamente desenvolvido por Clemente de Alexandria, no fim do século II, percebe-se que os Padres apologetas não ficaram apenas na defensiva, mas, no quadro de suas respostas às objeções pagãs, contribuíram para o aprofundamento da reflexão cristológica.

De fato, o aporte da literatura patrística a esta reflexão é, desde os séculos II e III, um aporte doutrinal. Diversos temas merecem destaque especial. Assim, em primeiro lugar, a insistência dos padres sobre o alcance salvífico da encarnação e do mistério pascal. Enquanto, às vezes, se percebe a tentação na história ulterior da teologia de desenvolver sobretudo uma reflexão ontológica sobre a identidade humano-divina do Cristo (correndo o risco de deixar no segundo plano a consideração da salvação oferecida por Cristo), os Padres dos primeiros séculos acentuam que o Verbo de Deus veio para curar a humanidade ferida e para oferecer-lhe a comunhão com sua própria vida. Mas esta orientação não os impede de refletir também, a seu modo, sobre a identidade do Logos. Eles sublinham, como vimos, a plena realidade da encarnação, da paixão e da ressurreição (que é o fundamento da esperança cristã na “ressurreição da carne”, como sublinha Tertuliano, entre outros). Ao mesmo tempo, afirmam a divindade do Verbo feito carne, mantendo que o Logos não é uma simples criatura, mas é desde sempre gerado pelo Pai. Decerto, essa reflexão não avança sem tateamentos, como se vê, por exemplo, em Teófilo de Antioquia, que, pelo fim do século II, distingue dois “estados” do Logos, o Logos “interior” (imanente em Deus) e o Logos “proferido” (no momento em que Deus quis criar o mundo) – distinção contestável, pois arrisca fazer pensar num desenvolvimento progressivo na geração do Logos. O próprio Teófilo, porém, não deixa de afirmar a presença do Logos junto de Deus. Seja como for, mesmo que alguma fórmula esteja sujeita a discussão, cabe sublinhar o esforço dos primeiros Santos Padres por tentar expressar a identidade misteriosa do Verbo divino que, enquanto é manifestado no meio dos homens, é verdadeiramente o Filho de Deus – o que será desenvolvido de modo notável por Ireneu de Lião. Este aprofundamento cristológico vem acompanhado de uma reflexão de grande importância para a teologia trinitária: os primeiros Padres esforçam-se para manter, ao mesmo tempo, a herança monoteísta (há “um único Deus”) e a distinção real do Pai, do Filho e do Espírito (isso, contra as formas de “modalismo” que veem nas três Pessoas simples modalidades de Deus; ou contra o “patripassionismo”, segundo o qual o Pai teria sofrido a Paixão no lugar do Filho). Tertuliano é, certamente, com Ireneu, o autor que mais contribuiu para essa reflexão no período dos séculos II e III, sendo, aliás, aquele que introduziu na língua latina o termo “Trindade” e o uso teológico do conceito de “Pessoa”.

Uma última orientação deve ser mencionada: os Padres dos séculos II e III sublinham que a adesão a Cristo deve tomar corpo através de toda a vida humana, num modo de ser e de agir que possa testemunhar sua autenticidade. O escrito A Diogneto  (que remonta sem dúvida ao fim do séc. II ou ao início do séc. III) descreve de modo magnífico a condição dos cristãos, os quais “residem cada um na sua própria pátria, mas como estrangeiros residentes” e “passam sua vida sobre a terra, porém sendo cidadãos do céu” (À DIOGNÈTE, V, p.63-65): tal deve ser a condição dos que acolheram a revelação do Verbo de Deus, que “renasce sempre novo no coração dos santos” (À DIOGNÈTE, XI, p.81).

Na mesma época, Clemente de Alexandria, depois de ter escrito seu Protréptico para exortar os pagãos à conversão, compõe uma obra intitulada O Pedagogo, na qual incita os recém-batizados a deixar-se educar e guiar pelo Cristo. Assim diz: “É preciso que sejam novos os que receberam sua parte do Logos novo” (CLÉMENT D’ALEXANDRIE, Le Pédagogue – I, 5, 20, 3, p.147). Clemente precisa que se trata de se deixar conduzir pelo Cristo até nas dimensões mais concretas da existência – a maneira de comer, de se vestir, de se dar às diversas ocupações da vida cotidiana. Poder-se-ia dizer, para usar uma linguagem contemporânea, que para os Padres dos primeiros séculos não há “cristologia” sem “cristopraxia”: o comportamento efetivo dos cristãos é que deve atestar a realidade de sua fé. Evidentemente, os Padres não ignoram que essa exigência é amiúde negada nos fatos, mas diante disso eles insistem na necessidade do arrependimento, pois o comportamento dos pecadores atinge a identidade daqueles que, batizados em Cristo, sempre deveriam viver com ele e nele.

A fidelidade ao Verbo encarnado tenciona, portanto, a refletir-se na qualidade da existência como um todo. Esta convicção exprime-se, entre outras coisas, mediante a instrução catecumenal (como se vê na Tradição Apostólica); ela marca, mais amplamente, toda a catequese sacramental, pois, mesmo se a celebração dos mistérios, e nomeadamente da eucaristia do “dia do Senhor”, é um momento capital da vida cristã, os frutos dessa celebração devem, justamente, se manifestar no conjunto dessa vida, desde as situações mais comuns até as mais excepcionais, como, por exemplo, a da perseguição. Mencionemos, ainda, que também o movimento monástico, que nasce no decorrer do século III, ilustra, em seu modo, esta mesma convicção: tornar-se “amigo do Cristo”, para os que se retiram na solidão dos desertos do Egito ou da Palestina, é engajar-se num modo de existência capaz de exprimir, pela sua radicalidade, a profundidade da adesão ao Senhor.

Essas são as principais orientações da cristologia nos séculos II e III. Com esse pano de fundo, cabe agora concentrar-se sobre dois autores especialmente importantes desta época: Ireneu e Orígenes.

3 A cristologia de Ireneu

O primeiro desses autores, originário da Ásia Menor e bispo de Lião, logo depois da perseguição que atingiu os cristãos no ano de 177, escreveu uma obra que chegou até nós intitulada Contra as Heresias. Esta obra visa, por um lado, à doutrina de Marcião, que opunha o Deus de Jesus Cristo (reconhecido como Deus justo e bom) ao Deus revelado no Antigo Testamento (apresentado como juiz vingador e guerreiro). Além disso, Marcião era “doceta” e considerava que o Salvador adotou somente uma aparência carnal. A obra de Ireneu se dirige também, de modo mais abrangente, contra todas as correntes “gnósticas”, para as quais o mundo material, obra de um deus inferior (o “demiurgo”) devia ser visto como intrinsecamente mau. Estas correntes estabeleciam uma oposição radical entre a matéria e o espírito e afirmavam que somente alguns eleitos podiam ser salvos por meio de seu conhecimento da verdade – a verdade que era ensinada por gente como Valentino, Basílides e outros “gnósticos”.

Ireneu tinha consciência que tais “heresias” falsificavam radicalmente a pregação do evangelho como tinha sido transmitido pelos Apóstolos e depois pelos bispos que os sucederam. Por isso, empenha-se a refutá-las e a lhes contrapor uma reta compreensão das Escritura e uma doutrina fiel da “regra da fé” acolhida entre as Igrejas. Ele insiste, por isso, na unidade de Deus e na unidade da história da salvação; é um só e o mesmo Deus que se revelou no Antigo e no Novo testamentos, ainda que essa revelação tenha passado por certo número de fases, atingindo seu ponto central na vinda do Filho de Deus no meio dos homens. Assim, no quadro de sua oposição a Marcião e às correntes gnósticas, Ireneu é levado a desenvolver importante reflexão sobre o Cristo. Ele sublinha, primeiro, que Cristo tinha sido prefigurado ou profetizado nos séculos que precederam a sua vinda: desde esses séculos, escreve Ireneu, Deus agia por suas “mãos” (que são o Verbo e o Espírito), e “desde o princípio (…) o Verbo de Deus se tinha acostumado a subir e a descer para a salvação dos que eram molestados” (LYON – V, 5, 1 e IV, 12, 4, 1982, p. 580 e 440-441). Mas Ireneu evidencia também, sobre este pano de fundo, a novidade da Encarnação:

Leiam com atenção o Evangelho que nos foi dado pelos apóstolos, leiam também com atenção os profetas, e vocês constatarão que toda a obra, toda a doutrina e toda a Paixão de nosso Senhor aí estão preditas. – Mas então, pensareis talvez, o que é que o Senhor aportou de novo por sua vinda? E bem, saibam que ele aportou toda novidade, portanto sua própria pessoa anunciada antecipadamente: pois o que foi anunciado por antecipação era precisamente é que a Novidade viria renovar e revificar o homem (LYON – IV, 34, 1, 1982, p. 526).

Ireneu explica o que constitui o caráter incomparável e único do Verbo feito carne: ele é inseparavelmente homem e Deus. Por um lado, contra as correntes docetistas, defende que o salvador, nascido de Maria, foi um homem verdadeiro; por outro lado, contra aqueles para quem Jesus teria sido apenas “adotado” como Filho de Deus, sublinha que o salvador é verdadeiramente Deus. Exatamente por ser homem e Deus ele ofereceu à humanidade, desviada pelo pecado, a possibilidade de reencontrar o caminho da comunhão na vida divina:

Ele então misturou e uniu, como já dissemos, o homem a Deus (…) Era necessário que o “Mediador de Deus e dos homens”, por seu parentesco com cada uma das duas partes, os reconduzisse uma e outra à amizade e à concórdia, de modo que ao mesmo tempo Deus acolhesse o homem e que o homem se oferecesse a Deus. Como teríamos podido, com efeito, ter parte na filiação adotiva para com Deus, se não tivéssemos recebido, pelo Filho, a comunhão com Deus? E como teríamos recebido esta comunhão com Deus, se o seu Verbo não estivesse entrado em comunhão conosco fazendo-se carne? Por sinal é por isso que ele passou por todas as idades da vida, concedendo através disso a todos os homens a comunhão com Deus (LYON – III, 18, 7, 1982, p. 365-366).

Assim, Ireneu expõe, contra o dualismo de Marcião e dos gnósticos, a identidade do Verbo feito carne que, em sua unidade, é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. E ele sublinha que a encarnação é totalmente ordenada para a vida do homem e sua comunhão com a divindade:

A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus: se a revelação de Deus pela criação já concede a vida a todos os seres que vivem sobre a terra, quanto mais a manifestação do Pai pelo Verbo concede a vida aos que veem Deus! (LYON – IV, 20, 7, 1982, p. 474).

Ireneu escreve, no mesmo sentido, que Jesus Cristo “por causa de seu amor superabundante se fez aquilo que nós somos a fim de fazer de nós aquilo que ele é” (LYON, Préface du livre V, 1982, p. 568). E para expressar este lugar central do Verbo feito carne na história da salvação, ele retoma uma palavra do NT para lhe dar uma amplidão totalmente nova: o verbo “recapitular”. Este termo, já presente em Rm 13,9 e Ef 1,10, é empregado de diversas maneiras em Contra as Heresias: o Cristo é o Novo Adão, que “recapitulou” o primeiro Adão; ele “recapitulou” a desobediência deste por sua própria “obediência”; e ele o “recapitulou” pelo lenho da cruz (enquanto Adão e Eva comeram do fruto da árvore e, nesse sentido, desobedeceram pelo lenho)” (LYON – III, 22, 3 ; IV, 40, 3 ; V, 19, 1, 1982, p. 385; 559; 626). A novidade de Cristo mostra-se no próprio fato de ele ter “recapitulado todas as coisas” – isto é: ele resumiu em sua pessoa, ao mesmo tempo, o primeiro Adão e toda a humanidade, ele assume o gênero humano em sua totalidade, ele “recria” a humanidade  livrando-a do pecado e renovando-a, e a conduziu à sua plena realização, a saber, à perfeita comunhão dos humanos com a própria vida de Deus (SESBOÜÉ, 2000, p. 160-163).

A teologia de Ireneu desenvolve outros temas, inclusive a respeito do Cristo e de sua obra em favor da humanidade, e o que acabamos de dizer indica pelo menos algumas orientações essenciais disso. Como se vê, é a confrontação com as doutrinas de Marcião e dos gnósticos que o conduziu a desenvolver uma reflexão profunda e original acerca do Verbo feito carne, por meio da mediação das Escrituras e do respeito da tradição que vem dos Apóstolos e de seus sucessores – esta tradição de que vivem as Igrejas espalhadas por diversos lugares e que, precisamente através dessa diversidade, testemunha uma só e mesma fé.

4 A cristologia de Orígenes

Orígenes nasceu por volta de 185 em Alexandria, onde passou a primeira parte de sua vida. Ele adquiriu sólida formação filosófica e, sobretudo, dedicou-se a um estudo muito aprofundado da Bíblia. Obrigado a deixar Alexandria por causa do desentendimento com o bispo dessa cidade, foi para Cesareia da Palestina, onde continuou seu imenso trabalho sobre as Escrituras. Sua obra é considerável (ainda que tenhamos perdido a maior parte dela, em consequência das acusações de heterodoxia, geralmente injustas, que foram levantadas contra o alexandrino depois de sua morte). Sua obra compreende o Tratado dos Princípios, que é a primeira tentativa de síntese doutrinal na história da teologia; além disso, uma grande apologia, o Contra Celso, na qual Orígenes responde às objeções de um filósofo grego contra o cristianismo; e sobretudo os comentários de livros bíblicos e grande número de homilias sobre passagens escriturísticas.

A reflexão de Orígenes sobre o Verbo de Deus deve antes de tudo ser vista no contexto de sua incessante meditação sobre a Sagrada Escritura. O alexandrino explica que o leitor das Escrituras não deve simplesmente explicar o sentido literal de tal ou tal texto, mas elevar-se à descoberta de seu sentido espiritual, que é, antes de tudo, o sentido que o texto recebe à luz de Cristo, que “levou à plenitude” as Escrituras. Aliás, incumbe ao leitor buscar o sentido do texto para sua própria vida, ou seja, reconhecer como os mistérios assim revelados devem tomar corpo no conjunto de seu existir. Ora, esta compreensão dos sentidos da Escritura (dos quais Orígenes é o primeiro a oferecer uma exposição teórica) se liga imediatamente à convicção de que o Logos de Deus, mesmo que se manifeste de maneira visível nos dias da Encarnação, já estava presente no decurso da história anterior e, de modo semelhante, continua presente depois de sua vinda em nossa humanidade. E essa presença se comunicava, desde os séculos que precederam o nascimento de Jesus, pela própria Escritura, que não se reduz, portanto, à mera letra, mas que, sob o seu véu, deu acesso ao Logos divino. Orígenes via o símbolo disso na imagem do “poço”, muitas vezes utilizada na Bíblia, desde o Gênesis até o episódio da samaritana no Evangelho de João:

Lemos que os patriarcas também tiveram poços: Abraão teve um, Isaac também, Jacó, penso, também. Parta desse poço, percorra toda a Escritura nela buscando os poços e chega aos Evangelhos (…) é preciso tomar o Verbo de Deus como um poço, se ele esconde um profundo mistério, ou como uma fonte, se ela transborda e se derrama em favor dos povos (ORIGÈNE, Homélie sur les Nombres – XII, 1, p. 75-77).

Orígenes dedica-se, pois, a escrutar os textos do AT para descobrir como o Logos de Deus se revela já neles. Esta revelação volta-se para o futuro na medida em que numerosos textos podem ser lidos como prefigurações ou como profecias do Cristo que vem à carne (assim, Isaac oferecido em sacrifício é entendido como figura de Jesus oferecendo-se a si mesmo até a morte, e as palavras de Servo padecente no livro de Isaías são entendidas como anunciando de antemão a Paixão do Cristo). O NT atesta certamente uma novidade essencial, visto que a partir dele o Logos se fez visível no meio dos homens; mas Orígenes sublinha que não era suficiente ver Jesus para reconhecê-lo como o Filho de Deus e que, mesmo para os que o reconhecem assim, é preciso continuar a escrutar a letra dos evangelhos para chegar à compreensão espiritual do salvador e para se tornar, pessoalmente, “outro Cristo”. Ele formula esta última exigência numa linguagem que posteriormente será retomada pelos autores espirituais:

Para que serve Jesus ter vindo somente na carne que ele tomou de Maria se eu não mostrar igualmente que ele é vindo na nossa própria carne? (ORIGÈNE, Homélies sur la Genèse – III, 7, p. 141).

Para que o Cristo veio outrora na carne, se ele não é vem também em vossa alma? Oremos para que cada dia seu advento se cumpra em nós e que possamos dizer: “Eu vivo, mas não sou mais que que vivo, mas o Cristo que vive em mim (ORIGÈNE, Homélies sur Luc – XXII, 3, p. 303; cf. Gal 2, 20).

Ele não se contenta, porém, em sublinhar como Cristo se revela através dos santos livros; mais exatamente, pela própria via dessa revelação, ele chega a uma reflexão profunda sobre a identidade do Verbo de Deus. Se ele reconhece, por um lado, a humanidade do Logos feito carne, ele explica também que a alma do salvador é radicalmente unida a Deus. Sobretudo, ele professa a eterna geração do Logos divino. Este último ponto foi frequentemente contestado, e isto desde a época patrística, sob o pretexto de que Orígenes apresenta muitas vezes o Filho como estando abaixo do Pai e subordinado a ele. Assim, ele foi acusado de ter aberto o caminho à doutrina errônea de Ário, no início do século IV, e que ele recusaria a geração eterna do Filho e considerava-o como uma criatura. Apesar disso, é fácil convencer-se, com base em alguns de seus textos, que Orígenes realmente manteve a geração eterna do Logos, que ele identifica com a “Sabedoria” de Deus, sempre presente junto do Pai: “Deus Pai sempre foi, ele sempre tem tido um Filho único que, ao mesmo tempo, é chamado de Sabedoria” (ORIGÈNE, Traité des príncipes – I, 4, 4, p. 171).

