Sumário
Introdução
1 Autocompreensão da fé cristã
1.1 A fé cristã como caminho
1.2 A fé cristã como testemunho
1.3 A fé cristã como modo de vida
2 Práxis social cristã
2.1 Uma característica essencial, não opcional
2.2 Uma práxis individual e coletiva
2.3 Uma práxis transformadora
2.4 Dimensões da práxis cristã
3 A práxis social cristã na história e na atualidade
3.1 A práxis cristã como programa de ação
3.2 Movimentos históricos inspirados na práxis cristã
3.3 O magistério social inspirador do papa Francisco
Conclusão
4 Referências bibliográficas
Introdução
O propósito deste verbete é elucidar as relações entre fé cristã e prática social. Trata-se, por um lado, de mostrar a autocompreensão da fé cristã enquanto histórica e profética, cuja consistência se verifica através da prática de seus seguidores. Por outro lado, coloca-se a questão: o que se entende por práxis social cristã? Como essa práxis social se realizou nos caminhos da história, na busca de concretizar sua aspiração de ser uma práxis transformadora? Como se articulam a fé cristã e a práxis social?
O texto bíblico que nos pode acompanhar nesta reflexão é o do apóstolo S. Tiago em sua carta às primeiras comunidades cristãs, questionando uma fé sem obras, que, segundo o apóstolo, é morta em si mesma:
Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé e não tiver obras? Porventura essa fé pode salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e tiverem falta de mantimento cotidiano e algum de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos’; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito há nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma. Mas dirá alguém: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (Tg 2, 14-18).
1 Autocompreensão da fé cristã
1.1 A fé cristã como caminho
Em suas raízes, a fé cristã não é, em primeiro lugar, um culto ou rito, ou um conjunto de verdades, mas um caminho, uma fé voltada para uma práxis de vida. Texto emblemático para o discipulado cristão é o da cura do cego Bartimeu, que pede a Jesus que o faça ver. Jesus lhe disse: “Vai, a tua fé te salvou”. A resposta do cego, curado de sua cegueira – de falta de fé – foi o seguimento de Jesus: “No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho” (Mc 10,52). A fé cristã é um caminho que conduz à vida, que leva à salvação. Isso a torna uma boa notícia para o homem todo e todos os homens, pois ela é o cumprimento de uma promessa de salvação, feita por Deus a seu povo, que ele acompanhou como pedagogo até a realização do prometido pela chegada do “Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11).
1.2 A fé cristã como testemunho
As primeiras comunidades cristãs se reuniam para dar testemunho do ressuscitado, para celebrar a ceia do Senhor, memorial de sua paixão. “Eles eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2,42). A comunhão fraterna incluía o cuidado com as viúvas e com os pobres. Repartiam os bens entre todos, “conforme a necessidade de cada um” (At 2,45). As Escrituras Sagradas eram importantes para eles, mas eles não se caracterizavam como uma “religião do livro” (como se considera, por exemplo, o Islão), mas do testemunho vivo dos apóstolos. Segundo atesta o livro dos Atos, Jesus envia os seus como suas testemunhas: “mas recebereis o poder do Espírito Santo que virá sobre vós para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra” (At 1,8).
Pedro repete essa convicção em sua segunda carta, considerada seu testamento pastoral: “pois não foi seguindo fábulas habilmente inventadas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas sim por termos sido testemunhas oculares de sua grandeza” (2Pd 1,16). A confirmação do testemunho é a entrega da própria vida, o martírio como testemunho definitivo na vida do discípulo.
1.3 A fé cristã como modo de vida
A fé cristã não só anuncia o Reino de Deus, mas propõe o Reinado de Deus no mundo, o que requer conversão e adesão das pessoas ao projeto de Deus, traduzido em obras virtuosas. As obras revelam a autenticidade da fé, não a justificam. A fé cristã se inspira no modo de ser e agir de Jesus, em sua vida, seus gestos, suas ações e pregações. Jesus tinha como grande missão a vida plena das pessoas, sobretudo dos pequenos, dos excluídos e marginalizados da sociedade. Sua pregação se centralizava no anúncio do Reino de Deus e sua justiça. Seus gestos mais frequentes eram o ensino e o serviço aos doentes, que ele tocava e pelos quais ele se deixava tocar. Assim, o evangelista Lucas relata que “todos os que tinham doentes, com diversas enfermidades, os levavam a Jesus. E ele impunha as mãos sobre cada um deles e os curava” (Lc 4,40).
