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Dionísio Pseudo Areopagita (O corpus dionysiacum)

Sumário

1 Sobre o Corpus dionysiacum

2 Delimitação histórica

3 Obras que compõem o Corpus

a. A Hierarquia celeste

b. A Hierarquia eclesiástica

c. Sobre os nomes divinos

d. A Teologia mística

e. Epístolas

4 Obras de referência para estudos sobre o autor

a. Comentários e traduções medievais

b. Textos e traduções do Corpus

c, Alguns estudos

1 Sobre a autoria do Corpus dionysiacum

O Corpus Dionysiacum é um dos casos mais importantes e desafiantes de pseudografia da história do pensamento ocidental. As referências textuais, consagradas por uma abrangente e influente lista de comentadores ao longo dos séculos, do Ocidente ao Oriente, atribuindo quatro tratados e dez cartas[1] a Dionísio, autodenominado discípulo de Paulo de Tarso (At 17,34) e de um mestre chamado Ieroteo, não somente serviu de estruturação para uma complexa visão de mundo cristã que inclui desde aspectos mistagógicos, ontológicos e cosmológicos, até reflexões radicais sobre a linguagem que fundamentaram e culminaram, em grande medida, no que chamamos hoje de mística.

Nesse sentido, falar de Dionísio Pseudo Areopagita, Pseudo Dionísio Areopagita ou Dionísio Areopagita, é referir-se a um Corpus textual que permanece, ainda hoje, estimulando investigações, graças à sua natureza fronteiriça que congrega aspectos filosóficos gregos, em particular neoplatônicos, e cristãos, tanto no que poderíamos nomear de ortodoxos, como, também, heterodoxos.

Diversas tentativas de identificação da autoria do Corpus foram propostas ao longo dos séculos. Dentre as mais importantes podemos citar: Severo de Antioquia (STIGLMAYR, 1928), Basílio de Cesareia (PERA, 1936), Amônio Sacas (ELORDUY, 1944), Pedro, o ibérico (HONIGMANN, 1954; e ESBROECK, 1993) e, duas mais recentemente, Damásio (MAZZUCCHI, 2006), interpretação criticada por E.S. Mainoldi (2018) que, por sua vez, sustenta ser o Corpus um “mosaico” da escola de Justiniano sob responsabilidade de Egia de Atenas em torno de 529 d.C.

Embora todas as propostas tenham mérito de reunir argumentos interessantes, nenhuma parece ter alcançado, até o presente momento, apoio suficiente para que se possa tomar uma posição definitiva em relação à autoria do Corpus.

2 Delimitação histórica

Com relação ao período histórico no qual se pode situar, com segurança, sua origem escriturária, não resta dúvida de que ele se localiza entre finais do século V e primeira metade do século VI d.C. Os motivos que levam a esta delimitação, presentes em consagrados estudos, são de várias ordens. Entre outras podemos citar, além da completa ausência de referências ao Corpus em autores anteriores ao século V, a dependência direta, presente no capítulo IV de Sobre os nomes divinos, para com a obra De malorum subsistentia, do filósofo neoplatônico Proclo (412-485 d.C); aspectos terminológicos como o uso de conceitos tais como hénosis, tríadas, thearquia, são marcas próprias do contexto neoplatônico do século V; também referências teológicas importantes que aparecem nas discussões entre origenistas e monofisistas, recorrentes no período imperial de Justiniano, e que registra a aparição pública do Corpus como autoridade apostólica em 532, por ocasião do concílio de Constantinopla, bem como a dependência para com o Credo na Hierarquia eclesiástica (425 d.C) instituído em 476 d.C, são outros dados importantes que permitem situar o Corpus no período acima citado.

3 Obras que compõem o Corpus dionysiacum

Atualmente temos as seguintes obras:

a. Hierarquia celeste (Perì tês ouranías hierarkhías)

b. Hierarquia eclesiástica (Perì tês ekklesiastikês hierarkhías)

c. Sobre os nomes divinos (Perì theíon onomáton)

d. A Teologia mística (Perì mustikês theologías)

e. Epistolas

Esta ordem, segue a proposta de Piero Scazzoso, no estudo introdutório à tradução italiana, que a justifica pelo fato da Hierarquia celeste ser anterior à Eclesiástica e a Teologia mística posterior aos Nomes divinos, mantendo-se, no entanto, a incógnita sobre a precedência das duas hierarquias às demais obras (SCAZZOSO, 2009, p. 75).

Além das obras acima citadas, outras aparecem, sem, no entanto, termos qualquer informação sobre as mesmas o que, do ponto de vista interno da pseudografia, permite a formulação da hipótese de serem fictícias. São elas: Os sensíveis e os inteligíveis, os Esboços Teológicos, a Teologia Simbólica, os Hinos divinos, as Propriedades e ordens angélicas, Do justo e da Teodiceia e A alma.

Vejamos, de modo sintético, os temas centrais abordados em cada obra considerada como autêntica de Dionísio.

a. A Hierarquia celeste

Partindo do pressuposto de que o pensamento dionisiano tem como principal foco uma dinâmica de divinização e compreensão de Deus que passa, necessariamente, por um movimento de manifestação (theophania), do próprio Deus, seja pelas escrituras, seja pela natureza (phýsis), torna-se necessário, portanto, uma estrutura hierárquica capaz de demonstrar, em moldes neoplatônicos, como do uno provém (próodos) o múltiplo e como do múltiplo é possível regressar (epistrophé) ao uno. Para tanto, Dionísio expressa duas “ordens santas”, a saber: celeste (anjos) e eclesiástica (humana).

É importante observar que as hierarquias não devem ser tomadas em aspectos puramente formais ou sociais, mas, como afirma o próprio Dionísio, como uma ordem santa (táksin ierá), um conhecimento (epistéme) e em uma atividade (enérgeia) de assimilação e união a Deus (aphomoíosís te kaì hénosis).

Seguindo o modelo neoplatônico, em particular de Proclo, das tríadas inteligíveis, Dionísio estabelece os seguintes graus hierárquicos referentes ao mundo inteligível (kósmos noetós):

  1. Serafins
  2. Querubins  ……………   1ª Tríada
  3. Tronos
  4. Dominações
  5. Virtudes …………………2ª Tríada
  6. Poderes
  7. Principados
  8. Arcanjos …………………3ª Tríada
  9. Anjos

Todas as três tríadas têm as funções de serem transmissoras das efusões divinas, de acordo com suas participações e características próprias definidas, por um lado, pela estrutura triádica procleana, baseada na distinção entre inteligível (noeton) e intelectivo (noerós) e, por outro, pelas descrições e atribuições da angeologia presente no texto bíblico. Em ambos os casos, trata-se do processo de purificação, iluminação e união que envolve os aspectos mistagógicos e anagógicos em sua escala ascensional ao Princípio unificador e fonte de toda luz inteligível (phos noetón).

b. A Hierarquia eclesiástica

Se na Hierarquia celeste temos expressado o processo de manifestação da luz divina em nível superior ou inteligível das ordens angélicas, na Hierarquia eclesiástica temos a expansão do movimento geracional de assimilação e participação pelas tríadas hierárquicas humanas. Estruturada em sete tópicos, sendo o primeiro introdutório à temática e os seis demais focados nos sacramentos do batismo, entendido como nascimento divino (Theogenesía) e iluminação; o segundo aborda o tema da comunhão (sýnasis); o terceiro trata da consagração do Myron; o quarto tópico analisa as ordenações sacerdotais, seguidas das ordenações monacais e, finalmente, os ritos funerários cristãos.

Mantendo a estrutura triádica temos, além de uma subdivisão temática dos seis sacramentos, uma subdivisão em três tópicos que transpassam todas as análises sacramentais, são elas: mistagogia, mistério (mystérion photísmatos) e contemplação (Theoria). Do ponto de vista hierárquico temos duas tríadas marcada por funções específicas, são elas:

  1. Bispos
  2. Presbíteros  …………. 1ª Tríada – iniciadores
  3. Diáconos

Respectivamente correspondente à tríada das operações: contemplação (perfeição), iluminação e purificação. Vale ressaltar que, sem desconsiderar os níveis hierárquicos (o menor não pode superar o maior), essas atividades se relacionam entre si, ou seja, a ordem dos Bispos também ilumina e purifica e a ordem dos Sacerdotes, além de iluminar, também purifica.

Em uma segunda tríada, presente no capítulo VI, dedicado à consagração monástica temos, além dos monges e do povo, a seguinte estrutura triádica:

  1. Catecúmenos
  2. Energúmenos …………. 2ª Tríada – iniciantes
  3. Penitentes

De maneira que o modelo processional da luz divina (photodosía) que se divide, proporcionalmente, da estrutura celeste até as bases iniciantes, revela uma estrutura iniciática participativa e dinâmica em que cada ordem colabora no processo de assimilação, pela compreensão dos símbolos e ritos, com o raio (aktís) que transcende toda imagem e discurso. Semelhança na dessemelhança, unidade na diferença, participação nos mistérios sagrados sob forma de cooperação (sunérgeia) que faz da estrutura hierárquica neoplatônica dionisiana expressão de beleza e unidade.

c. Sobre os nomes divinos

O Perì theíon onomáton é uma das obras mais importantes quando se estuda as relações entre a linguagem (os nomes) e Deus (anônimo). Composto por treze capítulos, nele se encontra o aspecto positivo (catafático) que, junto com o negativo (apofático), comporá as reflexões sobre o estatuto predicativo dos nomes, seus sentidos simbólicos e anagógicos, bem como teofânicos, isto é, como processões divinas (próodoi).

Seguindo de perto as consequências oriundas das análises procleanas de um dos diálogos mais importantes de Platão, o Parmênides, em Sobre os nomes divinos, temos evidenciada a fundamental questão entre união (hénosis) e distinção (diákrisis) divina. Deus, como transcendente a todo ser, diferencia-se de tudo o que é permanecendo em sua natureza anônima, sem, no entanto, excluir a plurivocidade que o caracteriza como causa de toda multiplicidade. Essa discussão e suas implicações, compõem os dois primeiros capítulos da obra (I e II).

Nos capítulos III e IV, Dionísio analisa o atributo de Bem (agathonumían) quando aplicado a Deus em seus aspectos de causalidade e de fim (aitía kaì télos). Dois outros atributos, derivados da ideia de causa, são associados ao Bem, são eles: Luz (phos) e Beleza (Kállos). Em perfeita harmonia com o pensamento neoplatônico, o cristianismo dionisiano concebe Deus a partir da imagem visível do sol que ilumina todas as coisas e, também, atrai para si toda a vida. Como parte da dinâmica uno-múltiplo-uno o Amor (éros) figura, também, como atributo que expressa o poder geracional e conversor divino sob forma do binômio Amor e Amado.

No capítulo V, Dionísio reflete sobre o atributo de Ser (óntos) quando aplicado a Deus adentrando em uma reflexão conceitual, envolvendo uma importante tríada procleana (ser, vida e intelecto), que Dionísio, ao contrário da visão processional de Proclo, que implica na independência de cada nível dessa tríada, busca unificar os três aspectos como próprios de um mesmo Ser/Deus. Analisado o atributo de ser, Dionísio passa, no capítulo VI, a refletir sobre o atributo de Vida eterna (Zn tèn aiónion).

Vida divina como princípio de toda vida, inteligível (anjos) e sensível (mundo), como um movimento contínuo que se mantém como excesso de bondade, superabundância de amor e causa de toda geração.

No capítulo VII, temos analisado o último atributo dessa tríada, ou seja, intelecto (noûs). Esse atributo vem, biblicamente, associado à Sabedoria (sophía) irracional (moría) divina, bem como à Verdade (alétheia) e à Fé (pístis). O Intelecto, como causa de toda racionalidade (lógos), transcende toda razão e discurso, permanecendo, em si, inefável e inacessível, ainda que conhecedor de tudo.

O capítulo VIII apresenta um grupo de atributos utilizados pelos teólogos (oi theológoi) para nomear Deus, são eles: Potência (dúnamis), Justiça (Dikaiosúne), Salvação (sotería) e Redenção (apolútrosis). Todos esses atributos seguem a perfeita conexão com a ideia de Deus tomado como Ser e princípio de toda criação. Nesse sentido, se conclui que Deus é celebrado como Potência suprasubstancial; Justiça, enquanto perfeita ordenação e distribuição de dons e méritos; Salvação e Redenção associam-se e correspondem ao poder divino de redimir os seres da desordem e do mal.

Além desses atributos, os teólogos, ou sagrados autores, também louvam a Deus como Grande (mégas), Pequeno (mikrós), Mesmo (autós), Outro (héteros), Semelhante (hómoios), Dessemelhante (anómoios), Repouso (stásis), Movimento (kínesis), Omnipotente (pantrokrátor), Antigos dos dias (palaiòs hemerôn). Estes atributos são discutidos nos capítulos IX e X, que revelam, mais uma vez, elementos explícitos de interlocução entre as Escrituras e a tradição de comentadores neoplatônicos do Parmênides de Platão. Em geral, trata-se do movimento dialético entre unidade e multiplicidade que se expressa no nível da linguagem humana.

O capítulo XI pode ser tomado como o início de uma síntese, sob o nome divino de Paz (eiréne), dos atributos anteriormente tratados como ser, vida e poder. A Paz divina vem pensada como Potência (dúnamis) unificadora de todo universo. Estruturalmente temos expressado, no texto dionisiano, o movimento de processão (próodos), iniciado sob o nome de Bem, e que culmina, nos capítulos XI, XII e XIII, na conversão (epistrophé) à mesma unidade sob os atributos bíblicos de Santo dos santos, Rei dos reis, Senhor dos senhores e Deus dos deuses. O último capítulo (XIII) começa com a observação de que tratará da coisa mais importante a ser examinada: a atribuição, das Sagradas escrituras, de Perfeito e Uno. Perfeição entendida como autodeterminação, mas principalmente, enquanto limite de tudo o que é. Deus é compreendido como Perfeito por sua invariabilidade que, de certo modo, expressa seu Ser-Uno. Fundamento de toda multiplicidade, Deus permanece uno em si mesmo. Em tons neoplatônicos, Dionísio reafirma a impossibilidade da existência de algo que não participe, de algum modo, do Uno que compreende, em si, todas as coisas. Trindade, mais que luminiosa, como dirá na Teologia mística, a Thearquía transcende, de maneira unitária, todas as coisas. Uno suprasubstancial (hén hiperoúsion), causa de todo número e ordem é, portanto, divina secundidade que supera todos os nomes.

d. A Teologia mística

A Teologia mística é, provavelmente, o texto mais influente da tradição mística ocidental. Paradoxalmente é o mais breve texto do Corpus. Se, em Sobre os nomes divinos, temos a reflexão sobre o caráter simbólico dos nomes como expressão da linguagem catafática, na Teologia, o movimento é de desconstrução ou de aféreses no intuito de revelar o aspecto inominável de Deus e, também, da condição limitante e limitada da linguagem, que exige sua própria denegação como possibilidade de revelação da natureza inefável de Deus.

Profundamente marcado pelas consequências negativas da primeira hipótese do Parmênides de Platão e, também, da experiência de Moisés descrita no Êxodo (3,14), esse pequeno texto pode ser tomado como um discurso do que virá a ser, posteriormente, descrita como experiência mística. Moisés, semelhante à imagem do escultor abordada por Plotino em sua Enéada I.6 [1],9-5), é, para Dionísio, a imagem de um processo de entrega e renúncia, pela negação (tàs apairéseis), que culmina na contemplação dos mistérios sagrados da teologia (TM, 1, II, [1025C]).

O Uno superior a toda substância (epékeina tês ousias), presente no capítulo XIII dos Nomes divinos, figura na Teologia como trindade mais que substancial (Triàs huperoúsie) (TM, I, 1, 997A) e, também, como um Deus que é treva (skótos) e fim do caminho que conduz à união (hénosis) com o que está acima de tudo e de nada (pãs òn toû pánton epékeina kaì oudenós). Uma união mais que é luminosa (huperlámponta), intangível e invisível (TM, I, 1, 997B).

É importante observar que as afirmações e as negações não se contrapõem como antagonismos, mas convergem na experiência de simplicidade e pureza (TM, I,1, 1000A) de um Deus que transcende todo nome e imagem.

A Teologia inicia-se sob forma de exortação a Timóteo, destinatário do texto dionisiano, para o que o mesmo realize um exercício intenso (suntonía) que culmina em um “irresistível abandono” (TM, I, 1,[1000A]).

Nessa obra temos expressa a ideia de iniciações (mystagogíai) nos mistérios divinos. Etimologicamente mústes e agogé apontam para um processo de iniciação e de segredo. Trata-se, obviamente, de mais uma referência ao Comentário de Proclo à Teologia platônica que distingue iniciados e profanos.

Deus, em sua inefabilidade, está além de toda afirmação (thésis) e negação (aphairesis) (hupèr pãsan kaì aphaíresin kaì thésin) (MT, I,2, [1000B]) e, por essa razão, Dionísio afirma ser a teologia “imensa e mínima” (MT, II,2, [1000B]). Biblicamente, Moisés figura como arquétipo daquele que contemplou os puros raios ao ascender aos cumes santos (MT, I, 3 [1000C]).

Purificação, iluminação e contemplação como virtudes necessárias aos que buscam escalar a montanha em direção ao lugar (tópos) no qual, segundo o Êxodo 33,20-23, Deus habita. Renúncia não somente do que é sensível, mas inteligível. Por essa razão o conhecimento vem descrito como um não conhecer para além do intelecto (hupèr noûn ginóskon). Para Dionísio, é a treva autenticamente mística (MT, I, 3, [1001A]) na qual a oposição entre identidade e diferença é suplantada por uma unidade na diferença em que já não há nem o mesmo, nem o outro (oúte heautoû oúte hetérou).

A Teologia mística, diferente de outros textos focados na descrição de uma experiência pessoal, não tem caráter testemunhal, mas, embora não possa ser tomado como um tratado de mística, descreve os passos característicos da ascensão do sensível ao inteligível e deste ao Nada. Diante disto, a Teologia se confunde com uma himologia, isto é, como um louvor à beleza velada em todos os seres. Celebrar (humnêsai) a Thearquia mais que substancial de modo mais que substancial. Das altas, às médias e ínfimas coisas para, destas regressar à mais alta realidade. Processão e conversão, movimentos típicos neoplatônicos estruturam o discurso unificador da Teologia.

A radicalidade negativa da Teologia dionisiana encontra-se no seu V capítulo em que a Causa primeira é descrita como para além da alma, da inteligência, da divindade e de tudo o que é e de tudo o que não é. É a recepção mais explícita da natureza inefável de Deus a partir das consequências negativas oriundas da primeira hipótese do Parmênides de Platão bem como do Deus absconditus, caro à tradição cristã.

e. Epístolas

As dez cartas que compõem as Epistolae dionisianas podem ser lidas a partir de dois aspectos estruturais: como respostas para algumas questões presentes em Sobre os nomes divinos e na Teologia mística, mas também, segundo Ronald Hathaway (1969), como expressão de um processo anagógico de acordo com a seguinte ordem ascensional dos seus destinatários:

– Monge – Gaio (cartas I-IV)

– Diácono – Doroteu (carta V)

– Sacerdote – Sopatro (carta VI)

– Bispo – Policarpo (carta VII)

– Apóstolo e Bispo – Tito (carta IX)

– Apóstolo – João (carta X)

A carta VIII seria uma exceção, posto que está direcionada ao monge Demófilo. Sergio Mainoldi (2018), ao analisar a hipótese de Hathaway, aponta para um certo ceticismo por parte dos comentadores, já que não ficam evidenciadas, ademais de revelar uma certa funcionalidade ao colocar o seu autor em direto contato com o apóstolo João, nem a finalidade nem o tipo da ascese proposta com tal ordenação. Para Mainoldi, as cartas serviriam de “sumário” que poderia ser exemplificado do seguinte modo:

– Cartas I, II, V – Teologia mística e Sobre os nomes divinos – agnosia, hiperontologia e imparticipabilidade divina.

– Carta III – Tema da encarnação em conexão com a questão do instante (exsáiphenes) do Parmênides de Platão.

– Carta IV – Objetivo dogmático-teológico sobre a economia da encarnação, filantropia e deificação humana.

– Carta V – Relação com temas teológicos e ontológicos presentes na Teologia mística e em Sobre os nomes divinos.

– Carta VI – Esta carta, de conteúdo bastante complexo, parece traçar algumas relações em torno de temas concretos da época, como a intolerância religiosa, e permite especulações neoplatônicas a partir de uma possível identificação de seu destinatário, Sopatro, com o filósofo Sopatro de Apameia, discípulo de Jâmblico. De todos os modos é uma carta que expressa argumentos já presentes no capítulo II de Sobre os nomes divinos.

– Carta VIII – Uma clara inclusão dos monges na ordem hierárquica eclesiástica, como símbolo de vida espiritual, como também uma reflexão sobre a eucaristia na dinâmica eclesiástica.

– Carta IX – Com reflexões de ordem simbólica e exegética, esta carta pode ser compreendida como uma alusão à obra perdida Teologia simbólica e ao capítulo I de Sobre os nomes divinos.

4 Obras de referência para estudos sobre o autor

a. Comentários e traduções medievais

Embora o Corpus figure, de forma dispersa em vários autores e autoras medievais, algumas traduções como a siríaca, de Sergio de Res’ayana (VI séc.), de Hilduíno (em 835), João Escoto Eriúgena (em 860-70), João Sarraceno, Roberto Grosseteste (em 1235), Ambrósio Travesari (1436) e Marsílio Ficino (1494), bem como os comentários de João de Citópolis (em 530), Hugo de São Vítor (em 1120-30), Alberto Magno (em 1250-60), Tomás de Aquino (em 1265-68), foram decisivos para a recepção do pensamento dionisiano.

b. Textos e traduções do Corpus

AREOPAGITA, P.D. A. Opera S.Dionysii Areopagitae. Antuerpiae: ex Officina Plantiniana  Balthasarius Moreti, 1634, 2 vol.

DIONIGI AREOPAGITA. Corpus Dionysiacum. La gerarchia celeste, La gerarchia ecclesiastica, I nomi divini, La teologia mistica, Epistolae, tr. it. di E. Turolla, Milano 2014 (La coda di paglia, 25) [ed. orig. Padova 1956]

PATROLOGIA GRAECA, v. 3–4, ed. J. P. Migne, Paris 1857–66.

ARÉOPAGITE, D. La hiérarchie céleste, introduction René Roques, étude critique Gunter Hell, traduction et notes Maurice de Gandillac, Paris: DU CERF, 1958.

PSEUDO-DENYS L’ARÉOPAGITE. Oeuvres complètes. Traduction, préface et note M. Gandillac, Paris: Aubier, 1980.

PSEUDO-DIONYSIUS. The Complete Works, tr. ingl. di C. Luibheid, P. Rorem (transl.), New York – Mahwah 1987.

CORPUS DIONYSIACUM (DN), ed. B. R. Suchla, Berlin: De Gruyter, 1990.

PSEUDO-DIONYSIUS AREOPAGITA. De divinis nominibus, ed. B. R. Suchla, in Corpus Dionysiacum I, Berlin 1990 (PTS, 33)

CORPUS DIONYSIACUM II (CH, EH, MT, Letters), eds. G. Heil and A. M. Ritter, Berlin: De Gruyter, 1991.

PSEUDO DIONÍSIO-AREOPAGITA. Teologia mística, trad. Mário Santiago de Carvalho; Medievalia, textos e estudos, Coimbra: Fundação Eng. António de Almeida, 1996.

PSEUDO-DIONIGI L’AREOPAGITA. La gerarchia ecclesiastica, intr., tr. e note a c. di S. Lilla, Roma 2002.

AREOPAGITA, D. Tutte le opere. (ed.) de Scazzosi, P. e Bellini. E.. Milano: Bompiani, 2009.

AREOPAGITE, P.D. Les Noms divins, La théologie mystique.  Introduction, traduction et notes par Ysabel de Andia. Paris: Cerf, 2016.

DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos Nomes Divinos. Introdução, tradução e notas de Bento Silva Santos. São Paulo:Attar Editorial, 2004.

DIONIGI AREOPAGITA. Nomi divini, Teologia mística e epistole, La versione siriaca di Sergio di Res’ayana (VI secolo), Edita da Emiliano Fiori, Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, Louvain: Éditions Peeters, 2014.

c. Alguns estudos

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ERIUGENA, J.S. c. 860–70, Expositiones in Ierarchiam coelestem (Commentaries on CH), ed. J. Barbet, Corpus Christianorum, Continuatio Mediaevalis 31, Turnhout: Brepols, 1975.

VICTOR. H. c.1120–30, Commentariorum in Hierarchiam coelestem Sancti Dionysii Areopagitae (Commentary on CH), Patrologia Cursus Completus, Series Latinus 175, Paris: Migne, 1844–80.

GALLUS, T. 1242, Thomas Gallus: Grand commentaire sur la Théologie Mystique (Commentary on MT), ed. G. Thery, Paris: Haloua, 1934.

GROSSETESTE, R. c. 1240–3, Mystical Theology: The Glosses by Thomas Gallus and the Commentary of Robert Grosseteste on “De Mystica Theologia”, ed. J. McEvoy, Leuven: Peeters, 2003.

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Cicero Cunha Bezerra (Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe). Texto enviado em 10/03/2023. Aprovado em 30/06/2023. Postado em 31/12/2023. Texto original, português

[1] No Corpus aparecem citadas, além dos tratados e cartas que foram preservadas, mais sete obras perdidas somando um total de 12.

Lugar teológico

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Lugar teológico

Sumário

1 Expressão

1.1 Melchor Cano

1.2 Renovação conciliar

1.3 América Latina

2 Relevância teológica

2.1 Epistemologia teológica

2.2 Renovação da teologia

3 Status quaestionis

Referências

1 A expressão

A expressão “lugar teológico” tem uma longa tradição na teologia e ganhou muita relevância no contexto da renovação teológica (pós)conciliar, particularmente na teologia da libertação latino-americana. Essa relevância foi tamanha que acabou extrapolando seu campo semântico tradicional, embora essa mutação/ampliação semântica nem sempre tenha sido explicitamente tematizada e assimilada, nem muito menos formulada de modo adequado e suficiente. E isso não deixa de gerar ambiguidades e tensões teóricas que produzem ou contribuem para incompreensões, acusações e até condenações teológicas. Daí a importância de começarmos nosso estudo retomando o sentido clássico dessa expressão com Melchor Cano e os novos sentidos que ela foi adquirindo no contexto da renovação conciliar e latino-americana da teologia.

1.1 Melchor Cano

O sentido clássico da expressão “lugar teológico” na teologia católico-romana está ligado à obra do teólogo dominicano Melchor Cano De locis theologicis (1563). Inserida no contexto de crise da escolástica decadente e da reforma protestante, bem como dos intentos de renovação teológica em curso, a obra de Cano aparece como fruto maduro da reforma teológica preconizada e desenvolvida pela Escola de Salamanca (BELDA PLANS, 2000) e “constitui possivelmente a obra metodológica mais importante da teologia moderna” (BELDA PLANS, 2006, p. XCI). Ela teve uma influência decisiva na renovação da teologia escolástica e no movimento da contrarreforma, desencadeado sobretudo a partir do Concílio de Trento.

Cano não foi o único nem sequer o primeiro teólogo a tratar desse assunto. Tampouco sua compreensão e abordagem do tema eram as únicas e as mais comuns em sua época. Já em 1521, Philipp Melanchthon, o grande teólogo sistemático da reforma, havia publicado Loci communes (MELANCHTHON, 1993), onde trata dos “lugares comuns” ou “temas fundamentais” da doutrina cristã. Assim como toda ciência tem certos “pontos fundamentais” que abarcam e resumem a totalidade dessa ciência e ao mesmo tempo funcionam como objetivo ou meta que a direciona e a corrige, diz ele, também a teologia tem seus “lugares comuns” sobre os quais está construída e dos quais depende (MELANCHTHON, 1993, n. 0,1-4). O próprio Cano se refere a essa concepção no início de sua obra, ao explicar que não pretende disputar sobre os chamados “lugares comuns” que tratam de “qualquer matéria” ou dos “temas principiais” da teologia (justificação, graça, pecado, fé e outras questões do gênero), “como fizeram muitos dos nossos e, entre os luteranos, Felipe Melanchthon e Calvino” (CANO, 2006, p. 8-9).