Conclusão

Com certeza, as questões a respeito da identidade do Filho de Deus serão consideravelmente aprofundadas nos séculos ulteriores, particularmente no quadro das controvérsias suscitadas pelo arianismo no século IV e, depois, por Nestório e Êutiques no século V. Os desenvolvimentos precedentes, porém, bastam para mostrar que a época patrística viu emergir, desde os primeiros séculos, contribuições maiores para a reflexão cristológica. Não deve causar admiração que essas contribuições foram também marcadas, em certos casos, por tateamentos ou hesitações: precisou-se de tempo para chegar a uma compreensão mais profunda daquilo que dizem o NT e a “regra da fé” a respeito de Jesus Cristo. Mas os séculos II e III representam justamente um momento capital nesta gênese da reflexão cristológica, e não se poderia sublinhar demais o quanto esta se alimentou, antes de tudo, nos primeiros Santos Padres, por uma intensa meditação das Escrituras, esses “poços” aos quais sempre se deve retornar porque permitem não apenas conhecer melhor o Salvador, mas alimentar-se e viver dele.

Michel Fédou, SJ. Centre Sèvres, Paris. Texto original em francês. Tradução J. Konings.

5 Referências

À DIOGNÈTE. In Coll. Sources Chrétiennes, n.33 bis. Paris: Cerf, 1951 (Tradução portuguesa: A carta a Diogneto. Petrópolis: Vozes, 1976).

 CLÉMENT D’ALEXANDRIE. Le Pédagogue. In. Coll. Sources Chrétiennes n.70, Paris: Cerf, 1970.

HIPPOLYTE DE ROME. La Tradition apostolique. In Coll. Sources Chrétiennes n.11 bis, Paris: Cerf, 1968.

IGNACE D’ANTIOCHE. Aux Tralliens. In Sources Chrétiennes n.10 bis. Paris: Cerf, 1969 (Tradução portuguesa. Cartas de Santo Inácio de Antioquia: comunidades eclesiais em formacao. Petrópolis: Vozes, 1970).

IRÉNÉE DE LYON, Contre les hérésies. Livres V et IV. Paris: Cerf, 1965, 1969 (Tradução portuguesa: Irineu, Santo, Bispo de Lyon. [Contra as heresias]: livros I, II, III, IV, V. Sao Paulo: Paulus, 1995 624 p. (Patristica, 4).

 JUSTIN martyr.  Œuvres completes. Paris: Migne, 1994 (Tradução portuguesa: Justino de Roma, Santo. I e II Apologias ; Diálogos com Trifão. Sao Paulo: Paulus, 1995 (Patristica, 3).

 JUSTIN martyr. Apologie pour les chrétiens. In coll. Sources Chrétiennes n.507, Paris: Cerf, 2006.

LA DOCTRINE DES DOUZE APÔTRES (Didaché). In coll. Sources Chrétiennes n.248. Paris: Cerf, 1978 (Tradução portuguesa: Didaqué ou doutrina dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes, 1970).

 ORIGÈNE. Homélie sur les Nombres, XI-XIX. In Coll. Sources Chrétiennes n. 442, Paris: Cerf, 1999.

 ______. Homélies sur la Genèse, III. In Coll. Sources Chrétiennes n.7 bis, Paris: Cerf, 1944.

______. Homélies sur Luc, XXII, In Coll. Sources Chrétiennes n.87, Paris: Cerf,  1962.

______. Traité des principes, I-III, In Coll. Sources Chrétiennes, Paris: Cerf, 1978 (Tradução portuguesa:  Orígenes. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012).

SESBOÜÉ, B. Tout récapituler dans le Christ. Christologie et sotériologie d’Irénée de Lyon. Paris: Desclée, 2000.

[i] As referências bibliográficas desse verbete estarão em francês, língua original em que foi escrito. Porém, caso hajam traduções ao português, as mesmas estarão nas referências finais.

Espaço litúrgico

Sumário

1 Definição

2 Evolução

2.1 Compreensão neotestamentária de templo

2.2 Era pré-nicena

2.3 Igrejas paleocristãs

2.4 Igrejas no Oriente cristão

2.5 A era carolíngia e o românico

2.6 O gótico

2.7 O Renascimento

2.8 O barroco

2.9 O pós-barroco

3 O lugar da assembleia celebrante

4 Teologia do espaço litúrgico

4.1 Qualidades identificadoras

4.2 O ambão

4.3 A fonte batismal

4.4 O altar

5 Referências bibliográficas

1 Definição

O espaço litúrgico é aquele edifício onde a Igreja realiza o seu culto e que, por feliz metonímia, recebe o seu mesmo nome, igreja. Esse edifício possui características próprias que o qualificam como lugar de culto, o que chamamos de qualidades identificadoras ou monumentos pascais, sendo os principais o altar, o ambão e a fonte batismal. Para além dessas qualidades identificadoras, o espaço litúrgico recebe em sua estética aspectos que lhe conferem a mistagogia cristã. Disso decorre que o espaço litúrgico tem uma teologia, para além de uma história da evolução dos estilos arquitetônicos. Essa teologia e evolução arquitetônica revelam uma eclesiologia, em que a Igreja se compreende como imagem da Trindade através das três categorias eclesiológicas: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo.

2 Evolução

2.1 Compreensão neotestamentária de templo

Os primeiros cristãos tinham uma forte consciência de que o verdadeiro espaço sagrado era a comunidade dos discípulos de Cristo e cada fiel individualmente a exemplo do Mestre. De fato, em Jo 2,19-21, Jesus declara solenemente ser ele o verdadeiro templo que, destruído, erguer-se-ia em três dias, e João explica que Jesus falava do templo do seu Corpo. Tendo Jesus morrido, ressuscitado e subido aos céus, o seu Corpo é a Igreja (Ef 1,22-23; 4,15-16; 5,23; Cl 1,18; cf. 1Cor 12,12). Eles não tinham, portanto, a preocupação de possuir um lugar específico de culto como o tinham os judeus e muitos pagãos. De fato, o lugar de adorar Deus não é mais sobre a montanha de Sicar, na Samaria, e tampouco em Jerusalém, mas em espírito e verdade (Jo 4,21-23). Assim sendo, os discípulos de Jesus se reuniam na casa de algum deles que possuía um imóvel capaz de abrigar bom número de pessoas (Lc 22,7-13; At 2,46; 12,12; At 20,7-12; 1Cor 16,19; Fm 1,2). Contudo, isso era principalmente para o caso específico do culto cristão, porque, por algum tempo, eles costumavam ir diariamente ao templo de Jerusalém (At 2,46) e os apóstolos pregavam também nas sinagogas (At 9,20) até serem delas expulsos. É preciso, porém, considerar que algumas sinagogas, onde tenha havido conversão em massa de judeus, inclusive dos chefes, tenham se tornado lugares de culto cristão (Mc 5,22; Tg 2,2; o Sacramentário Gelasiano Antigo traz orações de consagração de lugares de culto que antes foram sinagogas (GeV 724-729).

2.2 Era pré-nicena

O número dos fiéis aumentava entre a paz ou as perseguições; fizeram-se, então, necessários lugares maiores para abrigar as comunidades cristãs, o que já começava a ganhar certos aspectos da nova realidade. Que os cristãos se reunissem nas catacumbas para celebrarem o culto dominical em épocas de perseguição é um tanto controverso, porque suas condições eram tão insalubres que os impediriam de ali permanecer por muitas horas, além de suas dimensões não acolherem sequer cinquenta pessoas (KRAUTHEIMER, 1986, p.30). De modo que já começam a surgir, no séc. II, edifícios com uma sala ampla, com espaços definidos para o clero e para os demais fiéis, o que ficou conhecido como domus ecclesiae. A mais conhecida é o domus ecclesiae de Dura Europos, atualmente Qalat es Salyhiye, na Síria, datada entre os anos 231 a 265 (KRAUTHEIMER,1986, p.27; LASSUS, 11863; HOPKINS, p.116).

2.3 Igrejas paleocristãs

No séc. IV, os cristãos conquistam liberdade de culto, reconhecida pelo imperador Constantino, com Edito de Milão, de 313. Por ordem do imperador, várias igrejas são edificadas por quase todo o Império Romano. A mais antiga que se tem notícia é a Catedral de Tiro, na Fenícia, inaugurada aproximadamente em 316, da qual Eusébio de Cesareia nos fornece uma descrição pormenorizada, inclusive com uma interpretação simbólico-teológica. Entretanto, nesse momento de liberdade, a grande questão era que arquitetura adotar na edificação das igrejas. A escolha cai sobre a basílica romana, uma adaptação da basílica grega para abrigar grandes multidões. A basílica romana se caracteriza por sua forma retangular e com dupla simetria: na longitudinal, duas filas de colunas uma frente à outra e, nas transversais, duas absides, também uma frente à outra, criando assim um centro único e precioso. O arquiteto cristão, porém, suprime uma das absides, eliminando aquele centro único, que é função do edifício, propondo-lhe um caminho, o do homem (ZEVI, 2009, p.71). Por caminho do homem entende-se a trajetória do observador, ou seja, o cristão deu aos esquemas da basílica romana uma alma e uma função, de modo que o eixo do edifício se tornou uma metáfora do caminho a ser percorrido pelo homem rumo à parusia, representada pela abside única. A organização interna da basílica, porém, segue o esquema sinagogal (BOUYER, p.15). Contudo, advirta-se que o estilo basilical não foi o único, embora predominante; a basílica de São Vital, em Ravena, por exemplo, tem planta redonda. A todo esse conjunto de estilos, hoje, se chama paleocristão.

2.4 Igrejas no Oriente cristão

Na Síria, as basílicas se distinguiam fortemente das de tradição ocidental pelo ambão. Este era uma construção monumental no centro do edifício, com a cadeira presidencial para o bispo, ladeada por assentos para os presbíteros e demais ministros e, de cada lado, uma estante para a leitura da epístola e do Evangelho. Toda a liturgia da Palavra se dava nesse ambão, que se costuma chamar de Bema; na tradição ocidental, o ambão, embora também central, era de dimensões menores e servia apenas como lugar da proclamação da Palavra, a homilia se dava no presbitério. Terminada a liturgia da Palavra nas igrejas sírias, o bispo e seus presbíteros se dirigiam, através de uma passarela, para o presbitério-abside para a liturgia eucarística. O altar ficava muito próximo dos fundos da abside e escondido por um pesado cortinado, de modo que a assembleia ouvia, mas não via o que se passava. Na tradição bizantina, esse cortinado deu lugar à iconóstase, uma parede ricamente decorada com ícones e com três portas; na tradição latina, porém, o altar sempre foi visível à assembleia. A fonte batismal, via de regra, era edificada fora da basílica.

2.5 A era carolíngia e o românico

À era arquitetônica paleocristã sucede o chamado estilo carolíngio. Um belo exemplo é a parte original da Capela Palatina de Aquisgrana (Aachen, Alemanha), encomendada por Carlos Magno no século IX. A planta é redonda, como a de São Vital em Ravena, mas aprofunda fortemente o presbitério. As colunas italianas suportam o peso da abóbada de pedra, o que antecipa a influência bizantina. Em Roma segue o estilo basilical, mas já com grande influência bizantina, como é o caso de Santa Inês (séc. VII) e Santa Praxedes (séc. IV). Esse ambiente arquitetônico serviu de preparação para o famoso e imponente estilo românico, que se imporia por quase todo o Ocidente a partir do séc. X. De fato, trata-se da combinação dos diferentes estilos que surgiram na Europa Central na segunda metade do primeiro milênio e, sobretudo, da evolução das construções difundidas na Itália setentrional por influência da arquitetura bizantina a partir do séc. VII. O românico foi, primeiro, acolhido nas igrejas monásticas e, devido a grande presença dessas na vida eclesial, espalhou-se por toda a Europa. Essas igrejas monásticas tinham três naves e, nas laterais, construía-se uma abside um pouco menor do que aquela central. As igrejas românicas tinham paredes muito espessas e cegas, porque todo o peso da abóbada se descarregava sobre elas; sobre a porta principal e ou na abside, abria-se uma rosácea que projetava a luz do sol sobre o altar. Já não mais se construía o ambão, pois, nessa época, o latim já deixava de ser língua vernácula, passou apenas a ser de uso litúrgico, de modo que o povo já não compreendia a liturgia, mas apenas participava assistindo passivamente aos ritos sagrados. O ambão continuou em uso apenas na península itálica, como é o caso da catedral de Pisa, na Itália. Com o desuso do ambão, toda a atenção da assembleia recai sobre o altar do sacrifício eucarístico. Doravante, o que mais importa é a presença real de Cristo na hóstia consagrada que todos os fiéis querem ver.

2.6 O gótico

O gótico surge na França, no séc. XII e, como nessa época o país despontava como grande potência cultual e política, esse estilo se difundirá rapidamente por quase toda a Europa. Na península itálica teve pouca influência e na ibérica, devido à difícil transposição dos Pirineus e forte domínio islâmico, só chegou no séc. XIV. Eram tempos de constantes guerras e duras pestes; neste ambiente, o gótico foi a melhor expressão da espiritualidade medieval. De fato, a necessidade humana de pedir proteção a Deus e aos seus Santos e de lhes render graças e louvores fizera com que tudo apontasse para o alto, às moradas celestes. Por isso, o gótico é agudo, lança para o alto com a leveza das estruturas vazadas, conseguindo encher o interior de luz através de seus grandes vitrais. A estrutura gótica é o resultado da fusão de duas técnicas arquitetônicas há tempo conhecidas, de modo que os mestres de obra franceses conseguem plasmar o perfil desse novo estilo dando solidez às suas realizações. Disso surgem os dois traços principais do gótico, ou seja, o arco ogival, que livra os construtores das dificuldades da abóbada de base quadrada e o fato de não serem mais as paredes que suportam o peso do teto e das abóbadas, pois o delgado esqueleto dos contrafortes, que se prolonga nas nervuras das meias-colunas e dos arcobotantes, transfere a carga para os contrafortes externos, de modo que as espessas paredes dos estilos precedentes se tornam supérfluas e, no lugar delas, enormes janelas estendem seus vitrais de um pilar a outro, elevando-se até as abóbadas. Enquanto espaço de culto, o gótico traz a novidade dos púlpitos, por influência das ordens mendicantes que, preocupadas com a ignorância dos fiéis, os usam para instruí-los, enquanto um sacerdote dizia a missa a baixa voz. Também leva a fonte batismal para dentro da igreja, numa capela próxima à porta frontal, uma vez que o batismo de grande número de pessoas, sobretudo adultas, era uma realidade há séculos quase inusitada. Doravante, mormente, batizam-se crianças.

2.7 O Renascimento

No séc. XV surge, na Itália, o estilo renascentista, que se caracteriza culturalmente pelo antropocentrismo, o classicismo e a ligação com o mecenato. O antropocentrismo busca, nas artes, as devidas proporções dos componentes do edifício e das representações pictóricas e estatuárias. Deste modo, o artista renascentista prefere os edifícios de planta centrada aos de forma basilical. Os renascentistas se inspiram no templo pagão romano antigo, estilo rejeitado pelos cristãos antigos. O ideal de beleza do classicismo antigo volta com toda a sua força na essencialidade da arquitetura renascentista, no equilíbrio e no nu dos heróis idealizados, exaltando a anatomia e o vigor muscular como, por exemplo, nas estátuas de Davi, em Florença, e de Moisés, em Roma. Em tudo isso se percebe que as igrejas renascentistas não são pensadas em primeiro lugar como espaço para acolher a assembleia dos fiéis para o louvor de Deus, mas para a exaltação das artes e a satisfação do gosto do mecenas. Além disso, os vitrais, tão caros ao gótico, considerados como “Bíblia dos iletrados”, dão lugar às janelas transparentes, com o intuito de conseguir mais luz para o destaque da decoração.

2.8 O barroco

Também em solo italiano, surge o estilo barroco, que ganha grande impulso no mundo católico depois da Reforma de Martinho Lutero e, sobretudo, com o Concílio de Trento (1545-1563). A Reforma tridentina rejeita o estilo renascentista devido à influência do paganismo do classicismo romano, mas os arquitetos não tardariam em retomar os edifícios de planta centrada que sobrevive e, às vezes, se funde com a planta basilical. Com sua suntuosa ostentação, o barroco serviu bastante ao triunfalismo católico pós-Trento. O barroco se preocupa muito com a aparência, conferindo assim uma importância cada vez maior à fachada com a sobreposição de estátuas, pilares, colunas e pilastras, alternância e mescla de superfícies de paredes côncavas e convexas que lhe conferem um aspecto alegre e imponente, além de formar ondulações, que vibram ritmicamente, transmitindo seus movimentos ao espaço interno. Essas formas arquitetônicas se juntam à abundância pictórica e estatuária criando um movimento sempre ascendente, para o destino dos fiéis em Cristo. O dourado é abundante e as demais cores são vivas nas pinturas que, ao contrário dos estilos paleocristãos e medievais, preferentemente anamnéticos (cenas bíblicas, aspectos da vida de Cristo, da Virgem e dos santos), preferem temas escatológicos tais como a assunção da Virgem e dos santos e a representação do paraíso. A representação teatral se mostra em uma espécie de espetáculo sagrado, um jogo entre o visível e o invisível.