Jesus era movido por sentimentos de compaixão pelo povo: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas que não têm pastor. E começou então a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34). Percebia suas necessidades não só materiais mas também espirituais. Não só lhes deu um ensino, mas também pão material.
Jesus resumiu o modo de vida de seus seguidores na prática do amor fraterno, o “mandamento novo”: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). O amor se traduz no dom da própria vida, não só no martírio, mas no serviço quotidiano, inspirado na fé.
Essa compreensão da fé cristã como caminho, testemunho e modo de vida se manteve, com acentuações diversas ao longo da história. A vida de Jesus continua sendo a grande norma de vida dos cristãos. O Catecismo da Igreja Católica, expressão atualizada dessa fé, formula assim esse seguimento:
Incorporados a Cristo pelo Batismo, os cristãos estão ‘mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus’ (Rm 6,11), participando assim da vida do Ressuscitado. Seguindo a Cristo e em união com ele, podem “tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e andar no amor” (Ef 5,1-2), conformando seus pensamentos, palavras e ações aos “sentimentos de Cristo Jesus” (Fil 2,5) e seguindo seus exemplos (CIC § 1.694).
2 Práxis social cristã
2.1 Uma característica essencial, não opcional
A fé cristã não pode prescindir, de modo algum, do compromisso social, algo intrínseco ao modo de ser cristão. É algo professado e vivido ao longo da história do cristianismo. O Concílio Vaticano II buscou atualizar a fé cristã para os nossos tempos. Essa fé leva os cristãos a fazer suas as alegrias e as angústias da humanidade de nosso tempo, como dimensão essencial de sua mensagem de salvação:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com efeito, a sua comunidade se constitui de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história (GS n.1).
Assim a fé cristã “[…] torna-se luz para iluminar as relações sociais” (GS n.40).
O papa Francisco reafirma a incidência social da fé cristã como característica imprescindível:
O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade (EG n.177).
A fé cristã tem uma dimensão pessoal, eclesial e histórica, que lhe é intrínseca. A própria fé cristã, pela sua natureza testemunhal, gera uma práxis transformadora. Tem impacto na vida social e exerce influência nas estruturas que dão forma à sociedade. Os cristãos são incentivados, por sua fé, a praticar a caridade social, não só através de ações e instituições de serviço ao próximo, sobretudo aos mais necessitados, mas através de pessoas que exercem uma função política e sociotransformadora.
A encíclica Octogesima Adveniens, de Paulo VI, afirma que a política é uma forma exigente de viver o compromisso cristão: “A política é uma maneira exigente, se bem que não seja a única, de viver o compromisso cristão, a serviço dos outros” (OA n.46). Também poderíamos formular assim essa afirmação: “A política é forma sublime de exercer a caridade”.
2.2 Uma práxis individual e coletiva
A práxis social cristã, para ser eficaz, será simultaneamente individual e coletiva. A dimensão individual, expressa em uma opção de vida, se traduz em ações e hábitos bons. Em linguagem tradicional, são virtudes ou hábitos virtuosos, “disposições habituais e firmes de fazer o bem” (cf. CIC 1883), e que tem valência social. Trata-se de virtudes humanas e teologais. Como virtudes cardeais temos a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Virtudes teologais são a fé, a esperança e a caridade, esta última chamada por Paulo de “vínculo da perfeição” (Cl 3,14) e “a maior entre todas” as virtudes (1Cor 13,13). Esses hábitos nascem e se fortalecem no contexto familiar e comunitário e dão uma feição cristã ao exercício da profissão e da vida social de cada um. Um profissional cristão usará de prudência e de fortaleza para pôr em prática ações que modifiquem situações injustas. Uma pessoa que pratica a justiça e a verdade suscita esperança de transformação. Disso falou o papa Francisco, em sua homilia em Villavicenzio, Colômbia, convidando à reconciliação e à rejeição da vingança: “Basta uma pessoa boa para que haja esperança. E cada um de nós pode ser esta pessoa! Isto não significa ignorar ou dissimular as diferenças e os conflitos. Não é legitimar as injustiças pessoais ou estruturais” (papa Francisco, 8 set 2017).