Inspirado em Tomás de Aquino (STh I, q.1, a.8), Cano parte da distinção entre “argumentos de razão” e “argumentos de autoridade” e da afirmação do primado da autoridade sobre a razão na teologia (CANO, 2006, p. 7-8). E, baseando-se nos Tópicos de Aristóteles, compreende e propõe os “lugares teológicos”, não como “lugares comuns”, mas como “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos:

Assim como Aristóteles propôs em seus Tópicos uns lugares-comuns como sedes e sinais de argumentos, de onde se pudesse extrair toda argumentação para qualquer classe de disputa, de maneira análoga, nós propomos também certos lugares próprios da teologia como domicílios de todos os argumentos teológicos, de onde os teólogos podem sacar seus argumentos ou para provar ou para refutar (CANO, 2006, p. 9).

Embora reconhecendo que não haja consenso quanto ao “número”, Cano estabelece dez lugares teológicos: autoridade da Sagrada Escritura, autoridade das Tradições de Cristo e dos Apóstolos, autoridade da Igreja Católica, autoridade dos Concílios, autoridade da Igreja Romana, autoridade dos Santos Padres, autoridade dos Teólogos Escolásticos e dos Canonistas, Razão Natural, autoridade dos Filósofos e autoridade da História Humana (CANO, 2006, p. 9-10). Os argumentos que se extraem dos sete primeiros lugares são argumentos “inteiramente próprios” da teologia, enquanto os que se extraem dos três últimos lugares são argumentos “adscritos e como que mendigados do alheio” (CANO, 2006, p. 10). Dos dez lugares teológicos, diz o teólogo salmantino, “os dois primeiros contêm os ‘princípios próprios e legítimos’ da teologia, enquanto os três últimos contêm os ‘princípios externos e alheios’, pois os cinco intermediários contêm ou a interpretação dos princípios próprios ou essas conclusões que nasceram e saíram deles” (CANO, 2006, p. 692).

Por mais que essa concepção de “lugar teológico” já tenha sido esboçada por Tomás de Aquino (CANO, 2006, p. 679) e retomada por teólogos contemporâneos a Cano, como Francisco de Vitória, Domingo de Soto e Bartolomeu de Carranza (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII), “até o momento ninguém havia se proposto a escrever um tratado científico completo e refletido sobre os loci theologici como o método próprio de argumentação em teologia” (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII). O próprio Cano chega a dizer explicitamente: “Nem Santo Tomás nem nenhum outro – que eu saiba – intentou explicar o método para fazer uso dos lugares mesmos” (CANO, 2006, p. 679).

1.2 Renovação conciliar

A obra de Melchor Cano exerceu um papel fundamental no contexto da contrarreforma católica: frente ao princípio sola Scriptura, da obra de Melanchthon (Loci communes), propunha dez “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos (De locis theologicis). Paradoxalmente, ela foi sendo submetida pelo mesmo contexto e espírito de contrarreforma a um reducionismo magisterial, que culminou no que se convencionou chamar “teologia do Denzinger” ou “teologia de encíclica”. O confronto com o biblicismo (protestante) desembocou não raras vezes numa espécie de papismo (romano). A superação desse reducionismo teológico, preparada por uma série de movimentos de renovação eclesial (LIBANIO, 2005, p. 21-48), que culminaram no Concílio Vaticano II, implicou numa retomada e atualização dos vários lugares teológicos e acabou produzindo uma ampliação e tensão semânticas na própria expressão “lugar teológico”.

Uma das contribuições mais importantes e mais destacadas do Concílio Vaticano II para a renovação da teologia católica foi a retomada das várias fontes da teologia. Isso foi se dando através dos movimentos de renovação eclesial (“volta às fontes”) que culminaram no Concílio Vaticano II e aparece explicitamente no Decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal (OT 16). Como bem afirma Joseph Ratzinger, “o concílio muito contribuiu para que se alargassem os horizontes teológicos e para que na Igreja toda se passasse para além de uma ‘teologia de encíclica’”, isto é, “um tipo de teologia que se restringia cada vez mais a escutar e analisar as declarações e os documentos papais” (RATZINGER, 1974, p. 267). De fato, diz ele, a) “o concílio conseguiu que a teologia voltasse novamente a considerar todas as fontes e em toda a sua integridade”; b) “mostrou também que a teologia não deve considerar todas as fontes apenas através do filtro da interpretação do magistério dos últimos cem anos, mas deve ler e procurar compreendê-las como são em si mesmas”; c) “expressou, inclusive, o desejo de não dar atenção apenas à tradição católica, como de estudar também seriamente o desenvolvimento da teologia de outras Igrejas e de outras denominações cristãs”; e) “considerou de importância a atenção que deve ser dada aos problemas do homem de hoje” (RATZINGER, 1974, p. 267). A indicação e valorização das diversas fontes da teologia, o acréscimo de novas fontes e a compreensão atual dessas várias fontes significaram uma verdadeira retomada e atualização dos clássicos “lugares teológicos”, mesmo quando Cano e sua obra não são explicitamente referidos.

Mas, além de retomar, atualizar e até ampliar as “fontes” ou os “domicílios” de argumentos teológicos, a renovação conciliar da teologia acabou extrapolando o sentido clássico da expressão “lugar teológico”. A insistência no caráter histórico da revelação (DV), na Igreja como sacramento de salvação (LG), na liturgia como fonte e cume da vida cristã (SC), na importância dos “sinais dos tempos” (GS), no ecumenismo como obra do Espírito (UR), nas “sementes do Verbo” presentes nas culturas e religiões (AG, NA), dentre outros temas, levou à percepção da densidade e do valor epistemológicos dessas realidades. E isso foi sendo expresso, de modo um tanto espontâneo, em termos de novos lugares teológicos”. Vai se tornando muito comum falar da Igreja, da liturgia, do “mundo ou dos sinais dos tempos como “lugar teológico” (SCHILLEBEECX, 1968, 189-92; TABORDA, 2009, p. 31-37; GUTIÉRREZ, 2000, p. 63, 69; RITO, 1998, p. 123-128; WICKS, 1999, p. 22; HÜNERMANN, 2014, p. 263-291), como se fosse uma mera ampliação das “fontes” ou dos “domicílios” de argumentos teológicos. Curiosamente, poucos percebem que a expressão “lugar teológico” já não se refere aqui, como na obra de Cano, a “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos, mas a realidades teologais, nas quais Deus se faz presente de um modo muito particular (densidade teologal) e pode ser encontrado e mais bem conhecido (densidade teológica). A expressão “lugar teológico” já não significa aqui uma espécie de “áreas de documentação” (WICKS, 1999, p. 20), mas se refere a realidades ou acontecimentos. Como bem adverte Max Seckler, não se pode falar de “atualidade”, de “liturgia” ou de “Igreja” como novos “lugares teológicos” no sentido de Melchor Cano (SECKLER, 1987, p. 44, nota 11).

Importa destacar aqui que a renovação conciliar da teologia não apenas retoma, atualiza e amplia os “lugares teológicos” como fontes ou domicílios de argumentos teológicos, mas, extrapolando esse sentido clássico, usa a expressão “lugar teológico” para se referir também a realidades teologais. E importa também chamar atenção para o fato curioso de que essa nova acepção da expressão “lugar teológico” (realidades ou acontecimentos teologais) tenha sido tomada e continue sendo tomada em grande medida ainda hoje no sentido de Cano (fontes ou domicílios de argumentos teológicos).

1.3 América Latina

A teologia da libertação nasce no contexto da renovação conciliar da Igreja e, mais concretamente, no contexto da “recepção criativa” do Concílio na América Latina. Ela é fruto e expressão do processo de renovação eclesial latino-americana, que tem na Conferência de Medellín (1968) um marco histórico fundamental.

Fiel à intuição e ao propósito originais de João XXIII, de abertura, diálogo e cooperação da Igreja como o mundo, que encontram na Constituição Pastoral Gaudium et Spes e sua incipiente teologia dos “sinais dos tempos” sua melhor expressão, Medellín inaugura uma nova etapa na vida da Igreja do continente, marcada por uma autêntica inserção na realidade latino-americana e por um compromisso cada vez mais intenso com os pobres e marginalizados e suas lutas por libertação.

Isso já aparece explicitamente no Tema da Conferência: “Presença da Igreja na atual transformação da América Latina”. E é afirmado com muita força na Introdução do Documento Final: a) começa dizendo que “a Igreja latino-americana, reunida na II Conferência Geral de seu Episcopado, situou no centro de sua atenção o homem deste continente que vive um momento decisivo de seu processo histórico”; b) fala do “momento histórico” vivido na América Latina (anseio de emancipação e de libertação) como um “evidente signo do Espírito”; c) termina reafirmando que toda “reflexão [da conferência] orientou-se para a busca de forma de presença mais intensa e renovada da Igreja na atual transformação da América Latina” (CELAM, 1987, p. 5-8).

Essa perspectiva da Conferência de Medellín, que será decisiva para a recepção do Concílio na América Latina, diferente de sua recepção em outros continentes, ajuda a compreender o sentido e a importância da expressão “lugar teológico” na teologia latino-americana. É verdade que essa teologia reproduz aquela ambiguidade e tensão semânticas evocadas no item anterior. É comum usar a expressão “lugar teológico” para se referir tanto às fontes ou domicílios de argumentos teológicos (Melchor Cano), quanto a realidades ou acontecimentos teologais (renovação conciliar). Mas, na linha aberta pela renovação conciliar e desenvolvendo uma intuição já presente no Concílio (LG 8), vai insistir sobretudo na tese dos pobres e marginalizados como lugar teológico ou mesmo como lugar teológico fundamental (contribuição própria e peculiar) (ELLACURIA, 2000, p. 139-161; SOBRINO, 1996, p. 42-61; SUSIN, 2008, p. 151-180; AQUINO JÚNIOR, 2010, p. 265-318; 2017, p. 97-116; COSTADOAT, 2015, p. 179-202; 2018, p. 19-40).

É verdade que “o uso da terminologia dos ‘lugares teológicos’ é errático entre os teólogos da libertação” (COSTADOAT, 2018, p. 34). É verdade também que essa expressão, com raras exceções, é mais afirmada que problematizada, como se fosse algo evidente e tranquilo. E é verdade ainda que não se alcançou um nível de elaboração que supere as ambiguidades teórico-teológicas e favoreça um consenso mais amplo sobre a tese dos pobres e marginalizados como lugar teológico. Em todo caso, convém destacar aqui dois aspectos da reflexão teológica desenvolvida na América Latina que permitem e favorecem uma elaboração mais ampla, mais precisa e mais convincente da afirmação dos pobres e marginalizados como “lugar teológico”.

Antes de tudo, é preciso advertir e insistir que a expressão “lugar teológico” não é tomada aqui no sentido clássico de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, mas, na nova acepção que adquiriu no contexto da renovação conciliar da teologia, como “realidades ou acontecimentos teologais”. Não se trata, portanto, de “textos” (de onde se extraem argumentos teológicos), mas de “realidades” (nas quais Deus está presente e pode ser mais bem conhecido) (SOBRINO, 1996, p. 48; SUSIN, 2008, p. 170; AQUINO JÚNIOR, 2010, p. 287s). Isso é fundamental para se compreender adequadamente em que sentido se fala dos pobres e marginalizados como “lugar teológico”. E será fundamental para se estabelecer adequadamente o estatuto teológico dessa afirmação no contexto mais amplo da epistemologia teológica como um todo.

Mas é igualmente importante indicar, ainda que em grandes linhas e em forma de teses, como se entende a afirmação dos “pobres e marginalizados como lugar teológico”. Embora se possa recorrer aqui a muitos autores, os elementos fundamentais dessa reflexão foram esboçados de modo sistemático por Ignacio Ellacuría, por mais que se possa discutir os termos de sua formulação e se deva avançar em sua elaboração. Para ele, “os pobres são lugar teológico enquanto constituem a máxima e escandalosa presença profética e apocalíptica do Deus cristão e, consequentemente, o lugar privilegiado da práxis e da reflexão cristã” (ELLACURÍA, 2000, p. 148). Ao mesmo tempo em que indica várias razões que justificam essa afirmação, Ellacuría destaca distintos aspectos ou matizes nela implicados: 1) são “o lugar onde o Deus de Jesus se manifesta de modo especial”; 2) são “o lugar mais apto para a vivência da fé em Jesus e para a correspondente práxis do seguimento”; 3) são “o lugar mais próprio para fazer a reflexão sobre a fé, para fazer teologia cristã” (ELLACURIA, 2000, p. 149-153). Em síntese: são “lugar teológico” enquanto lugar da revelação e, consequentemente, lugar da e da teologia. Esses três aspectos precisam ser tomados em sua irredutibilidade e inseparabilidade.

2 Relevância teológica

A expressão “lugar teológico” está muito ligada à problemática da epistemologia teológica. E, tanto no seu desenvolvimento com Melchor Cano no éculo XVI, como no contexto da renovação conciliar e latino-americana no século XX, desempenhou um papel fundamental na renovação da teologia. Nesse sentido, convém situar a problemática do “lugar teológico” no contexto mais amplo da epistemologia teológica e destacar sua importância nos processos de renovação da teologia.

2.1 Epistemologia teológica

Por mais que a questão dos “lugares teológicos” seja decisiva para a compreensão e elaboração dos diversos temas ou conteúdos da teologia, sua tematização e seu desenvolvimento estão sempre ligados à problemática da epistemologia teológica: seja no sentido mais fundamental dos seus pressupostos teóricos (noção, possibilidades e limites do conhecimento teológico), seja no sentido mais operativo de seu desenvolvimento concreto (elementos, passos, procedimentos). Está em jogo aqui a problemática do método teológico no seu duplo aspecto de pressupostos teóricos (método fundamental) e de procedimentos operativos (método concreto). E isso se pode verificar sem maiores dificuldades na história da teologia, particularmente naqueles contextos específicos a que nos referimos no item anterior, nos quais a expressão “lugar teológico” desempenha um papel fundamental na problematização e compreensão do fazer teológico.

a. Melchor Cano

Só se pode compreender adequadamente a obra de Cano De locis theologicis no contexto de crise e busca de renovação teológica do século XVI. Por mais que se deva destacar sua transcendência histórica, não se pode jamais perder de vista seu contexto e seu propósito originais. Cano “teve a perspicácia e a genialidade de recolher com toda seriedade essa preocupação geracional acerca da reforma e do método da teologia e dar-lhe uma solução científica profunda e acabada” (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII).

O próprio Cano fala explicitamente disso no Prólogo Geral, ao apresentar como motivação e propósito fundamentais de sua obra o desejo de articular a “erudição dos antigos” (“abundância de conteúdo”) como a “clareza dos modernos” (“ordem, disposição e clareza”), tomando de uns “como que a matéria” e de outros “como que a forma” da dissertação para “exortar na sã doutrina” e para “arguir a quem a contradiga”: “O desejo de explicar isso moveu-me inteiramente a propor uma discussão sobre os lugares teológicos” (CANO, 2002, p. 3).

Nessa discussão, Cano é influenciado pela noção de teologia de Tomás de Aquino e pela noção aristotélica de tópicos/lugares que recebeu do ambiente humanista e mais concretamente de Rodolfo Agrícola. De Tomás, como se pode verificar no primeiro livro ou capítulo da obra (CANO, 2006, p. 7-10), tomou a compreensão de teologia como ciência que “procede de princípios conhecidos à luz de uma ciência superior” (STh I, q. 2), seu modo de argumentação (razão e autoridade, primado da autoridade) e o uso dos vários tipos de argumentos (estranhos e prováveis, próprios e certos, próprios, mas prováveis) (STh I, q. 1, a. 8). Dos humanistas, tomou uma forma didática de expor a doutrina cristã: “ordem, disposição e clareza” (CANO, 2006, p. 3) e, particularmente, a noção aristotélica de lugares/sedes de argumentos (CANO, 2006, p. 9). Essa dupla inspiração/influência confere à noção de “lugares teológicos” de Cano tanto um caráter de “jazidas de argumentos teológicos”, quanto um caráter de “instâncias autoritativas de argumentação teológica” (KASPER, 2012, p. 88). E a insere explicitamente no contexto da problemática da epistemologia teológica, seja no que se refere à noção de teologia, seja no que se refere ao modo concreto de proceder na elaboração e exposição da doutrina cristã.

b. Renovação conciliar e latino-americana

Assim como não se pode compreender a reflexão de Cano sobre os lugares teológicos fora do contexto de crise e de renovação teológica do século XVI, tampouco se pode compreender a retomada dessa problemática e os novos desenvolvimentos que ela adquire ao longo do século XX sem considerar o processo intenso de renovação teológica que culmina no Concílio Vaticano II e seus desdobramentos no processo de recepção conciliar, particularmente na Igreja latino-americana.

De fato, a expressão “lugar teológico” reaparece com força e ganha bastante relevância no século XX no contexto de um novo processo de renovação teológica (tão intenso e fecundo como o que se deu no século XVI) e, mais uma vez, aparece profundamente ligada à problemática do fazer teológico: seja no sentido clássico de fontes ou domicílios de argumentos teológicos, seja num sentido novo de realidades ou acontecimentos teologais. Em ambos os casos está sempre ligada a uma compreensão de teologia e do fazer teológico, por mais que isso nem sempre seja tematizado e explicitado e por mais que esse duplo sentido da expressão “lugar teológico” produza ambiguidade e tensão teórico-teológicas, levando a um uso errático da expressão.

Por um lado, a expressão “lugar teológico” aparece na acepção clássica de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, no duplo sentido de “jazidas de argumentos teológicos” e de “instâncias autoritativas de argumentação teológica” (KASPER, 2012, p. 88). Essa concepção é fruto da genialidade de Cano no seu esforço de articular a sabedoria dos antigos e a concepção de teologia de Tomás com a forma ordenada e clara de exposição dos humanistas. A novidade aqui consiste na retomada das várias fontes de argumentos teológicos e mesmo em sua ampliação, bem como na nova compreensão dessas fontes, possibilitada pela “volta às fontes” dos movimentos de renovação eclesial e pelo estado atual dos estudos dessas fontes. Ela se reflete tanto na orientação conciliar para a formação teológica (OT 16), quanto no modo de exposição dos vários temas teológicos no período pós-conciliar: Escritura, padres, magistério, teologia.

Por outro lado, a expressão “lugar teológico” aparece num sentido novo e bem diferente (não contrário!) do sentido clássico, referindo-se não a “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, mas a “realidades ou acontecimentos teologais”, nos quais Deus se faz presente e pode ser encontrado e mais bem conhecido. Isso pressupõe e/ou implica uma nova concepção de teologia e do teologizar, nem sempre tematizada e assimilada, nem muito menos elaborada de modo adequado e suficiente. A complexidade e relevância epistemológicas dessa questão se mostram particularmente nos debates acerca do estatuto teológico-epistemológico dos “sinais dos tempos” e sobretudo dos pobres e marginalizados como lugar teológico (BOFF, 1979; HÜNERMANN, 2014; AZCUY-GARCIA-SCHICKENDANTZ, 2017; SCHICKENDANTZ, 2018, p. 133-158). Não é possível entrar aqui nesse debate, mas apenas situá-lo no âmbito da epistemologia teológica, seja no sentido mais fundamental da concepção de teologia, seja no sentido mais operacional do fazer teológico.

Importa, aqui, em todo caso, insistir no caráter estritamente epistemológico da problemática dos lugares teológicos. E importa também chamar a atenção para os sentidos e usos da expressão “lugar teológico” (fontes de argumentos teológicos e realidades teologais) e para a diferença e tensão epistemológicas implicadas nesses diferentes sentidos e usos da expressão (compreensão de teologia e do fazer teológico).

2.2 Renovação da teologia

A discussão sobre os lugares teológicos desempenhou um papel fundamental nos processos de renovação da teologia. Foi assim no século XVI com Melchor Cano. Foi assim no século XX com a teologia conciliar e latino-americana. Dois momentos particularmente criativos e fecundos de renovação da teologia católico-romana. Embora já se tenha insistido nesse texto na importância dessa problemática nos processos de renovação da teologia, ao apresentar os diferentes sentidos da expressão “lugar teológico” ao longo da história, convém voltar a essa questão, explicitando em que sentindo ou de que modo a discussão sobre os lugares teológicos não é apenas um tópico de epistemologia teológica, mas um fator de renovação teológica.

Não se pode esquecer que a obra de Cano se insere no contexto mais amplo de busca de renovação da teologia no século XVI e, mais concretamente, no esforço de reforma teológica preconizada e desenvolvida pela Escola da Salamanca, da qual Cano é herdeiro e expressão por excelência: “um exercício vigoroso da teologia positiva e especulativa ao mesmo tempo, com grande profissão no manejo da primeira, mas sem omitir o nervo especulativo” e um “cuidado extraordinário pela forma literária latina, próprio da cultura humanista da época” (BELDA PLANS, 2006, p. XXXIII). A obra de Cano representa o auge desse processo de reforma teológica e terá uma influência decisiva na renovação da teologia escolástica no contexto do humanismo renascentista. Além do mais, no contexto da reforma e da contrarreforma, sua obra será muito importante para explicitar e fundamentar a teologia católico-romana. Enquanto Melanchthon, de acordo com o princípio da sola scriptura, sistematiza e propõe uma dogmática cristã a partir dos temas ou pontos principais da Escritura (lugares comuns); Cano sistematiza e fundamenta o método da teologia a partir dos vários lugares onde se podem encontrar os argumentos teológicos (lugares teológicos). Tudo isso mostra a importância fundamental da problemática dos “lugares teológicos” na renovação da teologia no século XVI.

Tampouco se pode desconsiderar a importância fundamental da problemática dos lugares teológicos na renovação conciliar e latino-americana da teologia no século XX. Seja no sentido da retomada, ampliação e atualização (compreensão e uso) das várias “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, frente ao reducionismo magisterial do que se convencionou chamar “teologia do Denzinger” ou “teologia de encíclica”; seja, sobretudo, no sentido novo e revolucionário de “realidades ou acontecimentos teologais”, com os desconcertos e as transformações epistemológicas que isso implica. Mais que mera retomada e atualização da teologia de Cano, isso significou uma crise e uma transformação da própria concepção de teologia, por mais que o estatuto teórico dessa nova concepção de teologia continue uma questão aberta e disputada. De uma forma ou de outra, a problemática dos lugares teológicos reaparece inserida num processo mais amplo de renovação teológica, ao mesmo tempo é fator decisivo em seu desenvolvimento. A teologia (pós)conciliar como um todo e a teologia latino-americana em particular são testemunhas da importância fundamental da retomada das várias fontes de argumentos teológicos e do enfrentamento das realidades teologais para a renovação da teologia católica no século XX. Provavelmente, o processo de renovação teológica mais fecundo e intenso da teologia católica depois do século de ouro da teologia espanhola.

Transformações profundas nas ciências em geral e na teologia em particular não é algo muito comum e frequente. Em geral, a teologia vai retomando e reelaborando temas/problemas antigos e abordando questões novas, mas dendro de uma compreensão consolidada e amplamente compartilhada de teologia e do fazer teológico, sem maiores novidades. Raramente acontecem crises e, sobretudo, mudanças mais profundas que tocam no próprio estatuto teórico da teologia e do fazer teológico, como as que se deram nos primeiros séculos com os Padres da Igreja, no século XIII com Tomás de Aquino, no século XVI com Melchor Cano e no século XX, com a renovação conciliar e a teologia latino-americana da libertação. São, com seus limites e suas ambiguidades, os períodos mais fecundos e criativos da teologia. No caso concreto da renovação teológica nos séculos XVI e XX, como foi indicado, a problemática dos “lugares teológicos” ocupa um lugar e desempenha um papel fundamentais. E isso não obstante sua ambiguidade semântico-epistemológica e o caráter inconcluso e aberto desse debate.

3 Status quaestionis

Antes de tudo, é preciso reconhecer e destacar a importância fundamental da discussão sobre os “lugares teológicos”: seja no que se refere à problemática mais ampla da epistemologia teológica (noção de teologia e do fazer teológico); seja no que se refere aos processos de renovação da teologia no século XVI, com Melchor Cano (diálogo com o humanismo renascentista e alternativa ao reducionismo da sola scriptura), e no século XX ,com a teologia conciliar e latino-americana (superação do reducionismo magisterial das “fontes de argumentos teológicos”, reconhecimento e valorização teológica de “realidades ou acontecimentos teologais”, densidade teologal e teológica dos pobres e marginalizados). Esse estudo sobre os vários sentidos e usos da expressão “lugar teológico” e sua relevância teológica não deixa dúvidas sobre a importância dessa problemática para a teologia e o fazer teológico.

Mas é preciso reconhecer também uma ambiguidade e tensão semântico-epistemológicas na compreensão e no uso da expressão “lugar teológico”: semântica, na medida em que a expressão é tomada tanto no sentido de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, quanto no sentido de “realidades ou acontecimentos teologais”; epistemológica, na medida em que esses diferentes sentidos e usos da expressão pressupõem e/ou implicam uma determinada compreensão de teologia (aristotélico-tomásica, hermenêutica, momento da práxis).

Muitos autores, infelizmente, parecem não atentar para essa problemática. Falam da liturgia, da Igreja, dos sinais dos tempos e dos pobres como novos lugares teológicos, no sentido de mera ampliação do número dos lugares teológicos indicados por Cano. Não se dão conta de aqui já não se trata de fontes ou domicílios de “argumentos teológicos”, mas de “realidades teologais”, nas quais Deus se faz presente e pode ser encontrado e mais bem conhecido. Tampouco percebem que esses diferentes sentidos e usos da expressão estão ligados (pressupõem e/ou implicam) a diferentes concepções de saber: a concepção aristotélico-tomásica de ciência que condiciona e determina a reflexão de Cano sobre os lugares teológicos é muito diferente das concepções de saber e de ciência implicadas na compreensão de realidades teologais como lugar teológico.

Mesmo quando se intui ou se percebe certa ambiguidade e tensão teóricas na compressão e no uso da expressão “lugar teológico”, não se consegue avançar muito numa elaboração teórica que tome em sério as diferenças, tensões e rupturas implicadas nessa problemática. Um exemplo bastante emblemático aqui pode ser a reflexão do grande teólogo alemão Peter Hünermann. Ele não só reconhece que o Concílio Vaticano II representa uma “virada na teologia do século XX” e que essa virada tem a ver com a “irrupção do pensamento histórico” (HÜNERMANN, 2014, p. 41-70), mas se esforça por explicitar e fundamentar o estatuto teórico-teológico das realidades ou dos acontecimentos históricos. O problema é que, ao fazer isso, apela para a doutrina dos “lugares teológicos” de Cano, como se bastasse um “novo acesso” aos lugares já indicados e uma atualização da lista dos “lugares próprios” e dos “lugares alheios” (HÜNERMANN, 2014, 260-291). A reflexão de Carlos Schickendantz parece ir na mesma direção, ao tomar, com Hünermann como referência, a obra de Cano e (propor) tratar os sinais dos tempos e os pobres como “lugares próprios” da teologia (SCHICKENDANTZ, 2017, p. 33-69; 2018, p. 153-154).

Não obstante o mérito indiscutível de buscar explicitar e fundamentar a densidade teológica dessas realidades, esses intentos terminam fracassando ao não tomar em sério a diferença teórico-epistemológica entre “fontes ou domicílios de argumentos teológicos” e “realidades ou acontecimentos teologais”. Ao formular a problemática, na linha de Melchor Cano, em termos de determinação da “autoridade” das “instâncias de testemunho da fé” (HÜNERMANN, 2014, p. 272) ou de “reflexões acerca da ‘força argumentativa’ da histórica humana na teologia” (SCHICKENDANTZ, 2014, p. 157, 159), os dois teólogos parecem não perceber ou, em todo caso, não tomar em sério, como bem indica Max Seckler, que atualidade, liturgia, Igreja, sinais dos tempos não são “lugar teológico” no sentido de Cano (SECKLER, 1987, p. 44, nota 11) e, portanto, não podem ser enquadrados em seu sistema de pensamento como se fossem mera ampliação ou atualização da lista de “fontes ou domicílio de argumentos teológicos” estabelecida por ele no século XVI.

Tudo isso nos leva a concluir que, não obstante a importância e relevância fundamentais da problemática dos “lugares teológicos” para a teologia e o fazer teológico, estamos diante uma questão “inconclusa” (SCHICKENDANTZ, 2014, p. 159, 161) e aberta que exige maiores desenvolvimentos ou memo novas abordagens em vista de uma elaboração mais precisa, mais profunda e mais ampla.