O cruzeiro, que separa o presbitério com seu altar-mor da nave central, no barroco, muitas vezes, se compõe de quatro arcos, sobre os quais se apoia a cúpula. Esta cúpula é algo bem particular, porque recebe, em sua base, um tambor cheio de janelas e, em seu cume, uma lanterna também com janelas que deixam entrar abundante luz. Esta se projeta sobre o altar-mor, foco da atenção da assembleia por ser o lugar da transubstanciação, portanto da presença real de Cristo. A cobertura das igrejas barrocas recebe rica representação pictórica e, graças à sua perspectiva, os artistas conseguem substituir a elevação do gótico por uma ilusão de ótica de uma pintura que dá o mesmo sentido, ou seja, elevar à morada divina. Essa elevação em perspectiva da igreja faz com que o céu se abra sobre a terra, de modo que Deus, com seus anjos e santos, desça à igreja, que se torna casa de Deus. Contemplando o céu e o gozo futuro, o cristão barroco cresce no desejo de um dia lá chegar.

Nas Américas, o barroco foi o primeiro estilo eclesial conhecido. Longe das disputas entre católicos e protestantes, o barroco nas Américas, sobretudo na que hoje chamamos Latina, não tem conotações ideológicas. Teve que encontrar novas técnicas e adaptação ao material aqui encontrado, como, por exemplo, o uso abundante de pedra sabão na região central do estado de Minas Gerais no Brasil, ou de outro tipo de pedra em cidades importantes das colônias lusitana e espanhola. Usou-se, também, a madeira, e a douradura foi semelhante a da Europa, devido à abundância do precioso metal. Uma particularidade do barroco, tanto no velho quanto no novo Continente, foi a pertença dos altares laterais às confrarias ou ordens terceiras ligadas a alguma ordem religiosa.

2.9 O pós-barroco

No final do séc. XVIII, por influência do Iluminismo europeu, o barroco caiu em desuso na construção de novas igrejas, cedendo lugar aos temas clássicos da Grécia antiga, berço da filosofia ocidental. Surge, então, o estilo que ficou conhecido como neoclássico. A reação a este estilo não tardaria no mundo católico, de modo que, no séc. XIX, os tradicionais estilos europeus voltariam na forma de neogótico e neorromânico e, por vezes, um híbrido desses estilos que resultaria no eclético. Hoje, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, reina a liberdade e a criatividade dos arquitetos e o diálogo com a índole dos povos cristãos.

3 O lugar da assembleia celebrante

Na antiguidade, a preocupação primeira ao conceber o espaço litúrgico era a assembleia que celebra, embora a hierarquia dos ministérios já estivesse bem concebida. Toda a assembleia de iniciados participava da celebração, mas os catecúmenos e os penitentes participavam somente da liturgia da Palavra e eram despedidos antes do início da celebração da eucaristia, o que ficou conhecido como “disciplina do arcano”. Na Idade Média, porém, dá-se uma separação entre clérigos e monges, de um lado, e leigos, de outro. Esses primeiros eram o pessoal especializado do culto e os leigos, meros espectadores. Surge, então, uma balaustrada que separava essas duas classes de cristãos: leigos espalhados pela nave central e clérigos ou monges no presbitério-santuário. Tudo isso foi consequência do esquecimento da categoria eclesiológica “Povo de Deus”, tão cara ao Novo Testamento e à era patrística. Do fim da Idade Média até o Movimento Litúrgico, precursor do Vaticano II, somente a categoria “Corpo de Cristo” reinaria absoluta, mas, mesmo assim, ela se concentrava mais na eucaristia, de modo que toda a atenção da assembleia era projetada ao altar do sacrifício. Era natural que, nesse ambiente eclesiológico, a devoção dos leigos à Virgem e aos santos crescesse muito e os altares laterais surgissem ao longo das naves laterais para servir a essa devoção. O espaço litúrgico se reduz, portanto, ao presbitério-santuário: lugar onde se reza o ofício divino e se celebra a eucaristia.

4 Teologia do espaço litúrgico

A definição teológica da Trindade é bem posterior aos escritos neotestamentários, mas é nesses escritos que ela encontra os seus sólidos fundamentos. Ora, a comunidade dos discípulos de Jesus é concebida como imagem da Trindade através das três categorias eclesiológicas: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo; e o edifício eclesial, por sua vez, é concebido à imagem da comunidade que ele abriga. O mistério trinitário só pode ser concebido a partir do mistério pascal, que se revela na morte-ressurreição de Cristo e Pentecostes, pois o Espírito Santo é o grande dom da Páscoa. A igreja edifício eclesial, por ser imagem da Igreja comunidade dos discípulos, não pode ser concebida apenas como uma edificação que visa a proteger os fiéis das intempéries, mas deve sempre levar em consideração que é lugar de reunião da assembleia do Povo de Deus, do Corpo de Cristo e do Templo do Espírito Santo para celebrar o mistério pascal, não somente na eucaristia, mas também nos demais sacramentos, na Liturgia das horas e nos sacramentais. O espaço litúrgico é, portanto, o lugar onde os fiéis celebram o mistério do Deus Trindade revelado na Páscoa de Cristo.

4.1 Qualidades identificadoras

O arquiteto, ao projetar o edifício eclesial, salvaguardada a sua liberdade criativa e deve, imprescindivelmente, ter em mente os seguintes critérios: o conforto e participação da assembleia nos sagrados mistérios, os lugares dos ministros (cadeira presidencial, bancos para os acólitos e leitores, lugar dos cantores), funcionalidade para o desenvolvimento do culto, acústica e iluminação; mas, respeitado tudo isso, o que qualifica o edifício como lugar do culto cristão são o ambão, a fonte batismal e o altar. São esses três elementos litúrgicos que, com sua mistagogia, ajudam os fiéis a se autocompreenderem como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo, povo renascido e congregado na Páscoa de Cristo.

4.2 O ambão

O ambão é o lugar da proclamação da Palavra de Deus, que encontra o seu ápice com o evento Cristo (Hb 1,1-2), especialmente sua Páscoa. Por ser o lugar da proclamação da Palavra de Deus, o ambão acentua teologicamente a categoria eclesiológica Povo de Deus. É o povo da nova Aliança, convocado e reunido pela Palavra. Este fato o põe em continuidade com o povo da antiga Aliança que, por sua vez, tinha como centro de sua fé a Lei e os Profetas, portanto a Palavra de Deus. O ambão, enquanto lugar por excelência da proclamação da Páscoa, remete ao sepulcro vazio, de onde os anjos anunciam às piedosas mulheres a ressurreição de Cristo. Esse fato diz que a ressurreição não é uma mera interpretação do sinal do sepulcro vazio, mas sim que se trata de uma revelação divina. Isso explica por que, em muitas igrejas, o ambão recebe como ícone a imagem de um ou dois anjos (Mt 28,6; Mc 16,5-6 e Lc 24,23 respectivamente). Por ser lugar da proclamação do Evangelho, cume da liturgia da Palavra, o ambão pode também receber esculturas dos quatro animais do Apocalipse: (homem, leão, touro e águia), segundo a interpretação patrística.

Em Cristo, todo o batizado é profeta, sacerdote e rei; o ambão é, pois, o lugar onde ele exerce o seu ser profeta. De fato, a proclamação da Palavra de Deus na liturgia não é uma mera leitura que o ministro faz para a assembleia, mas um verdadeiro e próprio diálogo entre Deus e a assembleia de seus fiéis: Deus fala a seu povo pelo profeta (leitor) e a assembleia responde com salmos e orações. No ambão se dá, pois, esse diálogo. Não se trata, portanto, de uma simples narrativa de fatos passados, mas de uma verdadeira atualização da manifestação de Deus aos seus eleitos. Nesse sentido, o ambão é também lugar anamnético da história da salvação, uma vez que na anamnese litúrgica o passado se atualiza, no aqui e agora da celebração, e desponta para a parusia. Isso dá ao ambão características de monumento, lugar do não esquecimento, da memória e, como o momento culminante da história da salvação é o mistério pascal, o ambão é monumento pascal. Esta estrutura teológica sugere para o ambão uma estrutura física – forma e robustez – de um verdadeiro monumento. Sua elevação com relação ao piso da nave revela que a Palavra vem do alto reforçando, assim, a ideia de diálogo e, portanto, da força performática da Palavra proclamada.

4.3 A fonte batismal

A fonte batismal atrai para si a categoria eclesiológica “Templo do Espírito Santo”, pois, como outrora o Cristo recebeu o Espírito ao ser batizado nas águas do Jordão, hoje o cristão o recebe ao sair da fonte batismal. É na fonte de água viva que ele se torna Templo do Espírito Santo (1Cor 3,16-17), o que equivale dizer que, doravante, ele andará sob a ação do Espírito, pois foi enxertado no Corpo de Cristo e introduzido no Povo de Deus. Na Carta aos Romanos, Paulo faz uma bela e profunda reflexão sobre o batismo, sugerindo que se trata de morte e ressurreição com Cristo (Rm 6,1-14), de modo que, na fonte batismal, o fiel experimenta sacramentalmente o que Cristo viveu em sua Páscoa. Assim sendo, o gesto de entrar na água e dela sair simboliza a morte e a ressurreição. Esta estrutura teológica requer que a fonte batismal tenha dimensão capaz de receber uma pessoa mesmo adulta em seu interior, porque o batismo por imersão é o símbolo mais eloquente, embora a Igreja admita também a forma da ablução. Em seu Evangelho, João fala de água viva (Jo 4,10-11; 7,37-38), o que se expressa melhor pela água corrente e não a parada. De fato, já no AT a água corrente é sinal de vida, enquanto a parada é sinal de morte (Jr 2,13). Isso sugere que na fonte batismal haja uma instalação hidráulica para o movimento da água: é a estrutura física a serviço da estrutura teológica. Por seu caráter de lugar anamnético da Páscoa de Cristo (o que acontece na experiência do catecúmeno-neófito), a fonte batismal é também monumento pascal e requer, assim como o ambão, dimensão e solidez próprias de um monumento. Batismo e crisma, embora hoje sejam ministrados em momentos diferentes, no caso da iniciação da criança, na realidade são dois sacramentos intimamente associados, a unção é consequência do banho, por isso pode-se dizer que é na fonte batismal que o cristão é ungido rei em Cristo.

4.4 O altar

O altar atrai para si a categoria eclesiológica “Corpo de Cristo”. Esta categoria se expressa na dupla dimensão do altar, mesa da ceia e lugar do sacrifício, portanto é elemento mimético e anamnético (Lc 22,19; 1Cor 11,25-26). Enquanto lugar mimético, o altar é onde os cristãos se alimentam com o corpo e o sangue do Senhor, e como lugar anamnético se faz memória de seu sacrifício redentor, de sua Páscoa, corpo entregue e sangue derramado no altar da cruz. Mesa e altar são duas realidades que se completam, pois na última ceia, Jesus desvela a seus discípulos o sentido do evento do dia seguinte, sua morte. A crueldade da sexta-feira ganha sentido na ceia: a entrega de Jesus é livre e cheia de amor pela humanidade, obediência ao projeto salvífico do Pai até à morte e morte de cruz. Ambas as coisas são feitas por mandato de Cristo e são dois momentos de um único mistério pascal, o que é celebrado no altar da eucaristia.

Contudo, surge a questão de saber qual das duas dimensões deve definir a estética do altar: mesa ou lugar do sacrifício. Na nomenclatura tradicional católica, prevalece o termo altar, portanto lugar de sacrifício. A Igreja faz memória do sacrifício de Jesus, deixando claro que não se trata de um novo sacrifício, mas do sacramento único de Jesus no altar da cruz (Hb 10,18); ao reapresentar ao Pai o sacrifício de Jesus, a Igreja se une a ele e oferece a si mesma como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 12,1). Pode-se dizer que, pelo seu rito, os cristãos se inserem no sacrifício único de Cristo e, com ele, oferecem a si mesmos. Essa oblação define o altar como lugar de sacrifício. Isso, porém, acontece dentro de uma ceia, mas esta se expressa no gesto de os cristãos se aproximarem do altar e se alimentarem com o corpo e sangue de Cristo. O altar se expressa como lugar de sacrifício por sua estética e como mesa pela gestualidade do comer e beber. Em ambos os casos, o altar se impõe como monumento pascal: ceia e sacrifício em memória de Cristo. Na definição da forma e do material vale, pois, o que anteriormente foi dito para o ambão e retomado para a fonte batismal. Vale ainda dizer que a situação do altar e a acessibilidade a ele são o que vai expressar aos fiéis o exercício de seu sacerdócio batismal em Cristo.

Marco Antonio Morais Lima, SJ – UNICAP. Texto original português.

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ZEVI, B. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Mística e erotismo

Sumário

1 Mística: definição

2 Erotismo: definição

3 Mística e erotismo

4 As intercessões entre mística e erotismo na arte

5 Referências bibliográficas

1 Mística: definição

A etimologia da palavra mística atesta o caráter de revelação carac­terístico dessa experiência. O termo grego mystikós tem em sua raiz o verbo myo, que significa “fechar” e, em particular, “fechar os olhos”. Em certo sentido, a mística pressupõe o mistério e a possibilidade de seu desvelamento: por trás do mundo das aparências resta um conhecimento e uma verdade não passível de apreensão cognoscível/sensível, realidades possíveis de se enxergar quando se “fecha os olhos” da razão e se salta para essa alteridade absoluta do completamente Outro.

A mística, em suas diferentes manifestações religiosas, tem sido com­preendida como uma experiência radical através da qual se tenta recuperar a realidade como um todo orgânico e coeso, sem fissuras conceituais, ou, em outras palavras, como uma tentativa de sair do mundo do “isto e aquilo” e alcançar a unidade/inteireza da realidade. Essa Unidade pode ser representada positivamente como Deus ou o divino, ou simplesmente como o Uno, conforme definição de Leonardo Boff: “Toda mística, cristã ou pagã, vive de uma experiência radical: aquela da unidade do mundo com o supremo princípio ou do homem com Deus. Trata-se de uma experiência imediata de Deus ou do Uno” (BOFF, 1983, 16). Ou, como afirma Morando,

Considerada segundo as épocas e as culturas como experiência de santidade nas religiões, de loucura com o advento da psiquiatria, ou de emergência da totalidade de ser na sociedade secularizada e romântica da Nova Era; sempre e qualquer que seja o modo caracterização que possamos utilizar, a experiência mística cumpre uma função indicadora fundamental: a de mostrar-nos o limite de nossa experiência, o limite de nosso conhecimento, ao apontar rumo a uma realidade que transcende (no sentido profano ou religioso) os limites de nosso eu. O místico aparece assim como o indicador de Outro, enquanto expressão do que nos excede. É o testemunho daquilo que nos ultrapassa, a recordação de que vivemos envolto na densidade do mistério e de que o real segue estando além do que se nos dá a conhecer (MORANO, 2004, 217)

Como se vê, tanto a experiência mística quanto seu testemunho são didáticos: nos mostram os limites do nosso conhecer e os limites da nossa linguagem. E desta forma nos possibilita vivenciar o mistério intrínseco àquilo que nos excede como seres de e da cultura. Nesse sentido a mística tem implicações espirituais, éticas e cognitivas que são importantes para a compreensão desse fenômeno. Espirituais porque quando tocado pelo sagrado o místico torna-se “uma nova criatura” (2Cor, 5,17) cujos propósitos, comportamento, desejos e ambições são totalmente dirigidos por uma vontade que ultrapassa seu entendimento; éticas porque o itinerário místico exige daquele que o empreende comprometimentos com valores que estão na contramão daqueles adotados pela sociedade capitalista contemporânea; e, por fim, cognitivos, pois mais que conhecimento positivo sobre o mundo e sobre Deus a mística põe sob suspeita o que pensamos saber sobre os mesmos.

Em sua proposta de caracterização dos fenômenos místicos o estudioso das religiões Juan Martin Velasco afirma que as experiências místicas

poderiam ser descritas como episódios mais ou menos breves nos quais um sujeito entre em relação com uma realidade que o supera absolutamente, ou, melhor dizendo, com dimensões e aspectos do real que superam absolutamente as dimensões e aspectos com os quais entra em contato em sua vida ordinária (VELASCO, 2004, 24).

A afirmação de que na mística há uma espécie de epifania do real, com uma conseqüente desautomatização dos modos de ver e perceber o mundo, enfatiza o aspecto não ordinário do evento, sua aura de acontecimento revelador e transformador.

Em uma abordagem psicológica do fenômeno religioso (ver Mística e psicanálise), William James legou uma definição hoje já clássica da experiência mística, na qual são ressaltadas quatro marcas da mesma, quais sejam: a) a inefabilidade: para W. James essa experiência traz em si a marca da negatividade, “cuja qualidade precisa ser experimentada diretamente: não pode ser comunicada nem transferida a outros”; b) qualidade noética: ainda que semelhantes aos sentimentos (isto é, inefáveis),

“os estados místicos parecem ser também para os que os experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas de verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações, revelações cheias de significado e importância, por mais inarticuladas que continuem sendo (..)” (JAMES, 1995, 237);

c) transitoriedade: não podem perdurar por muito tempo, ainda que possam se repetir em momentos posteriores; d) passividade:

“se bem que a aproximação de estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como a fixação da atenção, a execução de certos gestos corporais, ou outras maneiras prescritas pelos manuais de misticismo, todavia, depois que a espécie característica de consciência se impôs, o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, como o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico” (JAMES, 1995, 238).

Outras características da experiência mística são apontadas por estudiosos diversos, quais sejam: a) a descontinuidade completa entre a experiência vivida e todas as outras cotidianas; b) lucidez e certeza na narrativa, isto é, apesar de dificuldade de se encontrar palavras para narrar a experiência não se demonstra hesitação quanto à vivência da experiência; c) presença amorosa e transformadora daquele que irrompe na experiência mística – aqui parece que tal característica seja mais pertinente em relação às místicas cristãs -; d) suspensão do escoamento do tempo; e) simultaneidade de percepções sensíveis que normalmente seriam dissociadas, por exemplo, arrebatamento e gozo que é também dor e angústia; f) inefabilidade da experiência (BOFF, 2004, 1162-1169).