A práxis cristã individual tende a se difundir, a se coletivizar, e articulada com outros pode desencadear mudanças. Ela pode desencadear ações transformadoras realizadas em coletivos, que atuam no campo da economia, da política ou da cultura. Serão grupos de cidadãos, em movimentos organizados, inspirados nos valores da justiça e da solidariedade, e que privilegiem o diálogo como forma de busca do consenso. Daí pode nascer um novo ordenamento jurídico, mais justo e mais humano. Leis que traduzam aspirações de minorias e combatam a discriminação. No campo político, grupos e movimentos de um povo organizado podem construir um novo pacto social, mais democrático e participativo. Falando do diálogo social como contribuição para a paz, a Evangelii Gaudium formula assim esse processo de práxis social realizada pelo povo com sua cultura e não por elites ou minorias iluminadas:
O autor principal, o sujeito histórico deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fração, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projeto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento coletivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG n.239).
2.3 Uma práxis transformadora
Para ser transformadora, a ação deve ter caráter de uma verdadeira práxis, isto é, uma forma de ação que liga a teoria com a prática, de modo a se tornarem interdependentes. Teoria e prática questionam-se e se constroem reciprocamente. A teoria é um momento necessário da práxis. Na práxis, a teoria se torna realidade transformadora. A práxis se distingue de um modo de agir puramente repetitivo. A práxis é uma ação refletida e que faz refletir. O questionamento orienta à busca de coerência com os valores cristãos, como o amor, a justiça e a solidariedade.
A práxis cristã tem assim um caráter ético. Pretende provocar transformações, de situações menos justas para situações mais justas. Práxis é um modo de agir crítico, reflexivo, com finalidade transformadora. A compreensão da práxis social cristã foi estimulada pelas discussões em torno da filosofia da práxis (Gramsci). Aprender a refletir, criar o hábito da reflexão, é condição para a realização de uma práxis transformadora, que liga estrategicamente conceitos ou valores com ações, articulando a teoria com a prática. A reflexão crítica é fundamental para uma práxis transformadora consistente e duradoura. Podemos dizer, em resumo, que a práxis cristã é uma ação refletida que produz significado em termos de uma transformação ideada ou planejada e eticamente desejável.
2.4 Características da práxis cristã
A práxis cristã busca levar a uma compreensão do caminho da mudança e a um compromisso com a prática desse caminho, no contexto da comunidade eclesial. Implica um compromisso com a vida plena para todos e com a prática de relações sociais humanas e humanizadoras. Desta forma, empenha-se por superar uma visão fatalista diante da vida, de situações de miséria, injustiça ou exclusão e criar horizontes de esperança, desejos de uma nova realidade. Esse modo de agir caracteriza a práxis cristã como histórica, eclesial e profética.
Em primeiro lugar, é uma práxis histórica, situada, contextualizada, e que se vale da mediação das ciências sociais e da filosofia para alcançar um melhor conhecimento da realidade (mediação socioanalítica e hermenêutica). Toma consciência da mudança de época que vivemos, dos conflitos e das transformações do contexto de vida. O cristão se assume como sujeito dessa história, e como membro de um povo, com laços familiares e pertenças a grupos, a movimentos ou a agremiações partidárias. Se expressa na participação política, consciente e criativa.
Segundo, é uma práxis eclesial, adulta e corresponsável. Compromete-se com uma Igreja aberta ao mundo e ao diálogo social, ecumênico e inter-religioso. Esse diálogo tem duas mãos: no sentido de que a própria Igreja dê conta que precisa mudar; e no sentido da responsabilidade da Igreja (como povo de Deus) influenciar essas mudanças na linha de uma ética cristã. É importante que, hierarquia e povo, tenham consciência do papel da Igreja, de suas potencialidades e limites, da justa autonomia das realidades terrestres, mas sobretudo do papel do povo cristão na promoção da justiça, do bem comum e da defesa dos direitos dos mais fracos e excluídos.