Francisco de Aquino Júnior (Faculdade Católica de Fortaleza e Universidade Católica de Pernambuco). Texto enviado em 30/05/2023; aprovado: 30/10/2023; postado: 31/12/2023. Original português

Referências

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Experiências espirituais dos povos em Abya Yala

Sumário

Introdução

1 Os mundos dos quais somos parte

2 Cosmovivências holísticas nutridas nas fontes ancestrais

3 Sendo e estando em relação

4 Espiritualidades relacionais cósmicas

4.1 Relacionalidade recíproca

4.2 A dualidade complementar

4.3 A criação mútua da vida

5 O desafio de seguir sendo e estando sustentados pelas espiritualidades

Referências

Introdução

O presente texto apresenta o entrelaçamento das cosmovivências e espiritualidades relacionais cosmogônicas dos povos que, nas suas raízes ancestrais, se reconhecem situados nos territórios colonizados de Abya Yala[1]. Objetiva-se, com tal abordagem, continuar estabelecendo o equilíbrio e a harmonia por meio das relações de mutualidade e correspondência com as diversas comunidades de vida, a partir do reconhecimento de sermos filhas e filhos da terra.

1 Os mundos dos quais somos parte

Na aproximação aos territórios e contextos de Abya Yala, não se pode negar o predomínio da extensão do sistema colonial. Nele prima o paradigma hegemônico de uma cultura dominante, reforçada pelo pensamento moderno, que formulou a noção universal dela. Nos nossos territórios, esse paradigma se dilatou por meio da configuração dos Estados nações, que deram continuidade às miragens do capitalismo, apresentado como “desenvolvimento”. Tudo isso supôs uma expansão das economias extrativistas, favorecendo uma elite dominante e impulsionando uma série de políticas de extermínio em relação aos povos indígenas. Tais povos eram considerados como um empecilho para o desenvolvimento que tem sua referência no mundo ocidental, sendo-lhe difícil reconhecer os outros modos de saberes e seres.

Os diversos povos vinculados a suas raízes milenares se reconhecem nos territórios que sofrem, há mais de quinhentos anos, a submissão extrativa e o extermínio sistemático por meio das políticas genocidas. São políticas vistas como ameaça aos mundos plurais ancestrais. Esses resistem a morrer, lutando para continuar sendo e estando em vínculo com seus territórios-terra e as diversas forças vitais, e com seu sentido, que é nomeado de diversos modos, segundo a cosmogonia de cada povo.

Seu reconhecimento e a livre determinação na sua organização comunal não é respeitada nas sociedades construídas sobre a base colonial do “índio”, como o propõe Bonfil:

A categoria ‘índio’ designa o setor colonizado e faz necessariamente referência à relação colonial. O índio surge com o estabelecimento da ordem colonial europeia na América; antes, não há índios, mas povos diversos com suas próprias identidades. O europeu cria o índio, porque toda situação colonial exige a definição global do colonizado como diferente e inferior (desde uma perspectiva total: racial, cultural, intelectual, religiosa etc.); com base nessa categorização de índio, o colonizador racionaliza e justifica a dominação e sua posição de privilégio (BONFIL, 1988, p. 19).

Isso supôs para algumas populações indígenas a negação de si, assumindo-se a partir do sistema que o nega, associando-se às populações consideradas mestiças que se constituem a partir de uma identidade configurada pela noção do “branco”. São privilegiados o saber e os modos de vida ocidentais, completamente desvinculados do que se considera a natureza, isto é, da relação com a terra e suas inter-relações.

Muitos povos procuraram a forma de não serem completamente aculturados e, depois de longos períodos vivendo na clandestinidade a qual foram relegados, buscaram sair dela. Ainda que o processo ocorra nos diversos territórios, é significativo o que acontece no vasto território da Amazônia. Nela encontra-se a maior parte dos povos ancestrais que conservaram seus saberes, sabedorias e espiritualidades; todas elas entrelaçadas a partir da bela polifonia de línguas milenares e da surpreendente biodiversidade que habita nos seus territórios.

Nos nossos contextos, a partir do discurso do multiculturalismo, reconhece-se o passado de muitos povos, proscritos e presentes nos museus e no folclore. Apesar disso, a promoção de políticas de assimilação – que se implementam por meio de diversos programas considerados de “inclusão social” em relação às denominadas minorias étnicas – reforçou processos de aculturação das gerações mais jovens. Essas gerações ficam nas margens das cidades e nos seus próprios territórios, por meio da educação bilíngue intercultural, que supõe, em muitos casos, a tradução do conteúdo do saber ocidental.

A consequência da dinâmica colonial é a negação ou ruptura com a ancestralidade. Entretanto, é importante reconhecer que, até os anos 1990, os povos “índios”, apoiados por essa identidade atribuída, reconhecem que, apesar dos quinhentos anos de domínio e exploração, eles resistiram. Trata-se de um tempo no qual se evoca a memória da resistência e do caminho para recriar a vida dos povos em relação com outros. Esse intercâmbio de saberes ancestrais ajuda a resistir aos sistemas extrativos que estão levando a uma devastação da vida.

Nesse contexto, o tecido das espiritualidades indígenas, que se entrelaçam com a esperança de se fortalecerem em relação com sua ancestralidade, possibilita-lhes nomear-se e reconhecer-se como povos, nacionalidades e comunidades que se reconhecem nas histórias dos fins e renascimentos dos mundos. A partir dessas histórias, buscam curar o território e os corpos, seguindo o princípio de equilíbrio e harmonia, que precisa continuar sendo cuidado a partir das relações recíprocas.

2 Cosmovivências holísticas nutridas nas fontes ancestrais

Evocamos a força da palavra zapatista, da selva Lacandona de Chiapas, que se vincula com as seivas dos diversos povos ancestrais: “queremos um mundo onde caibam muitos mundos”. São palavras que refletem não só o anseio, mas a realidade do grande pluriverso de povos milenares em Abya Yala, que rompe com a noção homogênea do “índio”. O tecido das espiritualidades que se cultivam em cada território, compartilha a noção cósmica e telúrica que abarca os diversos povos no vínculo com o território habitado. É isso o que expressa Aura Cumes: “é muito paradoxal que digamos ‘Mãe Natureza’, porque, nos nossos senti­dos de mundo, não há uma dissociação en­tre ser humano homem e algo chamado natureza” (CUMES, 2021, p. 19). Isso porque cada povo se reconhece na terra como parte da grande rede de vida que flui nela, como fica também expressado nas palavras de Eduardo Galeano:

Tem dono a terra? Como assim? Como se há de vender? Como se há de comprar? Se ela não nos pertence: nós somos dela, seus filhos somos. Sempre assim, sempre. Terra viva. Como cria seus vermes, assim nos cria. Tem ossos e sangue. Leite tem, e nos amamenta. Cabelo tem, pasto, palha, árvores. Ela sabe parir batatas. Faz nascer casas. Gente faz nascer. Ela cuida de nós e nós cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceita nosso convite. Filhos seus somos. Como se há de vender? Como se há de comprar? (GALEANO, 1998, p. 38).

A partir dessa conexão, entrelaçam-se as espiritualidades, como diria a sábia Maya Ernestina López, “com os fios quebrados e queimados”, pelo despojamento da religião imposta, que supôs a extirpação e a substituição como métodos usados nos processos de evangelização. “Justapôs-se uma imagem sobre a outra e se reverteram os significados da crença de participação na cosmologia de origem” (CORDERO, 2003, p. 5). Portanto, não se trata de um sincretismo como tal, pois muito do que se considera como sincrético responde a certas práticas religiosas do catolicismo popular.

Por esse motivo, as populações que tiveram pouca influência cristã, conservam muito mais o sentido da espiritualidade enraizada nas relações, apresentando-se como fontes ancestrais que convidam a fazer um caminho de retorno a elas. Isso, no contexto andino, é o Kuti: “a inversão, a volta, o regresso, restituição, retorno, revolução ou transformação” (MONTES, 1999, p. 144). Portanto, trata-se do fim de um tempo e do início de outro. Para a cosmogonia Maya, o ano 2012 foi o fim do quinto sol e o início de um novo ciclo que traz suas próprias transformações, a fim de que a comunidade humana desate os nós herdados nas relações desiguais e de dominação que se estendem até as outras comunidades de viventes, provocando o desequilíbrio no cosmos.

Trata-se de um tempo de cura que procura restabelecer o equilíbrio e a harmonia no cosmos habitado, para continuar despertando, nos diversos saberes e sabedorias, a partir da consciência cósmica. Há realidades e situações que não podem ser compreendidas apenas a partir dos sentipensamentos humanos. São também requeridas relações de mutualidade, de escuta e observação do ritmo das diversas comunidades de vida e a relação com as diversas fontes vitais que se reconhece em cada território.

São tempo e espaço a partir dos quais se leem as histórias transgressoras que buscaram, uma e outra vez, a cura dos territórios-terras e dos territórios-corpos, pois compreenderam que seus corpos violentados tinham a possibilidade de se incorporarem e resistirem diante dos sistemas extrativistas que invadem e subjugam a terra, territórios e territorialidades. Tempo no qual se busca tecer a organização comunal, a partir da livre determinação e do respeito dos territórios, que orientam o caminho das re-existências sustentadas nos seus saberes, sabedorias e espiritualidades relacionais para continuar sendo e estando como povos.

3 Sendo e estando em relação

A partir das espiritualidades entrelaçadas das sabedorias que são cultivadas, inclusive estando fora dos territórios de origem, muitas populações dos diversos povos recriam os vestuários impostos, sabores, tecidos, rituais, idiomas. Elas conservam assim o cuidado recíproco da vida a partir do vínculo com os territórios de origem, pois aí habita a ancestralidade que sustenta os sentidos de sua vida, suas famílias e suas organizações comunais. Por isso, a relação com o espaço habitado será fundamental, uma vez que se parte do princípio de que tudo tem vida, tudo vive. Desse modo, supera-se a oposição entre vida e morte, pois se concebe outros modos de vida e de relações, que prosseguem na terra, como se expressa nos povos andinos:

Nas palavras de um ancião aymara, temos três vidas e dois nascimentos. A primeira vida é o ventre materno e desemboca num primeiro nascimento; a segunda é a vida neste mundo. A morte é o segundo nascimento, que nos conduz à terceira vida. O ventre da mãe humana e o ventre da Mãe Terra são fonte de nova e maior vida nos diversos momentos deste grande ciclo vital, que é, ao mesmo tempo, pessoal, social e cósmico (ALBÓ, 2006, p. 372).

A noção de território vivente propõe outras maneiras de ser e estar no cosmos. Implica inter-relações com os diversos mundos, o que supõe a abordagem da antropologia da vida que ajuda a compreender o fluxo de energia ou força vital dentro da vida, como o expressa o sábio Guarani do Mato Grosso:

Nossos antepassados ensinavam que cada um de nós tem um cântico próprio, um canto que só a própria pessoa conhece no seu interior. Também os animais e as plantas, assim como o rio e a floresta têm um canto dentro de si. Até a terra possui seu próprio canto. Os homens dos sonhos sabem descobrir o canto da terra…” (BARROS, 1996, p. 58).

Esses outros modos de ser são reconhecidos a partir das ontologias relacionais, nas quais se assume que todos os tipos de seres viventes dependem de outros para sua existência, uma vez que não se consideram como separados, mas em constantes inter-relações. As diversas existências não são concebidas como forças solitárias, mas em contínua relação. Por isso, será importante a noção da comunidade nos territórios assumidos como espaço-tempo vitais. Nela, como o expressa Jorge Apaza, manifesta-se a existência continuada do pluriverso, que resgata o sentido das relações recíprocas, um dos princípios importantes que propicia a criação mútua da vida. No contexto andino, esse princípio é a uywaña o uyway:

O mundo andino é um mundo de criações; todos criam e se deixam criar. Por isso, essa qualidade de criação não só é atributo do homem, mas é denominador comum de todos os membros que conformam a coletividade natural. Em cada pacha local, conversa-se com tudo o que existe e de distintas formas ou maneiras; o andino é um conversador por excelência. Essa enorme capacidade de conversar com a natureza faz com que se estabeleçam relações ou simbioses estreitas e permanentes entre todos os membros que conformam o ayllu[2]. Sua única preocupação é viver melhor e da maneira mais harmoniosa possível e em equilíbrio com todos; então, a plenitude da vida se alcança criando-se mutuamente (APAZA, 1997, p. 103).

A noção de criações ou de cuidados da vida, que é partilhada nos diversos povos ancestrais, aponta para o sentido das relações em reciprocidade, uma vez que as ações afetam as relações, como se expressa na sabedoria do povo Tojolabal:

Todo vivente é, pois, irmão ou irmã dos humanos. Esperam que nos comuniquemos com eles, que os tratemos como irmãos e os visitemos. Que falemos com eles, cuidemos deles e os cumprimentemos. Isto é, que sejamos conscientes de estar entre viventes e que os tratemos como tais (LENKERSDORF, 2008, p. 128).

Trata-se de modos de ser que se distanciam das espiritualidades dualistas, que separam a vida entre matéria e espírito, e das ontologias centradas nos humanos como seres superiores. A partir delas, apresenta-se uma concepção do sagrado fora da realidade, que deriva na grave deterioração da integralidade cósmica e das inter-relações na Grande Rede da Vida. A esse respeito, prossegue Lenkersdorf, apresentando os sentipensamentos do povo Tojolabal, nos quais se aprecia de que modo, para as cosmogonias ancestrais, são compreendidos os parentescos ampliados nas outras comunidades de vida:

Não somos os que estão no topo dos viventes, mas somos irmãos de uma família muito extensa que também nos influi. Assim, nossas casas, que habitamos e edificamos, também nos formam no nosso modo de ser. Nosso milharal nos sustenta. Nosso cachorro nos cuida e nos acompanha. Vivemos, pois, em meio de um todo vivente que nos acompanha; e formamo-nos mutuamente. Como viventes, finalmente, temos que escutar esse todo, assim como nos escuta (LENKERSDORF, 2008, p. 125).

São, portanto, modos de ser entrelaçados de inter-relações, que permanecem como testemunhas da tenacidade da vida que se recria a partir das sinergias que se correspondem entre as diversas comunidades de vida.

4 Espiritualidades relacionais cósmicas

Para muitos povos, o termo espiritualidade é mais próximo de suas cosmovivências, pelas inter-relações com os diversos mundos vitais, aqueles que se veem e aqueles que não se veem, mas que estão presentes, que transcendem a noção dualista do bem e do mal. A partir da influência cristã, usa-se esse léxico. Entretanto, muitas sábias e sábios propõem que não há forças ou energias boas e más, mas que todas requerem um tratamento diferenciado. Além disso, compreende-se que as forças denominadas como más são forças ou energias que precisam de uma relação de muito mais respeito e cuidado, pois, assim como cuidam, podem gerar destruição, enfermidade, pragas, secas ou inundações.

A espiritualidade é assumida a partir do princípio do equilíbrio e da harmonia, que cada povo nomeia de maneiras diversas, pois significa uma busca constante no processo cíclico cósmico, no qual se situam os ciclos de todas as formas de vida. Trata-se de cultivar o sentido das relações recíprocas, pois qualquer ruptura gera desequilíbrios que fragmentam a vida. Por isso, nos tratamentos das doenças, são necessários ritos de harmonização com as forças vitais que habitam no território local, a fim de restabelecer a energia ou a força que acompanha o corpo, para dialogar com ela e saber do que precisa.

São espiritualidades ancestrais que se recriam para revitalizar a vida. As resistências e as articulações como povos se sustentam na espiritualidade, sendo essa parte de tempos e lugares, pois se seguem os ciclos cósmicos por meio de rituais pessoais e comunitários. Mesmo que, algumas vezes, essas espiritualidades se disfarcem sob práticas do catolicismo popular ou de outras expressões religiosas, elas “revelam sua particularidade epistêmica e uma divergência significativa em relação à religião hegemônica” (MARCOS, 2002, p. 4).

A seguir, serão expostos os princípios relacionais que procedem das sabedorias ancestrais, a partir das quais se entrelaçam as espiritualidades.

4.1 Relacionalidade recíproca

A reciprocidade é um dos princípios que orienta as relações, de modo que os rituais buscam gerar correspondências mútuas entre os/as diversos seres. Isso pode ser visto nos ritos das sementes, com as quais se fala e às quais se oferece comida, bebida, em reciprocidade pelo cuidado oferecido por meio de seus frutos. Geralmente, as encarregadas de tal rito são as mulheres, que entrelaçam seus saberes com seus fazeres: dar e receber para voltar a entregar, a fim de que os ciclos cósmicos não se interrompam e suas sabedorias continuem propagando-se.

Os diversos ritos seguem o princípio de que “tudo tem seu tempo e espaço”. Isso possibilita a noção cíclica da vida e das relações que precisam ser cuidadas, a fim de respeitar os ciclos vitais que não podem ser alterados. Essa noção engloba o sentido integrador da vida, já que, a partir do reconhecimento de que tudo tem seu espaço, integra-se aquilo que provém de algum intercâmbio de saberes e de seres. Por isso, pede-se permissão às forças vitais para incorporá-las e para que possam conviver em harmonia.

A partir dessa perspectiva holística, situa-se a relação com o cristianismo. Em muitas comunidades não se assume tudo, mas apenas alguns elementos que podem ser integrados ao território vivente. Por isso, os templos cristãos requerem respeito, assim como seus representantes; e, em algumas circunstâncias, até se terá necessidade de seus ritos, a fim de gerar a harmonização do território. Esse aspecto pode oferecer pistas para compreender as relações entre o cristianismo e as espiritualidades andinas, para além da noção pejorativa do sincretismo.

4.2 A dualidade complementar

Como uma espécie de desenvolvimento da reciprocidade, assume-se a complementariedade, uma vez que muitos povos concebem as relações duais como expressão do sentido da integralidade da vida. Isso ocorre porque não se assume que existam forças solitárias e individuais, mas outra força é requerida, a fim de que possibilite as relações de equilíbrio e harmonia. Assim, concebe-se a relação entre o céu e a terra, o tempo e espaço, água e terra, sol e lua…

Ainda que, às vezes, a linguagem as designe como forças femininas e masculinas, tendendo a sexualizar essas relações (nas que se situam as relações entre o homem e a mulher), a dualidade transcende essa categorização que tende ao binarismo e ao dualismo. A melhor expressão do sentido de dualidade é oferecida no altar Maya, que reflete as correspondências dos quatro pontos cardeais, situando no centro a U’k’ux Kaj (coração do céu) e a U’k’ux Ulew (coração da terra), o encontro do telúrico e do cósmico.

Trata-se de noções de tempo e espaço, assumidas nos povos como o princípio orientador da vida e das relações. Por isso, a associação da cruz cristã – que foi imposta – é assumida, a partir de sua própria interpretação, como a integração das forças da vida a partir dos quatro pontos cardeais.

4.3 A criação mútua da vida 

A sacralidade da vida, ou respeito, é entendida a partir da força vital que atravessa todas as formas de vida. Por isso, a criação mútua de todos/as os/as seres tem a ver com o cuidado, o respeito, o amor, a ternura, a proteção, inclusive daquelas forças que podem gerar morte ou doença. Isso porque as relações com todos os seres são imprescindíveis para a convivência harmônica nos territórios.

A criação mútua implica certos códigos éticos de convivência num determinado território, associado a ritos e comportamentos “como parte de um contrato social que deve ser entendido nas suas dimensões filosóficas e no seu poder de realizar o retorno de um sistema ecológico instável a um nível melhor” (ARNOLD, 2016, p. 113). Trata-se de uma criação mútua, na qual “cada ser vive seu próprio desenvolvimento adquirindo a vitalidade de outros seres. Pois nenhuma forma de vida é permanente, mas sumamente mutável” (ARNOLD, 2016, p. 114).

Por outro lado, a criação tem a ver com as noções de equilíbrio que o ser humano deve considerar, em reciprocidade com os/as protetores/as dos animais, dos produtos agrícolas e dos outros seres aos/às quais se deve dar de comer e beber, como mostra de gratidão por proporcionar a vida desses seres e por protegê-los. Nessa relação, consegue-se estabelecer o consumo responsável e necessário. Por isso, a caça indiscriminada ou o maltrato de qualquer ser serão censurados na comunidade.

Nesse sentido, a criação mútua da vida se estende à relação: “nas comunidades humanas, animais e plantas, trata-se de intervenções no fluxo constante de energia, em diálogos, conversações, intercâmbios e pactos entre os seres do cosmos e nas negociações permanentes para restabelecer e renovar os acordos” (ARNOLD, 2016, p. 134).

5 O desafio de seguir sendo e estando sustentados pelas espiritualidades

Para os povos em Abya Yala, o estigma colonial do “não ser” e a designação de suas espiritualidades como diabólicas é um peso forte, que sustenta seu não reconhecimento como povos com direitos. Lamentavelmente, essa visão se fundamenta na noção do religioso como uma porta que possibilita a invasão e a expropriação. Em nossos tempos, a criminalização da defesa dos territórios é feita a partir da invalidação da relação com os territórios vitais habitados por diversas comunidades de vida, que são designadas como supersticiosas, panteístas, pagãs, idolátricas, folclóricas, essencialistas.

As diversas articulações ecumênicas iniciaram caminhos de diálogos que derivaram no caminhar das Teologia Índias/Indígenas e suas respectivas organizações locais. Contudo, não se pode negar o crescente fundamentalismo de diversas denominações cristãs que afetam as organizações comunais, gerando divisões nas tomadas de decisões. Elas tendem não só ao fundamentalismo religioso, mas também ao fundamentalismo político partidário.

Os povos vivem rupturas internas que esvaziam o sentido dos princípios ancestrais e suas espiritualidades, por causa de influências externas e das migrações contínuas de suas populações. Apesar de tudo, existem processos significativos de adaptação, inclusive diante da “emergência climática”, pois muitos sábios e sábias reconhecem que os tempos mudaram e procuram encontrar orientações para escutar à Mãe Terra.

Por isso, a volta à terra implica uma conexão profunda com as sabedorias e espiritualidades que sustentam a vida dos povos, para além de sua folclorização e sua exoticidade. E isso permite reconhecer o belo pluriverso, expresso em cores, rostos, linguagens, sons, sabores, festividades cíclicas, ritos relacionais, e o cuidado dos territórios habitados pela grande diversidade de comunidades de vida.

Não se trata de noções românticas e idealistas, como é criticado nos espaços dos saberes ocidentais, mas de esforços permanentes em suas práticas de não seguir a rota do colonialismo capitalista e patriarcal vigente. Esse colonialismo promove a ruptura das relações com as diversas comunidades de vida. Isso leva à caça e pesca ilimitadas, à depredação dos montes sagrados, à contaminação das águas, rios, mares, fontes, à introdução de outras espécies e sementes transgênicas, à promoção do monocultivo, e à ruptura nas relações cósmico-sociais.

Trata-se de buscar o caminho das inter-relações profundas que devolvam à pessoa seu lugar no cosmos, no qual as reciprocidades e complementariedades com os outros seres são fundamentais para possibilitar a vida. Só a volta à terra pode oferecer esse caminho, pois dela depende a alimentação, a saúde, a harmonia e as reciprocidades, que possibilitam o Bem Viver, a Terra sem males, a Loma Santa, a Vida Digna, a Plenitude da Vida, a Vida bela.

Nos processos de recriações dos sentidos profundos do seu ser e estar no cosmos, a memória se antecipa no caminho da vida, procurando o vínculo com a ancestralidade. Uma ancestralidade que não se situa num espaço etéreo, mas que se faz parte do cosmos relacionado com as diversas fontes vitais, das que procedem a compreensão da vida.

Trata-se de forças ancestrais cósmicas que despertam a memória dos povos, como se expressam nos territórios onde ainda habita a memória dos povos subjugados e destruídos. É isso que explica Perfecto Sánchez a partir das territorialidades denominadas do Caribe:

A origem taína persistiu até hoje; essa herança, junto às provas históricas da sobrevivência taína, presentes ainda hoje na nossa cultura dominicana, evidencia que o povo taíno nunca foi extinto. Ainda que os colonizadores tenham exterminado essa cultura, [o povo taíno] sobreviveu nas margens da sociedade colonial até o presente (SANCHEZ, 2017, p. 36).

É a força dos territórios habitados pela ancestralidade que narram e cantam suas histórias, como se afirma profundamente na palavra viva de Popol Vuh: “Arrancaram nossos frutos, cortaram nossos ramos, queimaram nossos troncos, mas não conseguiram matar nossas raízes”.

Sofía Chipana Quispe. Membro da comunidade de Teólogas andinas de Abya Yala. Coordena o Centro de Saberes Alternativos Thakichañani, em El Alto de La Paz, Bolívia.  Texto submetido em 30/05/2022; aprovado em 30/08/2022, postado em 31/12/2023. Texto original em espanhol.

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[1] Abya Yala provém da língua do povo Kuna ou Guna do Panamá e significa “terra em plena maturidade”, “terra fértil”, “terra florescente”. Usamos esse termo, pois a designação “América Latina” é eurocêntrica e colonial. Por isso, em 1977, depois de sua visita aos povos Kuna, Constantino Mamani (Takir Mamani) propôs esse nome.

[2] Ayllu: povo com sentido de pertencimento, que pode estar em um mesmo território ou em espaços geográficos distintos. [N.T.]

A pastoral indígena na América Latina

Sumário

Introdução

1 Os principais conteúdos da Pastoral Indígena

2 Como a Pastoral Indígena foi sendo gestada?

3 A Igreja e os aborígenes no período pós-Independência

4 O kairós do Papa Francisco

5 Desafios da Pastoral Indígena atual

Conclusão

Referências

Introdução

O termo Pastoral Indígena é recente na igreja latino-americana. Começou a ser utilizado no final dos anos 70 do século passado para caracterizar uma pastoral específica, distinguindo-se da Pastoral Indigenista. Enquanto essa se referia à ação de missionárias e missionários não indígenas a favor dos povos originários, a Pastoral Indígena se refere à ação dos próprios indígenas nas igrejas particulares.

O conteúdo de ambas as categorias teológico-pastorais foi sendo construído, nas igrejas periféricas da América Latina, com a chegada ou retorno às regiões indígenas de pastores e servidoras/servidores eclesiais na segunda metade do século XX. Essas/es, ao se aproximarem efetiva e afetivamente da realidade dolorosa de marginalização, exploração e abandono da população nativa, tornaram-se mais sensíveis a suas exigências e se deixaram interpelar e modelar pela diversidade cultural e religiosa desses povos até assumir, de alguma maneira, elementos dessa identidade, antes negada e rejeitada pela Igreja.

1 Os principais conteúdos da Pastoral Indígena

Os objetivos explícitos da recente Pastoral Indígena apontam para o surgimento de igrejas particulares autóctones a partir das chamadas Sementes do Verbo (logoi spermatikoi), que o Concilio Vaticano II (1962-1965) retomou dos Padres da Igreja primitiva, procurando conectar a proposta do evangelho do Reino de Jesus com a busca de Deus preexistente nos povos antes da chegada da Igreja. Além disso, na Pastoral Indígena, é reconhecido e impulsionado o protagonismo indispensável dos indígenas na construção de tais igrejas particulares autóctones, oferecendo sua sabedoria ancestral contida nas chamadas teologias indígenas.

2 Como a Pastoral Indígena foi sendo gestada?

A Pastoral Indígena, tal como a conhecemos agora, começou a tomar corpo no início do século XX, quando a Igreja percebeu a necessidade de atender as populações indígenas mais abandonadas, como as amazônicas. Isso ocorreu, principalmente, quando, na metade desse século, chegaram pastores e congregações religiosas que se aproximaram das comunidades autóctones da América Latina não apenas com ações missionárias esporádicas, mas com uma presença estável e prolongada.

No entanto, as raízes mais antigas da Pastoral Indígena se encontram nos missionários da primeira evangelização deste continente, que se atreveram a estar ao lado dos indígenas vencidos, tomando distância dos conquistadores que oprimiram esses povos. O primeiro foi Fr. Bernardo Boil (1450-1510), eclesiástico plenipotenciário do Papa Alexandre VI, que acompanhou Cristóvão Colombo na sua segunda viagem (1493); posteriormente, destacaram-se os dominicanos da ilha caribenha de Santo Domingo (1511) e, mais adiante, Julián Garcés (1527), primeiro bispo de Tlaxcala, que motivou o Papa Paulo III a escrever a encíclica indigenista Sublimis Deus (1537). Evidentemente, é preciso recordar também o Fr. Bartolomeu de las Casas e a corrente profética que ele gerou a favor dos indígenas e de uma evangelização sem violência.