Henrique de Lima Vaz, priorizando a mística cristã, irá repetir a definição de J. Maritain, para quem essa é uma experiência fruitiva do Absoluto. Tendo, pois, como singularidade um objeto de fruição absoluto, Lima Vaz situa a experiência mística em um triângulo “místico-mística-mistério”:

A experiência mística, em seu teor original, situa-se justamente no interior desse triângulo: na intencionalidade experiencial que une o místico como iniciado ao Absoluto como mistério; e na linguagem com que, num segundo momento, rememorativo e reflexivo, a experiência é dita como mística e se oferece como objeto a explicações teóricas de natureza diferente (VAZ, 2000, 17).

Para melhor compreensão do fenômeno, Lima Vaz distingue didaticamente três grandes formas pelas quais a experiência mística é vivida pelos místicos e pensada pelos teóricos no Ocidente: a mística especulativa, a mística mistérica e a mística profética. Na mística especulativa o ser é uma espécie de prolongamento da experiência metafísica, cuja origem remonta a Platão, e tem seus prolongamentos na mística neoplatônica (Plotino, Porfírio, Proclo) e na mística cristã (Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio, São Boaventura, Tomás de Aquino, Mestre Eckhart, São João da Cruz e outros). Se na metafísica a inteligência procede pela via discursiva em seu intento de intuir o divino ou Absoluto,

Na mística especulativa a inteligência é elevada como que acima de si pelo ímpeto profundo de atingir em si mesmo o Absoluto na sua plenitude absoluta de ser. Mas como atingi-lo desta sorte sem identificar-se, de alguma maneira, com ele e sem descobrir em si mesma uma identidade original com o Absoluto? Tal é, fundamentalmente, o roteiro desenhado pela mística especulativa para seu itinerário, e que será a fonte de todos os problemas que sua prática e sua expressão teórica encontrarão ao serem recebidos pela tradição cristã (VAZ, 2000, 33).

Na análise de Lima Vaz o declínio da mística especulativa na modernidade relaciona-se ao declínio da inteligência espiritual, “órgão próprio da contemplação metafísica e da contemplação mística”. A partir de Descartes a mística é secularizada e transforma-se em filosofia especulativa, secularização que avança de Espinoza até Hegel, e deste até Heidegger, que desenvolve uma espécie de pensamento místico-poético do Ser (VAZ, 2000, 43-44).

Por mística mistérica Lima Vaz define aquela “forma de mística que se distingue da mística especulativa, na medida em que o espaço intencional onde se desenrola a experiência de Deus não é o espaço interior do sujeito ordenado segundo a estrutura vertical do espírito, mas o espaço sagrado de um rito de iniciação (…) ou de um culto” (VAZ, 2000, 47)

Se a experiência da mística especulativa é uma experiência reflexiva, na mística mistérica ela é litúrgica, voltada para a vivência objetiva do mystérion. Os primeiros cultos de mistério são encontrados nos cultos de mistério da tradição religiosa grega, os mais importantes sendo os mistérios de Elêusis, de Dionísio e os do orfismo; já a mística mistérica cristã se organiza em torno das categorias do Batismo, Ressurreição e Vida Nova, e tem entre seus principais representantes Orígenes, Gregório de Nissa, São João Crisóstomo e Santo Agostinho. Finalmente, há a mística profética, a qual Lima Vaz define como aquela que se constitui em torno da Palavra da revelação, e é a forma original da mística cristã, encontrando seu arquétipo na doutrina e na prática dos primeiros discípulos cristãos.

2 Erotismo: definição

Não é exatamente uma novidade postular analogias entre o sentimento de unidade próprio da mística e a experiência erótico-amorosa, e um dos mais significativos estudos sobre essas aproximações é o que foi feito por Georges Bataille em obras como O erotismo e A experiência interior.

Georges Bataille busca compreender experiências humanas limites em que o próprio ser se põe em questão, denominando-as de erotismo, que distingue em erotismo dos corpos, erotismo dos corações, erotismo sagrado (que seria a mística). Ele identifica nesses movimentos “eróticos” a nostalgia de um sentimento de inteireza e plenitude (que ele chama “continuidade”), onde o que estaria em jogo seria “substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade perdida” (BATAILLE, 1987, 22). Por descontinuidade Bataille entende o espaço circunscrito e limitado da subjetividade, o limite entre eu-tu, o abismo que nos separa uns dos outros, a própria noção de identidade:

Os seres que se reproduzem são distintos entre si como são distintos daqueles que os geraram. Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros certo interesse, mas ele é o único diretamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade (BATAILLE, 1987, 12).

Ainda que seja impossível ultrapassar o abismo que nos separa enquanto seres descontínuos, o erotismo oferece a oportunidade de, juntos, sentirmos a vertigem fascinante que é fixar os olhos no precipício da própria finitude humana e, paradoxalmente, experienciar uma faísca de eternidade, ainda que de forma pontual (BATAIILE, 1987, 13).

Daí a importância que ele dará ao erotismo (dos corpos, dos corações e sagrado) como “abertura à continuidade ininteligível, desconhecível, que é o segredo do erotismo, e cujo segredo só o erotismo desvenda” (BATAILLE, 1987, 22). Em relação ao erotismo místico Bataille enfatiza uma espécie de transbordamento e esquecimento de si também presente no erotismo sensual e no amor-paixão; nestes o desejo de fusão vem em resposta a um desequilíbrio entre os interditos de conservação da própria vida e o desejo transgressivo de se “perder” no outro, na mística esse outro seria a alteridade absoluta do sagrado ou, em palavras de Rudolf Otto, o completamente outro cuja presença causa fascínio e temor, mas também um apaixonado desejo de entrega.

Em artigo que aborda as semelhanças entre a mística e a sensualidade, Bataille afirma:

Esses transes, arrebatamentos e estados teopáticos que foram descritos a porfia por místicos de todos os credos (hindus, budistas, muçulmanos ou cristãos — sem falar dos que, mais raros, não pertencem a uma religião) têm o mesmo sentido: trata-se sempre de um desapego em relação à conservação da vida, da indiferença a tudo o que tende a assegurá-la, da angústia sentida nessas condições até o instante em que as forças do ser naufragam, da abertura enfim para esse movimento imediato da vida que é habitualmente comprimido e que se libera de repente no transbordamento de uma alegria infinita de ser (BATAILLE, 1987, 229-230) .

No erotismo a fusão entre fragmento e todo se dá de forma objetiva e pontual, efêmera e transitória; já na mística a busca pela reconciliação com o divino/sagrado permanecerá como ideal a ser incansavelmente perseguido e que não se restringe ao sentimento extático de união homem-deus, mas abrange um processo muito mais complexo de ascese e desprendimento que pode ou não conduzir o místico ao êxtase – experiência fulminante da presença divina. O itinerário do místico é uma experiência radical de abandono e esquecimento de si e das molduras sociais, culturais e cognitivas que nos inscrevem em determinada temporalidade, e nisto se assemelha à paixão erótica. Mas, por outro lado, a mística não é “improdutiva”, no sentido em que dá Bataille ao erotismo, ou seja, não é radical recusa ao que ele chama de “mundo do trabalho” (o mundo dos homens). Há que se lembrar dos inúmeros exemplos de místicos solidários com a construção de um ethos permeado pela justiça social e a vivência ativa dos princípios éticos cristãos, tais como Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Mestre Echkart, Simone Weill, Edith Stein, Albert Schweitzer, Cristian de Chergé, entre outros.

Essas interseções entre poesia, erotismo e mística também foram pressentidas por Octávio Paz, poeta e ensaísta que dirá: “O homem é um ser que se assombra: ao se assombrar, poetiza, ama, diviniza […]. Nenhuma dessas experiências é pura; em todas elas aparecem os mesmos elementos, sem que se possa dizer que um é anterior ao outro” (PAZ, 1982, 172). Um ser que se assombra diante do sagrado, que diviniza a quem ama, que ama o que o fascina: o homem é esse a quem os afetos se interpõem e compõem a base de suas crenças e comportamentos e, por este motivo, os fenômenos da mística e da paixão erótica se ligam de forma tão inquietante.

Tentando compreender as afinidades entre estes fenômenos, Octávio Paz cunha o neologismo outridade para tentar explicar, dentro da perspectiva heideggeriana, as experiências-limites do sagrado, do erotismo e da poesia. Assim, segundo ele, “A experiência do sobrenatural é a experiência do Outro” (1982, p.155), entretanto esse Outro está no plano da imanência, no histórico, isto é, é o homem defrontado com sua própria contingência e temporalidade, com aquilo que Heidegger chama de “rude sentimento de estar (ou se encontrar) aí” e Rudolf Otto de “sentimento de estado de criatura”. Logo, a experiência de outridade é aquela em que a ‘essencial heterogeneidade do ser’ vem à tona e o homem dá-se conta da fissura intolerável entre ele e o Absoluto, percebendo-se como destituído de inteireza, como um pro-jetar-se no vazio, um inscrever-se na historicidade. Assim, ser-para-a-morte, o homem é presença (ser) e ausência (não-ser), vazio e anseio pela totalidade, vida e morte. A redenção dessa condição original de carência — o paradoxo proposto por Octávio Paz de ser menos do que se é[1] — está em ‘viver’ a morte como parte intrínseca do movimento da vida, indo ao encontro desse outro que afinal sou eu mesmo, meu projeto de homem. Limítrofe à religião, poesia e erotismo, a outridade é um experimentar a separação e união “presentes em todas as manifestações do ser, desde as físicas até as biológicas” (PAZ, 2003, 109), experiência que não pode ser provocada ou dirigida pelo sujeito, pois não se encontra no âmbito no cognoscível, muito embora acessível a todos os homens.

Uma outra semelhança entre Octavio Paz e Bataille é a percepção de uma íntima relação entre erotismo (dos corpos e das palavras) e morte. Compare-se a afirmação de Bataille — “Acredito que o erotismo é a aprovação na vida até na morte” (BATAILLE, 1989, 12) — com o que nos diz Paz:

Aparece novamente, agora despojada de sua auréola religiosa, a dupla face do erotismo: fascinação diante da vida e diante da morte. O significado da metáfora erótica é ambíguo. Melhor dizendo, é plural. Diz muitas coisas, todas diferentes, mas em todas elas aparecem duas palavras: prazer e morte (PAZ, 2001, 19).

E Santa Teresa, a quem foi conferido o título de Doutora em Teologia:

Vivo sem viver em mim, /e tão alta vida espero, /que morro porque não morro, /A esta divina união /Do amor com que eu vivo, /faz Deus ser meu cativo /e livre meu coração: /mas causa em mim tal paixão /ver a Deus meu prisioneiro, que morro porque não morro

Santa Teresa expressa nesse poema o paradoxo dos místicos e apaixonados: vive-se sem viver porque se tem cativo, prisioneiro, o Amado dentro do peito. E esta presença platônica, que é sentida no corpo e na alma, não é suficiente para matar o desejo de Presença. Assim, os amantes são prisioneiros da coita amorosa[2], de tal modo que a morte é desejada porque seria a união total com o Amado. A morte torna-se vida, quando significa a união definitiva entre a Alma e seu Amado, e a vida é morte, pois adia esse momento de fruição total da presença amorosa.

3 Mística e erotismo

A relação entre mística e erotismo, apesar da estranheza que possa causar, não é recente e nem mesmo episódica. Já no século II dC, Orígenes, um dos pais da Igreja, inaugura uma interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos que influenciará toda a tradição mística subsequente. Em seu comentário ao livro bíblico Orígenes toma a noção de Deus como Eros, força motivadora que move a alma em sua ascensão mística, que nada mais é que o eros tornado impróprio em nós de volta ao lugar de origem transcendental. Mais tarde, São Bernardo de Claraval interpretará a linguagem erórico-amorosa do Cântico como a alegoria da união da alma com Deus.

 O livro emociona e encanta ao narrar o encontro amoroso entre Amante e Amado (ou Deus e a Alma sedenta de sua presença, conforme interpretação alegórica dos padres da Igreja), e por isto mesmo tornou-se forte influência na literatura mística, como em São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila e nas místicas beguinas Hadewijch de Antuérpia e Mechtild de Magdeburgo. Por outro lado, esse poema erótico-amoroso é também relido por autores brasileiros tão diversos quanto Castro Alves, Oswald de Andrade, Hilda Hilst e Manuel Bandeira, que retomam essa tradição mística para cantar a sacralidade do amor entre um homem e uma mulher.

No século XIII as místicas beguinas, fortemente influenciadas pela teologia do amor de Bernardo de Claraval e pela retórica do amor cortês, retomam essa interpretação mística do Cântico dos Cânticos e elaboram uma ousada forma de interpolação do divino: a mística nupcial (ou mystique courtoise), que funde as convenções do amor cortês com as aspirações espirituais da mística. Hadewijch de Antuérpia, por exemplo, é uma beguina do séc. XII cujos escritos (cartas e poemas) dão testemunho do encontro entre as convenções do amor cortês com as aspirações espirituais da mística. Nos versos abaixo vemos a expressão, em linguagem apaixonada, do desejo maior do místico, que é a vivência incondicional e incondicionada do amor por Deus:

Canção V, Hadewijch de Antuérpia

 A conduta do Amor é inaudita, /Como bem sabe quem sua atração conhece, /Pois quando dá consolo, logo o suspende. /Aquele a quem toca o Amor /Não encontra repouso; /Em compensação, saboreia /Numerosas horas inumeráveis /Radiante às vezes; às vezes frio; /Às vezes, cauteloso; esforçado às vezes; /Sua inconstância toma múltiplas figuras. /O Amor exige a totalidade /De uma grande dívida /A quem a compartilha convida sua saborosa soberania. /Às vezes, cheio de doçura; às vezes, cruel; /Às vezes distante; próximo às vezes; /A que do Amor compreende /A rara fidelidade, isso é o júbilo: /Como derruba /E abraça /Com um só gesto […] /ÀS vezes, suave; às vezes, severo; /Em libre consolo, em ameaçante medo,/Quando recebe ou reparte seus dons, /É lei que as almas, /Que no Amor se equivocam, /Vivam sempre na sombra deste vale.

 De forma semelhante, São João da Cruz, místico espanhol do século XVI, toma como paradigma os encontros e desencontros entre a Alma desejosa da presença divina e Aquele a quem se deve amar sobre todas as coisas, com nosso coração, alma, força e entendimento (Mc 12,30). De acordo com a interpretação alegórica tradicional, a Esposa é a Alma, a que ama (Amante) e o Esposo o próprio Deus, e a trajetória que a Alma empreende é cheia de percalços e angústias, em um processo de ascese e iluminação que culmina na união mística. No Cântico Espiritual de São João da Cruz, ao encontrarem-se Amante e Amado para a consumação dessas núpcias místicas, a Alma enamorada confessa (estrofes XVII e XVIII):

Ali me abriu seu peito /E ciência me ensinou muito deleitosa; / E a ele, em dom perfeito, /Me dei, sem deixar coisa, /E então lhe prometi ser sua esposa. /Minha alma se há votado, /Com meu cabedal todo, a seu serviço; /já não guardo mais gado, /Nem mais tenho outro ofício, /Que só amar é já meu exercício.

A expressão joanina “já não tenho outro ofício e amar é meu exercício” aponta para uma relação erótico-amorosa em que a assimetria entre Amante e Amado impõe ao primeiro a entrega Àquele que toma posse de seu corpo, vontade, inteligência e devir. Conforme destaca Maria Clara Bingemer (2004), parece ser uma especificidade da mística cristã certa passividade que encontra nas metáforas amorosas seu referencial simbólico:

Com efeito, há uma mística cristã que se situa, firmemente, na esfera da passividade (do pathos). Isso é um traço distintivo de realçada importância, já que nem toda mística tem essa marca passiva. Nas religiões afro-brasileiras, por exemplo, o místico sabe como provocar o êxtase; igualmente, no Oriente (pensemos, sobretudo na Índia) ele é igualmente ativo no processo, detendo o conhecimento de certas técnicas capazes de levar à experiência daquilo que está por detrás do mundo como se manifesta. Ou seja: há uma ciência mística, há uma técnica mística. O êxtase pode ser provocado, por tratar-se de um movi­mento que vai de baixo para o alto. Na tradição cristã, o percurso é inverso: pois principia do alto para baixo. O místico é acometido por um agente, Deus ou o demônio. Esse, pois, é um conceito básico: a experiência mística é uma ex­periência de posse (grifo nosso) (BINGEMER, 2004, 462).

O sujeito lírico (a alma) assume uma discursividade feminina na qual se destaca a disponibilidade para o acolhimento do outro, do Amado (Deus). Ainda assim é importante ressalvar que tal passividade não implica inércia: é a Alma sedenta da presença divina que “sai” destemida em busca do amado, atravessando fronteiras e perigos até que Amante e Amado por fim se encontram em um lócus amenus anteriormente preparado para eles.

O encontro dos amantes após um longo percurso cheio de desventuras onde eles se buscam com afinco e fé é um topos muito explorado na literatura de todas as nacionalidades, e também fora da mística cristã o simbolismo erótico é presente, aparecendo em tradições religiosas tão diversas quanto o hinduísmo, o budismo e o sufismo. No místico sufista Rümi (século XIII, Oriente Médio), por exemplo, encontramos a mesma metáfora de Deus como o Amado a quem a alma (a Amante) busca reconciliar-se, em uma fusão onde o Eu se perde no Uno:

“O amoroso busca ardentemente o bem amado: quando o bem amado vem, o amoroso se vai (M III, 4620). A presença do amado é como a chama do amor que, quando se eleva, consome tudo o que não é o Bem Amado (M V, 588). Nada resta senão Deus. O destino do amante é morrer para si mesmo: dele só permanece o nome (MV, 2023)”. (apud TEIXEIRA, 2003, p. 20-41).