Em terceiro lugar, a práxis cristã é profética, no duplo sentido de denúncia e de anúncio. Denúncia de situações históricas, estruturas mentais, hábitos e leis que agridem a dignidade e a integridade da vida humana, em todas as suas fases, situações ou leis nocivas ao bem comum ou que distorcem a função social da propriedade. Implica na denúncia de privilégios, da corrupção e da apatia política. A defesa dos mais fracos exige lucidez em perceber e coragem para denunciar situações, decisões e propostas prejudiciais aos pobres, às minorias, a setores ou grupos fragilizados. Requer também o apoio a iniciativas que promovam o bem comum e a sustentabilidade ambiental. O profetismo da Igreja ganha força através de gestos concretos que realizem no âmbito interno da Igreja aquilo que ela prega para os outros, por exemplo, pela observância dos direitos dos trabalhadores e o pagamento dos impostos e tributos devidos.
3 A práxis social cristã na história e na atualidade
3.1 A práxis social como um programa de ação
A reflexão e práxis social da Igreja ao longo dos últimos cento e cinquenta anos ganhou expressão em um corpo doutrinário próprio, original e sempre aberto – a chamada Doutrina Social da Igreja ou pensamento social cristão. Trata-se de um ensinamento evolutivo, respondendo a desafios históricos e incorporando reflexões e experiências, recebidas e formuladas em uma série de Encíclicas Sociais, textos do Concílio e outros documentos oficiais. A série de onze encíclicas sociais foi inaugurada pela Rerum Novarum, de Leão XIII (1891), sobre a Condição dos Operários. O Magistério da Igreja abraçou a missão de refletir sobre as grandes questões nos vários momentos da história, sempre à luz do Evangelho de Cristo, do ensinamento dos Santos Padres e da filosofia cristã.
As mais recentes são as encíclicas de Bento XVI Caritas in Veritate, “sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade” (2009), e a Laudato Sì, do papa Francisco, “sobre o Cuidado da Casa Comum” (2015), que analisa a crise ecológica intimamente conectada com a crise ambiental. Inserido nessa corrente de pensamento e conferindo autoridade máxima a esse ensinamento, temos o documento do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes, “sobre a Igreja no Mundo de Hoje” (1965). Foram definidos seis grandes princípios e quatro valores básicos da vida social. Eis os princípios: a dignidade da pessoa humana; o bem comum; a destinação universal dos bens; a subsidiariedade; a participação e a solidariedade. E os quatro valores: a verdade, a liberdade, a justiça e o amor.
O ensino social cristão nasce e se enriquece nas comunidades cristãs, desde os tempos dos apóstolos. Face à diversidade das situações, como escreve o papa Paulo VI na OA, o magistério não quer “propor uma solução que tenha valor universal”. Na verdade, “é às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria de seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras do Evangelho; a elas cumpre haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação na doutrina social da Igreja, como ela foi sendo elaborada no decurso da história”. A essas comunidades cabe discernir “as opções e os compromissos que convém tomar, para as mudanças que se apresentam como necessárias, com urgência, em não poucos casos”, em diálogo com a hierarquia, “com os outros irmãos cristãos e com todas as pessoas de boa vontade” (OA n. 4).
No contexto atual, de uma sociedade pluralista e pós-moderna, é importante que as comunidades cristãs dialoguem com os diversos grupos e movimentos presentes na sociedade. Levando com clareza sua proposta em relação aos valores fundamentais da vida em comum, as comunidades cristãs estão dispostas a buscar, de forma conjunta, a proposta que melhor sirva ao interesse coletivo, como propõe a Evangelii Gaudium:
No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas (n.241).