Dessa maneira, pode-se afirmar que a Pastoral Indígena – que caminha junto com a Teologia Indígena – apareceu, de modo claro e consistente, nos últimos 50 anos da Igreja latino-americana, mas está em continuidade com as grandes intuições missiológicas dos primeiros 50 anos da evangelização fundante de nossa Igreja neste continente. Ambos os momentos históricos são obra conjunta de pastores profetas, de bases indígenas, de líderes autóctones e de servidoras/servidores eclesiais comprometidos com a causa indígena.

Por isso, a equipe de assessores do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), ao analisar o Caminhar da Pastoral Indígena, observa que, mesmo com um alcance limitado, Fr. Gerónimo de Mendieta já se referia a esta proposta da Igreja Autóctone – embora, naquele momento, ele a tenha chamado de “Igreja Indiana” – quando menciona a chegada dos três primeiros frades leigos, um ano antes da vinda dos paradigmáticos Doze Missionários Franciscanos ao México:

[…] quando chegaram os doze varões apostólicos, que foi em mil e quinhentos e vinte e quatro, vendo que os templos dos ídolos ainda estavam de pé, e os índios usavam suas idolatrias e sacrifícios, perguntaram a este padre Fr. Juan de Tecto e a seus companheiros, o que faziam e o que entendiam. Ao qual Fr. Juan de Tecto respondeu: “Aprendemos a teologia que Sto. Agostinho ignorou inteiramente”, chamando teologia a língua dos índios, e fazendo-os entender o grande proveito que se tirava de saber a língua dos naturais (MENDIETA, 1971, p. 308).

Como se pode apreciar no texto e em outras fontes da época, os primeiros franciscanos no México – e também as demais ordens religiosas que chegaram para evangelizar o continente – quiseram, em grande parte, e entre contradições, acolher e resgatar não só a língua dos originários, mas também a riqueza social, cultural e simbólica dos povos autóctones com culturas milenares. Precisamente, o próprio Mendieta argumentava, há cinco séculos atrás, que os primeiros franciscanos chegados ao continente americano vinham com o propósito de viver o ideal primitivo de São Francisco e estabelecer entre os originários uma “Igreja indiana” (ou autóctone, como hoje a chamamos).

Depois dos primeiros 50 anos de muito profetismo e ação eclesial de grande criatividade, a etapa missionária terminou e deu lugar à implantação da Igreja com todas as suas estruturas e os esquemas próprios de administração diocesana e paroquial da época. Ao ir-se consolidando desse modo, a Igreja abandonou as populações nativas, por haverem sido reduzidas à sua mínima expressão em consequência da guerra, das doenças e das “encomiendas”. Os povos indígenas, que, naquela época, não foram incorporados à sociedade colonial, mantiveram-se à margem de sua ação, e por essa razão, praticamente, não foram objeto de nenhuma ação missionária ou pastoral durante grande parte da época colonial, salvo algumas exceções.

Quando surgiram as nações independentes da Coroa espanhola e da portuguesa (1810-1898), a Igreja, em vários lugares, foi convocada para ser instrumento de integração das comunidades indígenas às sociedades nacionais, pela via da educação oficial e da cristianização ocidentalizante. Isso aconteceu especialmente com a população amazônica.

3 A Igreja e os aborígenes no período pós-Independência

No nível oficial, entre o final de maio e princípios de julho de 1899, por convocação do Papa Leão XIII, celebrou-se, em Roma, o Concílio Plenário da América Latina.  A metade do episcopado do continente assistiu ao Concílio que, pela primeira vez, reuniu-se para considerar os problemas mais urgentes e graves da Igreja nestas terras. O título XI, capítulo III dos Decretos do Concílio, dedicado “às santas Missões aos infiéis”, insiste em procurar levar a civilização, por meio da pregação evangélica, às tribos que ainda permanecem na infidelidade”, aos índios ainda por converter,para que não fique, por fim, nem sequer um de nossos aborígenes sem desfrutar da luz da verdade e da civilização cristã (CONCILII PLENARII AMERICAE LATINAE, 1899, n. 770, 771, 767). Em continuidade com a mentalidade colonial, é proposto que os bispos e sacerdotes utilizem todos os meios possíveis, como o auxílio das congregações religiosas e das preces e esmolas dos fiéis leigos, para converter os indígenas infiéis. Para tanto, devem conhecer os idiomas nativos, pois, por experiência, sabe-se que o maior impedimento à propagação da fé entre os infiéis é a ignorância das línguas indígenas (CONCILII PLENARII AMERICAE LATINAE, 1899, n. 772).

No princípio do século XX, o Papa Pio X, com sua carta Lacrimabili statu indorum (1912), chamou a atenção dos bispos latino-americanos para a lamentável situação dos povos nativos. No entanto, é na segunda metade do século XX que se gestam, na Igreja latino-americana, novas atitudes e uma renovada preocupação pelas populações nativas, empurradas à extinção total pelo avanço dos grandes projetos do mundo capitalista e neoliberal. É também, nessa época, quando tais grupos humanos saem de sua letargia de séculos ou se mostram como são e se atrevem a caminhar por si mesmos em meio às vicissitudes da história recente. Nesse contexto, surge e se desenvolve a Pastoral Indígena, a Teologia Indígena e a Igreja Autóctone.

Cada país do continente foi parte fundamental ou marginal do desenvolvimento da Pastoral indígena e da Teologia indígena na América Latina. Foram surgindo por toda a geografia latino-americana dioceses ou prelaturas de população indígena, onde pastores entusiastas se solidarizaram com os nativos. Igualmente surgiram equipes de missionários comprometidos com a causa dos povos autóctones, frequentes reuniões de missionários e missionárias, e encontros nacionais da Pastoral Indígena, nas quais se partilham as temáticas que afetam a vida das comunidades e da Igreja. As estruturas de serviço do CELAM, criado em 1955, desde cedo foram incorporando em suas tarefas o acompanhamento do trabalho eclesial junto aos povos indígenas. Primeiramente, isso foi feito com una pastoral indigenista e, depois, com uma pastoral indígena, que enfatiza a participação cada vez mais protagonista da própria população nativa.

É importante ressaltar ainda, antes mesmo do Concilio Vaticano II, a realização da I Conferência Geral do Episcopado latino-americano (1955), no Rio de Janeiro, convocada pelo Papa Pio XII, nos tempos da denominada “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética pela hegemonia do mundo. No interior da Igreja, existia também um esforço de renovação na teologia, na pastoral e na participação ativa dos leigos na vida eclesial. O documento final da I Conferência do CELAM considera a “população indígena” uma classe […] atrasada no seu desenvolvimento cultural, o que representa um problema de justiça social para a Igreja. Ela entende ter propiciado para os indígenas a “civilização”, a “evangelização”, a defesa contra os abusos, tendo infundido um “profundo sentimento religioso”; espera que logo o “índio” se incorpore com honra no seio da verdadeira civilização” (CELAM, 1955, Conclusões, título IX: Missões, Índios e Gente de cor). Com esse propósito, a obra das Missões entre infiéis deveria continuar com o mesmo espírito apostólico que animou os missionários de outrora. Em suma, os “índios”, assim como o foram durante a colonização, são meros destinatários da missão, objeto da cristianização. A teologia católica não parecia ter mudado muito.

4 O kairós do Papa Francisco

Nos tempos mais recentes de kairós, o cristianismo inculturado na Europa – que caiu na vaidosa sacralização da própria cultura (EG 117) –, é interpelado, com tensão e ao mesmo tempo com esperança, pelo “desafio das múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja” (EG 117) e que vêm especialmente dos povos da periferia do mundo. Povos aos quais ela deseja abrir-se, “sem colonizações ideológicas que destroem ou reduzem a idiossincrasia dos povos(FRANCISCO, 2019), mas em atitude de escuta, de diálogo e aprendizagem da sabedoria desses povos[1].

Entretanto, a pergunta que muitos se fazem é se a Igreja está em condições de, dignamente, dar espaço em seu seio à pluralidade cultural e religiosa da periferia, tendo em vista que, por muitos séculos, ela foi monocórdica e monocultural, a partir do eurocentrismo assumido e usado como veículo de sua identidade e missão no mundo. É certo que o Papa Francisco defende, com sua abordagem da igreja em saída, uma novidade missiológica, pastoral e litúrgica que esteja em condições de acolher a perspectiva dos que não são da cultura ocidental. Entretanto, esse esforço papal, que entusiasma dentro da Igreja e muito mais fora dela, encontrou imediatamente a oposição dos quem não desejam mudar verdadeiramente os esquemas estabelecidos e pretendem frear as transformações.

5 Desafios da Pastoral Indígena atual

O Sínodo Panamazônico, realizado em Roma entre 6 e 26 de outubro de 2019, mostrou que se pode incorporar à Igreja boa parte das questões indígenas. Destacam-se, particularmente, aquelas referentes à relação com a mãe terra, para influir no restante da sociedade por meio de uma Ecologia Integral que se apoia numa conversão ecológica, visando abandonar a agressão à natureza (que é um pecado contra o Criador).

Junto com essa perspectiva, outro dos clamores levados ao Sínodo foi a necessidade de uma conversão cultural, pastoral e missionária que impulsione a Igreja a se inserir nas culturas e tradições religiosas dos povos do mundo, principalmente os da periferia, a fim de que ela chegue a ser “uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena. A razão teológica para tal afirmação foi assim explicitada:

O rosto amazônico da Igreja encontra sua expressão na pluralidade de seus povos, culturas e ecossistemas. Esta diversidade tem necessidade da opção por una Igreja em saída e missionária, encarnada em todas as suas atividades, expressões e linguagens. Em Santo Domingo, os Bispos nos propuseram a meta de uma evangelização inculturada, que “será sempre a salvação e libertação integral de um determinado povo ou grupo humano, que fortalecerá sua identidade e confiança em seu futuro específico, contrapondo-se aos poderes da morte” (DSD, Conclusões, 243). E o Papa Francisco apresenta claramente esta necessidade de uma Igreja inculturada e intercultural: “Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas” (Fr.PM) (INSTRUMENTUM LABORIS DO SÍNODO PANAMAZÔNICO, 2019, n. 107).

O documento conclusivo do Sínodo recolheu esse clamor, afirmando que

Só uma Igreja missionária inserida e inculturada fará emergir Igrejas particulares autóctones, com rosto e coração amazônicos, enraizadas nas culturas e tradições próprias dos povos, unidas na mesma fé em Cristo e diferentes em seu modo de vivê-la, expressá-la e celebrá-la. (DOCUMENTO CONCLUSIVO SÍNODO AMAZÔNICO, 2019, n. 42).

É evidente que um compromisso assim desafia radicalmente a longa prática europeizante da Igreja, cujas estruturas a nível dogmático, teológico, catequético, litúrgico, ministerial e de governo não permitem mudanças que conduzam efetivamente ao que o Concilio Vaticano II chamou de “igrejas particulares autóctones” (AG 6). Na América Latina, as igrejas periféricas são as que impulsionaram essa proposta, trabalhando pelo protagonismo indispensável dos indígenas na elaboração das chamadas teologias indígenas e no surgimento dessas igrejas autóctones a partir das “Sementes do Verbo”, ou seja, da semeadura que Deus já fez, desde a antiguidade, em todos os povos e que deram frutos abundantes do Reino.

O Papa Francisco, com sua Exortação Apostólica Querida Amazônia, endossa e relança as conclusões do Sínodo Panamazônico como voz da Igreja latino-americana e caribenha e como voz de Deus para a Igreja Universal. Entretanto, ele não pôde dar cabida imediata a questões tão controvertidas como a ordenação sacerdotal dos viri probati (pessoas casadas que provaram que podem viver sua fé cristã e seu matrimônio), ou a concessão de ministérios formais para as mulheres – o que, para a maioria dos sinodais, não foi tido como problemático de ser considerado para a Amazônia. A explicação para isso é que ainda não existem as condições para dar tais passos e que, ao tentar implementá-los, só se conseguiria clericalizar as mulheres e os leigos, além de pôr em risco a comunhão eclesial, pois os ultraconservadores desqualificariam não só o Sínodo, mas também o próprio Papa.

Conclusão

A palavra indígena expressada no Sínodo Panamazônico mostra que uma presença nova e valente dos povos originários na Igreja e na sociedade latino-americana já é notória, exigindo transformações de grande importância[2]. Felizmente, essa voz encontrou ressonância no Papa e no grupo majoritário de bispos, que, no final do Sínodo, firmaram o Novo Pacto das Catacumbas, reconhecendo que, embora as condições para as mudanças exigidas ainda não estejam no nível requerido, é preciso caminhar com firmeza na direção desses ideais. Se isso não for feito, não só os indígenas não chegarão a considerar a Igreja como aliada de suas lutas, mas ela perderá também a oportunidade de se inculturar verdadeiramente nesses povos até ter o rosto e o coração deles e, assim, acompanhá-los nos seus esforços por salvar a vida na Mãe Terra.

Por isso, como já tinham expressado, desde a pastoral indígena do passado e dos anos recentes, os profetas e pastores da Igreja Latino-americana e Caribenha, como Leónidas Proaño, no Equador, Samuel Ruíz e Bartolomé Carrasco, no México, Gerardo Flores, na Guatemala, Gerardo Cano Valencia, na Colômbia, Roger Aubry, na Bolívia, Pedro Casaldáliga e Erwin Kräutler, no Brasil, e outros tantos de várias regiões, é necessário enfatizar que, com esses indígenas que se colocaram de pé e se atreveram a caminhar, a recuperar sua palavra e a abrir caminhos novos para a vida[3], a Igreja deve dialogar daqui para frente, sem colonialismos de nenhuma espécie, a fim de ser a melhor aliada e companheira deles na inculturação da Igreja e na transformação do mundo. Se a Igreja ainda não está preparada para esse diálogo horizontal, que escuta, abraça e se soma ao diferente, haverá de acelerar os passos, a fim de estar logo à altura do que a Ruah Divina demanda nestes tempos.

Eleazar López Hernández. Do povo zapoteca de Oaxaca, México. Colaborador emérito do “Centro Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas”.  Texto enviado 30/09/2022; aprovado: 30/10/2022; publicado: 31/12/2023. Original espanhol.

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[1] As palavras inspiradoras com as quais o Papa Francisco inaugurou o Sínodo Panamazônico, em Roma, marcaram o rumo das intervenções dos padres sinodais, ao apontar: “aproximemo-nos dos povos amazônicos em ponta de pés, respeitando a sua história, as suas culturas, o seu estilo do bem viver. […] E aproximemo-nos alheios às colonizações ideológicas que destroem ou reduzem as especificidades dos povos” (FRANCISCO, 2019). Ao abrir as sessões de trabalho, o cardeal Hummes acrescentou: “A Igreja necessita caminhar […], necessita derrubar muros que a cercam e construir pontes […], acender luzes e aquecer corações […], caminhando sempre próxima de todos, principalmente de quem vive nas periferias da humanidade” (HUMMES, 2019).

[2] A esse respeito, são muito eloquentes as palavras dos indígenas ao Papa, em seu encontro com eles, no dia 16 de outubro de 2019.

[3] Palavras de Dom Leônidas Proaño, ao final de sua vida, em 1989.

Mística Inter-Religiosa

Sumário

Introdução

1 A revelação de Deus

2 O diálogo inter-religioso

3 A mística inter-religiosa

Conclusão

Referências

Introdução

Em um contexto fragmentado e diverso, que marca as sociedades contemporâneas, percebe-se um forte pluralismo religioso que desafia as diferentes tradições religiosas. Entretanto, essa realidade cria a oportunidade para que essas tradições possam chegar a uma maior profundidade, assumindo sua real vocação: a de ser caminho para que o ser humano, no mais íntimo de si, entre em contato com a Realidade Última, Deus.

Nesse sentido, os estudos de religião evidenciam que o cultivo da verdadeira experiência religiosa amplia as possibilidades da razão humana, além de permitir e favorecer em seu exercício, dentro do marco insubstituível da finitude que lhe é consubstancial, a felicidade da pessoa religiosa.

Logo, torna-se favorável pensar em uma mística inter-religiosa que seja capaz de impulsionar o diálogo entre as religiões para além de uma simples troca de ideias, conhecimento conceitual ou formulações de verdades.

Em vista disso, abordaremos, em seguida, alguns temas que podem contribuir na construção de uma mística inter-religiosa: a revelação de Deus, a partir da perspectiva da maiêutica histórica, como a propõe Andrés Torres Queiruga, e o diálogo inter-religioso, impulsionado pela experiência religiosa. Finalizaremos apontando a sua importância para a própria experiência religiosa, para a relação entre os religiosos e religiosas das mais diversas experiências de fé e para a convivência harmoniosa na sociedade.

1 A revelação de Deus

A partir do entendimento de que é comum para muitas religiões a convicção de terem sua origem numa revelação divina, é possível pensar que “a revelação é um dado constitutivo da estrutura mesma da religião” (QUEIRUGA, 1995a, p. 20).  Desse modo, caminhos para a comunicação entre as diferentes tradições religiosas podem ser abertos por causa de uma maior tematização da autocomunicação divina, pois é Deus que insiste em querer revelar-se a todos e de modos sempre novos: “Deus é livre para revelar-se quando e como quer” (QUEIRUGA, 1995b.  p. 102).

Ampliar a concepção de Deus presente nas tradições religiosas permite contemplar com mais profundidade seu mistério, é o que propõe o teólogo Andrés Torres Queiruga quando alarga a compreensão sobre a revelação de Deus. Ele utiliza a intuição de Sócrates sobre o termo ‘maiêutica’, ‘dar-à-luz’, e resguarda a importância do mediador (maieuta = parteiro), para com a sua comunidade. Assim sendo, “o mediador, com sua palavra e seu gesto, faz os demais descobrirem a realidade em que já estão colocados, diante da presença que já os estava acompanhando, a verdade que, vinda de Deus, já era ou está sendo” (QUEIRUGA, 1995a, p. 113).

A pessoa religiosa, quando se deixar interpelar por esta Presença, apreende a profundidade de sua realidade, abre-se a uma experiência singular da revelação e se descobre no próprio ser a partir de Deus, no mundo. Essa ação parte sempre de Deus, em direção à pessoa. Quando este acolhe a presença reveladora de Deus permite, por meio desse seu ato, uma abertura ao seu próprio crescimento, à sua realização humana.

Ou seja, na revelação “não se manifesta o que o homem é por si mesmo, e sim o que começa a ser por livre iniciativa divina. Não se trata de um desdobrar imanente de sua essência, mas de uma determinação realizada por Deus na história” (QUEIRUGA, 1995a, p.115). Nesse sentido, para Queiruga, a revelação se dá maieuticamente na história.

Como maiêutica histórica, a revelação “não consiste num estático sempre aí, senão em um ‘sempre aí’ dinâmico, que se atualiza constantemente no novo de sua realização mediante a liberdade do homem e de sua história” (QUEIRUGA, 1995a, p.195).  Ela tem seu aspecto maiêutico na função da palavra, pois possibilita o novo, ‘traz à luz’; não leva para fora de si, nem fala de coisas estranhas, mas devolve ao ser humano à sua mais radical autenticidade. A revelação de Deus ao ser humano implica um intenso encontro consigo mesmo, que se desdobra numa maior percepção sobre a vida e numa melhor contribuição na construção da história.

Desse modo, como um dado constitutivo de toda religião – por ter em sua estrutura o ser humano como seu lugar privilegiado – nenhuma delas pode exaurir a riqueza do Mistério divino. O cristianismo, por exemplo, diante dessa constatação, não deve renunciar à experiência da revelação cristã como manifestação plena e universal de Deus em Jesus Cristo.

A revelação, que aconteceu de maneira insuperável em Jesus, possibilitou o rompimento de toda particularidade. Foi em Jesus que Deus encontrou a oportunidade de entregar-se totalmente à humanidade. Logo, a universalidade do cristianismo se concretiza no estilo de vida e na práxis do cristão, na sua experiência de fé e de religiosidade, porque em Jesus Cristo a universalidade se dá no próprio dinamismo de sua revelação para toda a humanidade.

Nesse sentido, esta Presença consegue ser mais bem percebida por meio de uma experiência religiosa, em que o sujeito religioso vive, nas diferentes tradições religiosas, nas mais variadas formas.  Experiência esta que conduz o ser humano ao encontro com Deus e, ao mesmo tempo, a voltar-se aos demais e auxiliar os que estão em busca de tal caminho. Afirma ainda Queiruga que esse “não faz mais que iluminar, na consciência, a experiência transcendental da própria realidade já agraciada pelo Espírito” (QUEIRUGA, 1995a, p. 1224).

Essa revelação ao ser humano implica para este em um intenso encontro consigo mesmo, em uma maior percepção sobre a vida e uma melhor contribuição na construção da história rica em significado para si e para a sociedade. Nessa perspectiva, a partir da revelação acontecendo maieuticamente na história, dá-se a realização do ser humano, pois, “na resposta à revelação, o homem está se realizando a si mesmo: está construindo, desde a última radicalidade, a história de seu ser” (QUEIRUGA, 1994a, p. 200).

Deus que não cessa de querer revelar-se, nunca deixa de insinuar-se à humanidade por desejar a libertação e a felicidade do ser humano.  Esta é a maior expressão do seu amor: o fato de se dar a conhecer. O sujeito, quando acolhe essa Presença, passa a ser construído desde a sua profundidade, e realiza-se como pessoa. Apenas nesta relação é possível aos seres humanos compreender esse amor de Deus como possibilidade de ser a sua autêntica realização.

Diante do desejo de Deus em querer revelar-se e ser para o ser humano a possibilidade de sua realização é possível entender que, para um sadio pluralismo religioso, impõe-se às religiões superar suas tendências à exclusão recíproca; que isso seja a oportunidade para o exercício da compaixão, da misericórdia e da hospitalidade inter-religiosa.

2 O diálogo inter-religioso

Refletindo sobre o ser humano e Deus, percebemos que o problema não é a religião, mas a dificuldade de vivê-la à altura que exige. Isto é, que a experiência religiosa seja a expressão de quem acolheu a revelação da presença misteriosa que nela habita; quando, portanto, os religiosos e as religiosas puderem dizer ‘Deus’, não apenas por ouvir dizer, mas pela experiência realizada no mais íntimo de si, uma experiência pessoal de transcendência, de realização humana, de consentimento a sua presença amorosa.

Por consequência, o diálogo inter-religioso poderá ter melhor resultado se ele atingir um nível mais profundo, a comunhão para além das palavras e de todos os conceitos, na experiência mais profunda de todo ser religioso. Em um lugar que possa entrar em comunhão com o diferente, com o inefável, com o Absoluto.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) deu um grande salto com relação às outras religiões. Seu ensino sobre as religiões se caracterizou por uma atitude positiva diante das demais, iniciando uma abertura sem precedentes nos posicionamentos oficiais da Igreja em sua relação com os não cristãos. Em seguida, grandes avanços foram feitos, no entanto, todos os paradigmas apresentados se mostraram insuficientes para resolver o desafio da relação do cristianismo com as outras religiões (DUPUIS,1999, p. 106-107).

Diante de tantos modelos que procuraram preservar a identidade cristã, sem se fechar à novidade proposta por outras tradições religiosas, reconhecendo-as em sua alteridade, talvez uma madura experiência cristã de Deus pode ser para os cristãos a possibilidade de encontro com religiosos de outras religiões. É certo que, mesmo que a pretensão de unicidade e universalidade da salvação cristã apresente dificuldades para o diálogo inter-religioso, não podem ser desprezadas as afirmações do Novo Testamento e de toda a tradição de experiências cristãs sobre a revelação divina decisiva e definitiva em Jesus Cristo.

As experiências de místicos como Thomas Merton e Raimon Panikkar são testemunhos que se caracterizam pelo esforço em aprofundar, no reconhecimento da especificidade e singularidade, sua própria experiência cristã de Deus, a partir de sua fé, no diálogo com outras tradições religiosas.

Assim, o pluralismo religioso sugere mergulhar nas raízes da profundidade do próprio Mistério divino pelo qual o religioso se torna capaz de encontrar em si mesmo, não somente quem ele é, mas a Deus. Lembremos que a experiência religiosa faz parte da experiência humana. Segundo Panikkar, a experiência de Deus “não só é possível, como também necessária para que todo ser humano chegue à consciência de sua própria identidade” (PANIKKAR, 1998a).

Cada religião é um canal especial em direção ao Absoluto. Não obstante, por detrás e mais além das características externas, como o credo, os ritos etc., pelas quais é reconhecida e por meio das quais é transmitida. Elas contêm em seu interior um chamado fundamental para que o religioso e a religiosa possam ir mais além de si mesmos, na medida em que têm por essência ser um sinal do Absoluto (MELLONI, 2008, p. 229). Essa realidade contribuirá para o diálogo inter-religioso não se deter “nas diferenças, às vezes profundas, mas confiar-se com humildade e confiança a Deus, que é maior do que o nosso coração” (Diálogo e Anúncio, 1996, n. 35).

Assim sendo, a mística é a possibilidade para que as religiões se descubram, por meio de seus místicos junto com outros crentes e não crentes, o sinal da presença e condição da permanência da fé. Ou seja, deve-se evitar no diálogo inter-religioso o dogmatismo e a indiferença. E, nenhum sujeito religioso está mais bem preparado contra esses perigos que o sujeito místico, por se encontrar na união com Deus; por viver uma experiência de fé na mais absoluta confiança.

São os místicos, nas religiões, os primeiros a reconhecerem que a revelação de Deus tem se dado por muitas mediações, pois eles conseguem “ver na história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, tudo ordena e tudo eleva” (BOFF, 1983, p. 15).

Esses reafirmam que a autêntica fonte das religiões se encontra na experiência mística, pois todas fazem a mesma experiência de ser; porém a expressam segundo a época, cultura, educação e religião que vivenciam (MELLONI, 2008, p. 173). Sem desaparecerem as diferenças entre as tradições religiosas, diz Amaladoss, que “elas vivenciam o mesmo Deus. Mas não têm a mesma experiência” (AMALADOSS, 1996. p. 88).

Por conseguinte, os crentes de cada tradição, quando assumem sua verdadeira identidade religiosa, são capazes de reconhecer e acolher o outro em sua diferença sem negar a sua própria experiência. Logo, “a mística é a ou-topia, o ‘não-lugar’, das religiões e de todo diálogo, na medida em que aponta um campo de ação que está mais além de toda mediação e, ao mesmo tempo, é o lugar mais essencial e originário das diversas crenças e caminhos” (MELLONI, 2008, p. 09).

Desse modo, a autocompreensão do cristão de sua real vocação o abre às demais tradições religiosas (QUEIRUGA, 1999, p. 296). Uma vez que a experiência de Deus, que se dá por meio da experiência de fé, impulsiona o sujeito à acolhida, à aceitação e ao seu reconhecimento com consciência de que esse contato o coloca diante de uma Presença que já existe.

Mesmo que o diálogo inter-religioso tenha se chocado permanentemente com o dogmatismo e com o relativismo indiferente, o cultivo da dimensão mística pode eficazmente ajudar a evitar esses obstáculos, pois a experiência mística permite captar o íntimo parentesco de todas as religiões ao pôr em contato quem a vive com a raiz de onde todas elas procedem.

3 A mística inter-religiosa

Para o psicólogo William James, a raiz e o centro da religião pessoal encontram-se nos estados de consciência mística (JAMES, 1996, p. 285-287).  Sendo esta região o lugar do seu nascedouro é, também, o lugar em que podem se encontrar para aprender a escutar-se e a respeitar-se e, assim, colaborarem juntas na transformação do humano, da sociedade.

Nessa experiência, o ser humano é provocado a um aprofundamento de si e, nesse encontro consigo, descobre-se no desapego que o impulsiona para o exercício da alteridade (BINGEMER, 2013, p. 82-84). Ou seja, para a descoberta do outro, pois a experiência mística não se fecha no encontro amoroso do fiel com Deus. Ao contrário, “Deus vem a ele e ele quer perder-se em Deus. E Deus sempre o reenvia ao outro homem” (CATTIN, 1994, p. 30.) Esta é a razão de ser das religiões serem capazes de indicar caminhos para a Vida (MELLONI, 2008, p. 239). Por isso, todas incidem nas três dimensões que constituem o ser humano: sua afetividade, sua capacidade cognitiva e sua ação no mundo (PANIKKAR, 1999).