Esses poucos exemplos comprovam que a intercessão entre mística e erotismo não é episódica, gratuita ou excentricidade de alguma personalidade religiosa; o que nos leva a concordar com a afirmação da filósofa e também mística Simone Weil: “repreender os místicos por amar Deus por meio das faculdades de amor sexual é como se alguém tivesse que repreender um pintor por fazer quadros usando cores compostas de substancias materiais” (apud MCGINN, 2012, 182).

4 Intercessões entre mística e erotismo na arte

Também na literatura e na arte erotismo e mística se entrelaçam, quer seja pelos temas e motivos comuns, quer seja pelo dialogo que poetas e artistas em geral estabelecem entre elas, e nesse caso a escultura de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) O êxtase de Santa Teresa é uma referência obrigatória. Bernini, um dos maiores escultores do século XVII, representa a experiência mística da transverberação de Santa Teresa de Ávila, retratada por ela em sua autobiografia. Aliando os sentimentos místicos de êxtase e a figuração de uma experiência de intenso prazer que pode ser associada ao sexual, Bernini parece intuir a intima associação entre o místico e o erótico que outra artista contemporânea, agora brasileira, irá declarar: “Erótico é a alma”, verso de Adélia Prado onde subjaz uma concepção de corpo e alma, imanência e transcendência como elementos de um único todo indiviso, de tal modo que se chega à afirmação, apenas aparentemente herética, de que “sem o corpo a alma de um homem não goza”. Outra poeta brasileira que faz essa aproximação é Hilda Hilst, principalmente quando resgata a tradição portuguesa das cantigas de amor para nomear uma experiência paradoxal de presença e ausência divina, retomando também alguns procedimentos retóricos da mística apofática. Em um livro de clara inspiração mística – Poemas malditos, gozosos e devotos (2005) – a poeta Hilda Hilst canta o sofrimento pela ausência e indiferença do amado, sendo esse exatamente o Deus cristão:

             Poema VIII

É neste mundo que te quero sentir /É o único que sei. O que me resta. /Dizer que vou te conhecer a fundo /Sem as bênçãos da carne, no depois, /Me parece a mim magra promessa. /Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos. /Mas tu sabes a delícia da carne /Dos encaixes que inventaste. De toques. /Do formoso das hastes. Das corolas. /Vês como fico pequena e tão pouco inventiva? /Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram. /Se feitas de carne. /Dirás que o humano desejo /Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor, /Te percebo. /Mas deixa-me amar a ti, neste texto /Com os enlevos /De uma mulher que só sabe o homem.

Em contraparte ao aproveitamento artístico do tema místico temos a operação contrária: a retomada de procedimentos estéticos para a melhor expressão da experiência mística, e aí são numerosos os exemplos: as beguinas Hadewijch de Antuérpia, Mechthild de Magdeburgo e Marguerite Porete, os místicos ibéricos Teresa de Ávila e São João da Cruz, os contemporâneos Ernesto Cardenal e  Simone Weill, e outros. Todos esses místicos fizeram-se poetas para cantar um amor extremo, buscando inspiração na tradição da poesia amorosa para compor versos de grande expressividade místico-erótica e beleza poética. Por exemplo, Ernesto Cardenal, poeta nicaraguense, ao narrar sua experiência de conversão utiliza com grande liberdade a linguagem dos jogos eróticos para expressar o extraordinário desse evento:

Quando aquele meio dia do 2 de junho, um sábado /Somoza García passou como raio pela Avenida Roosevelt /soando todas as buzinas para espantar o tráfego, /nesse mesmo instante, igual que sua triunfal caravana /assim triunfal tu também entraste logo dentre de mim /e minha alminha indefesa querendo tapar suas vergonhas. /Foi quase violação, /mas consentida, /não podia ser de outro modo, /naquela invasão do prazer /até quase morrer, /e dizer: já não mais /que me matas. /Tanto prazer que produz tanta dor /Como uma espécie de penetração.

O poeta nicaraguense trata o tema da experiência de encontro com Deus como um intercurso amoroso onde a violenta disparidade entre um amante humano e um Amado divino é descrita em termos de uma “violação consentida” que gera na mesma intensidade dor e prazer. O drama da conversão é expresso por meio de metáforas e analogias que nos remetem ao ato sexual e a construções ideológicas que delineiam os papéis sociais a serem desempenhados pelos gêneros: à passividade feminina impõe-se a impetuosidade masculina que não chega a ser violação por ser consentida. São as mesmas figuras e analogias que aparecem nos místicos e poetas citados anteriormente, ainda que seja evidente uma distinção entre ambos (místicos e poetas): nos primeiros a presença divina é experiência vivida no corpo e na alma e, se essa experiência é fugaz, as marcas que ela deixa não o são, pois subsiste a promessa do encontro entre esses que se amam apaixonadamente: a Alma e seu Deus. Há uma Referência absoluta que não apenas legitima essa fala como também a torna possível, e é a essa presença que o místico dirige sua oração, celebração ou louvor, sendo essa experiência singular de oração/louvor que guia seu discurso para longe de toda negação vazia e puramente mecânica. Já nos escritos poéticos que dialogam com a retórica mística a Presença divina é sentida, de forma negativa, como ausência que fere a alma, e todo desejo se traduz em um lamento – o sofrimento amoroso pela indiferença do Amado, como no trecho do poema El ausente, do poeta mexicano Octávio Paz, que transcrevemos abaixo:

Deus insaciável que minha insônia alimenta; /Deus sedento que refrescas tua eterna sede em minhas lágrimas, /Deu vazio que golpeias meu peito com um punho de pedra, com um punho de fumo, /Deu que me desabitas,/ Deus deserto, pena que minha súplica banha, / Deus que ao silêncio do homem que pergunta contestas com um silêncio maior, /Deus oco, Deus do nada, meu Deus: /sangue, teu sangue, o sangue, me guia.

Outra aproximação entre mística e erotismo é em relação à linguagem: tensionada entre o desejo de expressar o indizível e a limitação intrínseca ao discurso. Os já mencionados poeta Octávio Paz e o filósofo Bataille percebem que a experiência de plenitude é vivenciada de forma semelhante por meio da mística, do erotismo e da poesia, defendendo que a poesia está para a linguagem assim como o erotismo está para a sexualidade, isto é, se mística e erotismo são tentativas de transcender os limites do ser, experiências de outridade, a linguagem poética é o meio encontrado para expressar essas experiências limítrofes porque a poesia também é linguagem às bordas do indizível, também é tentativa de escapar dos limites do discurso.

Poetas e místicos assumem a dura tarefa de dizer uma experiência que se encontra fora dos limites da palavra. E talvez por isto multipliquem-se os paradoxos, as metáforas inquietantes, as imagens inusitadas e eróticas. “Beije-me ele com os beijos de sua boca porque melhor é o seu amor do que o vinho”, diz-nos o poeta, autor dos Cânticos bíblicos. “O corpo não tem desvãos,/só inocência e beleza,/tanta que Deus nos imita/ e quer casar com sua Igreja”, ousa Adélia Prado.

Como dito antes, tanto a linguagem da paixão quanto o discurso da mística é uma fala que se confessa impotente, fracassada em seu mérito de linguagem produtiva, inútil até. Entretanto, se o fim da experiência mística é o silêncio – lembremo-nos o já tão citado epigrama de Wittgeinstein: “Daquilo que não se pode falar deve-se calar” – poucos gêneros discursivos foram tão produtivos quanto esse, pois o que os místicos mais fazem é falar: na mística fala-se (e muito) para confessar-se mudo, emudecido, en fanti.

Místicos simplesmente não têm sido silenciosos. Muitos têm falado sem restrição, e outros têm escrito volumosamente. O gênero de literatura mística é não somente quantitativamente vasto, mas linguisticamente luxuriante. No discurso místico, a linguagem se desenfreia: ela pula, ela salta, ela canta. Ela fala em prosa e poesia; ela dá descrições objetivas da experiência e voa nas asas do êxtase; ela guia iniciantes com um gentil cuidado e corta a ilusão com argumentos de lâmina afiada. […]. Além disso, certos místicos têm tido suas experiências místicas na e através da linguagem. Com isso eu quero dizer não somente que a linguagem evoca e molda essas experiências, mas que as formas linguísticas participam na revelação do domínio transcendente. Nesse sentido, pode existir uma mística da linguagem (COUSINS, 1992, apud SHOJI, 2003, 60).

De todas as inflexões possíveis para a linguagem positiva, a linguagem erótica é aquela mais apropriada para levar as palavras a ultrapassarem a si mesmas, o que é perceptível nos muitos testemunhos pessoais de místicos onde os símbolos e as metáforas usados para caracterizar a união mística ente Criador e criatura assumem uma conotação claramente sexual, como vimos nos exemplos citados no decorrer do texto. E um dos temas frequentes nestes textos e testemunhos é a busca pela fusão, em que o Eu seja suprimido pela união com o sagrado, mote repetido por inúmeros místicos, e não apenas dentro da tradição cristã, sendo o símbolo da união erótica considerado o mais apropriado para a expressão do êxtase místico, conforme salienta Rosado:

A união erótico-amorosa tem sido o único símbolo da união mística utilizado por praticamente todas as tradições místicas, incluída a cristã, e a diferença de qualquer outro símbolo sagrado, a sexualidade imanente no amor e no erotismo é universal e a-histórica: o ser humano nunca pôde prescindir dela, e quando o faz com exercícios de ascetismo, recorre a metáforas ou alegorias para encontrar uma via que permita expressar a inefabilidade da continuidade do ser, da participação de Deus por meio de sua semelhança com o ato amoroso (ROSADO, 2001, 10).

Reside aqui uma importante interseção entre mística e erotismo: em ambas as experiências há um mergulho radical na alteridade, a intenção de perder-se nesse Outro com o qual apenas é possível estabelecer uma relação à distância; tomemos como exemplo Moisés, líder espiritual que intermediou o estabelecimento da aliança entre Deus e o povo hebreu, e ainda assim não pode ver o rosto de Deus, “porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida” (Ex. 33,20). Ainda assim o desejo de fusão alimenta a imaginação dos amantes e dos místicos, com uma diferença: se no erotismo a fusão entre fragmento e todo se dá sensual e sensorialmente, ainda que de forma pontual e efêmera, na mística a busca pela reconciliação com o divino/sagrado permanecerá como ideal a ser incansavelmente perseguido. O poeta e místico Ernesto Cardenal expressa com admirável riqueza e beleza os paradoxos próprios desse encontro místico-amoroso:

De repente a alma sente sua presença numa forma em que não pode equivocar-se, e com tremor e espanto exclama: “tu deves ser aquele que fez o céu e a terra!”. E quer esconder-se e desaparecer dessa presença e não pode, porque está como entre a espada e a parede, está entre ele e ele, e não tem aonde escapar, porque essa presença invade céus e terra e invade também a ela totalmente, e ela está em seus braços. E a alma que perseguiu a felicidade toda a sua vida sem saciar-se nunca e procurando todos os instantes a beleza, o prazer e a felicidade e o gozo, querendo sempre gozar mais e mais, agora em agonia, afogada em um oceano de deleite insuportável, sem margens e sem fundos, exclama: “basta!basta! Não me faças gozar mais, se me amas, porque eu morro!”. Penetrada de uma doçura tão intensa que se transforma em dor, uma dor indescritível, como algo agridoce que fosse infinitamente amargo e infinitamente doce. Tudo é talvez em um segundo, e talvez não voltará a repetir-se em toda a sua vida, mas quando esse segundo passou a alma entende que toda a beleza e as alegrias e gozos da terra ficaram desvanecidos, “são como esterco”, como disseram os santos (skybala, “merda”como diz São Paulo) e já não poderá gozar jamais em nada que não seja isso e vê que sua vida será a partir de então uma vida de tortura e martírio porque enlouqueceu, está louco de amor e de nostalgia do que provou, e vai sofrer todos os sofrimentos e torturas contanto que venha provar uma segunda vez, um segundo mais, uma gota mais, essa presença. (1979, p.63-64).

O testemunho desse poeta-místico nos leva a uma última aproximação entre a mística e o erotismo: o sentimento de plenitude e inteireza quando se é tocado pela presença amada. A alma, que “não se saciava nunca” diante da Presença divina, não apenas expande-se por céus e terra, mas também é invadida por esse amor totalmente.

Cleide Maria de Oliveira. CEFET, Curvelo (MG), Brasil. Texto original em português.

5 Referências

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____. A literatura e o mal. Trad. De Suely Santos. Porto Alegre: LP & M Editores, 1989.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhardt: a mística de Ser e de ter. Petrópolis: Vozes, 1983.

LONGCHAMP, M. H. Mística. En LACOSTE, J.-Y. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2004. 1162-1169.

HILST, Hilda.  Poemas malditos, gozozos e devotos. São Paulo: Globo, 2005.

JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1995, 237-8.

LIMA VAZ, Henrique C. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

MAGDEBURGO, Macthilde de. La luz divina ilumina los corazones. Testimonio de una mística del siglo XIII, intr. trad. y notas de P. Daniel Gutiérrez, Burgos, Monte Carmelo, 2004.

MCGINN, Bernard. As fundações da mística. Das origens ao século V. Tomo I. São Paulo: Paulus, 2012.

MORANO, Carlos Dominguez. La experiência mística desde la Psicologia e la Psiquiatria. Em IDEM, La experiencia mistica: estudio interdisciplinar. Madri: Editorial Trotta, 2004.

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[1] “A necessidade de expiar, como a não menos imperiosa da redenção brotam de uma falta; não no sentido moral da palavra, mas em sua acepção literal: somos pouco ou nada diante do ser que é tudo. Nossa falta não é moral: é insuficiência original. O pecado é ser pouco”  (PAZ, 1982, 177).

[2] Termo do galego-português que traduz, nas cantigas de amor medievais, o sofrimento amoroso.

Teologias ameríndias: uma introdução

Sumário

1 Introdução

2 Contexto da teologia ameríndia: a experiência eclesial e teológica na América Latina

2.1 A primeira cristianização americana: “Aprendemos a teologia que Santo Agostinho ignorou completamente”

2.2 A segunda cristianização americana: “acompanhando sua reflexão teológica, respeitando suas formulações culturais”

2.3 O surgimento da teologia índia: experiências de igrejas locais autóctones

2.4 A elaboração da teologia índia: encontros e simpósios continentais

3 Atualidade da teologia ameríndia: algumas características comuns

3.1 Vida cotidiana como memória ancestral e fonte teologal: “nos encontrar com nossas raízes religiosas para nos encontrar  com Cristo”

3.2 A comunidade eclesial (ayllu) como sujeito teológico: “ninho vital de humanidade, natureza e espíritos”

3.3 O nomadismo crístico-trinitário como um estilo de trabalho teológico: viver “como estrangeiros e forasteiros” (1Pd 2.11)

3.4 A Mãe Terra-Criação: “ser vital cósmico que anuncia o mistério da vida”

3.5 A comunicação mítico-narrativa: “imagens e símbolos são verdadeiras teologias”

4 Perspectivas da teologia ameríndia: tarefas e desafios urgentes

4.1 Da prática intracultural à convivência transcultural: “a mensagem revelada tem um conteúdo transcultural”

4.2 Da família local à comunidade global desde os sujeitos emergentes: é urgente  “uma teologia profunda da mulher”

4.3 Do nomadismo crístico-trinitário ao nomadismo cosmoteocêntrico digital: “Ele saiu sem saber aonde ele estava indo” (Hb 11,8)

4.4 Da criação divina ao cosmos em expansão: a intervenção de Deus ainda é necessária?

4.5 Da comunicação narrativa à pluralidade de linguagens transdisciplinares: “tudo está conectado” (LS 16, passim)

As teologias índias ou ameríndias procuram oferecer às igrejas cristãs e à sociedade, em geral, a experiência  e a sabedoria milenar dos povos nativos americanos, durante séculos considerados “menores de idade”, mas que, desde o final do século XX, começam a adquirir maior relevância sociocultural , política, eclesial e teológica (TOMICHÁ, 2013, 127). Na verdade, assim como há muitos povos indígenas que são sujeitos teológicos e eclesiais,  existem várias teologias ameríndias. Estritamente falando, são teologias índias-cristãs, ou seja, reflexões teológicas elaboradas por crentes ou fiéis pertencentes a certas comunidades cristãs, que releem sua própria experiência de fé cristã a partir de fontes e categorias indígenas ancestrais. No entanto, é possível falar no singular, se considerarmos os aspectos comuns que caracterizam as propostas teológicas ameríndias. Nas palavras do “parteiro”, porta-voz e principal promotor desta proposta teológica, o zapoteco Eleazar López, embora existam “múltiplas teologias índias, cada uma caminhando por seus próprios caminhos” nas suas circunstâncias históricas e inspirações do Espírito, é possível considerar “características comuns a todas as teologias índias e tirar conclusões de conteúdo e método que podem ser aplicáveis a todos, sem prejuízo do processo particular de desenvolvimento de cada uma “(LÓPEZ, 2000, 31).