3.2 Movimentos históricos inspirados na práxis cristã
A práxis social da fé cristã deixou sua marca ao longo da história de muitas sociedades, nas quais ela esteve presente, atuando de formas variadas, mas sempre no sentido de concretizar valores cristãos. Desde que nada do que humano lhe é alheio, a práxis cristã, no contexto de cristandade, se concretizou em obras nas áreas de saúde (santas casas), educação (escolas e universidades) e cultura (canto sacro, belas artes, meios de comunicação). Num mundo secularizado, mesmo continuando sua ação através de instituições, sua presença tornou-se mais difusa, seja através de movimentos sociais, seja através do debate público (teologia pública).
Entre os movimentos no campo econômico e social podemos citar, por exemplo, a economia popular e solidária, centrada na pessoa, no atendimento das necessidades humanas e no cuidado com o meio ambiente, que se apresenta como uma alternativa para o capitalismo liberal, que é centrado no capital, na busca do lucro privado, na base da competição e na prática do desperdício. No surgimento do moderno movimento cooperativista, é notória a motivação religiosa de seus fundadores.
Num mundo dominado pela economia de mercado e pelo capitalismo financeiro, no qual cresce a concentração da riqueza, a competição, a desigualdade, a exclusão e o descarte da ética, propostas que buscam ativamente uma economia centrada na pessoa, num sistema de economia solidária, na busca da igualdade, da participação, da inclusão e da sustentabilidade, podem parecer como utopia, uma proposta incapaz de atender a demanda por bens e serviços de sete bilhões de habitantes do planeta. Fica aberta a questão até quando a humanidade poderá sobreviver neste sistema, que leva ao esgotamento de recursos naturais não renováveis e à degradação ambiental, numa corrida para o colapso de um sistema suicida. Cabe aqui lembrar essa advertência da Encíclica Laudato Sì, sobre nossa casa comum:
O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está acontecendo periodicamente em várias regiões (n.161).
Em apoio a muitos desses movimentos ou ações na base, a Igreja – sobretudo a partir do Vaticano II – criou pastorais específicas, de assessoria e promoção da ação social das bases. As “pastorais sociais” constituem, assim, tentativas de resposta histórica articulada, no âmbito eclesial, do compromisso social cristão nas mais variadas frentes. Com acompanhamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), contamos no Brasil com (ao menos) onze pastorais sociais nacionais, todas voltadas para a ação com grupos vulneráveis ou setores que pedem atenção especial: Pastoral da Criança, Carcerária, da Mulher Marginalizada, da Saúde, do Menor, do Povo de Rua, dos Migrantes, dos Nômades, dos Pescadores, Pastoral Operária, da Terra. Outros setores são muito próximos a essas pastorais, como a pastoral da educação, da cultura, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), a Comissão Brasileira Justiça e Paz e a Cáritas Brasileira. A própria Campanha da Fraternidade, em sua fase atual, propõe temas de caráter social, abordados anualmente em nível nacional. Em 2017, o tema foi: “Fraternidade, biomas e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” (Gn 2,15). Em 2018, refletiu-se sobre “Fraternidade e superação da violência”, com o lema: “Vós sois todos irmãos” (cf. Mt 23,8).
3.3 O magistério social inspirador do papa Francisco
A práxis social cristã recebeu ultimamente uma forte inspiração no magistério do papa Francisco. Os grandes temas do seu magistério têm uma profunda orientação social: uma “Igreja em saída”, que sai de sua autorreferencialidade e vai às periferias geográficas, sociais e existenciais; a opção pelos pobres e marginalizados por uma cultura da indiferença e do descarte; a acolhida de migrantes e refugiados, que ninguém quer; o cuidado da casa comum, com a aposta em uma ecologia integral; a busca da paz, fruto do perdão, da reconciliação e da criação de condições dignas de vida para todos. Para sair de si, a Igreja deve assumir riscos: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, do que uma Igreja enferma pela oclusão e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG n.49).