As tradições religiosas oferecem um modo de trabalhar sobre estas três dimensões, de um jeito que se vá dando forma à transformação que tem que fazer continuamente. Essa experiência acontece a partir da purificação dos afetos e a iluminação da inteligência para que a ação de cada pessoa sobre o mundo seja a mais transparente, pura e desinteressada possível.

Esta experiência provoca a transformação da vida, que, no lugar de estar centrada na angústia pela sobrevivência, torna-se gozo e oferenda, com a certeza de formar parte de uma totalidade infinita que é pura celebração. Isso acontece por permitir a quem vive perceber a presença do mistério em toda parte, pois “Deus conhece todas as línguas e compreende o suspiro silencioso exalado pelo coração de um amoroso” (TEIXEIRA, 2004. p. 28.)

Por conseguinte, todas as tradições entendem a Vida como via, como caminho, até essa progressiva abertura ao Absoluto. De diversos modos, contém uma progressão em três tempos que, no cristianismo, tomando-os do neoplatonismo, conhece-se como as vias purificativas, iluminativa e unitiva. A progressão no caminho é uma experiência humana universal (MELLONI, 2008, p. 241).

Melloni sugere a aplicação dessas três etapas ao encontro inter-religioso. Para ele, a etapa purificativa encontra-se na conversão que supõe reinterpretar as próprias crenças, ler os textos sagrados e praticar os próprios ritos de um modo que não seja exclusivista. A etapa iluminativa vai aparecendo quando vai-se passando do primeiro estranhamento e de uma informação superficial sobre o outro ao conhecimento e compreensão dessa alteridade, isto é, quando se começa a compreender os textos alheios a partir deles mesmos, ou seja, captá-los com o coração, entendendo por coração a sede mais profunda e receptiva do ser humano.

Por último, a via unitiva do diálogo inter-religioso é assintótica, pois se sustenta no paradoxo de uma união que celebra e venera a diferença. Esta união a-dual entre as religiões é a mesma que acontece no interior de cada caminho entre o Todo e a parte, entre Deus e a criatura, entre samsara e nirvana (MELLONI, 2008, p. 244). Esta união é o não-lugar comum das religiões na medida em que cada uma vai desprezando seu centro em favor do absoluto de Deus.

Alguns são os sinais para que uma religião possa chegar a ir além de si mesma, assimilando um Mistério sempre maior, provocando o “enriquecimento recíproco e a cooperação fecunda na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do homem” (Diálogo e Anúncio, 1996, n. 35), a que “chamamos nosso ser mais profundo, o divino em nós e em tudo o que existe” (MELLONI, 2008, p. 178). Pois é certo que apenas um coração transformado pela experiência de Deus, saberá dialogar e conviver com o diferente. Um coração assim não falará de ouvido, nem com sábias palavras, porém vazias; falará desde o vivido, desde a experiência, raiz e meta de todo autêntico diálogo, colocando em comum suas experiências do divino (MELLONI, 2008, p. 190).

A mística inter-religiosa, tendo como exemplo a experiência cristã de intimidade com Deus, provoca no interior do religioso o desvelamento da verdadeira imagem de Deus em que foi criado. De um Deus que é amor. Essa experiência torna-se para os demais religiosos de outras tradições uma manifestação desse amor.

Aqui está a importância para o melhor desenvolvimento do diálogo entre as religiões: aprofundar, por meio da fé, a experiência de encontro com Deus; descobrir-se e assumir no encontro com outros religiosos que está destinado a viver em harmonia com Deus.

Logo, partindo da presença de Deus no ‘eu’ interior, no exercício de sua capacidade de amar, o cristão torna-se capaz de encontrar Deus nos outros, encontrando a Cristo no lugar antes ocupado por sua individualidade. Para isso, faz-se necessário se desfazer de toda falsa imagem de Deus, a romper com um tipo de experiência de Deus que em muitos momentos comprova uma deficiência, como nos lembra o livro de Jó: “eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te veem” (Jó 42,5).

Isso significa se livrar de todo tipo de formalismo mecânico e compulsivo para poder despertar o fervor interior e espontâneo do coração. E, desse modo, restaurar a orientação profundamente interior da atividade religiosa, almejar a renovação e a purificação da vida interior. Por conseguinte, deixar-se surpreender pela ação do Espírito, a partir de uma experiência de profundidade no ‘eu’ mais profundo que, quando desperta, encontra-se na presença de quem é imagem, Deus.

Portanto, a experiência do Mistério, como centro, pode valorizar a vida religiosa, seja qual for o lugar em que ela floresça, superando a tentação de absolutismo e exclusivismo, bem como o perigo do indiferentismo. Nesse sentido, o caminho para o diálogo inter-religioso deve ser perpassado pela experiência de profundidade desse Mistério.

Nesta experiência de mergulho, a pessoa religiosa se torna capaz de interiorizar e de contemplar, de entrar em si, orar e reconhecer em seu interior a presença silenciosa e amorosa de Deus; de deter-se diante da natureza e do cosmos e descobrir neles a presença do Deus vivo, de reconhecer na história, nos seres humanos a manifestação de Deus; de viver e experimentar que, quanto mais unido a Ele, mais seu semelhante pode ser.

Percebe-se que o contexto de pluralismo religioso indica onde são necessárias as transformações: nas formas de prática religiosa, na procura por viver em profundidade, na recuperação da dimensão da experiência íntima do mistério de Deus e da experiência da unidade com ela.

Entre os níveis de encontro com suas respectivas formas de diálogo que o cristianismo tem buscado concretizar, acredita-se que a experiência de Deus é o que alcança o nível mais profundo. Deve-se estar convicto de que a presença de Deus não é algo exterior à pessoa, que Ele não está fora, mas no próprio interior, na própria vida.

De acordo com o monge Thomas Merton, o auge da vida interior é a contemplação; a experiência de Deus em profundidade, a mística (MERTON, 2007, p. 76). Logo, torna-se importante para a experiência cristã não apenas a consciência do eu interior, mas também, pela fé, uma apreensão exterior de Deus, na medida em que ele se faz presente em seu eu interior.

Nesse mesmo sentido, para Raimon Panikkar a Realidade é totalmente relacional. (PANIKKAR, 1998b, p. 135). O ser humano não é um ser isolado, seu vínculo com o corporal e o divino lhe é constitutivo. A mística é uma experiência humana em sua plenitude, permitindo com que o ser humano faça a experiência do seu último fundamento, do que realmente é. Assim sendo, é uma experiência necessária para que todo ser humano chegue à consciência de sua própria identidade. O requisito indispensável para acolher a experiência de Deus é a integração do interior humano. Logo, o ser humano deve estar em harmonia consigo mesmo e com o universo. Harmonia entre ele e a sua “casa”, entre Deus e os seres humanos, entre contemplação e a ação, entre tudo o que vive e tudo o que morre, entre a renúncia e a conquista de si mesmo.

Por ser uma experiência de profundidade, o ser humano descobre em si mesmo e nos outros seres a dimensão de profundidade, de infinito que existe em tudo. Esta experiência concede humildade e, ao mesmo tempo, liberdade.

Diante disso, é imprescindível que os religiosos e as religiosas se conscientizem de que a mística não distrai o ser humano do cotidiano. Pelo contrário, o coloca em atenção diante dos desafios e necessidades de seu tempo. A experiência mística não separa o amor de Deus do amor ao próximo. O amor a Deus e ao próximo são um só amor. É o amor que se faz humano através de Deus que leva o ser humano à sua plenitude.

Torna-se necessária uma experiência de Deus inseparável de uma experiência de amor. O ser humano que alcança a integração do seu ser, não mais se encontra limitado pela cultura em que está inserido. Aceita a humanidade toda. Quem se abre a essa experiência transcende as divisões para alcançar uma unidade por cima de qualquer divisão.

Conclusão

O fenômeno místico e religioso adquire, nesse contexto plural, um privilegiado lugar de escuta e de resposta. De escuta, porque diante de todos os desafios enfrentados pelas religiões, compreendem a necessidade de retornarem à sua essência para atingir o coração e despertar a conversão. Isso significa conduzir seus fiéis à verdadeira experiência de Deus, visto que este é o desejo que move o coração do ser humano, que, indefeso, procura realizá-lo independentemente de qualquer tradição religiosa.

Sobre a resposta, esta se encontra na experiência de intimidade que o religioso e a religiosa vivem quando cada uma das religiões se move para o absoluto de Deus, voltados para um Mistério que sempre será para todos maior. Por consequência, “a mística é sempre religiosa e a religião é sempre mística” (VELASCO, 1999, p. 31).

Em toda experiência religiosa, encontram-se elementos místicos e em todas as pessoas existe uma predisposição ontológica e psicológica para algo que a experiência mística assegura desenvolver em plenitude. E é, então, nesta abertura ao infinito, base do elemento místico em que se conserva a origem na presença ontológica de Deus no sujeito, que se dá o encontro pela fé.

A mística é um baluarte frente aos reducionismos antropológicos de nossa sociedade e cultura, que solicita uma transformação da religião que passe da ênfase no exterior ao interior. Esse giro requer um salto na consciência religiosa, mais lúcida e desperta, pede hoje uma transformação profunda até o Mistério que a envolve e a sustenta.  Nesse sentindo, para todas as tradições religiosas se aproxima um larguíssimo e frutífero caminho quando conduz seus fiéis a uma experiência que os levem ao mais íntimo de si, ao encontro com a Realidade Última.

Por conseguinte, para o diálogo e encontro inter-religioso, torna-se necessária uma mística inter-religiosa e, nesse sentido, faz-se necessário manter e aprofundar o compromisso religioso único que é próprio para todos os crentes: recuperar a experiência de profundo encontro com o absoluto, com Deus. Como afirma Velasco, a “mística é sempre religiosa e a religião é sempre mística” (VELASCO, 1999, p. 31.)

Cada religião está em um ‘entre’: entre Aquele que o precede e Aquele para o que conduz. E cada tradição recorre a este ‘entre’ de um modo diverso, proporcionando um acesso irrepetível à Realidade primeira e última. Cada uma delas é portadora de uma aurora única, inegociável e irredutível que recorda o Mistério de uma forma insubstituível.

Referências

AMALADOSS, M.  Pela estrada da vida. São Paulo: Paulinas, 1996.

BINGEMER, Maria C. O mistério e o mundo. Paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: mística de ser e de não ter. Petrópolis: Vozes, 1983.

CATTIN, Yves. A regra cristã da experiência mística. In: Concilium 254, n. 4, 1994.

DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999.

JAMES, William. Las variedades de la vida religiosa. Península: Barcelona, 1996.

MELLONI, Javier. (org.). El no-lugar del encontro religioso. Madri: Trotta, 2008.

MERTON, Thomas. A experiência interior: notas sobre a contemplação. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et le cosmos. Entrevista com Gwendoline Jarczyk, Albin Michel: Paris, 1998b.

PANIKKAR, Raimon. Iconos del mistério. La experiência de Dios. Barcelona: Península, 1998a.

PANIKKAR, Raimon. La Trindad. Una experiência humana primordial. Madri: Siruela, 1999.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. Diálogo e Anúncio. São Paulo: Paulinas, 1996.

QUEIRUGA, A. Torres. ¿Qué significa afirmar que Dios habla? In: Selecciones de Teologia 34, n. 134, 1995b.

QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995a.

RONSI, Francilaide de Q.; BINGEMER, Maria Clara L. A mística cristã e o diálogo inter-religioso em Thomas Merton e em Raimon Panikkar. Para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa. Rio de Janeiro, 2014. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do mistério. Mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004.

VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico. Estudio comparado. Madri: Trotta, 1999.

VELASCO, J. Martin. El malestar religioso de nuestra cultura. 2ª Ed. Madrid: Paulinas, 1993.

Paradigmas da Ética Teológica

Sumário

Introdução

1Paradigma ético do cristianismo nascente

2 Paradigma apontado pelo Concílio Vaticano II

3 Paradigma da intersubjetividade

4 Paradigma para uma nova mudança epocal

Considerações finais

Referências

Introdução

Falar de paradigmas é referir-se a princípios que norteiam pensamentos e ações ou a modelos ou padrões que são estabelecidos para indicar um possível conjunto de respostas ou soluções concretas a perguntas ou problemas que surgem em determinado momento histórico.

O conceito de paradigma está, na verdade, muito associado ao mundo da ciência e aos nomes de Thomas Kuhn e Karl Popper, e suas tentativas de compreensão do modo como funciona o conhecimento científico. Kuhn indicou que paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1991, p.13). Assim, os paradigmas surgem da concordância sobre determinados pontos de vista e se configuram como um marco conceitual que possibilita a formulação de uma determinada teoria que responda a perguntas que são feitas.

A ética, reconhecida como ciência que investiga atos, atitudes, costumes e valores do ser humano, aqui pensada à luz da teologia, também se deixou guiar por paradigmas ou modelos de pensamento que se firmaram ao longo da história do Ocidente cristão.

A proposta aqui assumida é apontar os paradigmas que nortearam e norteiam a construção teórica e prática da ética teológica no passado e no presente, e verificar a crise contemporânea desses paradigmas que, de alguma forma, apontam para caminhos ainda não desvendados. Por essa razão, uma breve passagem pela história da ética teológica se fará necessária, mesmo sabendo que contar essa história não é a motivação principal desse texto e que um outro verbete poderá fazê-lo mais adequadamente.

Assim, apontaremos os paradigmas que marcaram alguns tempos específicos da história da humanidade no Ocidente cristão, recordando que cada paradigma é um modelo de pensamento que, por sua vez, suscita diferentes modos, métodos e sistemas de se fazer teologia moral em cada contexto, gerando atitudes e perspectivas que marcaram a ética teológica e a vida dos cristãos.

1 Paradigma ético do cristianismo nascente

O primeiro paradigma a ser recordado é o paradigma ético do cristianismo primitivo, que nasce com a encarnação de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus feito Homem. No entanto, é preciso lembrar que Jesus, sendo judeu, nasceu em um tempo e em uma cultura determinada, já constituída, com valores, normas e costumes consagrados. Temos, nas Sagradas Escrituras, o Antigo ou Primeiro Testamento, com textos que narram o início da História da Salvação que coincide com a história do povo judeu. O que nos interessa aqui é afirmar, a partir desse texto revelado, que o ethos judeu se ancorava em uma ética fundada no “paradigma da Lei”: a lei do Sinai, recebida por Moisés, os assim chamados dez mandamentos, que foram ampliados para inúmeras outras leis, postas com a intenção de interpretar e detalhar o que precisava ser observado e cumprido pelo povo da Aliança. Jesus, como bom judeu, não nega a lei de Moisés, mas a atualiza e a amplia, paradoxalmente simplificando-a. Reduz os dez mandamentos e as 613 leis descritas no Pentateuco a duas, que no final se resumem em uma só: a lei do amor. Assim, do judaísmo para Jesus pode-se pensar em uma primeira mudança de paradigma ético. Essa mudança, do paradigma da Lei para o “paradigma do Amor”, é muito importante para que se possa compreender o que se passou depois.

Bem no início do cristianismo, quando ainda não existiam formulações teóricas consistentes e o agir humano era orientado pela tradição oral, que traduzia e interpretava os ensinamentos de Jesus, a ética que regia as primeiras comunidades cristãs contemplava as atitudes que mais se aproximavam das palavras e ações do Mestre Jesus. O paradigma do Amor fundamentava o ethos cristão.

No entanto, já no século I, começaram a surgir escritos, que mais tarde foram denominados de Novo ou Segundo Testamento, na composição das Sagradas Escrituras. Esses escritos, que trazem os quatro Evangelhos, os Atos dos apóstolos e as Cartas, enviadas às comunidades cristãs por Paulo e outros apóstolos, são considerados como Revelação e, por essa razão, fontais e paradigmáticos para toda a ética que se diz cristã. Bernhard Häring fala de um “Paradigma da Fidelidade Criativa” na Igreja apostólica, exemplificando-o por fatos descritos sobretudo nos Atos dos Apóstolos, quando os discípulos de Jesus foram chamados a solucionar conflitos surgidos em razão das diferenças culturais entre aqueles que aderiram à fé cristã. Alguns rompimentos criativos que desafiavam a Igreja estabelecida, naquele momento, colocava os apóstolos na fidelidade a Jesus e à sua proposta evangélica (HÄERING, 1979, p. 36).

Surgiram, no entanto, outros textos entre os séculos I e IV. Entre eles se destacam a Didaqué, os evangelhos chamados apócrifos e as homilias e escritos dos Padres da Igreja. Todos esses escritos continham ensinamentos práticos que indicavam como os cristãos deviam ser e agir. Pode-se dizer que o paradigma, o modelo ou fundamento, nesse contexto, era também o da fidelidade criativa a Jesus e aos valores do Reino por ele anunciado, embora já começasse a aparecer aqui, uma certa influência do mundo helênico na elaboração dos textos dedicados à exortação dos cristãos.

Filósofos como Platão e Aristóteles foram fundamentais para uma síntese entre cristianismo e filosofia grega e para a introdução de um novo paradigma que sustentou a ética teológica. Santo Agostinho, do século IV, considerado o maior pensador da antiguidade cristã latina, tem seus escritos fortemente marcados pela síntese feita a partir do encontro do cristianismo com o platonismo. Santo Tomás de Aquino, já no século XIII, utiliza as categorias aristotélicas na explicitação de sua teologia.

O teólogo José Roque Junges (2004) propõe uma reflexão sobre os paradigmas do pensamento que podem ajudar a pensar seu impacto na formulação de paradigmas éticos. Segundo ele, a história do pensamento ocidental pode ser vista e estudada a partir de três paradigmas: o “paradigma do ser”, o “paradigma da consciência” e o “paradigma da linguagem”. Cada um desses paradigmas se apresenta como um quadro referencial, uma lógica que rege a reflexão e a vida, correspondendo a um discurso ético.

Seguindo sua reflexão, pode-se compreender que o “Paradigma do Ser”, também considerado como o “paradigma da natureza”, é aquele que se fez presente na Antiguidade e na Idade Média, e que tem como ciência de fundo a metafísica. Seu “objetivo básico é a explicitação do ser de todas as coisas” e, para isso, busca uma aproximação com a natureza das coisas. Esse paradigma tem a pretensão, na verdade, de “captar o que é permanente na aparência passageira da realidade e tornar claro qual o princípio explicativo ou a essência que serve de suporte à existência das coisas” (JUNGES, 2004, p. 11).

A antiguidade cristã, como sabido, sofreu uma forte influência do paradigma platônico, que pode ser considerado idealista ou essencialista, pois aposta em um mundo onde as ideias existem em si e por si e são consideradas realidades universais, eternas e imutáveis. São essas ideias que sustentam, como modelo, a existência das coisas no mundo sensível, do qual o ser humano participa. A ética cristã, que se delineia sob esse paradigma, sobretudo a partir dos escritos de Santo Agostinho, sabidamente platônico, é uma ética idealista, que despreza o mundo real, é dualista, pois considera o ser humano fraturado sob a ótica da oposição/exclusão entre corpo e alma, e pessimista em relação a esse ser humano e sua história, pois na participação do mundo sensível ele é apenas uma cópia imperfeita do que deveria ser e por isso não consegue realizar o bem que almeja.

No mundo medieval, sobretudo no contexto escolástico, a influência é de Aristóteles. O paradigma aristotélico é empirista e realista, pois tem como base a realidade do mundo habitado. Tomás de Aquino retoma o aristotelismo, que apresenta a lei natural como aquela que define o ser humano, o qual, em sua essência, é um ser racional. Assim, a reta razão se dedica a descobrir e a explicitar as inclinações da natureza humana, que tende a buscar a felicidade. Essa felicidade só pode ser encontrada na prática do bem agir, que só acontece se o agir for virtuoso. Assim, “a moral, neste paradigma, é essencialmente uma moral de conteúdos que conduzem à felicidade e são descobertos pela reta razão, explicitados no ethos e interiorizados pela virtude” (JUNGES, 2004, p. 11).

Marciano Vidal, em seu intento de reconstituir e classificar os modelos da ética teológica, fala de quatro épocas, pensadas a partir de alguns pontos nevrálgicos que, segundo ele, oferecem base para a construção dos modelos morais. São elas: a patrística, a medieval, configurada, sobretudo, pela práxis penitencial, a do renascimento tomista e a da casuística, etapa essa que já estava presente nos tempos modernos, começando no Concílio de Trento e terminando no Concílio Vaticano II (VIDAL, 1986, p. 99).

Com Junges é possível afirmar que o paradigma tradicional, aqui apresentado como o “Paradigma do Ser”, não responde aos novos desafios trazidos pelo sujeito moderno, marcado pela perspectiva histórica, e que seus pressupostos obedeciam a um modo de pensar superado e incompreensível aos homens e mulheres da época em que surgiu.

Na mesma direção, Marciano Vidal fala de “fundamentações insuficientes da ética cristã”, que geraram “formas incorretas de vivência moral” (VIDAL, 1986, p. 179). Ele apresenta em dois grupos os modelos que denomina incorretos ou insuficientes, com os quais se formulou e se viveu a ética cristã: os modelos baseados na heteronomia e os modelos baseados na natureza humana normativa.

Vidal descreve da seguinte maneira os modelos éticos baseados na heteronomia: são modelos morais baseados na “proibição”, no tabu (fundamentação mágico-tabu); no mito (com uma fundamentação mítico-ritualista); na “obrigação extrínseca” (de caráter voluntarista, que destaca duas formas mediadoras da moral: o voluntarismo nominalista e o casuísmo); no “estabelecido” (fundamentação no positivismo sociológico) e na “utilidade” (fundamentação utilitarista).

Ainda segundo Vidal, os modelos éticos baseados na “natureza humana normativa” são os de caráter ontológico-abstrato, baseados na ideia de “lei natural”, e os de inspiração físico-biológica, baseados na ideia de “ordem natural” (VIDAL, 1986, p. 180-197).

Bernhard Häring também aponta a insuficiência desse paradigma “tradicional”. Segundo ele, uma teologia moral desse tipo (de tendência legalista e orientada para a solução de casos no confessionário), que acabou produzindo sistemas morais como o tuciorismo, o rigorismo, o probabiliorismo, o probabilismo e o laxismo, “não mais podia favorecer os exemplos de discipulado, daquela justiça que provém da ação justificadora de Deus e da resposta de amor ao seu chamado, para que a pessoa se torne cada vez mais a imagem e semelhança de sua própria misericórdia” (HÄERING, 1979, p. 50-51).

Pode-se dizer então, que há um certo consenso entre os teólogos moralistas de que o paradigma metafísico não mais respondia às questões trazidas pela modernidade e que um novo paradigma que sustentasse a ética cristã precisaria ser encontrado.

2 Paradigma apontado pelo Concílio Vaticano II

Voltando a Junges, vamos verificar o segundo paradigma do pensamento moral proposto por sua leitura o da “Consciência ou do sujeito”. Esse paradigma se firma em função da mudança epocal que acaba por separar o tempo anterior de um novo tempo, denominado pelos autores de Modernidade. Nesse tempo deu-se a virada antropocêntrica que trouxe o sujeito para o centro de todas as reflexões e da elaboração da compreensão do mundo e dos valores. Não mais Deus, nem o cosmos, mas o ser humano, é agora considerado o principal figurante de um mundo a ser ordenado, manipulado e construído.

Assim, “a crítica do conhecimento ocupa o lugar da metafísica como ciência mestra. O único conhecimento verdadeiro aceitável pela crítica é o adquirido pelo método da ciência”, que, não por acaso, é feita pelo sujeito pensante (JUNGES, 2004, p. 12).

A modernidade, portanto, significou a superação do paradigma da heteronomia e da determinação da natureza e trouxe a introdução do contrato social, baseado não mais numa lei universal, mas na “lei constituída pela vontade geral”. A lei, assim, não é mais resultante de uma imposição heterônoma, mas da aceitação autônoma das consciências que pensam e decidem por sua própria conta. A ação moral considerada boa é aquela que corresponde à avaliação positiva das consciências autônomas que assim a decidiram. Segundo Junges, estamos diante de uma “ética da consciência autônoma como base para a obrigatoriedade da lei” (JUNGES, 2004, p. 12).

No âmbito católico, o Concílio Vaticano II foi o principal responsável pela introdução desse modo de ser e pensar na reflexão ética. Ele compreende a mudança epocal que desemboca na modernidade e coloca a escuta dos “sinais dos tempos” como método imprescindível para se fazer teologia e viver a fé. Desse modo, a partir da observação de novos tempos e costumes, a ética teológica precisou ser repensada, longe dos pressupostos metafísicos, do legalismo, do juridicismo, do rigorismo e da casuística.

É importante lembrar que, mesmo antes do Concílio, as intuições que nele foram expressas já se faziam presentes e foram afirmadas por grandes teólogos. Como exemplo podemos citar os teólogos jesuítas que, segundo Häring, “percebiam, com grande perspicácia, que um número demasiado grande de leis e de sanções sufocava a liberdade e a criatividade do fiel”. Também Santo Afonso de Ligório, continua o grande teólogo moralista da época do Concílio, ao trazer o equiprobabilismo como alternativa aos sistemas morais anteriores, apontava para o seguinte:

quando uma consciência reta tem uma quantidade igual ou quase igual de boas razões para o uso criativo da liberdade, visando a necessidades presentes, ela não está obrigada pela lei que, em si mesma ou em sua aplicação concreta, é duvidosa (HÄERING, 1979, p. 53).

Essas e outras intuições, apresentadas no século XIX e início do século XX, associadas às mudanças civilizatórias, deram ao Concílio a base para suas reflexões e propostas. Nesse sentido, a recomendação conciliar de “volta às fontes”, era um apelo a que a ética teológica tivesse como fundamento principal a Sagrada Escritura e não mais o Direito. Isso para que os cristãos pudessem revelar ao mundo e no mundo sua adesão a Jesus Cristo e à sua proposta de implantação do Reino de amor. No Decreto Optatam Totius, do Concílio, pode ser encontrada essa recomendação:

Ponha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para vida do mundo (OT 16, grifo nosso).

A importância da ciência e a força da autonomia do sujeito pensante também foram reconhecidas, fazendo com que a ética cristã assumisse, como lugar teológico, a consciência individual e a reciprocidade das consciências. A Constituição pastoral Gaudium et Spes, também do Concílio, traz um parágrafo fundamental para a compreensão desse paradigma. Na retomada de um pequeno trecho pode-se perceber sua importância e alcance:

[…] A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social […] (GS 16).

O Concílio provoca, então, um exame autocrítico dos princípios norteadores da ética teológica e faz alguns deslocamentos: da perspectiva “estática para a dinâmica, da teoria para a prática, da lei para a consciência” (ORDUÑA; ASPITARTE; BASTERRA, 1980, p. 91). Segundo esses autores, o que se verifica é uma “reconversão a Cristo, como princípio entitativo, à Sagrada Escritura, como princípio primordial de conhecimento, e à Caridade, como princípio operativo da conduta moral”.

Bernhard Häring, padre conciliar, teve uma grande influência nas reflexões que aconteceram em torno do Vaticano II e propõe, nesse contexto, para a ética teológica, o “paradigma personalista Bíblico-Cristão”. Esse paradigma tem a característica de trazer para o centro da reflexão ética a pessoa de Jesus Cristo, Deus e homem. Como bem expressa Häring, retomando Bonhoeffer, “o ponto de partida para a ética cristã não é a realidade de nosso próprio ser, nem é a realidade dos padrões e dos valores. É a realidade de Deus, como ele se revelou em Jesus Cristo” (HÄERING, 1979, p. 62). Jesus é o protótipo do que devemos ser, da resposta que devemos dar a Deus que nos chama à vida. Suas palavras e ações devem guiar o agir de cada pessoa no espaço que habita e no tempo em que vive. Assim, para esse paradigma, o antropocentrismo gira em torno de Jesus de Nazaré, o homem exemplar, a revelação da humanidade em plenitude.

É importante também lembrar que o paradigma personalista do século XX teve sua inspiração em Tomás de Aquino, que tem uma importante reflexão sobre a noção de pessoa. Como ele concebe a natureza humana como racional e afirma que cada indivíduo é uma pessoa, seu pensamento permite considerar o ser humano como um ser criado à imagem e semelhança de Deus, ético e livre, que pode distinguir entre o bem e o mal e decidir o rumo de sua vida.

Assim, o personalismo proposto por Häring traz à tona quatro palavras indispensáveis: liberdade, fidelidade, responsabilidade e criatividade.