Por outro lado, as teologias cristãs americanas procuram “conciliar os dois amores” que fazem parte da memória indígena: o amor para os povos autóctones e à Igreja. Com efeito, “as abordagens fundamentais” de Cristo e sua Igreja coincidem fundamentalmente com as visões, as mentalidades e as espiritualidades teológicas dos povos indígenas: “os desejos mais profundos do nosso povo são também os desejos mais profundos de Cristo” (LÓPEZ, 1991, 13.14). Essa “reconciliação” supõe uma visão crítica e decolonial da história indígena desde uma releitura evangélica e sapiencial, para dar lugar ao processo de cura criativo pessoal-comunitária da própria memória. Desta forma, será possível uma proposta teológica desde os símbolos ancestrais capazes de se conectar com outras teologias. Nesse sentido, a teologia ameríndia recupera as características do sujeito coletivo indígena (sentido comunitário-cósmico, estilo narrativo-experiencial, expressão mítico-simbólica …), certo modo de estar na realidade (prático-concreto, contemplativo-espiritual) e uma epistemologia integradora (reciprocidade, inter-relação, conexão) que lhe permite se apresentar ao público como uma das várias teologias reconhecidas pela comunidade eclesial.

Este reconhecimento dos povos indígenas na esfera sócio-eclesial e teológica é o produto de um longo processo de trabalho, organização, lutas, insistência, por parte dos próprios indígenas e com a ajuda de organizações civis e religiosas.  entre eles a Igreja Católica. De fato, bem como na esfera sócio-cultural e política, grande parte da América Latina viveu no final do século XX a chamada insurgência ou “emergência indígena” (BENGOA, 2016, 27-31), assim como alguns membros das igrejas cristãs começaram a responder com uma “emergência teológica”, pronta a levar a sério as diferenças e a pluralidade entre os povos. Desta forma, voltou-se ao frescor do Evangelho e às suas raízes cristãs profundas de igualdade dignidade batismal entre os seus membros (LG 32): “não existe mais judeu ou grego; nem escravo nem livre; nem homem nem mulher “(Gl 3,28); as igrejas  reúnem no seu seio a povos  “de toda raça, língua, povo e nação” (Ap 5, 9; 13, 7).

Oferecemos uma breve introdução às teologias índias-cristãs, levando em conta os aspectos comuns, deixando de lado suas características específicas e regionais (maia, aimará, quéchua, guarani, entre outras). É uma “visão teológica de fronteira”, isto é, a partir de uma perspectiva dialógica, que tenta abordar a teologia indígena das preocupações dos próprios indígenas e do contributo que a sabedoria desses povos pode oferecer mundo Por razões metodológicas, não serão levadas em consideração as teologias índias-índias, que refletem a experiência religiosa indígena independentemente de fontes cristãs.

 1 Antecedentes da teologia ameríndia: a experiência eclesial e teológica na América Latina

1.1 A primeira cristianização americana: “Aprendemos a teologia que Santo Agostinho ignorou completamente”

A percepção e apreciação da riqueza teológica ameríndia estava de alguma forma presente nos primeiros evangelizadores americanos, que – apesar do contexto colonial dominante – teriam percebido uma “teologia” presente entre os indígenas. Por sinal, o franciscano Gerónimo de Mendieta expressou no final do século XVI:

[…] Quando chegaram os doze apóstolos homens, que eram mil e quinhentos e vinte e quatro, visto que os templos dos ídolos ainda estavam em pé, e os índios usavam suas idolatrias e sacrifícios, perguntaram a este padre Fr. Juan de Tecto e a seus colegas, o que eles fizeram e o que eles entenderam. Ao qual o Pe. Juan de Tecto respondeu: ‘Aprendemos a teologia que Santo Agostinho ignorou completamente’, chamando  teologia à língua dos índios e dando-lhes a compreender o grande benefício de conhecer a língua dos nativos.  (MENDIETA, 2002, 308)

Como é sabido, os primeiros missionários no México chamados “doze apóstolos” tentaram, entre múltiplas contradições, acolher e resgatar não apenas a língua dos nativos, mas a riqueza social, cultural e simbólica desses povos com culturas milenárias. Em outras palavras, tratava-se de promover uma “evangelização integral” que respondesse às demandas de vários grupos reformados da época, cujo propósito era retornar ao cristianismo das origens. No caso dos franciscanos, esses movimentos tiveram o apoio do mesmo general Francisco de los Ángeles Quiñones, eleito em 1523, segundo o qual os primeiros frades enviados ao México tiveram que viver e observar a Regra “pura e simplesmente, sem brilho ou dispensa […] assim como São Francisco […] observou isso com seus companheiros “(TOMICHÁ, 2016, 106). Nesse sentido, de acordo com Francisco de Assis, a teologia deve estar ligada ao “espírito de oração e devoção”, a reflexão à santidade da vida, a pregação aos gestos de penitência, misericórdia e fraternidade.

Sabemos pela história como os múltiplos condicionamentos sociais, culturais, políticos, econômicos e eclesiásticos impediram a gestação de uma verdadeira Igreja “índia”, como os franciscanos sonharam. No entanto, pelo menos dois ensinamentos permanecem para a posteridade: a) toda a vida cristã (e toda a teologia que dela segue), incluindo a própria santidade, para ser evangélica, está necessariamente situada, é contextual, isto é, encarnada e consequentemente limitada e insuficiente; b) toda vida e reflexão parte de certos pressupostos ou condicionamentos da mesma encarnação histórica, que, no caso latino-americano, adquire raízes profundas da colonialidade.

Na verdade, após os primeiros 50 anos de cristianização, com a conclusão do estágio missionário no México e a posterior organização da Igreja, as populações nativas foram reduzidas à sua expressão mínima, especialmente devido a epidemias, guerras e encomendas. Neste contexto do cristianismo, os índios – geralmente pela força – tiveram de “integrar” o modelo cristão europeu-ibérico bastante uniforme e, assim, assumir e internalizar padrões de comportamento, mentalidades e visões teológicas forasteiras. Exceto por exceções muito específicas, essa proposta de aprendizagem teológica integral descrita por Mendieta permanecerá em um único projeto. No máximo, os missionários aprenderão as línguas indígenas, mas nem sempre o seu significado cultural, religioso e simbólico. Quanto menos eles vão questionar suas próprias teologias. No melhor dos casos, promoverão a defesa da justiça dos povos nativos e afrodescendentes diante dos abusos de espanhóis ou portugueses, crioulos e mestiços, que serão acentuados em alguns países após a independência americana.

Portanto, essa visão mono-teológica ocidental continuará durante vários séculos de cristianização até o Concílio Vaticano II (1962-1965), que abrirá um segundo momento de experiência eclesial com o nascimento da teologia latino-americana da libertação. Com efeito, fazer a teologia desde as realidades indígenas significará revisitar criticamente a Escritura e a Tradição, isto é, conhecer e explicar tais pressupostos contextuais e coloniais. Nesse sentido, as teologias ameríndias – em sintonia com a tradição teológica pós-conciliar latino-americana – além de conhecer em profundidade suas próprias fontes, procuram ouvir, aprender, discernir, dialogar com outras disciplinas acadêmicas que incorporem metodologias dialógicas, integradoras, complexas e transdisciplinares … Desta forma, elas tentarão superar de forma autocritica uma certa colonialidade epistêmica e uniformidade hermenêutica, internalizadas na mesma tarefa teológica (TOMICHÁ, 2016, 107).

2.2 A segunda cristianização americana: “acompanhando sua reflexão teológica, respeitando suas formulações culturais”

O Concílio Vaticano II significava para a Igreja na América Latina e no Caribe o início de um processo de compromisso evangélico a favor da justiça e dos pobres, o que levaria à conscientização, promoção e reconhecimento gradual da diversidade sociocultural, religiosa e teológica dos povos. A este respeito, o Departamento de Missões do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), criado em 1966, desempenhou um papel muito importante, especialmente com a organização de reuniões pastorais indígenas. Assim, por exemplo, no primeiro (Ambato, Equador, 24 a 28 de abril de 1967), é apreciada a diversidade de línguas, culturas, religiões e costumes entre os povos indígenas; enquanto no segundo (Melgar, Colômbia 20-27 de abril de 1968), são reconhecidas “uma grande pluralidade de culturas e uma mestiçagem cultural de índios, negros, mestiços e outros”, culturas que “não são suficientemente conhecidas ou reconhecidas em suas línguas, costumes, instituições, valores e aspirações “(Melgar 3) (DEMIS, 1989, 9).

O encontro de Melgar introduz a categoria teológica semina Verbi citada no decreto Ad gentes do Concílio Vaticano II (GORSKI-TOMICHÁ, 2006, 43-45), levando assim a necessidade de assumir a história dos povos como parte da história universal de salvação De fato, embora não seja dito explicitamente, ele introduz o princípio patrístico da encarnação, tão bem formulado por Gregório Nazianzeno, segundo o qual “o que não foi assumido não foi salvo; o que está unido a Deus é redimido “(Ep.101: PG 37,181) ou, nas palavras do referido decreto,” o que não foi assumido por Cristo não foi curado “(AG 3). Esta visão teológica, no entanto, não será levada em consideração pela Segunda Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín, Colômbia, 4 meses depois.

Na verdade, Medellín (1968), embora reconheça a presença histórica da Igreja entre os indígenas, considerados marginalizados e analfabetos, cuja ignorância é realmente “uma servidão desumana”, enfatiza o negativo de suas culturas (DM, Educação, 1), não sendo reconhecidos nem valorizados como tais (TOMICHÁ, 2011, 1369-1374). Anos mais tarde, a III Conferência de Puebla (1979) começará a reconhecer a originalidade “das culturas indígenas e suas comunidades”, particularmente o amor à terra, como “valores indubitáveis” (DP 19.234.1164). Da mesma forma, antes da subjugação e imposição da visão científica-técnica ocidental, ele propõe um “discernimento fino e laborioso”, para evitar aceitar “essa instrumentação de universalidade que é equivalente à unificação da humanidade através de uma injusta e dolorosa supremacia e dominação de alguns povos ou setores sociais sobre outros povos e setores “(DP 427).

Por sua parte, a Quarta Conferência de Santo Domingo (1992) constata um “multiétnico e multicultural” continente (DSD 244), onde a Igreja descobre e valoriza as “sementes do Verbo” latente na “abertura à ação de Deus pelos frutos da terra, o caráter sagrado da vida humana, a valorização da família, o sentido de solidariedade e corresponsabilidade no trabalho comum, a importância do culto, a crença em uma vida ultra terrena “(DSD 17). É a antiga sabedoria indígena cultivada na “preservação da natureza como ambiente de vida para todos” (DSD 169) e o reconhecimento da presença do Criador em todas as suas criaturas: o sol, a lua, a mãe terra ( veja DSD 245). Diante dessa realidade, a Igreja propõe uma “evangelização inculturada” (DSD 243247248), que deveria ser expressa em uma liturgia que acolha os símbolos, rituais e expressões religiosas indígenas através do testemunho humilde, compreensivo, profético, respeitoso, franco, fraterno e dialógico. No especificamente teológico, ele afirma: “acompanhar sua reflexão teológica, respeitando suas formulações culturais que lhes ajudem a dar razão para sua fé e esperança” (DSD 248).

Finalmente, a V Conferência de Aparecida (2007) valoriza nos povos indígenas “seu respeito pela natureza e o amor à mãe terra como fonte de alimento, casa comum e altar do compartilhamento humano” (DA 472). Ao mesmo tempo, encoraja-os a superar a “mentalidade colonial” (DA 96, quarta redação) ainda existente nas esferas eclesiásticas. Daí a urgência sociocultural e teológico-pastoral das “mentes descolonizadoras, o conhecimento, recuperar a memória histórica, fortalecer espaços e relações interculturais” (DA 96). No nível teológico, reafirma as “sementes do Verbo” presentes nas tradições e povos indígenas (DA 529; cf. DP 401, DSD 245): “Cristo era o Salvador que eles ansiavam silenciosamente” (DA 4) já vivido na ” profunda valorização comunitária da vida, presente em toda a criação, na existência diária e na milenar experiência religiosa “(DA 529).

Em relação à teologia indígena, a segunda redação do documento distribuído aos participantes disse textualmente:

É improrrogável impulsionar com mais dinamismo a inculturação da Igreja, dos ministérios, da liturgia e da reflexão teológica indígena. Devemos continuar os esforços do CELAM, com o apoio da Congregação para a Doutrina da Fé, para o discernimento da Teologia Índia (DA, segunda redação, nº 116).

Este texto foi retirado da terceira redação e não conseguiu alcançar os dois terços dos votos necessários para ser novamente incluído na quarta e última redação, aprovada em 31 de maio de 2007. Por esse motivo, as expressões “teologia indígena” e / ou “teologia índia” não aparece no documento conclusivo de Aparecida. No entanto, o fato de que essa teologia foi considerada um dos eventos eclesiais mais importantes do continente mostra, pelo menos, um certo “posicionamento” alcançado nas esferas oficiais da Igreja Católica.

2.3 O surgimento da teologia índia: experiências de igrejas locais autóctones

A teologia ameríndia-cristã emerge, se recria e adquire fundamento na experiência de fé vivida pelos povos indígenas a partir da “primeira cristianização” e que começa a consolidar-se na gestação de “igrejas autóctones” (AG 6) durante a “segunda Cristianização “iniciada com o Concílio Vaticano II que originou a teologia latino-americana. A este respeito, as experiências pastorais em duas dioceses revelam-se significativas: Leonidas Proaño (1910-1988), em Riobamba (Equador) e Samuel Ruíz (1924-2011), em San Cristóbal de Las Casas (Chiapas, México). Ambos os pastores mostram a imagem de um Deus íntimo, comprometido com a vida e a libertação dos mais pequenos, marginalizados e excluídos, oferecendo ferramentas concretas para uma efetiva organização sócio-eclesial, ministerial e teológica, onde os povos indígenas podem ser verdadeiros sujeitos e protagonistas de sua própria libertação integral.

Leonidas Proaño, considerado pelos indígenas “bispo dos índios” sendo pastor na diocese de Riobamba (1954-1985), prosseguiu um objetivo claro: promover uma pastoral indígena com participação efetiva dos próprios indígenas: agentes pastorais, catequistas, animadores, missionários, líderes, religiosos e bispos. Em suas palavras, os indígenas tiveram que caminhar com seus dois pés inseparáveis, a Igreja e a organização: “[o] trabalho de conscientização e evangelização está sempre unido e, como resultado, as pessoas têm e sentem a necessidade de  se organizar “(SICNIE, 1988: 14). Em 1986, inspirado no discurso aos indígenas pronunciado por João Paulo II no Equador, apresentou à Conferência Episcopal Equatoriana  seu “Plano Nacional de Pastoral Indígena” com dois objetivos: “a transformação dos  indígenas em Povo que contribua para a transformação da sociedade equatoriana e a construção da Igreja indígena que contribua com seus próprios valores para o enriquecimento das Igrejas locais e da Igreja Universal “sempre a serviço do Reino de Deus (PROAÑO, 1989, 15). O Plano procurou recuperar as identidades indígenas: nome próprio, origem, história, formas peculiares de conceber a vida, pessoas, família, organização,  trabalho, bem como a terra, a natureza e as relações com Deus, com os outros e com a outra vida. Em suma, ele aspirava a ajudar “à formação de um Povo Indígena, com sua própria identidade, mantendo a abertura necessária para alcançar uma autêntica e justa integração com o povo equatoriano” (PROAÑO, 1989, 17). Com esse objetivo, e em um nível concreto, fundou em 1988 a organização “Servidores da Igreja Católica das Nacionalidades Indígenas do Equador” (SICNIE) encarregada de continuar o processo de gestação da Igreja indígena no Equador (cf. ROMERO, 2010) .

Por sua parte, Samuel Ruiz, também conhecido como “bispo dos índios e os pobres” ou simplesmente “Tatic” ou “J’tatik“, que significa “pai” na língua tzotzil, exerce seu trabalho pastoral na diocese de San Cristóbal de las Casas por 40 anos (1960-2000). Lá, em Chiapas, recruta e treina catequistas indígenas, reconhecendo o contributo cultural para a sua própria evangelização em línguas, tradições, culturas e visões de mundo simbólicas autóctones. Em 1974, promoveu o Primeiro Congresso Indígena em Chiapas para recuperar a memória do Bispo Bartolomé de Las Casas, cujos quatro temas tratados (terra, comércio, educação, saúde) foram levados em consideração no Plano Pastoral Diocesano, como  expressou o próprio  Samuel: “Formar um plano pastoral baseado nas necessidades dos povos indígenas e não tanto nos conteúdos evangélicos que tiveram de ser anunciados” (SANTIAGO, 1999, p. 5). Desta forma, os indígenas tornaram-se o sujeito de seu próprio destino. É assim que as escolas diocesanas de catequistas são criadas, de onde surgirão diáconos indígenas permanentes, verdadeiros “pioneiros” no processo visível de participação ativa e sócio-eclesial dos próprios nativos (SANTIAGO, 2016, 51-52). Desta forma, Ruiz está comprometido com um novo modelo de ser  Igreja, uma Igreja autóctone, que busca viver o Evangelho de Jesus Cristo a partir das dimensões social, cultural, econômica, política e religiosa dos povos indígenas. Para esse fim, em 1988 fundou o Centro de Direitos Humanos “Fray Bartolomé de Las Casas”, que acolhe denúncias de violações de direitos humanos por diversos setores sociais. Nesta estreita relação entre a evangelização e a promoção da justiça e da paz, Don Samuel ainda medeia nos diálogos entre o governo federal do México e o Exército Zapatista de Libertação Nacional, que irrompeu na selva de Chiapas em janeiro de 1994.