A Igreja dos sonhos do papa é uma igreja pobre e para os pobres. Justificando a escolha do nome de Francisco – lembrando o pobre de Assis, Francisco, – declarou Jorge Mario Bergoglio: “Ah, como gostaria de uma Igreja pobre e pelos pobres!” (RV, 16 mar 2013). Claramente, a crítica mais forte do papa é contra uma economia que serve ao deus dinheiro e que mata: “Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra” (papa Francisco aos Movimentos Sociais em S. Cruz de la Sierra, Bolívia, 10 jul 2015). A mudança das estruturas do atual sistema econômico é condição fundamental para a solução dos grandes problemas sociais do nosso mundo:
Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda política econômica (…) (EG n.202-203)
A superação da desigualdade, da pobreza e da exploração, assim como a inclusão social dos pobres, só serão possíveis se for resolvida, simultaneamente, a questão ambiental. Na visão de Francisco, não existem duas crises separadas, mas uma única e complexa crise socioambiental:
É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza (LS n.139)
Conclusão
O tema fé cristã e práxis social nos reporta ao núcleo central do próprio cristianismo: o mistério da encarnação. Desde que o Filho de Deus se tornou homem, nada do que é humano é alheio à fé cristã. Mais que isso: o próprio Senhor quer ser identificado na pessoa do menor dos seus irmãos, como lemos no texto de Mateus sobre o julgamento das nações: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40). Esse texto não é senão a tradução histórica do duplo mandamento do amor. Para o cristão, a práxis social é parte essencial no exercício de sua identidade cristã, na vivência do amor-caridade. Sem a práxis social, a fé é morta, como lembramos no início deste verbete: “Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2.26).
Matias Martinho Lenz, SJ . Pontifícia Universidade Católica de Pelotas, Brasil. Texto original português.
4 Referências
Encíclicas sociais em ordem cronológica, com sigla e ano de publicação:
LEÃO XIII. Rerum Novarum (RN). Sobre a condição dos operários, 1891.
PIO XI. Quadragesimo Anno (QA). Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica, 1931.
JOÃO XXIII. Mater et Magistra (MM). Sobre a evolução contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, 1961.
______. Pacem in Terris (PT). Sobre a paz cristã, 1963.
PAULO VI. Populorum Progressio (PP). Sobre o desenvolvimento dos povos, 1967.
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens (LE). Sobre o trabalho humano. No 90º Aniversário da Rerum Novarum, 1981.
______. Sollicitudo Rei Socialis (SRS). Solicitude social da Igreja. No 20º Aniversário da Populorum Progressio, 1987.
______. Centesimus Annus (CA). No Centenário da Rerum Novarum, 1991.
BENTO XVI. Caritas in Veritate (CV). Sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, 2009.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium (EG). A Alegria do Evangelho. Sobre o Anúncio do Evangelho no mundo atual, 2013.
______. Laudato Si’ (LS) – Louvado Sejas. Sobre o cuidado da casa comum, 2015.
Outros documentos sociais oficiais da Igreja Católica
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS). Sobre a Igreja no Mundo de Hoje, 1965.
______. Decreto Apostolicam Actuositatem (AA). Sobre o Apostolado dos Leigos, 1965.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Documento de Puebla (DP), 1979.
______. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Documento de Aparecida (DA), 1979.
PAULO VI. Octogesima Adveniens (OA). Carta Apostólica comemorativa dos 80 anos da Encíclica Rerum Novarum, 1971.
Textos e livros de referência
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FRANÇA FILHO, G. C.; LAVILLE, J.-L. Economia Solidária. Uma Abordagem Internacional. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2004.
MORAES, C. B. Cristianismo e Libertação. A Fé Cristã e a Práxis Histórica na Teologia de João Batista Libânio. Dissertação de Mestrado em Teologia. Belo Horizonte: FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2014. Disponível em: https://www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/171014-JVvyvVdPh2p9z.pdf Acesso em: 4 nov 2018.
PIKETTY, T. A Economia da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
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SOUZA, A. R.; CUNHA, G. C.; DAKUZAKU, R. Y. (Orgs) Uma outra Economia é Possível. Paul Singer e a Economia Solidária. São Paulo: Contexto, 2003.
ZACARIAS, R.; MANZINI, R. (Orgs.) Magistério e Doutrina Social da Igreja. Continuidade e desafios. São Paulo: Paulus, 2016.