A partir dessas palavras, o autor propõe algumas passagens importantes que aconteceram nessa mudança de paradigma, como por exemplo: da eleição como prestígio ao chamado para ser sinal; da idolatria à fidelidade à verdade; da escravidão das normas à liberdade da Lei do amor; da obediência cega à responsabilidade criativa; do casuísmo legalista à moralidade da Aliança e das Bem-aventuranças (MILLEN, 2005, p. 135-188).

Muitas teses de doutoramento foram feitas e muitas obras foram escritas a partir do pensamento de Häring, que trabalhou exaustivamente para que esse novo paradigma ético, atento às necessidades dos novos tempos e, ao mesmo tempo, atento às raízes cristãs mais originárias, pudesse ser implementado.

Apesar de trazer uma mudança necessária e frutífera, o paradigma personalista, que deu ensejo à chamada Moral Renovada, foi considerado, por alguns teólogos, como insuficiente (VIDAL, 1986, p. 200). Roque Junges prefere falar em lacunas e não em insuficiências. Segundo ele, a Moral Renovada, fundada em uma ética personalista,

apresenta uma visão ingênua e simplista da sociedade moderna, não dando atenção ao conflito e à injustiça, não levando em consideração a complexidade da realidade atual. Caracteriza-se, igualmente, por uma concepção otimista do mundo, olvidando a realidade do mal e do pecado e desconhecendo as dinâmicas culturais que movem os processos sociais e políticos […] não consegue captar a complexidade da ação humana contextualizada. […] Parte de um ser humano fora do seu contexto sociocultural. Não tem uma perspectiva social que pensa com base nas maiorias marginalizadas. Os ouvidos não estão abertos ao grito dos pobres que se torna sempre mais ensurdecedor. Por isso não consegue captar a complexidade da ação humana contextualizada (JUNGES, 2005, p. 21).

Em razão dessas críticas e do apontamento das lacunas e insuficiências, surgiram, em alguns contextos, sobretudo onde as desigualdades e injustiças produziram pobrezas e sofrimentos eticamente inaceitáveis, outros modos de se fazer teologia, outras correntes teológicas, como por exemplo a Teologia do Povo e a Teologia da Libertação, geradas na América Latina, a Teologia Feminista e as questões de gênero, a Ecoteologia, entre outras. Esses modelos teológicos trazem uma metodologia baseada no ver, julgar e agir, que muito ajuda na compreensão do ethos dos povos e da dinâmica da vida que sustenta projetos sociais e políticos. Assim sendo, influenciaram na reflexão ética e na moral a ser vivida, mas, por razões a serem revisitadas, não foram bem compreendidos por alguns e em certos contextos até rejeitados. É possível dizer que eles também são frutos da reflexão conciliar, mais subliminar, menos publicizada e vivida, e que se inserem no terceiro paradigma da ética teológica no mundo católico, denominado por Roque Junges como o da Linguagem ou da Intersubjetividade.

3 Paradigma da intersubjetividade

Esse paradigma introduz a perspectiva intersubjetiva e por isso rompe com a tendência antropocêntrica e individualista do paradigma anterior. A linguagem, como meio de expressão de nossas vivências, se torna um mecanismo básico para o estabelecimento de relações interpessoais. Assim, a comunicação pela linguagem, fundamentada entre sujeitos que refletem, passa a ser o eixo sobre o qual se constrói o pensamento. Jürgen Habermas é um dos autores que corroboram esse paradigma. Ele traz uma Ética do Discurso, cujo eixo é a Teoria da Ação Comunicativa. Essa teoria propõe que se escolha valores e se busque a verdade a partir de uma lógica racional intersubjetiva que trabalha com a suposição de que existem normas racionalmente validáveis (HABERMAS, 2012). “A verdade passa a ser, então, fruto de um consenso construído pela comunidade de comunicação onde todos têm a priori acesso à palavra” (JUNGES, 2005, p. 13). Nesse contexto, consensos, que podem ser mínimos ou até provisórios, são buscados e aceitos e se apresentam como necessários à vida.

Não se pode esquecer aqui também a contribuição de Lévinas, que traz para a reflexão a questão da alteridade. Seu pensamento está organizado em torno de uma ética dialógica, que se contrapõe ao paradigma puramente personalista, que é monológico, autocentrado. Para Lévinas, quando o outro é percebido como Alteridade, se torna fonte das grandes experiências de vida e base genuína da ética. Assim, a ética, no horizonte da alteridade, já não é mais pensada em função do protagonismo do sujeito pensante, mas da sua relação com um outro, com um rosto que convoca, que pede uma resposta (LEVINAS, 2008).

Apesar da importância e da atualidade desse paradigma, que traz para o centro a intersubjetividade, o que se pode perceber é que a contemporaneidade vive um momento ímpar, marcado por uma crise de sentido que está a suscitar uma outra mudança epocal.  Essa mudança se encontra em plena realização, ainda não concluída e provisoriamente nomeada por alguns de pós-modernidade ou modernidade tardia. Estamos em plena crise civilizatória. As transformações observadas nos últimos sessenta anos correspondem a uma verdadeira revolução do conhecimento e de sua aplicabilidade, com perspectivas inéditas ainda a serem implementadas.

Vive-se hoje, entre outras, uma crise da razão que atinge a ciência, a concepção de conhecimento e de mundo. A constatação da complexidade de todas as coisas exigiu que se trabalhasse a partir de especializações que, pela redução, separaram para conhecer melhor e, por isso, trouxeram uma visão simplificadora da realidade e uma diluição do todo. A visão de conjunto ficou rarefeita e as relações que intercorrem entre os diferentes elementos que compõem a realidade ficaram obscurecidas. Assim, a fragilidade do pensamento fragmentado, a desconfiança com relação aos sistemas instituídos, o cansaço, a apatia, a desilusão e a sensação de não pertença e de impotência diante da vida são sentimentos generalizados que passam a moldar um novo ethos, que reclama uma nova ética.

A contemporaneidade tem sido descrita por muitos autores através de metáforas e expressões que retratam o vivido. Entre outras temos a de “mundo líquido” (BAUMAN, 2001), “sociedade do cansaço” (HAN, 2017), “mundo da pós-verdade”, do “pós-humano”. Essas metáforas e expressões sugerem a necessidade de novos paradigmas para se pensar a vida e o agir. Talvez o que possa fazer jus a esse tempo ainda incompreendido, seja o “Paradigma da Complexidade”, trazido por Edgard Morin. Os desafios desse modelo de pensamento estão bem explicitados em seu livro Ciência com consciência (MORIN, 2005) e sintetizados por Roque Junges (JUNGES, 2005, p. 22-23).

Esse paradigma coloca o ser humano diante de um mundo plural, não compreensível através de um único eixo de pensamento. Coloca-o diante do imprevisível, do caminho que deve ser feito ao caminhar e não daquele dado antecipadamente; coloca-o diante de si mesmo e de sua impotência e vulnerabilidade; coloca-o diante da constatação de um mundo interligado, interconectado e, por isso, talvez seja esse o paradigma que a Ética Teológica tenha que assumir.

4 Paradigma para uma nova mudança epocal

Propor um novo paradigma ético em um tempo tão complexo, não é tarefa fácil, mas alguns aportes podem ser úteis para que aos poucos se possa sair dessa situação caótica para um tempo em que o complicado possa ser harmonizado e a vida se apresente mais venturosa.

Seguindo Junges,

A atual complexidade do contexto sociocultural e do agir dos indivíduos exige um novo paradigma de compreensão da própria ética teológica, se a mensagem cristã quiser continuar a ter alguma incidência no cotidiano das pessoas e na realidade social. O paradigma da complexidade organiza o conhecimento em novos moldes mais adequados para entender situações complexas, frutos de multivariadas inter/retrorelações. Ele ajuda a superar uma visão maniqueísta que não sabe levar em consideração essa variedade de elementos e dimensões, englobando a própria desordem na ordem, o desequilíbrio no equilíbrio. A ética teológica necessita de um choque epistemológico (JUNGES, 2005, p. 27).

Esse choque epistemológico pode ajudar na revisitação da novidade do próprio cristianismo que, deturpado por interpretações equivocadas e por acréscimos indevidos, serviu e ainda serve para justificar modelos éticos que não conseguem mais responder às perguntas de hoje.

Desse modo, propor um paradigma ético para esse tempo complexo e mutante se faz necessário e o “Paradigma do Cuidado” pode ser uma aposta plausível. Esse paradigma, explicitado por Leonardo Boff no livro Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra, permite a apreensão da complexidade do ser humano, como ser vivo em relação com todos os outros seres criados. Permite também o reconhecimento da complexidade do agir humano, levando em conta as circunstâncias existenciais e a conexão entre tudo o que existe, e permite ainda a construção de um caminho ético que contemple a volta à Lei do amor, proposta lá no início por Jesus de Nazaré. O paradigma do cuidado traz como eixo a corresponsabilidade terna e cuidadosa pela vida de todos e todas e por toda a vida que existe, na dinâmica da paraclese, que se funda no Espírito que cuida, consola, sustenta, inspira e nos leva a esperançar.

Em um mundo desagregado e desorientado por inúmeras guerras e polarizações, pela indiferença que fere, pela competição que exclui o outro, pela depredação da casa que é comum a todos e que constitui a única possibilidade de sobrevivência para a espécie humana e para toda a criação, mais que nunca a corresponsabilidade solidária e a fraternidade universais são urgentes. Assim, a ética cristã não se configura mais como aquela que deve garantir determinadas condutas ditadas por regras fixadas desde sempre, mas como aquela capaz de buscar a experiência do amor, reinventado e recriando de novo, a cada vez. É o amor que possibilita o sentimento de irmandade universal, proposto por Francisco de Assis e por Francisco de Roma.

O Papa Francisco diz assim:

Fratelli tutti: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, “o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si”. Com poucas e simples palavras, explicou o essencial de uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita (FT 1).

O amor é cuidadoso, não aceita a violência e é caminho seguro para a cura e a paz. Esse é, portanto, um paradigma terapêutico, tão necessário a um mundo adoecido e fraco na esperança, a um mundo que passa por turbulências e gera pessoas enfermas e desoladas. Boff diz que a categoria “cuidado” é um modo de ser que mostra como funciona bem o ser humano enquanto tal, diferentemente das máquinas. E esse modo não vem da razão, das estruturas de compreensão, mas do sentimento, da capacidade de ternura, de compaixão, de empatia, de dedicação, de comunhão com o diferente (BOFF, 1999, 2010).

Talvez não fosse importante pensar agora em paradigmas do pensamento, embora eles tenham seu lugar e tenham sido extremamente úteis para nortear o que se viveu até aqui, mas pensar e assumir os paradigmas do coração, paradigmas que tenham como eixo não o logos, mas o pathos, o sentimento cordial que nos constitui humanos.

O “paradigma do cuidado” nos possibilita olhar para várias situações do tempo presente que clamam por soluções mais justas. Uma delas é a urgente necessidade da retomada de uma ética ecológica que resgate os valores necessários à reabilitação da casa comum, da mãe terra, tão desgastada e depredada pelo consumismo e pela ganância sem limites. O planeta terra está esgotado e dando mostras de que não suporta mais ser espoliado. A consciência de que seus recursos não são infinitos ainda não é uma aquisição de todos, por isso a educação ambiental precisa ser assumida para ajudar no crescimento da consciência do bem comum, da solidariedade, da responsabilidade de cada um e de todos por tudo aquilo que diz respeito à preservação da vida na terra. O Papa Francisco vai além. Ele nos propõe uma ecologia integral, aquela que assume o cuidado para com tudo o que é frágil, aquela que olha para as necessidades da terra, mas também para as de todos que a habitam. Ele nos conclama a encontrar soluções não só técnicas, racionais, mas aquelas que contemplem as mudanças que precisam acontecer no ser humano, mudanças de mentalidade, mudanças de hábitos, mudanças na lógica do viver. Há necessidade de um processo educativo que nos leve a isso. Um pequeno trecho de sua Encíclica Laudato si nos ajuda:

A educação ambiental tem vindo ampliar os seus objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na conscientização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos “mitos” da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão (LS 210)

Assim pode-se dizer que o paradigma do cuidado aponta para essa nova lógica, para uma ética ampliada, que contempla outros sujeitos e permite um modo novo de estar no mundo diante dos outros humanos, diante da natureza e diante de Deus, sonhando com um mundo modificado, mais acolhedor e mais saudável.

Uma outra situação do nosso tempo, que não pode ser olvidada, é a passagem da era analógica para a digital, uma passagem ainda não assimilada nas suas consequências tanto positivas quanto negativas. A tecnologia digital nos moveu para um outro universo do conhecimento, que traz a máquina “inteligente” para o centro da reflexão. Isso exige um repensamento do lugar do ser humano no mundo atual. Paolo Benanti nos diz que o ser humano não está se transformando, mas o que está mudando é o modo como o ser humano se vê e se descreve e que ainda é preciso estabelecer uma diferença entre a máquina, que funciona e o ser humano, que existe. Isso não é pouco. Diz ele:

Somos chamados a nos perguntar sobre como nos valer da máquina para que o humano seja cada vez mais humano, para que o cuidado do próximo, sobretudo do último, do frágil e do fraco, ocorra da melhor maneira possível e para que o bem, buscado com livre determinação, seja verdadeiro (BENANTI, 2000).

Diante desse horizonte, somos chamados a recuperar o sentido profundo de existirmos como sujeitos éticos, seres humanos conscientes do bem e do mal e capazes de escolher o bem. As palavras que aparecem quando se junta ética e mundo digital são: dignidade humana, justiça equitativa, responsabilidade, transparência, inclusão, segurança e solidariedade. O Paradigma do Cuidado consegue dar conta dessa tarefa. O cuidado com o que existe em um mundo onde o que vale é o que funciona se torna cada vez mais necessário.

Considerações finais

Diante do exposto, não é possível elaborar uma conclusão. Tudo está em aberto, tudo pode ser repensado, a partir de uma ‘cultura do encontro’, do diálogo entre humanos que se tratem não como sócios, mas como irmãos, respeitando as diferenças e renunciando a compreender de modo fixista e monolítico a realidade dada. O convite que fica é que a reflexão continue, sem deixar que se perca o fundamento da proposta inicial feita por Jesus de Nazaré e que a crise atual possa ser momento propício para crescimento e maturação na busca de caminhos que apontem saídas promissoras e, talvez, outros paradigmas éticos que deem conta de novas realidades ainda não compreendidas e integradas. A esperança não pode esmorecer e deixar que o pessimismo domine esse momento. Ela precisa ser a mola mestra a nos sustentar para que a ética cristã não permita que o cuidado, que nasce do amor, definhe ou fique em segundo plano em um mundo que privilegia a funcionalidade e a eficácia.

Maria Inês de Castro Millen (Centro de Estudos Superiores, Juiz de Fora). Texto submetido no dia 25/08/2022; aprovado no dia 30/10/2022; postado dia 30/12/2022. Original em português

Referências

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Mística e Padres da Igreja

Sumário

1 Breve status quaestionis

2 De que mística falamos?

3. Particularidades do período patrístico

4 A consciência mística

5 Noções fundamentais para uma busca “mística” de Deus no período patrístico

Conclusão

1 Breve status quaestionis

O objetivo deste texto é oferecer ao leitor interessado na relação entre Mística e Padres da Igreja uma espécie de mapa do território, para que possa ter uma primeira ideia geral das características específicas da questão e possa assim orientar-se num assunto nada fácil de ser enquadrado no quadro de uma unidade estruturada. Por motivos que ficarão claros no decorrer de nossa exposição, provavelmente não é possível dar a resposta completa que talvez o leitor esperaria. Mas – outro lado da moeda – trata-se de uma área que ainda comportaria muitas pesquisas, para podermos chegar a uma visão de conjunto mais completa, que no atual estado da questão, ainda não pode ser alcançada.

Uma das evidências do que estamos dizendo é o fato de que não existe até hoje uma obra que aborde diretamente a questão da mística nos Padres. Quanto sabemos há dois verbetes específicos, o verbete “Padres”, no Dicionário de Mística (PASQUATO, 1998) e o verbete “Mística”, no Nuovo Dizionario di Patristica e Antichità cristiane (MORESCHINI, 2006).

Este último verbete aponta fundamentalmente para a linha alexandrina (Filão, Clemente, Orígenes, Evágrio e o Ps. Dionísio) apresentando brevemente alguns aspectos gerais. O verbete escrito por Pasquato, substancialmente, articula as indicações do fundamental artigo de L. Bouyer (BOUYER, 1949) sobre a história do uso antigo do termo mística/místico, acrescentando a menção indispensável da questão do mistério, como, aliás, também Moreschini o faz. Em nossa opinião, apesar de sua necessária brevidade, fornece as coordenadas essenciais para abordar a questão, como mostraremos mais adiante.

Outras informações encontram-se na parte “histórica” dos verbetes de dicionário ou de obras que tratam de mística. Mas as referências aos Padres são sempre muito genéricas: ou acolhem as conclusões do artigo de Bouyer, ou praticamente ignoram os Padres, como, por exemplo, o verbete “Mysticism”, da Encyclopedia Britannica. É emblemático o caso do conceituado Dictionnaire de Spiritualité. Na parte histórica do verbete “Mystique” (SOLIGNAC, 1980), não se abordam nem o NT nem os Padres, mas se remete ao verbete “Mystère” do mesmo dicionário, e à secção histórica do verbete “Contemplation”; mas no verbete “Mystique” o itinerário histórico da mística inicia com a Idade Média. Depois, dedica-se à mística e aos Padres uma breve secção dentro da subdivisão “Mystique. III. La vie mystique chrétienne” (AGAESSE-SALES, 1980), quando aborda o período patrístico. Os autores que escrevem sobre mística cristã têm em geral uma parte histórica, mas, dependendo da definição, implícita ou explícita, que têm de mística, consideram os Padres na medida em que têm ou não aquela ideia de mística. É, por exemplo, o caso de VANNINI (2018). Não existe, pois, uma obra que pesquise positivamente a questão da mística nos Padres.

A primeira obra que pareceria ter abordado a questão de modo direto é o famoso livro Ascetica e mística nella patristica. Un compendio della spiritualità cristiana antica (VILLER-RAHNER, 1991). O original é de 1939 e, apesar da contribuição decisiva de K. Rahner, o texto ainda se ressente, talvez, de uma ideia “clássica” de mística e ascese. Além disso, persiste uma ambiguidade entre espiritualidade e mística, que encontramos também em outros autores (cf. as observações de MCGINN, 2008, especialmente p. 44-45). A obra faz uma apresentação de cada autor, como recortes no fundo autônomos, nos quais se ressaltam os elementos “místicos”, mas não se aborda a questão do período patrístico como tal.

Uma reviravolta notável foi dada para a história da mística ocidental de B. McGinn (MCGINN, 1991). Este autor tem o mérito de dar uma definição extremamente necessária de mística, como veremos em breve, sem a qual é difícil avançar nesse campo. O primeiro volume, além da notável introdução e de um rico apêndice sobre a questão de como evoluíram a história e os fundamentos teóricos dos estudos sobre a mística, é dedicado às raízes e, diríamos, às formas seminais do que depois se desenvolverá a seguir. Todo o primeiro volume, com exceção do Apêndice final, é na prática um tratado sobre os Padres. A única limitação, declarada, é que trata só dos Padres orientais que tenham tido influência na mística ocidental, e na medida em que a tenham tido.

Depois de ter apresentado a tríplice raiz que deve ser considerada como influenciadora da mística cristã, a saber: a apocalíptica do judaismo do Segundo Templo, a mística filosófica pagã, sobretudo das várias formas de platonismo, e as origens cristãs do tempo neotestamentário e da época que se indica tradicionalmente como “apostólica” (da metade do séc. I à metade do séc. II), também McGinn leva adiante sua exposição apresentando cada autor individualmente, mas o que faz dessa obra um passo indispensável para quem quiser ocupar-se hoje deste tema, é que os autores não são tratados como “recortes” isolados, mas seu estudo é conduzido na esteira de sua definição, ampla e heurística, de mística (que veremos em seguida). Atualmente, a obra de McGinn é, em nossa opinião, o instrumento mais útil que temos para abordar a questão da mística nos Padres. Deveria ser completada com a tradição mística oriental, sobretudo com os Padres de língua siríaca (especialmente os místicos siro-orientais dos sécs. VII-VIII), que foram deixados programaticamente fora do plano de trabalho de McGinn.

2 De que mística falamos?

A breve resenha precedente torna, pois, evidente que para poder abordar a questão da relação entre mística e Padres, é natural que a primeira coisa a fazer seja esclarecer o que se entende por mística. Isso se revela necessário por se tratar de um termo sobre o qual não há um consenso geral nem uma definição clara aceita por todos. Este esclarecimento, que se tornou na prática um topos, quando se fala de mística, é ainda mais necessário, quando se fala de mística cristã. O que se deve pensar a propósito da mística quando se aborda o período patrístico?

O primeiro ponto fundamental que deve ser levado em consideração é o núcleo da religião cristã: o Verbo de Deus, que se fez homem em Cristo é o caminho para chegar, no Espírito Santo, a Deus Pai. Sem essa premissa é impossível compreender realmente a dimensão mística nos Padres. O hiato ontológico nas tradições religiosas que veem uma absoluta e insuperável transcendência entre Deus e o mundo, no cristianismo foi superado em Cristo. A dimensão panteísta de outras tradições religiosas não está presente no cristianismo, porque permanece sempre vigente a distinção ontológica entre Deus e a criatura. As consequências são óbvias: uma ideia de mística que “passe ao largo” a mediação de Cristo ou que considere qualquer fusão indiferenciada com o divino, não pode ser acolhida no cristianismo e – ainda mais importante para nosso assunto – é absolutamente alheia ao período patrístico. Por isso, pesquisando os Padres, dever-se-á falar, sem sombra de dúvida, de mística cristã, reivindicando para ela uma especificidade irredutível em relação a qualquer tentativa de colocá-la dentro de uma categoria mais geral, como, por exemplo, um caso de gênero e espécie.

Deve-se, pois, considerar também que, mesmo no contexto do cristianismo, a compreensão do termo mudou no decorrer dos séculos. Aliás, sabemos que mística na origem era adjetivo; como substantivo, e, portanto, o desenvolvimento de uma ciência relativa a este quid, é uma criação relativamente recente. Como é sabido, um dos catalisadores principais da retomada do interesse pela mística por parte do mundo acadêmico foi um trabalho sobre João da Cruz (BARUZI, 1924), além de outras situações contingentes referentes ao clima cultural dos inícios do séc. XX, não por último, a guerra de 1914-1918. A partir dos anos 50 aparece uma série de publicações de textos de místicos e de estudos históricos sobre o fenômeno, que “ressaltaram a personalidade dos autores místicos, a diversidade de suas experiências e de seus itinerários, a tal ponto que a história da mística prevaleceu sobre uma teoria geral da mística” (SOLIGNAC, 1980, col.1891). Mas o modelo dos místicos dos séculos XVI-XVII, tornado uma espécie de princeps analogatum, é inaplicável, obviamente, aos Padres. A questão é que muitas dessas definições que se dão, trazem consigo algumas premissas que permanecem mais ou menos ocultas, entre as quais uma das mais comuns é a ideia de experiência – ideia de forma nenhuma unívoca, sobre a qual remetemos às observações do artigo de B. McGinn (MCGINN, 2008, p. 45-47).

Em nossa opinião, e não só nossa (cf. ZARRABIZADEH, 2008, p. 86), a proposta que é mais útil para abordar a questão é a de McGinn. A diferença fundamental entre McGinn e as outras definições é que a de McGinn é, antes de tudo, heurística, ou seja, uma hipótese de trabalho que serve para dar uma direção à pesquisa, mas que é esclarecida gradualmente pelos resultados alcançados. Além disso, sua “amplidão” (“o encontro entre Deus e a pessoa, tudo que leva a esse encontro e que o prepara e tudo que dele decorre”, ZARRABIZADEH, 2008, p. 86) permite incluir todas as dimensões e aspectos que habitualmente resistem a definições mais estritas. Ela, de fato, permite cortar o nó górdio do enorme número de aspectos que a questão mística traz consigo, como os fenômenos “extraordinários” (êxtases, visões, locuções etc.) ou ainda o inextricável emaranhado das relações entre contemplação, experiência mística, oração de simplicidade, noite e/ou trevas, luz/luz incriada, divinização e assim por diante, que se apresentam todas elas como um mare magnum de questões que restringem o caminho do pesquisador que queira entrar no assunto com um pouco de clareza.

Para o período patrístico isso é ainda mais importante, porque procuramos algo que é delineado (e ainda com dificuldade, como dissemos) do ponto de vista “teórico” só um milhar de anos depois. O coração da definição de McGinn é sua consideração da mística como certa tentativa de expressar uma consciência direta da presença de Deus (cf. MCGINN, 1991, p. xv-xvi; mas também MCGINN, 2008). O ponto chave, que permite superar todas as ambiguidades ligadas à questão da experiência é a abordagem da consciência mística. Inspirando-se na metaconsciência de que fala T. Merton (MERTON, 1972, p. 99-101), ele relê a noção de consciência a partir de B. Lonergan. Será, pois, essa a perspectiva segundo a qual leremos o período patrístico e proporemos, como já dito, algumas indicações à maneira de prolegômenos necessários para um futuro trabalho sobre este tema, em especial para os padres orientais, sobretudo siríacos.

3 Particularidades do período patrístico

Assim como se devem considerar as particularidades que o termo mística deve ter em conta quando se trata dos Padres, da mesma forma também deve ficar claro o que se entende aqui com período patrístico. Para nosso tema, a definição de Padre da Igreja não pode ser a clássica que se usa, ou se usava, em patrologia, a saber: um autor eclesiástico que satisfaça os quatro requisitos de antiguidade (séc. VII para o Ocidente, séc. VIII para o Oriente), santidade de vida, reconhecimento da Igreja e ortodoxia. Essa definição hoje é limitante também para a patrologia, pois, a rigor, sobretudo para a questão da ortodoxia, ficariam fora autores como Tertuliano, Orígenes, Teodoro de Mopsuéstia, só para citar os mais famosos. Pois bem, se por uma questão de ortodoxia em teologia, entendida em sentido bastante restritivo, se poderia até compreender – ainda que não aceitar – o porquê de sua exclusão em alguns âmbitos da reflexão, para o nosso caso seria absolutamente equivocado. Por isso, quando indicamos os Padres neste texto entendemos todos os autores cristãos dos primeiros sete-oito séculos que deixaram escritos nos quais seja possível reconhecer uma busca do contato com Deus. Para o período histórico, no entanto, ficamos na compreensão clássica, enquanto ela tem valor intrínseco e plausibilidade: no Ocidente o séc. VII e no Oriente o séc. VIII. Tomam-se como limite simbólico Isidoro de Sevilha, que morreu em 636, e João Damasceno, morto por volta de 750, respectivamente como último padre latino e último padre grego. Depois dessas duas datas foi interrompida a unidade cultural, em sentido lato, da antiguidade: no Ocidente ao estabelecerem-se reinos romano-bárbaros e no Oriente com a consolidação definitiva do islã nos territórios outrora cristãos (cf. RATZINGER, 1971).

O período patrístico sempre teve uma importância especial para a Igreja, sobretudo pelo fato de ter sido o tempo em que se formaram o cânon das Escrituras, as fórmulas de fé, a liturgia, a opção pelo uso da razão ao pensar a fé (cf. RATZINGER, 1971). São todos elementos que constituem, como veremos, a estrutura da busca de Deus que, na perspectiva de McGinn, é a vida mística. O período patrístico, por conseguinte, é também o período do desenvolvimento daquele caminho que será depois pensado como mística. E é importante observar que, também se não havia o termo e ainda não havia uma consciência clara sobre o que depois seria entendido como mística, não se pode por certo pensar que não existisse a res, a saber: a consciência da presença de Deus, buscada, isso sim, de uma maneira diferente de como acontecerá a seguir.