2.4 A elaboração da teologia índia: encontros e simpósios continentais

As teologias ameríndias, como observado, nascem, se alimentam e re-significam na vida cotidiana das comunidades cristãs indígenas, cujas periódicas reuniões, encontros, seminários ou simpósios são momentos importantes no aprofundamento, consenso e autocrítica da própria caminhada teológico-eclesial Dados os limites deste trabalho, consideraremos apenas os encontros continentais da teologia ameríndia durante o período pós-conciliar. A este respeito, se mencionam por um lado, os simpósios organizados pelo CELAM a partir de 1997 e os encontros-oficinas convocados pela Articulação Ecumênica de Pastoral Indígena (AELAPI) desde 1990. Os primeiros, mais católicos intraeclesiais, de caráter fechado, formal e oficial, com uma participação maioritária do clero (bispos e sacerdotes), alguns religiosos e poucos leigos, que elaboram uma teologia mais clássica e acadêmica. Os segundos, mais ecumênicos, populares, informais e abertos, com presença majoritária de leigos que, junto com o clero, fazem uma teologia mais narrativa e simbólica, num ambiente fraterno, festivo e criativo. Indubitavelmente, tanto espaços, experiências e metodologias são muito válidos na elaboração e compartilhamento de teologias ameríndias.

No primeiro caso, o CELAM organizou 5 encontros ou simpósios continentais: 1) Para uma teologia indiana inculturada (Bogotá, 21-25 de abril de 1997); 2) Simpósio – Diálogo entre bispos e especialistas em teologia índia (Riobamba, 21-25 de outubro de 2002), evento precedido de uma reunião de bispos: Teologia índia. Emergência indígena: desafio para a pastoral da Igreja (Oaxaca, 21 a 26 de abril de 2002); 3) III Simpósio Latino-Americano de Teologia índia. Cristo nos povos indígenas (Guatemala, 23 a 28 de outubro de 2006); 4) IV Simpósio Latino-Americano de Teologia índia. A teologia da criação na fé católica e nos mitos, ritos e símbolos dos povos indígenas da América Latina. O sonho de Deus na criação humana e no cosmos (Lima, 28 de março a 2 de abril de 2011); 5) V Simpósio de teologia índia. Revelação de Deus e Povos Nativos (San Cristóbal de Las Casas, 13-18 de outubro de 2014). Estes simpósios, exceto o primeiro, foram publicados pelo próprio CELAM.

No segundo caso, a AELAPI, anos antes do CELAM, começa a organizar vários encontros-oficinas sobre teologia índia, com a participação de cerca de cem pessoas, incluindo pastores, teólogos e leigos. Assim, de 1990 a 2016 foram realizadas 8 encontros-oficinas, cujas memórias, na sua maioria, estão publicadas por vários editores:

 1) Teología India. Primeiro Encontro-oficina latino-americano (México, 16-23 setembro 1990); 2) Teología India. Segundo Encontro-oficina latino-americano (Panamá, 29 novembro-3 dezembro 1993); 3) Teologia Índia. III Encontro-oficina latino-americano. Sabedoria indígena, fonte de esperança (Cochabamba, 24-30 agosto 1997); 4) IV Encontro-oficina Ecuménico Latino-americano de Teologia Índia. Em busca da terra sem mal. Mitos de origem e sonhos de futuro dos povos índios (Ikua Sati-Asunción, 6- 10 maio 2002); 5) V Encontro de Teologia Índia. A força dos pequeninos, vida para o mundo (Manaus, 21-26 abril 2006); 6) VI Encontro Latino-americano de Teologia Indígena. Mobilidade humana, desafio e esperança para os povos indígenas (Berlín-Usulután, El Salvador, 30 novembro-4 dezembro 2009); 7) VII Encontro continental de Teologia Índia. “Sumak Kawsay” e Vida Plena (Pujilí-Cotopaxi, 14-18 outubro 2013); 8) VIII Encontro continental de Teologia Índia. A Palavra de Deus na Palavra dos Povos diante da conjuntura do Novo Amanhecer da Vida (Casa Bahía Azul-Panajachel Sololá, Guatemala, 26-30 setembro 2016).

3 Atualidade da teologia ameríndia: algumas características comuns

Falar de teologia ameríndia-cristã significa aproximar-se do mistério cristão numa perspectiva indígena, isto é, reenviar os temas teológicos (Deus, Um e Trino, Cristo, Espírito Santo, Igreja, criação, salvação, sacramentos …) desde a experiência cristã indígena. Por outro lado, é necessário abordar suas fontes, metodologia, estilo, preocupações, projeto final. De certa forma, essas questões foram apontadas por Eleazar López em 1991:

A teologia índia não é senão saber “dar razão para a nossa esperança” milenar. É a compreensão que temos de toda a nossa vida guiada sempre pela mão de Deus. É o discurso reflexivo que acompanha, explica e orienta a jornada de nossos povos indianos ao longo de sua história. É por isso que existe uma vez que nós existimos como povos (LÓPEZ, 1991, 7).

A partir desta abordagem conceitual, muito em sintonia com os processos vitais cotidianos em que os povos indígenas vivem, são mencionados alguns princípios básicos das teologias ameríndias, pressupostos não apenas teóricos, mas que também permeiam todos os momentos da vida cotidiana indígena e, portanto, , representam verdadeiras contribuições para a vida sócio-eclesial.

3.1 Vida cotidiana como memória ancestral e fonte teologal: “nos encontrar com nossas raízes religiosas para nos encontrar com Cristo”

A teologia ameríndia é muito concreta: ela surge do gosto pela vida, uma vida cheia de sabedoria milenar, contemplada em sua profundidade através do silêncio interior, comunitário e cósmico. Na verdade, como um companheiro da teologia da libertação, procura estar em sintonia com a própria vida em todas as suas facetas e espaços: pessoal-interior, familiar-comunitário, relacional-ancestral, sociocultural, político-econômico, religioso- espiritual … A vivência humano-cósmica dos povos, expressada em mitos, ritos, celebrações, tradições, lendas, atitudes, contradições, sonhos … constitui uma fonte de esperança e sabedoria, de “bom viver” (em Quechua: sumaj kawsay; em aimará: soma qamaña). A partir desta experiência interativa e inter-relacionada surge a reflexão teológica, expressa em uma variedade de símbolos e línguas indígenas, que revelam não só as “Sementes do Verbo”, mas o mesmo Espírito Santo e Mistério Trinitário (TOMICHÁ, 2013). Nesse sentido, a teologia ameríndia lembra outras teologias cristãs, seu íntimo e direto relacionamento  com a vida cotidiana e concreta de cada um dos povos, uma vida cheia de memórias e sabedorias ancestrais, verdadeiras riquezas que são fontes primárias do trabalho teológico. Precisamente, em relação às memórias e à sabedoria, a teologia ameríndia colocou em primeiro plano, desde os seus inícios, a urgência de afirmar a identidade dos povos indígenas, a etno-estima indígena, como condição e garantia sine qua non para o encontro com Cristo e o consequente reconhecimento teológico indígena na Igreja:

Para nos encontrar com Cristo, é uma condição indispensável nos encontrar de antemão, com nós mesmos, com nossas raízes, com nossa história e nossa cultura e, por que não, com nossa religião de origem. Aqueles que não têm uma identidade dificilmente podem ter um encontro aprofundado com Cristo […] Isto implica, antes de tudo, reconstruir o sujeito disso que são os povos indígenas […] para retornar aos nossos povos a confiança em si mesmos, o orgulho de sua Identidade índia, a coragem de ser e de se mostrar diferentes (LÓPEZ, 1991, 15).

3.2 A comunidade eclesial (ayllu) como sujeito teológico: “ninho vital de humanidade, natureza e espíritos”

No mundo indígena, a vida comunitária é o eixo, centro ou espaço em torno do qual giram todas as outras atividades: vida interior, relacionamentos em todos os níveis (que também incluem aos falecidos), trabalho, atividades econômicas, festas, celebrações rituais, culto a avós ou antepassados. Esta vida adquire seu ponto de referência básico na família, que, para os indígenas, “não é apenas o lar (a família nuclear), mas também a comunidade que ele considera sua grande família” (CEE, 1991: 43). Na verdade, a pequena comunidade familiar, que já é uma família extensa coesa pelo parentesco, é agrupada para formar uma comunidade maior ou “grande família”, onde se mora, comemora e celebra a comunhão direta com tudo o relacionado à vida e sua fonte primária, a terra: semeadura, colheita; construção de casas, estradas do bairro, escolas e outros trabalhos essenciais.

Assim, por exemplo, no mundo andino, desde tempos imemoriais, o ayllu constituiu o pilar fundador dessa sociedade, como uma organização familiar que tinha funções econômicas, sociais e religiosas; baseou-se em um sistema de reciprocidade (ayni) e ajuda mútua (minga), que garantiu a divisão da terra, costumes conjugais, celebrações religiosas, entre outros. De acordo com este sistema, a terra era de posse comum e era distribuída de acordo com as demandas específicas de seus membros. Nas palavras de Aimará-Christian Calixto Quispe, o ayllu é “o ninho vital de diferentes culturas […], e nas comunidades existem casas que também são ninhos […]. A comunidade estabelece a casa como um ninho vital para acolher a humanidade, a natureza e seus espíritos […] A casa sabe como se irritar quando o ser humano acha que ele é todo poderoso […] “(QUISPE, 2012, 32.33). Portanto, o ayllu ou comunidade crente acolhe, compartilha e celebra a passagem do Mistério por seu povo: escuta e comunica, recebe e doa, viva e reflete … Neste espaço criativo de encontro e convivência, a teologia ameríndia é fortalecida e recriada.

Precisamente, a partir do acento indígena comunitário, teologia ameríndia é chamada a oferecer “um serviço muito desinteressado à comunidade dos crentes” (DVe 11), à “Família de Deus” (GS 40.43, DM 15,9,10), mais especificamente à Igreja local ou – como os indígenas apontam no Equador (TOMICHÁ, 2013: 139) – serviço ao Grande Ayllu, buscando sempre expressar e articular essa teologia na escuta crítica e no recebimento de outras expressões teológicas. Portanto, é uma teologia que é elaborada e construída coletivamente, com a participação ativa e criativa de todos os membros da comunidade eclesial em seus múltiplos ministérios, onde a pessoa que faz a teologia é simplesmente o porta-voz da comunidade local, à qual representa. É uma teologia que recupera e assume em seus conteúdos as ricas tradições ancestrais para se constituir verdadeiramente uma Igreja-Família de Deus, onde os sujeitos do trabalho teológico são “as igrejas autóctones locais […] suficientemente organizadas e dotadas de suas próprias energias e maturidade “(AG 6).

De acordo com Nicanor Sarmiento, seguindo outros teólogos, há um diálogo tripolar interativo entre a cultura local, a tradição apostólica e a Igreja universal em torno de 3 polos de fidelidade: a) às próprias experiências (culturais, religiosas …) dos povos desse “Deus vivo e verdadeiro “expressado em mitos, cosmo-vidas, relações básicas e fundamentais com o cosmos e com outros seres humanos; b) à tradição apostólica escrita e não escrita, comunicada e desenvolvida na história como ritos, símbolos e vários modelos (de comportamento, comunidade, ministérios …), que “coincidiria” com a maneira popular-indígena de fazer teologia; c) à comunhão eclesial universal, que inclui os ensinamentos do magistério vivo e dos teólogos, a vida dos santos; formas de oração, piedade e espiritualidades autênticas … (SARMIENTO, 2016). Esta experiência teológica foi iniciada, implementada e pouco a pouco aprofundada, especialmente nas 2 dioceses latino-americanas acima mencionadas.

3.3 O nomadismo crístico-trinitário como um estilo de trabalho teológico: viver “como estrangeiros e forasteiros” (1 Ped 2.11)

“O nomadismo é o ponto de partida e a referência obrigatória de todos os povos indígenas da América “(LÓPEZ, 2000, 32), pois representa uma dimensão fundamental armazenada na memória indígena. Esta estrutura nômade e itinerante, presente na experiência profunda dos povos nativos, que sempre buscou – como os guaranis – aquela “terra sem mal”, adquire o fundamento último na concepção religiosa da vida, onde o sagrado representa o eixo da articulação da existência cotidiana. Na verdade, “no esquema religioso e teológico do nomadismo, Deus é tudo e tudo tem a ver com Deus” (LÓPEZ, 2000, 33), mas é um Ser dinâmico, “em movimento”, um Deus “integral”. , inclusivo e plural, que escuta, caminha, toma iniciativa; um Deus que se aproxima das realidades internas, sociais, culturais, políticas, religiosas e espirituais de toda pessoa humana. Nesta abordagem, ele oferece sua Vida, Ternura, Amor e Misericórdia, que também envolve demandas difíceis, lutas internas, conversão religiosa …, todos ao serviço do Reino de Deus ou “Boa Vida / Viver bem”. É então um nomadismo profundamente espiritual, celebrador e contemplativo que sabe ler os passos desta caminhada diária em uma chave mística e religiosa.

Portanto, entende-se que, por natureza e vocação específica, a característica nómada da teologia ameríndia é sempre dinâmica no contexto geográfico-social, interior-mental e simbólico-cósmico. Este nomadismo é expresso visivelmente no desejo permanente de conversão integral (pessoal, comunitário, cósmico), tomando a autocrítica a sério, para continuar na busca constante de fidelidade ao projeto do Criador ou Fazedor, presente na vida dos povos. Esta posição está na própria raiz da vocação ao discipulado missionário e, portanto, na vocação teológica ameríndia, seguindo o exemplo do próprio Jesus, que não tinha “lugar para descansar a cabeça” (Lc 9,58), que enviou para seus discípulos sem levar “nem alforje, nem pão” (Mc 6,8), “nem duas túnicas, nem sandálias, nem tampouco bastão” (Mt 10,10; Lc 10,4), mas eles simplesmente tiveram que viver “como estrangeiros e forasteiros”(1Pd 2,11) no meio dos povoados. Em última análise, a partir da teologia ameríndia, é um nomadismo crístico que adquire fundamentos sólidos no Mistério Trinitário, presente em todo o cosmos criado e sustentado pelo Deus Uno-Trino.

3.4 A Mãe Terra-Criação: “ser vital cósmico que anuncia o mistério da vida”

 A humanidade, outros seres vivos, o mundo inteiro, o cosmos, a criação, a terra, estão ansiosamente procurando uma vida plena, apoiada pelo respeito e equilíbrio mútuo . A terra não é apenas o solo onde se cultiva ou o chão onde a casa é construída: é todo o território com seus animais, selvas, montanhas, chuva, em constante interação vital. Nas palavras de um índio: “Daí eu nasci. Ela [a terra] me dá comida, bebida, vestido. No seu peito eu descanso quando estou cansado. Eu retornarei ao seu peito quando morrer. A Terra é a nossa vida. Estamos dispostos a morrer pela terra “(PROAÑO, 1989, 4). Esta concepção da terra, como vida e território interligado com tudo, é recolhida em alguns documentos eclesiais: “Para os indígenas, a terra é o centro e o fundamento da sua economia, porque a entende não apenas como o solo que cultiva, mas em conjunto com os animais, o campo, o vento, a chuva e o sol, que o tornam fértil “(CEE, 1991, 41); “A Terra: é sagrada porque sempre garantiu a vida, que é sagrada. É por isso que eles mostram carinho, respeito e veneração “(CEB, [1992], n.136, 50).

É então uma vida de relacionamentos não baseados em ter, poder ou conhecimento, mas na gratuidade e harmonia da “boa vida”. Assim, por exemplo, no mundo andino, a palavra quéchua-aimará Pacha representa o sentido profundo, o horizonte de compreensão, a filosofia da vida e o último motivo da cosmovisão religiosa indígena (ESTERMANN, 2011, 285-298). Ou nas palavras de Calixto Quispe: “é o eterno mistério, o ninho onde acreditamos existir dentro do universo vital cósmico […] a casa grande, o ninho da vida onde o espírito nos faz viver em harmonia […] o ninho do espíritos protetores […] o ilimitado […] infinito além do espaço e do tempo […] o ser vital cósmico que anuncia o mistério da vida “(QUISPE, 2007, 2-11.19).

A Pacha é a vida integral e relacional, cheia de profundo mistério e espiritualidade; É a razão final de toda existência. Daí a centralidade da Pachamama na experiência indígena. Assim, os povos indígenas intuíram, acreditavam e viviam em todas as suas dimensões a Presença do Mistério como sentido da vida plena, um Mistério de Deus Criador e Fazedor de tudo o que existe:

DEUS que segue seu trabalho muito perto, continua a criar a vida e nos encarrega criar a vida. Ele encarrega criar (cuidar) aos espíritos guardiões (das colinas, da batata, da casa, das lagoas …), é claro, a Pachamama, a grande mãe-irmã ou providência de Deus. O Aimará insiste: somos co-criadores; Nós somos responsáveis por continuar a aumentar com grande carinho o que Deus nos dá (JORDÁ, 2013, 93).

De acordo com a teologia cristã clássica, “a criação é a obra da Palavra do Senhor e a presença do Espírito, que desde o início pairava acima de tudo que foi criado (ver Gn 1-2) […] foi a primeira aliança de Deus conosco “(DSD 169); “É uma manifestação do amor providente de Deus”, que “criou o universo como um espaço para a vida e a convivência de todos os seus filhos e filhas e os deixou como um sinal de sua bondade e beleza […] para que possamos cuidar dele e transformá-lo em uma fonte de vida digna “(DA 125). No entanto, hoje vemos que “toda a criação geme até o presente e sofre dores de parto” (Rom 8:22), esperando “libertar-se da escravidão da corrupção para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Vemos as consequências desastrosas de uma visão e mentalidade centrada na fria razão, na ciência e na tecnologia, que estão causando desequilíbrio e destruição do planeta Terra, cujas consequências são imprevisíveis. É o que o próprio Papa Francisco denunciou (cf. LS).

Neste contexto, a teologia ameríndia luta pela harmonia da vida em todas as suas expressões, coloca no centro a relação da pessoa humana com seu ambiente comunitário-cósmico, a fim de alcançar o equilíbrio desejado. Essa concepção humano-cósmica da vida é um importante contributo para a sociedade de hoje, para a Igreja e para a teologia cristã, uma vez que quer levar a sério e com todas as suas consequências o princípio da reciprocidade da realidade, que é interativa e inter-relacional, indo além de uma concepção linear da história, centrada apenas no ser humano.

3.5 A comunicação mítico-narrativa: “imagens e símbolos são verdadeiras teologias”

A teologia índia se expressa de maneira mais experiencial, narrativa e simbólica, porque “os símbolos e os mitos expressam de forma mais completa e radical o significado profundo que damos à vida” (LÓPEZ, 1991, 9). Assim, a teologia é alimentada pelas várias manifestações dos povos indígenas, entre outros, mitos, cerimônias, celebrações, encontros comunitários, festas, lutas, martírios, diálogos espontâneos, sonhos, expressões artísticas …, que devem ser abordados a partir de diversas ciências e com seus próprios métodos. Por sinal, é importante lembrar que “os mitos são expressões históricas primordiais de cada povo, que reproduzem culturalmente sua experiência de Deus “, de modo que “imagens e línguas simbólicas podem ser consideradas como verdadeiras teologias” (SUESS, 2008, 116). Em relação aos sonhos, “eles são o espaço da consciência não apenas explícito, mas implícito do que acontece em torno de nós … Os sonhos compartilhados e analisados coletivamente são um excelente fator de análise da realidade e de crítica teológica […] motor que desencadeia compromissos comunitários de ação “(LÓPEZ, 2000, 103).

Em suma, a teologia ameríndia recolhe e incorpora no seu trabalho as várias expressões narrativas e simbólicas (orais, rituais, artísticas) da revelação do Mistério de Deus presente na vida de cada um dos povos indígenas. Tais expressões coincidem em grande medida com as narrativas bíblicas, com um alto conteúdo simbólico, poético e até mesmo sonhador. Portanto, é uma teologia que procura recuperar para ler com / a partir de critérios indígenas a revelação bíblica em cada um de seus símbolos e línguas, muitas vezes esquecidos ou parcialmente compreendidos.

4  Perspectivas da teologia ameríndia: tarefas e desafios urgentes

A teologia ameríndia, como reflexão da fé cristã a partir da experiência milenar e das categorias simbólicas dos povos indígenas, iniciou seu processo de articulação em torno dos 500 anos da conquista da América. Portanto, ainda permanecem as sensibilidades, preocupações, projetos, lutas e sonhos sócio-eclesiais dos povos indígenas dessa época, cuja situação persiste na maioria dos casos. Daí o compromisso da Igreja, através de seus pastores, de “denunciar as situações de pecado, as estruturas da morte, a violência e as injustiças internas e externas” (DA 95) sofridas pelos indígenas. Ao mesmo tempo, novos cenários ou situações globais emergentes na atual “mudança de era” (DA 44) são adicionados ao precedente, sem necessariamente negá-los.

Esta situação mundial também afeta os povos indígenas e desafia a tarefa teológica em sua busca para articular a fé cristã em categorias e línguas compreensíveis que respondam à vida e às preocupações de homens e mulheres. De fato, “a teologia contribui, então, para o fato de que a fé seja comunicável e que a inteligência daqueles que ainda não conhecem Cristo a possa procurar e encontrar” (DV 7). Dada a mudança de paradigmas ou padrões na forma de viver, compreender e pensar sobre a realidade em contínua transformação, a teologia ameríndia é chamada a dar-se a conhecer para comunicar ao mundo com suas próprias categorias e linguagens, o último Mistério que transcende as fronteiras, espaços e territórios determinados.

4.1 Da prática intracultural à convivência transcultural: “a mensagem revelada tem um conteúdo transcultural”

Os povos indígenas durante muitos anos viveram mais ligados à sua própria terra com uma forte coesão social, vivência familiar, celebrações comunitárias e transmissão de seus valores e tradições dentro de suas próprias culturas. Atualmente, o fenômeno migratório que caracteriza a sociedade global está tendo um forte impacto sobre a vida, a mentalidade, os costumes e o senso religioso dos povos autóctones, chamados a se confrontar em todos os lugares com outros povos, especialmente nas cidades. Assim, a experiência intracultural torna-se cada vez mais convivência intercultural ou transcultural, ou seja, uma posição que “leva em conta os processos históricos de mudança e transformação cultural”, “múltiplas sobreposições, interferências, modificações, negociações, seleções e reestruturações de diversos elementos culturais “(ESTERMANN, 2010, 40); Isto requer uma constante releitura ou reafirmação criativa da própria identidade cultural (memória, linguagem, mentalidade e os costumes, a visão religiosa) em diálogo criativo com outros “padrões culturais indígenas” constante, fortalecendo assim as chamadas “múltiplas identidades”.

No âmbito eclesial, uma comunidade dos fiéis deve viver um processo constante e contínuo de ressignificação, movimento e abertura para se deslocar da monoculturalidade e intraculturalidade para a interculturalidade e transculturalidade, e, assim, responder com mais eficácia e proximidade àqueles que vivem no meio de fortes condicionamentos do atual mundo digital e globalizado. O Papa Francisco diz com esse propósito:

Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural (EG 117).

Nesse sentido, esse processo de constante ressignificação das próprias identidades culturais e religiosas, do discernimento intracomunitário, para acolher com criatividade os “sinais dos tempos” (GS 4) que o próprio Espírito Santo espalha no mundo atual, pode  servir como um laboratório, e talvez como modelo, para outras comunidades cristãs e para diferentes teologias. As experiências feitas, e ainda em curso, em algumas igrejas locais do continente mostram que outra igreja é possível.

Diante dessa situação, a teologia ameríndia procura viver nesses espaços interculturais, aprender com a sabedoria de outros povos (indígenas ou não), recuperar e aprofundar a memória histórica, elaborar novas linguagens teológicas, linguagens transculturais, com o contributo do melhor das tradições autóctones e das riquezas de outras tradições. Nesse sentido, devemos entender o compromisso dos pastores da Igreja em relação aos povos indígenas de “promover o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico” (DA 95). Em suma, é o desafio da universalidade concreta, empírica e convivial da teologia ameríndia.

4.2 Da família local à comunidade global desde os sujeitos emergentes: é urgente  “uma teologia profunda da mulher”

O contato com outras experiências culturais em espaços e territórios nem sempre ligados à milenar tradição indígena, bem como o impacto do grande cenário cibernético digital com suas redes de comunicação globais múltiplas e efetivas, afetam a mesma percepção do que uma comunidade indígena significa. Se os habitantes do mundo, em geral, se percebem cada vez mais como membros de uma grande “aldeia global”, os povos indígenas também sentem que suas comunidades são cada vez pequenas “aldeias globais” que refletem as transformações mundiais. Nessa interação com outros povos e com a sociedade mundial, os indígenas se redefinem como membros de um determinado grupo étnico-social, incorporando em suas organizações comunitárias novas modalidades de participação efetiva. Tal é o caso, por exemplo, do protagonismo ativo das mulheres em áreas não só familiares ou locais, mas também de liderança social e política, de gestão pública e de condução dos próprios movimentos, aspecto que nem sempre é devidamente avaliado na maioria das comunidades indígenas tradicionais, onde os homens ainda têm a última palavra. É necessário recuperar a presença ativa da mulher indígena em sua comunidade como portadora da espiritualidade indígena que supera os esquemas patriarcais (ROMERO, 2010, 76).

Diante dessa situação, a teologia ameríndia incorpora e assume o desafio de dar maior participação e espaço aos chamados “sujeitos emergentes” (jovens, migrantes, mulheres …) como protagonistas teológicos e criadores de uma forma de fazer teologia que responde às exigências da própria comunidade, em sintonia com a “grande comunidade” eclesial, presente nas outras igrejas locais. É urgente encontrar e dialogar com outras teologias emergentes, particularmente com propostas teológicas na perspectiva feminina, cujas ênfases temáticas e metodologias utilizadas enriquecerão grandemente as intuições fundadoras da teologia ameríndia.

A este respeito, é urgente acolher o apelo do Papa Francisco para “expandir os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103), de tal forma que o “gênio feminino” se expresse mesmo “onde são tomadas decisões importantes “(EG 104), como já ocorre no nível social. De fato, “a grandeza das mulheres implica todos os direitos que emanam da sua inalienável dignidade humana, mas também do seu gênio feminino, indispensável para a sociedade” (AL 173). Portanto, nas suas palavras, é urgente elaborar “uma teologia profunda da mulher”: “Temo a solução do” machismo com saias “, porque as mulheres têm uma estrutura diferente do homem […]. As mulheres estão fazendo perguntas profundas que devemos enfrentar “(SPADARO, 2013, 17).

Nesse sentido, a teologia ameríndia deve continuar seu processo de dar maior protagonismo teológico às mulheres indígenas e aos jovens em seus espaços reflexivos, fiel à sua tradição cultural de reciprocidade entre homens e mulheres (chacha-warmi, em Aimará), não só concebido como uma reivindicação social, mas como uma recuperação do profundo sentido mítico-religioso de harmonia e integração de oposições socioculturais e simbólicas. Em suma, é o desafio do encontro, intercomunicação e um diálogo mais profundo entre as várias teologias emergentes.

4.3 Do nomadismo crístico-trinitário ao nomadismo cosmoteocêntrico digital: “Ele saiu sem saber aonde ele estava indo” (Hb 11,8)

Os homens e mulheres de hoje vivem momentos de profundas transformações culturais que estão mudando até mesmo uma certa maneira de perceber, conceber, interpretar e viver não apenas as relações mais “externas”, como o trabalho ou a comunicação com os outros, dentro e fora da família ou da comunidade, mas também as experiências e percepções “interiores” ou subjetivas que tocam o coração da pessoa. A propósito, essas mudanças são em grande parte devidas à “revolução” cibernética e digital que afeta e continua a afetar o mundo nas últimas décadas e que é adicionada a outras “revoluções”, como a microeletrônica, o feminista, a ecológica, a política e paradigmática, anunciadas anos antes (MIRES, 1996).

Tendo em mente a característica aberta, acolhedora, ou seja, nomádica, já mencionada, dos povos indígenas, pode-se dizer que o mundo, de alguma forma, assume uma certa itinerância da vida, expressada por uma série de transformações não apenas externas ou superficiais, mas internas e estruturais. Precisamente este último aspecto nos convida a nos perguntar sobre o sentido bíblico-teológico do tempo em que vivemos e a presença dos crentes. Em outras palavras, em que medida a reflexão bíblico-teológica em geral – e a teologia ameríndia em particular – aborda as questões relacionadas ao momento presente com uma base para acompanhar as profundas questões de homens e mulheres de hoje?

Um pressuposto importante para abordar este problema é assumir o nomadismo com todas as suas consequências, isto é, como filosofia ou perspectiva da vida, em sua valência profunda e horizonte de significado. No campo teológico ameríndio, é uma questão de refletir sobre o movimento, a tenda, o aparentemente instável, o transitório, como já está sendo tentado no campo da missiologia (ver Equipe ILAMIS, 2010 e 2011) . Esta metodologia, que é ao mesmo tempo uma atitude de vida, implica a recuperação do sentido bíblico-teológico de confiança e abandono em YHWH, em Deus Pai-Mãe, no Mistério, como o único capaz de “garantir” a permanência, estabilidade, o definitivo. Isso supõe confiança e abandono no Mistério, deixando-se levar pela Divino Ruah, pela paresia do Espírito Santo; para viver no Amor Uno-Trino, que integra os fragmentos humano-cósmico e as redes digitais de seres vivos. Em que medida “articular” uma linguagem teológica trinitária-digital em uma chave indígena? É a tarefa da teologia ameríndia em diálogo com outras expressões teológicas.

Da tradição bíblica judaico-cristã, um paradigma simbólico-nomádico pode servir de guia em tempos de grandes transformações axiais ou epocais. Esta é a figura de Abraão, que sabia obedecer a YHWH, “saiu sem saber para onde estava indo”, viveu “como estrangeiro, morando em tendas” (Hb 11,8,9), mas sempre crendo no Deus da Vida e de Deus. a promessa. É a certeza da teologia ameríndia, baseada na sabedoria milenar dos povos indígenas.

4.4 Da criação divina ao cosmos em expansão: a intervenção de Deus ainda é necessária?

Os povos indígenas sempre conceberam e viveram de acordo com a noção de um Fazedor, nem sempre Criador, no qual tudo o que existe, sejam seres vivos ou não, adquire sentido e fundamento. A partir desta experiência prática, comemorativa e simbólica, os missionários da primeira hora e os posteriores associaram e interpretaram a experiência indígena de acordo com as categorias teológicas do momento, geralmente identificando o Deus Fazedor com o Deus Criador. Atualmente, no entanto, os avanços científicos e os estudos cosmológicos parecem desafiar a teologia – não só indígena – a pensar em criar a possibilidade de um Deus nem Fazedor e muito menos Criador. Nesse sentido, a teologia, chamada a investigar inteligência ou “razão de fé” para oferecer respostas sólidas a quem a procura, está aberta “à razão e aos resultados da pesquisa científica”, através de um diálogo maduro, profundo e criativo no contexto atual. Em efeito:

O diálogo entre ciência e fé é um campo vital na Nova Evangelização. Por um lado, esse diálogo exige a abertura da razão  ao mistério que o transcende e a consciência dos limites fundamentais do conhecimento científico. Por outro lado, também é necessária uma fé aberta à razão e aos resultados da pesquisa científica ( Sínodo Nova Evangelização, 2012, proposta 54).

O diálogo começa com o encontro e a escuta, neste caso, das proposições científicas. Nesse sentido, alguns especialistas já começaram há algum tempo a abordar a questão do princípio e das origens do universo, porque, se o universo está se expandindo, pode haver razões físicas para considerar um princípio. Neste contexto, pode-se perguntar: existe espaço para Deus o criador em um universo em expansão? Se sim, quais “atributos” teria? A este respeito, o físico teórico Stephen Hawking apontou alguns anos atrás:

ainda pode-se imaginar que Deus criou o universo no momento do big bang, mas não faz sentido supor que o universo tenha sido criado antes do big bang. Um universo em expansão não exclui a existência de um criador, mas estabelece limites sobre quando poderia ter realizado sua missão! (HAWKING, 1988, 49)

Anos mais tarde, o mesmo autor irá apontar: “se o universo é realmente completamente autocontido, se não possui fronteira ou borda, não será criado ou destruído. Simplesmente seria. Qual lugar haveria, então, para um Criador? “(HAWKING, 2007, 108). Mais tarde, o mesmo autor, desde o filosófico-teológico, pergunta não apenas o como, mas também o motivo de tal comportamento do universo. Ele responde postulando um modelo do universo que se cria a si próprio, ou seja, a chamada Teoria M, segundo a qual “nosso universo não é o único, mas muitos outros universos foram criados a partir do nada. Sua criação, no entanto, não exige a intervenção de nenhum Deus ou Sobrenatural, mas a multiplicação de universos surge naturalmente da lei física “(HAWKING-MLODINOW, 2010, 15-16).

Embora a posição de Hawking se baseie em um modelo cosmológico teórico, sem apoio empírico suficiente, não deixa de questionar questões fundamentais para a filosofia e a teologia (SOLER, 2008). De fato, pode-se pensar que é motivo de preocupação para outras teologias, não exatamente indígenas; no entanto, uma vez que a teologia ameríndia é chamada a abordar interpelações científicas, de alguma forma deve enfrentar e responder de acordo com suas fontes e linguagens específicas. Em qualquer caso, a teologia índia-cristã não deixa de ser cosmocêntrica trinitária.

4.5 Da comunicação narrativa à pluralidade de linguagens transdisciplinares: “tudo está conectado” (LS 16, passim)

Os/as indígenas são capazes de aprender e incorporar outras lógicas mentais, outros paradigmas de coração e vida, devido ao contato com outros povos, sejam indígenas ou não, sem com isso necessariamente perder a identidade. Pelo contrário, os intercâmbios bem vividos envolvem aprendizagem e riquezas, a capacidade de viver com outros povos, tendo em mente suas próprias linguagens. Nesta situação, a eminentemente narrativa, a teologia ameríndia é capaz de abrir-se a outras linguagens teológicas, a fim de continuar a aprender com seus princípios, estilos, linguagens e epistemologias. De fato, a teologia ameríndia, na escuta e troca com outras disciplinas humanas, sociais ou difíceis, está emergindo como uma teologia transdisciplinar, que dialoga com outras abordagens e enfoques teológicos. Em suma, presume-se em todas as áreas da vida indiana o princípio da reciprocidade, relacionalidade e conectividade, recuperado pela ciência e pelo Magistério do Papa Francisco, segundo a qual “tudo está conectado” (LS 16.91.117.138 .240), “tudo está relacionado” (LS 70.120.142) ou mesmo “intimamente relacionado” (LS 137.213).

Desde a teologia, o fundamento do pluralismo teológico em perspectivas transdisciplinares é o símbolo ou Mistério Trinitário-Crístico, que adquire ênfase e nuances próprias de categorias indígenas: um cristocentrismo trinitário e, ao mesmo tempo, um teocentrismo crístico numa lógica de permanente interação e inter-relação das concepções indígenas do equilíbrio cósmico-comunitário-família-pessoal da boa vida. Da mesma forma, questões teológicas relacionadas ao cosmos ou à criação, a revelação, o problema do mal, a noção de tempo, os sacramentos como a Eucaristia, são enriquecidos desde sensibilidades indígenas integradoras e simbólicas.

Roberto Tomichá Charupá. Instituto de Misionología, Cochabamba (Bolívia). Original em espanhol.

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