4 A consciência mística

Para compreender plenamente a fecundidade da definição de McGinn aplicada ao período patrístico, se deveria considerar o movimento de diferenciação da consciência teológica desde as origens até Niceia, estudado por B. Lonergan (LONERGAN, 1982) e sua continuação até o séc. V, com Calcedônia (PAMPALONI, 2015). Aqui podemos sintetizar dizendo que, para chegar à “reviravolta interior” de Agostinho, o “pai fundador” da mística ocidental, segundo McGinn, a consciência eclesial teve de passar por um processo de diferenciação, como aconteceu também com o desenvolvimento da consciência teológica eclesial. A consciência teológica eclesial indiferenciada dos primeiros séculos, foi provocada em sua primeira diferenciação sobretudo por dois grandes desafios, o do gnosticismo, sobretudo no séc. II, e o do arianismo no séc. IV, que obrigaram a Igreja a desenvolver uma nova linguagem e um pensamento que respondesse a questões de tipo diferente em comparação com aquelas para as quais era suficiente a Sagrada Escritura. Concomitante ao desafio ariano e com um papel não negligenciável na luta contra ele, surge o fenômeno do monaquismo, que, para o desenvolvimento da mística, representou a reviravolta em função da interioridade. Se no Ocidente o “pai fundador” foi Agostinho, no Oriente, sem dúvida alguma, o padre que mais teve esse papel, na perspectiva mais próxima à delineada por McGinn, foi Gregório de Nissa.

Para aprofundar a questão da consciência mística, além de MCGINN (1991), remetemos a MCGINN (2008, 47-53).

5 Noções fundamentais para uma busca “mística” de Deus no período patrístico

Feitas as devidas premissas, passamos agora a apresentar aquelas noções que consideramos fundamentais a ter em consideração no momento em que se queira considerar a questão da mística no período patrístico.

Mistério

Dessas noções, a primeira é a de mistério. Ch. André Bernard, um dos maiores estudiosos de mística, depois de ter reconhecido, como todos, a dificuldade de estabelecer um sentido preciso aos termos em causa, falando de mística, faz uma observação utilíssima. Hoje “para nós a conotação dessas expressões remete a uma experiência psicológica particular; para os Antigos a uma realidade oculta” (BERNARD, 1994, p. 187). Aqui reside o ponto chave para entender nossa questão. Para os Padres, sobretudo até o séc. IV, essa “realidade oculta” é a noção de mistério, e é fundamental. A centralidade da pessoa de Cristo nos Padres assume imediatamente as dimensões do mistério, termo do qual, portanto, não se pode prescindir para falar da mística neste período.

Mas também para falar de mistério devemos fazer uma observação prévia. Quase invariavelmente, faz-se demasiado rapidamente a aproximação entre o termo mysterion (e, portanto, partindo da raiz do termo grego se chega à mística) e o mundo dos mistérios helenísticos, com a dedução de uma série de consequências suscetíveis de induzirem a erro. É verdade que o termo originário do paganismo entra no vocabulário cristão, mas isso, como sempre aconteceu na prática, sofre uma torção semântica para adaptar-se ao novo contexto. Sobretudo, “os “mistérios” são, em sentido próprio, “ritos sagrados” que só se revelam aos iniciados, [e] é depois do início do cristianismo, no hermetismo alexandrino (séc. II-III), que se começa a transferir a terminologia mistérica para indicar uma filosofia religiosa» (PASQUATO, 2003, p. 817). Fundamentalmente, o termo não teve jamais um sentido religioso ou sacral antes de seu uso no cristianismo. Nesse sentido, é claríssima e ainda não refutada a análise de BOUYER (1949). É interessante notar que este artigo é sempre citado, mas, no momento de tirar as conclusões, a julgar pelo que sempre se repete, surge a dúvida se ele foi lido realmente. Segundo Bouyer, é a) impossível apresentar a mística cristã como elemento importado do neoplatonismo; b) as conexões do pseudo-Dionísio, autor considerado o “místico” por excelência, com o neoplatonismo são inegáveis. Mas o que o próprio pseudo-Dionísio chama mística não é aquela experiência que se quer reconhecer em Plotino; c) ao contrário, encontramo-nos no cruzamento de toda uma tradição espiritual especificamente cristã de interpretação escriturística e de experiência litúrgica na Igreja (cf. BOUYER, 1949, p. 23). Por conseguinte, o peso da religião dos mistérios na formação da mística cristã não pode absolutamente ser sobrevalorizado.

O lugar escriturístico (não o único, no entanto) que, por todos os autores que se ocuparam de nosso tema, é considerado como basilar para a compreensão de mysterion no cristianismo (aqui sim, com reincidência na questão da mística cristã) é 1Cor 2, 6-10 (para um quadro geral do termo em Paulo, cf. BORNKAMM, 1971, col. 692-700). Segundo Solignac, essa concepção do mistério, escondido em Deus e depois revelado em Jesus Cristo, a cujo conhecimento todos os membros da Igreja são chamados (e cujo conhecimento não é nocional, mas uma experiência interior no Espírito Santo (cf. SOLIGNAC, 1980, col. 1862), implica uma mística: “O mistério produz naquele que crê uma luz e uma força que o afetam, o envolvem, o superam, mas também o introduzem num movimento de reconhecimento e de amor afetivo a exemplo de Cristo e em comunhão com ele” (SOLIGNAC, 1980, col.1862). Cristo não é só o revelador do mistério, mas o lugar onde se realiza a salvação naqueles que creem. O específico da mística cristã está totalmente nesse movimento descrito por Paulo. “Inicialmente se trata de uma experiência ordinária, de uma ação do Espírito que transforma o homem interior, levando Cristo a habitar nos corações, enraizando-os no amor” (cf. Ef 3,16-17)” (PASQUATO, 2003, p. 817).

Uma busca “objetiva”

A pergunta é: como se encontra essa realidade oculta? Ou, dito em outras palavras, como posso entrar em contato com Cristo, mistério oculto? Os âmbitos de significado do termo mysterion, identificados pela profunda análise de Bouyer, fazem emergir os “lugares” onde os Padres buscavam esse contato. Eis, portanto, a característica fundamental que torna o período patrístico completamente especial no tocante à mística, a saber: que o contato com Deus é buscado, de algum modo, “fora”: na Sagrada Escritura, na liturgia e sacramentos e na vida espiritual.

Lugares patrísticos da busca

A busca de Deus na Escritura, herança judaica e da cultura alexandrina, é o primeiro lugar onde se busca o mistério. A práxis sacramental e as catequeses pré-batismais e mistagógicas fazem emergir uma ulterior dimensão de uma união em que também o corpo participa, e aqui a Eucaristia desempenha papel fundamental. O monaquismo permite fazer uma síntese tanto no plano da ascese como da experiência de oração rumo ao “lugar” do homem onde tudo isso ressoa. Com Evágrio, sobretudo, e sua considerável influência sobre o monaquismo, o que especifica o homem é o nous e, por isso, a atividade mais elevada será a theoria, a contemplação. E um nous purificado por meio da ascese, estará em condições de alcançar a theoria divina, ou seja, a theologia. Com Agostinho se terá o primeiro amadurecimento para a reviravolta totalmente consciente rumo à interioridade como lugar onde encontrar a Deus, embora com Gregório de Nissa, essa passagem, em nossa opinião, já estava acontecendo, apesar de expressa com termos ainda “objetivos”, mas já carregados de dimensão interior.

Agora deve-se considerar um aspecto ulterior. Se é verdade que a busca desse contato com Deus era “externa”, a consciência dessa presença era igualmente percebida. Não se expressava com uma linguagem da interioridade, mas podemos reconhecer essa percepção nos autores.

Tomemos a questão da busca de Deus na Escritura. A exegese dos Padres não é por certo a do método crítico com a Formgeschichte ou a Wirkungsgeschichte etc. A Escritura é um modo com que Deus fala a seu povo e à pessoa que se dedica a seu estudo, ou seja, que aí contempla Sua presença. Não é uma aplicação só intelectual, mas envolve o intérprete na sua totalidade. E quanto mais ele cresce na familiaridade com a Escritura, tanto mais dentro dele cresce a união com Deus, não poucas vezes (como o próprio Orígenes, por exemplo, deixa de vez em quando transparecer) experimentando ocasionalmente uma alegria e uma, diríamos em termos inacianos, consolação que nasce justamente dessa busca e quem a experimenta sabe que vem de “alhures”. A dificuldade é que, neste período, pelas razões de que já falamos, os autores raramente são “autobiográficos” ao referir-se a suas experiências. Preferem fazê-lo expressando-se por meio de typoi escriturísticos, como Moisés ou a Esposa do Cântico. Quando Gregório de Nissa fala do “sentimento da presença” (aisthēsis tēs parousias), compara-o, por exemplo, ao perfume: sente-se, mas não se sabe de onde vem e não se pode “pegar”, conservar, delimitar, encerrar (PAMPALONI, 2011, p. 254-259). Se em vez de “experiência espiritual”, expressão vaga e problemática, lemos em Gregório de Nissa a consciência de uma presença, estamos perfeitamente dentro do que McGinn entende por consciência mística, e podemos reconhecer isto em Gregório. Um dos textos mais belos das Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, de Gregório, mostra o que estamos dizendo: “Embora, com efeito, os poços contenham água em seu bojo, só a esposa tem em si mesma uma água que flui continuamente, de modo que possui conjuntamente a profundidade do poço e o movimento contínuo do rio” (GREGORIO DI NISSA, 1996, p. 208, tradução levemente retocada). Eis um exemplo preclaro de uma linguagem “objetiva” que, no entanto, se refere à consciência de algo interno ao sujeito. Nesse sentido, pessoalmente julgamos que Gregório de Nissa tenha tido uma consciência muito mais diferenciada do que se possa pensar e, embora, talvez, não seja do nível da de Agostinho, seu percurso é notável, como propusemos em outro trabalho (PAMPALONI, 2011, p. 248-250). Não julgamos, pois, arriscado considerar Gregório de Nissa como “pai fundador” da mística oriental. McGinn o considera só na medida em que influenciou a mística ocidental, mas seu papel na mística oriental não pode ser subvalorizado (cf., por exemplo, PUGLIESE, 2020).

Se depois nos detemos no segundo âmbito indicado por Bouyer, o litúrgico sacramental, encontramos seja uma confirmação do que foi indicado em relação à Escritura, seja um elemento a mais, ou seja, a participação do corpo nessa busca. Nas catequeses pré e pós batismais, o bispo devia explicar aos neófitos o que tinha acontecido na noite de Páscoa e de como o gesto externo repercutiu seus efeitos no interior. A comunhão com Deus buscada na Escritura adquire aqui um sentido concreto de comunhão. Pode haver acentos diversos: a tradição alexandrina é mais propensa a falar de divinização do fiel pela participação à divindade do Logos; a tradição antioquena fala de união à humanidade de Cristo ressuscitado; Gregório de Nissa tem uma “cristologia da transformação” que lhe é própria, e assim por diante. Mas sublinha-se essa unidade, que é real e efetiva graças ao Batismo, e, de modo ainda mais especial, com a Eucaristia. Portanto, podemos dizer, a união mística acontece em virtude do Batismo-Eucaristia. É a consciência dessa união que se desenvolve na medida em que progride a reflexão sobre tal consciência. Por isso se poderia ter a impressão de que a mística não pertence ao período patrístico, enquanto, na verdade, simplesmente se expressa de maneira diversa, mas que aponta para uma direção que leva ao que podemos considerar o fenômeno, segundo indicado por McGinn.

O terceiro âmbito, o espiritual, podemos considerá-lo como a união dos dois primeiros, o resultado a que leva o processo de desenvolvimento que delineamos, o âmbito em que os Padres usam místico per falar de um conhecimento, diz Bouyer, como que experimental. O âmbito da Escritura, como para Orígenes e Gregório de Nissa, como vimos, e o litúrgico sacramental, em que a busca da união encontra como medium a corporeidade. A liturgia, especialmente a oriental, mas não só, torna-se o lugar do encontro, da transformação, da divinização, se falamos em termos alexandrinos; do enxerto na humanidade ressuscitada de Cristo, se estamos no âmbito antioqueno. A esse respeito, toda a obra do Pseudo Dionísio é uma manifestação desse entrelaçamento fundamental, embora sua influência tenha sido sobretudo no Ocidente antes que no Oriente, aonde chegou “tardiamente” (HAUSHERR, 1935, p. 124-126) para significar uma influência que, pelo contrário, se deve reconhecer a Evágrio Pôntico.

Pasquato, no artigo citado (PASQUATO, 2003) acrescenta uma quarta dimensão, que na realidade é uma espécie de síntese como a que inserimos na dimensão espiritual: é a místico-divinizante. Meditando sobre o mistério na Escritura, contemplando-o e participando dele na liturgia, o mistério mesmo – a saber: Cristo – se realiza no fiel, que é assim divinizado.

Por fim, notemos que, para os Padres, esta busca do mistério, que é Cristo, conduzida na exegese e procurada na dimensão litúrgico-sacramental é tarefa eclesial, são dimensões que um autor dos primeiros sete a oito séculos não teria jamais concebido fora do corpo de Cristo, que é a Igreja. A dimensão individual de uma experiência mística independente do âmbito da comunhão eclesial é estranha ao pensamento patrístico, também quando emerge a consciência de um encontro pessoal. Essa é o verdadeiro sentido de expressar a própria consciência da presença de Deus em termos de personagens bíblicos exemplares: não somos átomos na experiência de Deus, estamos dentro do corpo de Cristo que é a Igreja.

Conclusão

No fim do percurso podemos sintetizar assim nossa exposição. Depois de ter esclarecido alguns elementos metodológicos (a definição de mística que assumimos para poder falar do período patrístico, a saber: a de McGinn) e, em conformidade com tais critérios, algumas particularidades do período patrístico que devem ser consideradas para nosso tema, individuamos alguns aspectos que devem estar presentes quando se quer considerar a questão mística nos Padres.

O primeiro elemento que, a partir da definição de McGinn, podemos considerar é que realmente o séc. IV parece ser o momento em que aparece uma consciência da presença de Deus de modo explícito. No Ocidente o pai fundador é Agostinho, para o Oriente, pessoalmente, consideramos que esse título compete a Gregório de Nissa. Por outro lado, tal definição nos permite não privar de “mística” os Padres precedentes, porque a busca da união e do contato com Deus está desde sempre presente em toda a história do cristianismo. Esse “lugar” de busca de tal contato e união é o mistério, no sentido paulino, a saber: Jesus Cristo, Verbo do Pai, encarnado, morto e ressuscitado. Nos primeiros séculos, a busca desse mistério é dirigida a algo “exterior”. Na Sagrada Escritura, com a exegese, especialmente alegórica, que busca esse contato. Na liturgia e nos sacramentos, onde esse contato passa pela mediação, de algum modo, “física” e encontra a união mística por excelência na Eucaristia. Por fim, na dimensão espiritual, que é o ponto para o qual a reviravolta agostiniano-nissena que abrirá o caminho à mística como a entendemos com McGinn, provocada e acelerada pelo fenômeno monástico, onde as duas dimensões precedentes se unem e permitem prestar atenção ao que acontece “dentro”, quando se lê a Escritura e quando se celebra a liturgia.

A propósito, uma pesquisa sobre a mística no tempo patrístico poderia ser geradora de grandes e salutares insights para viver por nossa vez essas dimensões. Uma pesquisa sobre como os Padres procuravam essa união com Deus, por meio da Escritura e da liturgia, não pode continuar só história da mística. Em nossa opinião, com uma consciência diferenciada segundo a mística, como podemos ter hoje depois dos progressos dos estudos, voltar a ler a Escritura e a viver a liturgia e os sacramentos numa perspectiva como a patrística, não poderia mais que trazer novo oxigênio a nossa vida espiritual, frequentemente tentada a nivelar-se em dimensões unicamente horizontais.

Graças à definição de McGinn temos pistas que podemos aplicar ao estudo da mística nos Padres. Resta ainda tudo por fazer, quando se trata de realizar trabalho semelhante aplicado aos Padres orientais.

Mássimo Pampaloni (Pont. Facoltá Teologica dell’Italia Meridionali). Texto original em italiano. Enviado 30/09/2022; aprovado: 30/10/2022; postado: 30/12/2022. Tradução ao português: Francisco de Assis Taborda

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Sociedade da informação ou sociedade do controle?

Sumário

Introdução

1 Uma nova era

2 Uma inédita interpretação da realidade

3 Novas potencialidades

4 Informação ou controle?

5 Sustentabilidade digital

6 O pontificado de Francisco

Conclusão

Introdução

Não é fácil passar em revista as novidades do mundo digital e os desafios que ele representa para a consciência e a liberdade. A transformação, cuja omnipresença e poder transformador todos nós percebemos hoje, especialmente depois da pandemia, ainda não revelou completamente seu alcance. Entretanto, a fim de esclarecer a magnitude destes processos, proporemos um itinerário dividido em vários momentos. Começaremos descrevendo o que aconteceu (Uma nova era) e depois tentaremos trazer à tona as principais características da Era Digital (Uma inédita interpretação da realidade). As perspectivas de nossa análise nos levarão então a delinear as potencialidades (Novas potencialidades) e limites (Informação ou controle?) dessas transformações. Indicaremos em seguida o que poderia ser um remédio para tornar o sistema mais sustentável (Sustentabilidade Digital), além de apontar as pistas dadas pelo magistério de Francisco (O pontificado de Francisco).

1 Uma nova era

A evolução do computador influenciou profundamente todas as tecnologias de comunicação, ao mesmo tempo em que abraçou todo o seu potencial. No início, o computador parecia ser uma ferramenta reservada às grandes organizações e administrações, à pesquisa científica e aos comandos militares. A partir dos anos 1970, a tecnologia de microprocessadores, o constante desenvolvimento de software de fácil utilização e, nos anos 1990, a rápida expansão da rede, transformaram-na em uma máquina acessível a todos, como qualquer outro eletrodoméstico. Para entender essa mudança, precisamos nos concentrar na principal característica desta nova forma de comunicação: a digital.

Em informática e eletrônica, digital refere-se ao fato de que toda informação é representada por números ou que é manipulada por números (o termo é derivado do inglês digit, que significa cifra). Um determinado conjunto de informações é representado em formato digital, ou seja, como uma sequência de números tomados de um conjunto de valores discretos, ou seja, pertencentes ao mesmo conjunto bem definido e circunscrito. Atualmente, digital pode ser considerado como sinônimo de numérico e se opõe à forma de representação da informação chamada de analógica. O que é digital se opõe ao que é analógico, ou seja, não numerável.

Digital, portanto, refere-se à matemática do discreto, que trabalha com um conjunto finito de elementos, enquanto o analógico é modelado com a matemática do contínuo, que lida com um infinito (numerável ou não numerável) de elementos. Um objeto é digitalizado, ou seja, tornado digital, se seu estado original (analógico) for traduzido e representado por meio de um conjunto numérico de elementos. Por exemplo, uma foto, normalmente composta por um número infinito de pontos, cada um dos quais é composto por uma gama infinita de cores, é digitalizada, e assim traduzida em uma foto digital, quando sua superfície é representada como sendo subdividida em um número discreto de pontos (geralmente pequenos quadrados ou retângulos chamados pixels), cada um dos quais é composto por uma cor representada, por sua vez, por um número.

Hoje, a comunicação eletrônica, por um lado, contribui para o enfraquecimento da instituição do livro como fonte e ferramenta de informação e cultura; por outro lado, de novas maneiras, ela continua e expande seu serviço (como, por exemplo, acontece com o ebook). Além disso, se a impressora permitiu um uso diferente da memória, o computador hoje em dia aumenta ainda mais esta mudança, dotado como está de uma vasta capacidade de gerenciamento de dados.

Justamente porque processa a linguagem de todos os outros meios em formato digital, o computador tornou-se o meio por excelência do século XXI. Em particular, é uma ferramenta de escritura para todos: jornalistas, escritores, cientistas, engenheiros, poetas e artistas. Ela modificou em grande parte as técnicas tradicionais de escrita, como fez para a edição, a fotocomposição e a própria impressão.

No início do século XX, a comunidade humana estava ligada pelo telégrafo e depois pelo telefone. Hoje, as conexões globais são feitas pelo computador: a troca de dinheiro e mercadoria na bolsa de valores, o tráfego aéreo e ferroviário etc. são controlados de maneira informática. A mesma maneira permite que milhões de pessoas troquem mensagens sem limites de tempo ou de espaço.

2 Uma inédita interpretação da realidade

A revolução na ciência e na tecnologia trazida pelos computadores e pela tecnologia da informação foi habilmente descrita por Naief Yehya: “Com um computador podemos transformar quase qualquer problema humano em estatísticas, gráficos, equações. O realmente perturbador, porém, é que, ao fazê-lo, criamos a ilusão de que estes problemas sejam resolvíveis com os computadores” (YEHYA, 2005, p. 15).

Chris Anderson, o editor-chefe da Wired[1], resume o que a revolução digital[2] significa para o mundo científico:

Os cientistas sempre se basearam em hipóteses e experimentos. […] Diante da disponibilidade de enormes quantidades de dados, esta abordagem – hipótese, modelo teórico e teste – torna-se obsoleta. […] Agora há uma maneira melhor. Os petabytes nos permitem dizer: “a correlação é suficiente”. Podemos deixar de procurar modelos teóricos. Podemos analisar os dados sem nenhuma suposição sobre o que os dados poderiam mostrar. Podemos enviar os números para o maior conjunto de computadores [clusters] que o mundo já viu e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem modelos [estatísticos] onde a ciência não pode. […] Aprender a usar um computador desta escala pode ser um desafio. Mas a oportunidade é grande: a nova disponibilidade de uma enorme quantidade de dados, combinada com as ferramentas estatísticas para processá-los, oferece uma maneira totalmente nova de entender o mundo. A correlação substitui a causalidade, e as ciências podem avançar mesmo sem modelos teóricos coerentes, teorias unificadas ou algum tipo de explicação mecanicista. (ANDERSON, 2008, p. 106-107)[3]

O advento da pesquisa digital, onde tudo se transforma em dados numéricos, leva à capacidade de estudar o mundo de acordo com novos paradigmas gnoseológicos: o que conta é apenas a correlação entre duas quantidades de dados e não mais uma teoria coerente que explica esta correlação[4]. Praticamente hoje estamos assistindo a desenvolvimentos tecnológicos (capacidade de fazer) que não correspondem a nenhum desenvolvimento científico (capacidade de conhecer e explicar): hoje a correlação é usada para prever com precisão suficiente, ainda que não exista uma teoria científica que a sustente, o risco de impacto de asteroides, mesmo desconhecidos, em vários lugares da Terra, os locais institucionais sujeitos a ataques terroristas, o voto de cidadãos individuais nas eleições presidenciais americanas, a tendência de curto prazo do mercado de ações.

O uso de computadores e da tecnologia da informação no desenvolvimento tecnológico destacou um desafio linguístico que ocorre na fronteira entre homem e máquina: no processo de questionamento mútuo entre homem e máquina, surgem projeções e trocas até então inimagináveis, e a máquina se torna não menos humana do que o homem se torna máquina (BENANTI, 2012).

3 Novas potencialidades

O efeito da digitalização exponencial da comunicação e da sociedade está levando, de acordo com Marc Prensky (PRENSKY, 2001a, p. 1-6; PRENSKY, 2001b, p. 1-6), a uma verdadeira transformação antropológica: o advento dos nativos digitais. Nativo digital (em inglês digital native) é uma expressão aplicada a uma pessoa que cresceu com tecnologias digitais como computadores, internet, telefones celulares e MP3. A expressão é usada para se referir a um grupo novo e inédito de alunos que estão entrando no sistema educacional. Os nativos digitais surgiram em paralelo com a difusão em massa dos computadores com interface gráfica em 1985 e dos sistemas operacionais por janelas em 1996. O nativo digital cresce em uma sociedade de múltiplas telas e considera as tecnologias como um elemento natural sem sentir nenhum desconforto em manipulá-las e interagir com elas.

Em contraste, Prensky cunhou a expressão imigrante digital (digital immigrant) para indicar uma pessoa que cresceu antes das tecnologias digitais e as adotou mais tarde. Uma das diferenças entre estes indivíduos é a diferente abordagem mental que eles têm em relação às novas tecnologias: por exemplo, um nativo digital falará sobre sua nova câmera (sem definir seu tipo tecnológico) enquanto um imigrante digital falará sobre sua nova câmera digital, ao contrário da câmera de filme químico que ele usava antes. Um nativo digital, de acordo com Prensky, é moldado pela dieta de mídia a que é submetido: em cinco anos, por exemplo, ele ou ela passa 10.000 horas jogando videogames, troca pelo menos 200.000 e-mails, passa 10.000 horas no telefone celular, passa 20.000 horas em frente à televisão assistindo pelo menos 500.000 comerciais, mas dedica apenas 5.000 horas à leitura. Esta dieta de mídia produz, segundo Prensky, uma nova linguagem, uma nova maneira de organizar o pensamento que mudará a estrutura cerebral dos nativos digitais.

Multitarefa, hipertextualidade e interatividade são, para Prensky, apenas algumas características do que parece ser uma etapa nova e sem precedentes na evolução humana. Além disso, segundo o autor, embora erraticamente e à nossa própria velocidade, estamos todos caminhando para um aprimoramento digital que inclui atividades cognitivas. De fato, diz ele, as ferramentas digitais já ampliam e enriquecem nossas capacidades cognitivas de muitas maneiras. A tecnologia digital melhora a memória, por exemplo, através de ferramentas de aquisição, armazenamento e recuperação de dados. A coleta de dados digitais e as ferramentas de apoio à decisão melhoram a escolha, permitindo-nos coletar mais dados e verificar todas as implicações daquela questão. A melhoria cognitiva digital, possibilitada por laptops, bancos de dados on-line, simulações virtuais tridimensionais, ferramentas colaborativas on-line, portáteis e uma série de outras ferramentas específicas do contexto, é agora uma realidade para em muitas profissões, mesmo em campos não técnicos, como o direito e as humanidades. Por isso, ao invés de “capacitação tecnológica”, Presky prefere falar de “capacitação digital”, por três razões: 1. Porque hoje quase toda a tecnologia é digital ou suportada por ferramentas digitais; 2. A tecnologia digital difere de outras tecnologias por ser programável, ou seja, é capaz de ser induzida a fazer, em níveis cada vez mais precisos, exatamente o que se quer (esta capacidade de personalização está no coração da revolução digital); 3. A tecnologia digital investe cada vez mais energia em versões cada vez menores de microprocessadores, que, por sua vez, constituem o núcleo de grande parte da tecnologia capaz de melhorar a cognição. Esta miniaturização, juntamente com custos cada vez menores, é a que tornará a tecnologia digital disponível para todos, embora a taxas diferentes e em locais diferentes (PRENSKY, 2009)[5].

4 Informação ou controle?

Vivemos em uma sociedade e tempo digitais, a Era Digital, um período complexo por causa das profundas mudanças que essas tecnologias estão produzindo. A pandemia de Covid-19 acelerou uma série de processos que há algum tempo vinham mudando radicalmente a sociedade porque era possível dissociar conteúdo, conhecimento, de seu suporte[6]. A mudança de época que estamos atravessando é produzida pela tecnologia digital e seu impacto em nosso modo de entender a nós mesmos e a realidade ao nosso redor.

Para compreender este desafio, precisamos voltar ao início desta transformação. Em um documentário granulado filmado em 1952, nos Laboratórios Bell, o matemático e pesquisador dos Laboratórios Bell, Claude Shannon, está ao lado de uma máquina que ele construiu. Construído em 1950, foi um dos primeiros exemplos de aprendizagem automática do mundo: um rato robótico que resolve labirintos, conhecido como Theseus. O Teseu da mitologia grega antiga navegou no labirinto de um minotauro e escapou seguindo um fio que ele usava para marcar seu caminho. Mas o brinquedo eletromecânico de Shannon foi capaz de “lembrar” a rota com a ajuda de interruptores de relé telefônico.

Em 1948, Shannon introduzira o conceito de teoria da informação em A Mathematical Theory of Communication (Teoria Matemática da Comunicação), um documento que fornece a prova matemática de que toda comunicação pode ser expressa digitalmente. Claude Shannon mostrou que as mensagens podiam ser tratadas puramente como uma questão de engenharia. A teoria matemática e não semântica da comunicação de Shannon abstrai o significado de uma mensagem e a presença de um remetente ou destinatário humano; uma mensagem, deste esse ponto de vista, é uma série de fenômenos transmissíveis aos quais uma determinada métrica pode ser aplicada (POLT, 2015, p. 181).

Estas intuições deram origem a uma nova visão transdisciplinar da realidade: a cibernética de Norbert Wiener. Para Wiener, a teoria da informação é uma forma poderosa de conceber a própria natureza. Enquanto o universo está ganhando entropia, de acordo com a segunda lei da termodinâmica – ou seja, sua distribuição de energia está se tornando menos diferenciada e mais uniforme –, existem sistemas locais contraentrópicos. Esses sistemas são os organismos vivos e as máquinas de processamento de informações que construímos. Esses sistemas se diferenciam e se organizam: eles geram informações (POLT, 2015, p. 181). O privilégio desta abordagem é o de permitir à cibernética exercer um controle seguro sobre o campo interdisciplinar que ela gera e trata: “a cibernética já pode ter certeza de sua ‘coisa’, ou seja, de calcular tudo em termos de um processo controlado” (HEIDEGGER; FABRIS, 1988, p. 34-35).

Começando na década anterior à Segunda Grande Guerra, e acelerando durante e depois da guerra, os cientistas projetaram sistemas mecânicos e elétricos cada vez mais sofisticados que permitiam que suas máquinas agissem como se tivessem um propósito. Este trabalho se cruzou com outros trabalhos sobre cognição em animais e trabalhos precoces em computação. O que surgiu foi uma nova maneira de ver os sistemas, não apenas mecânicos e elétricos, mas também biológicos e sociais: uma teoria unificadora dos sistemas e sua relação com o meio ambiente. Esse movimento em direção a “sistemas inteiros” e “pensamento de sistema” ficou conhecido como cibernética. A cibernética enquadra o mundo em termos de sistemas e seus objetivos.

Segundo a cibernética, os sistemas atingem seus objetivos através de processos iterativos ou ciclos de “feedback”. De repente, os principais cientistas do pós-guerra estavam falando seriamente sobre a causalidade circular (A causa B, B causa C e, finalmente, C causa A). Olhando mais de perto, os cientistas viram a dificuldade de separar o observador do sistema. Na verdade, o sistema parecia ser uma construção do observador. O papel do observador é fornecer uma descrição do sistema, que é dada a outro observador. A descrição requer um idioma. E o processo de observar, criar linguagem e compartilhar descrições cria uma sociedade. Desde o final dos anos 40, o mundo da pesquisa mais avançada começou a olhar para a subjetividade – da linguagem, da conversação e da ética – e para a sua relação com sistemas e design. Diferentes disciplinas estavam colaborando para estudar a “colaboração” como uma categoria de controle.

Até então, os físicos haviam descrito o mundo em termos de matéria e energia. A comunidade cibernética propôs uma nova visão do mundo através da lente da informação, dos canais de comunicação e de sua organização. Desta forma, a cibernética nasceu no alvorecer da era da informação, nas comunicações pré-digitais e nos meios de comunicação, fazendo a ponte entre a forma como os humanos interagem com máquinas, sistemas e uns com os outros. A cibernética se concentra no uso do feedback para corrigir erros e atingir objetivos: a cibernética faz da máquina e do ser humano uma espécie de mouse da Shannon.

É neste nível que precisamos olhar mais de perto os efeitos que isto pode ter sobre a compreensão – de si e dos outros – do ser humano e sobre a liberdade. Na medida que as discussões amadureceram, os objetivos da comunidade cibernética se expandiram. Em 1968, Margaret Mead estava contemplando a aplicação da cibernética aos problemas sociais:

À medida que o cenário mundial se amplia, existe a possibilidade contínua de usar a cibernética como forma de comunicação em um mundo de crescente especialização científica. […] deveríamos olhar muito seriamente para a situação atual da sociedade americana, dentro da qual esperamos desenvolver estas formas muito sofisticadas de lidar com sistemas que precisam desesperadamente de atenção. Problemas das áreas metropolitanas, […]. As interrelações entre diferentes níveis de governo, a redistribuição da renda, […] as ligações necessárias entre partes de grandes complexos industriais… (MEAD, 1968, p. 45)[7]

A abordagem cibernética, como destacaria Martin Heidegger em sua releitura de Wiener e o trabalho dos cibernéticos, “reduz” a própria atividade humana, na pluralidade de suas configurações, a algo funcional e controlável pela máquina: “o próprio homem torna-se ‘algo planejado, isto é, controlável’ e, se tal redução não for possível, ele é colocado entre parênteses como ‘fator perturbador’ no cálculo cibernético” (HEIDEGGER; FABRIS, 1988, p. 10). De fato, Fabris observa que:

Em sua análise do fenômeno cibernético, Heidegger mantém constantemente em mente a matriz grega da palavra e privilegia este aspecto, em vez de – por exemplo – a noção central de feedback, como um fio condutor para entender e explicar as características de tal “disciplina não disciplina”. Na leitura Heideggeriana, a cibernética indica o advento de um processo de controle e informação dentro das diferentes esferas temáticas das diversas ciências. Do ponto de vista hermenêutico, comando e controle (la Steuerung) são entendidos antes de tudo, do ponto de vista hermenêutico, como a perspectiva dentro da qual as relações do homem com o mundo são reguladas. (FABRIS, 1988, p. 11)

Fabris observa que

a cibernética é vista por Heidegger como o momento mais avançado, o resultado mais evidente daquele domínio da técnica para o qual toda a metafísica ocidental flui. A história do ser – como emerge dos cursos universitários sobre Nietzsche nos anos 30 – tem de fato seu ponto de chegada no evento da técnica, no qual a vontade de poder (vontade de vontade) que determina a ação humana e se estende a todas as esferas da realidade, encontra plena manifestação. Dentro desse processo de autorreferência da vontade, o projeto cibernético recebe sua própria justificação e define suas relações com a filosofia, assumindo algumas de suas tarefas e assumindo suas prerrogativas tradicionais. (FABRIS, 1988, p. 11)

No coração dos cibernéticos, ou seja, daqueles estudiosos que são os pais da sociedade informática, das inteligências artificiais e de todos esses impressionantes desenvolvimentos que o digital está realizando em nossas vidas, entretanto, pode ter havido a promessa de um propósito ainda maior.

Gregory Bateson, o primeiro marido de Margaret Mead, disse em uma famosa entrevista que o que o excitava nas discussões sobre cibernética era isto: “Foi uma solução para o problema do escopo. A partir de Aristóteles, a causa final sempre foi o mistério. Isso veio à tona então. Não percebíamos então (pelo menos eu não percebi, embora McCulloch possa ter percebido) que toda a lógica teria que ser reconstruída para a recursividade” (BRAND, 1976, p. 32-34)[8].

5 Sustentabilidade digital

Se a sociedade da informação pode de fato, por meio de ações de feedback digital, colocar o homem em uma condição de controle pela máquina (seja eletrônica ou algorítmica), e se a relação cibernética em sua forma mais radical de realização da simbiose homem-máquina pode, de fato, negar a necessidade de se colocar a hipótese de causas finais para a ação, um horizonte distópico aparece no horizonte em que a sociedade da informação inevitavelmente colapsa em uma sociedade de controle. A análise da sociedade digital nos permite refletir sobre a ligação entre causas, necessidade e liberdade, que o digital realiza em sua forma de implementação política: ela põe em questão a própria existência de um destino do homem que dependa de seu livre arbítrio.

Esta forma de digitalização cibernética, que eu definiria aqui como “forte”, a fim de sublinhar como esta é uma forma possível de sociedade se não forem criadas formas de sustentabilidade digital (BENANTI; MAFFETTONE, 2021), corre o risco de eliminar a própria possibilidade de uma liberdade positiva. Em linguagem política, esse termo, como diz Bobbio, significa

a situação em que uma pessoa tem a possibilidade de dirigir sua vontade em direção a um objetivo, de tomar decisões, sem ser determinado pela vontade de outros”. Esta forma de liberdade também é chamada “autodeterminação” ou, ainda mais apropriadamente, “autonomia”. […] A definição clássica de liberdade positiva foi dada por Rousseau, para quem a liberdade no estado civil consiste no fato de que ali o homem, como parte do todo social, como membro do “eu comum”, não obedece a ninguém além de si mesmo, ou seja, é autônomo no sentido preciso da palavra, no sentido de que dá leis para si mesmo e não obedece a nenhuma outra lei além daquelas que ele mesmo se deu: “A obediência à lei que prescrevemos para nós mesmos é liberdade” (Contrato social, I, 8). Este conceito de liberdade foi assumido, sob a influência direta de Rousseau, por Kant, […] na Metafísica dos Costumes, onde a liberdade legal é definida como “a faculdade de não obedecer a nenhuma lei que não aquela à qual os cidadãos deram seu consentimento” (II, 46). […] As liberdades civis, o protótipo das liberdades negativas, são liberdades individuais, ou seja, inerentes ao indivíduo singular: historicamente, de fato, são produto das lutas para defender o indivíduo considerado ou como pessoa moral e, portanto, tendo um valor em si mesmo, ou como sujeito de relações econômicas, contra a intrusão de entidades coletivas como a Igreja e o Estado […]. A liberdade como autodeterminação, por outro lado, é geralmente referida, na teoria política, a uma vontade coletiva, seja essa vontade aquela do povo ou da comunidade ou da nação ou do grupo étnico ou da pátria. (BOBBIO, 1978)

À luz destas breves reflexões, parece-nos que podemos enfatizar que a matriz epistemológica do controle inerente ao desenvolvimento do digital como cultura de informação cibernética ainda reside implícita e irrefletidamente dentro das aplicações técnicas da sociedade da informação. Cabe à sociedade civil criar um debate para que os processos de inovação tecnológica digital sejam desafiados.  Entretanto, o mundo da tecnologia é hoje descrito pela categoria de inovação.

Se continuarmos a olhar a tecnologia apenas como uma inovação, corremos o risco de não perceber seu escopo de transformação social e, portanto, de ser incapazes de direcionar seus efeitos para o bem.

Para poder falar de inovação como um bem, e para poder orientá-la para o bem comum, precisamos de uma qualificação capaz de descrever como e quais características do progresso contribuem para o bem dos indivíduos e da sociedade. É por isso que, com Sebastiano Maffettone, decidimos adotar a categoria de sustentabilidade digital.

A ideia de sustentabilidade digital chama a atenção para um conceito amplo, incluindo a expansão duradoura das possibilidades de escolha dos indivíduos e a melhoria equitativa de suas perspectivas de bem-estar. Falar de sustentabilidade digital significa não colocar a capacidade técnica no centro das atenções, mas manter o ser humano no centro do pensamento e como o fim que qualifica o progresso.

Usar a tecnologia digital eticamente hoje, respeitar a ecologia humana, significa tentar transformar a inovação em um mundo digital sustentável. Significa direcionar a tecnologia rumo e para o desenvolvimento humano, e não simplesmente buscar o progresso como um fim em si mesmo. Embora não seja possível pensar e implementar tecnologia sem formas específicas de racionalidade (o pensamento técnico e científico), colocar a sustentabilidade digital no centro do interesse significa dizer que o pensamento técnico e científico não é suficiente[9].

Para que haja liberdade, precisamos que a consciência e as consciências questionem a técnica, direcionando seu desenvolvimento para o bem comum.

6 O pontificado de Francisco

Gostaríamos, nesta última parte do texto, de apresentar a grande sensibilidade que o pontífice demonstra em relação ao tema tecnológico e à presença inovadora do digital como forma dominante de tecnologia.

Ao ler a encíclica Laudato Si’ encontramos vinte referências explícitas à tecnologia. A palavra tecnologia volta primeiro na parte inicial do texto, onde nos debruçamos sobre a análise do problema ecológico para entender o que está acontecendo com nossa casa (n. 16, 20, 34 – 2 vezes, 54 – 2 vezes); em seguida, no terceiro capítulo, onde se busca a raiz humana do problema ecológico (n. 102 – 3 vezes, 104 – 2 vezes, 105, 106 – 2 vezes, 109, 110, 113, 114 e 132); e apenas uma vez no capítulo que trata de oferecer algumas linhas de orientação e ação (n. 165). Duas vezes (n. 103 e 107) prefere-se usar o termo tecnociência em vez de tecnologia. Entretanto, nossa investigação não estaria completa se não mencionássemos como o pontífice, conectando agir humano, tecnologia e problema ecológico, justapõe ao substantivo tecnologia o adjetivo tecnocrático, que ocorre sete vezes – todas no terceiro capítulo –, que descreve uma certa atitude interior do ser humano e sua intencionalidade no relacionar-se com a tecnologia em tons escuros e negativos.

A análise que a Laudato Si’ oferece da tecnologia reflete a ambiguidade da ferramenta técnica que surgiu na interseção da ecologia e da tecnologia. Devemos reconhecer que

A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças […]. É justo que nos alegremos com esses progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem essas novidades incessantes, porque “a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu”. A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica “exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais”. A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano […]. (LS n. 102)

No entanto, não podemos ignorar o fato de que as habilidades que adquirimos

nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer. (LS n. 104)

O problema da tecnologia é um problema dos fins a serem escolhidos para orientar o uso dos meios técnicos. Somente se a tecnologia for orientada para a realização de valores humanamente qualificados e humanizadores seu uso será respeitoso com o homem e o meio ambiente. Os fins servidos pelos meios tecnológicos são os únicos capazes de justificar eticamente os meios técnicos e sua utilização (LS n. 103). No entanto, não é raro testemunharmos uma busca pelo poder técnico que parece ser assimilado ao próprio poder: quando o progresso técnico não é animado pela busca do bem comum e pela realização de valores moralmente qualificados, ele dificilmente se torna desenvolvimento, expondo a humanidade à arbitrariedade cega (LS n. 105).

Neste nível, traçar o desenvolvimento da Laudato Si’ revela a verdadeira natureza do problema tecnológico:

O problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que “existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (LS n. 106)

O problema, continua o documento, é a mentalidade tecnocrática dominante, que concebe toda a realidade como um objeto que pode ser manipulado sem limites. Este é um reducionismo que envolve todas as dimensões da vida. A tecnologia não é neutra: ela faz “opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver” (LS n. 107). O paradigma tecnocrático também domina a economia e a política; em particular, “A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro. […] Mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social” (LS n. 109). Confiar unicamente na tecnologia para resolver cada problema significa “esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial” (LS n. 111), dado que “o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história” (LS n. 113).

Assim, parece haver a necessidade de uma “corajosa revolução cultural” (LS n. 114) para recuperar os valores e a percepção do que é importante no processo de transformação tecnológica. Quando a tecnologia se torna um instrumento para a implementação do pensamento único, do que o pontífice define como pensamento tecnocrático, então sua natureza se perverte e se torna um instrumento de desumanização e destruição do lar comum, pilhando-o, danificando-o irremediavelmente e tornando-se uma implementação altamente eficiente dos danos ecológicos.

Desta leitura da Laudato Si’ emerge como o texto magisterial faz sua a tensão interna do mundo da tecnologia. A resposta que o pontífice oferece aos cristãos e aos homens de boa vontade para se encarregarem da gestão e do uso da tecnologia é sob a forma de discernimento e diálogo. O magistério de Francisco não pretende resolver essas tensões dando linhas ou diretrizes a serem seguidas em virtude do papel ou princípio de autoridade, mas assume a complexidade do problema indicando a necessidade de uma comunhão de intenções e diálogo para encontrar soluções compartilhadas e capazes de orientar a tecnologia e seu progresso em direção ao bem comum em formas de autêntico desenvolvimento humano.

Além destas linhas, vale ressaltar que foi a Pontifícia Academia para a Vida que trouxe a fronteira da reflexão para o mundo digital. Em um palco dominado pela palavra renAIssance (um jogo de palavras entre renascimento e inteligência artificial – AI –), a Roma Call for na AI Ethics (Apelo de Roma para uma Ética da IA) foi assinada em 28 de fevereiro de 2020. Uma chamada aberta que parte da Pontifícia Academia da Vida e que, envolvendo indústrias, sociedade civil e instituições políticas, visa apoiar uma abordagem ética e humanista da Inteligência Artificial. A ideia deste “chamado” para proteger a dignidade da pessoa humana e do lar comum decorre dos diálogos que ocorreram nos últimos dois anos entre a Academia e alguns de seus membros e parte do mundo tecnológico e industrial. A ideia de não elaborar um texto unilateral ou diretamente normativo está ligada ao profundo desejo de promover, entre organizações, governos e instituições, um senso de responsabilidade compartilhada com o objetivo de garantir um futuro no qual a inovação digital e o progresso tecnológico estejam a serviço do gênio e da criatividade humana e não de sua substituição gradual.

O documento foi assinado pelas seguintes instituições: a Pontifícia Academia pela Vida e seu presidente, Mons. Vincenzo Paglia, a Microsoft e seu presidente Brad Smith, a IBM e seu vice-presidente John E. Kelly III, a FAO e seu diretor geral, QU Dongyu, e o governo italiano e sua ministra da Inovação Tecnológica e da Digitalização, Paola Pisano.

O texto do Apelo está dividido em três partes: ética, educação e direitos, e está disponível na internet em um site específico.

No que diz respeito à ética, o Apelo parte da consideração de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade”, como diz o Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Partindo desta pedra angular, que hoje pode ser considerada como uma espécie de gramática universal, um elemento limiar, em uma comunidade global e plural, as primeiras condições fundamentais que a pessoa deve usufruir, liberdade e dignidade, devem ser protegidas e garantidas na produção e utilização de sistemas de inteligência artificial (a partir de agora IA).

Portanto, os sistemas de IA devem ser concebidos, projetados e implementados para servir e proteger o ser humano e o meio ambiente em que ele vive. Isto é para permitir que o progresso tecnológico seja uma ferramenta para o desenvolvimento da família humana, ao mesmo tempo em que permite o respeito pelo planeta, o lar comum. Para que isso aconteça, seguindo o Apelo, três requisitos devem ser atendidos, a IA deve incluir todo ser humano, não discriminando ninguém; deve ter o bem da humanidade e o bem de todo ser humano em seu núcleo; deve ser desenvolvida de forma consciente da complexa realidade de nosso ecossistema e ser caracterizada pela forma como cuida e protege o planeta com uma abordagem altamente sustentável, que inclui também o uso de inteligência artificial para garantir sistemas alimentares sustentáveis no futuro.

Com relação à experiência do usuário ao interagir com a máquina, o Apelo enfatiza a primazia do ser humano: cada pessoa deve estar ciente de que está interagindo com uma máquina e não pode ser enganada por interfaces que disfarçam a máquina, dando-lhe aparências humanas. A tecnologia de inteligência artificial nunca deve ser usada para explorar pessoas de qualquer forma, especialmente as mais vulneráveis (particularmente as crianças e os idosos). Em vez disso, deve ser usada para ajudar as pessoas a desenvolver suas capacidades e para sustentar nosso planeta.

Os desafios éticos tornam-se então desafios educacionais. Transformar o mundo através da inovação da IA significa comprometer-se a construir um futuro para e com a geração mais jovem. Este compromisso deve se traduzir em um engajamento com a educação, desenvolvendo currículos específicos que aprofundem as diferentes disciplinas, desde as humanidades à ciência e à tecnologia, para educar a geração mais jovem.

A educação das gerações mais jovens, portanto, precisa de um compromisso renovado e de uma qualidade cada vez maior: ela deve ser oferecida com métodos acessíveis a todos, que não discriminem e que possam oferecer igualdade de oportunidades e de tratamento. O acesso à aprendizagem também deve ser garantido aos idosos, aos quais deve ser oferecida a possibilidade de acesso a serviços inovadores, de forma compatível com a estação de suas vidas.

Com base nestas considerações, o Apelo observa que essas tecnologias podem ser extremamente úteis para ajudar as pessoas com deficiências a aprender e se tornar mais independentes, oferecendo ajuda e oportunidades de participação social (por exemplo, trabalho à distância para aqueles com mobilidade limitada, apoio tecnológico para aqueles com deficiências cognitivas etc.).

Para garantir que as exigências éticas e a urgência educativa não permaneçam uma mera voz, o Apelo delineia alguns elementos que poderiam gerar uma nova época do direito.

O desenvolvimento da IA a serviço da humanidade e do planeta requer regulamentações e princípios que protejam as pessoas – especialmente os fracos e os menos afortunados – e os meios ambientes naturais. A proteção dos direitos humanos na era digital deve ser colocada no centro do debate público para que a IA possa atuar como uma ferramenta para o bem da humanidade e do planeta.

Também será essencial considerar um método para tornar compreensíveis não apenas os critérios de decisão dos agentes algorítmicos baseados na IA, mas também seu propósito e objetivos. Isto aumentará a transparência, a rastreabilidade e a responsabilidade, tornando mais válidas as tomadas de decisão assistidas pelo computador.

Projetar e planejar sistemas de inteligência artificial que possam ser confiáveis implica promover a implementação de métodos éticos que saibam chegar ao coração dos algoritmos, o motor desses sistemas digitais. Para isso, o Apelo fala de “algorética”, ou seja, de princípios, uma espécie de barreira de proteção ética, que, expressos por aqueles que desenvolvem esses sistemas, tornem-se operativos na execução do software. O Apelo enumera assim os primeiros princípios algoréticos que são reconhecidos como fundamentais para o desenvolvimento correto da IA.

O uso de IA deve, portanto, seguir os seguintes princípios:

Transparência: em princípio, os sistemas de IA devem ser compreensíveis;

Inclusão: as necessidades de todos os seres humanos devem ser levadas em consideração para que todos possam se beneficiar e todos os indivíduos possam receber as melhores condições possíveis para se expressarem e se desenvolverem;

Responsabilidade: quem projeta e implementa soluções de Inteligência Artificial deve proceder com responsabilidade e transparência;

Imparcialidade: não criar ou agir de acordo com preconceitos, salvaguardando assim a justiça e a dignidade humana;

Confiabilidade: os sistemas de Inteligência Artificial devem ser capazes de funcionar de forma confiável;

Segurança e privacidade: os sistemas de inteligência artificial devem funcionar com segurança e respeitar a privacidade dos usuários.

Ludwig Wittgenstein, no Tractatus Logico-Philosophicus, escreveu: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Parafraseando o filósofo do século passado, então, podemos dizer que, para não sermos excluídos do mundo das máquinas, a fim de não criarmos um mundo algorítmico desprovido de significado humano, devemos expandir nossa linguagem ética para que ela contamine e determine o funcionamento desses sistemas chamados “inteligentes”. A inovação, nunca mais do que hoje, precisa de um rico entendimento antropológico para se tornar uma autêntica fonte de desenvolvimento humano. Em seu discurso na Assembleia Plenária da mesma Academia, o papa Francisco respondeu a estas instâncias quando falou das tecnologias digitais: “Elas podem dar frutos de bem”, mas “uma ação educacional mais ampla” é necessária. E os perigos “não devem esconder de nós o grande potencial dessas ferramentas” (FRANCISCO, 2020, p. 2).

No final de nosso percurso, gostaríamos de nos concentrar nos desafios enfrentados pelas primeiras gerações desta nova era.

Nos próximos vinte anos, a geração de crianças nascidas no terceiro milênio enfrentará três questões fundamentais decorrentes da realidade digital e de sua onipresença. A resolução destas questões descreverá, para o melhor ou para o pior, um mundo tão profundamente diferente de tudo o que a humanidade experimentou que podemos realmente imaginar o fim de uma era e o nascimento de um novo mundo, um universo digital.

Diante disso, os rótulos sociológicos tradicionais usados para classificar os jovens, como Geração X, Y ou Z, não são suficientes. Parece-me que, devido à qualidade e às características da realidade sintética que estamos produzindo, devemos entender esta geração como uma Geração Ômega. Se considerarmos os desafios filosóficos, éticos e práticos que a realidade sintética apresenta, penso que podemos concordar que esta geração poderia ser a última geração humana como temos entendido este termo até agora – estou ciente de que a expressão é forte e provocativa, mas espero nas páginas seguintes poder fazer justiça a esta provocação. O tema central é se esta geração conseguirá colonizar e urbanizar este novo continente de realidade sintética, desejos míticos e potencial tecnológico quase ilimitado. O poder fazer desta geração poderia transformá-la em algo muito diferente do que entendemos atualmente como humano.

O que sabemos é que a figura do homem que habitará nosso futuro é a de um ser errante, que busca. Se ele for capaz de aceitar um chamado espiritual, ele voltará a ser um viator (viajante, n.d.t.), caso contrário se condenará a ser vagabundo e sem rumo.

De fato, a Geração Ômega tem que responder, de uma forma que não pode mais ser atrasada, a algumas perguntas fundamentais sobre nossa natureza humana. Estas questões dizem respeito: à relação da humanidade com seu meio ambiente; à relação da humanidade com a tecnologia; e à relação da humanidade consigo mesma.

A Igreja, especialista em humanidade, como Paulo VI a definiu, percebeu estas transformações e está se tornando a companheira do homem nesta novidade do mundo digital, oferecendo não soluções abstratas e teóricas, mas se permitindo ser questionada pelo que está acontecendo e se tornando a companheira do homem no caminho da história.

Conclusões

Transformar a inovação em desenvolvimento

A constatação que emerge do percurso aqui proposto é que o grande poder da tecnologia pode ser uma ferramenta formidável para ajudar a humanidade a fazer o bem cada vez mais efetivamente ou pode se tornar o instrumento mais eficaz de desumanização. O que permite a distinção entre estes dois resultados?

A mudança de época que estamos atravessando é o produto da tecnologia e de seu impacto na forma como nos entendemos e compreendemos a realidade. Entretanto, o mundo da tecnologia é hoje descrito pela categoria de inovação. Entretanto, se continuarmos a olhar a tecnologia apenas como inovação, corremos o risco de não perceber seu escopo de transformação social e de direcionar seus efeitos para o bem.

Inovação significa um avanço ou transformação gradual, marcado por um aumento cada vez maior da capacidade e do potencial.

Uma bomba atômica comparada a uma clava é um enorme avanço (na capacidade de ofender). Mas podemos chamar este aumento de capacidade de uma coisa boa?

Além do exemplo específico, a resposta correta, em geral, é “depende”. Nem todo progresso é para o bem ou envolve apenas o bem.

Para poder falar de inovação como um bem e poder orientá-la para o bem comum, precisamos de uma qualificação capaz de descrever como e quais características do progresso contribuem para o bem dos indivíduos e da sociedade. Para isso, utilizamos a categoria de desenvolvimento. A ideia de desenvolvimento humano chama a atenção para um conceito abrangente que se concentra nos processos que expandem as escolhas dos indivíduos e melhoram suas perspectivas de bem-estar, e que permitem que indivíduos e grupos se movam o mais rapidamente possível em direção a seu empoderamento.

O desenvolvimento humano deve, portanto, ser entendido como um fim e não como um meio que caracteriza o progresso através da definição de prioridades e critérios. Falar de desenvolvimento significa, portanto, não colocar a capacidade técnica no centro das atenções, mas manter o homem no centro da reflexão e como fim que qualifica o progresso.

Usar tecnologia eticamente hoje significa tentar transformar inovação em desenvolvimento. Significa direcionar a tecnologia rumo e para o desenvolvimento e não simplesmente buscar o progresso como um fim em si mesmo. Embora não seja possível pensar e implementar a tecnologia sem formas específicas de racionalidade (o pensamento técnico e científico), colocar o desenvolvimento no centro do interesse significa dizer que o pensamento técnico-científico não é suficiente por si só. São necessárias diferentes abordagens, incluindo a abordagem humanista e a contribuição da fé.

O desenvolvimento necessário para enfrentar os desafios da era da mudança terá que ser:

Global, ou seja, para todas as mulheres e homens e não apenas para algumas pessoas ou alguns grupos privilegiados (distinguidos por gênero, língua ou etnia).

Integral, ou seja, de toda a mulher e de todo o homem.

Plural, ou seja, atentos ao contexto social em que vivemos, respeitosos da pluralidade humana e das diferentes culturas.

Fecundo, ou seja, capaz de lançar as bases para as gerações futuras, em vez de ser míope e orientado para a utilização dos recursos de hoje sem nunca olhar para o futuro.

Gentil, ou seja, respeitador da terra que nos acolhe (a casa comum), dos recursos e de todas as espécies vivas.

Para a tecnologia e para nosso futuro, precisamos de um desenvolvimento que eu descreveria brevemente como gentil. Isso é a ética, e as escolhas éticas são aquelas que vão na direção de um desenvolvimento gentil.

Paolo Benanti. Pontificia Universidade Gregoriana. Texto original, Italiano. Enviado em 12/02/2022. Aprovado em 30/06/2022. Publicado em 30/12/2022. Tradução Paolo Brivio.

Referências

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YEHYA, N. Homo cyborg. Il corpo postumano tra realtà e fantascienza. Milano: Eleuthera, 2005.

[1] Wired é uma revista mensal americana fundada em 1993 e sediada em São Francisco. Conhecida no setor como A Bíblia de Internet, foi fundada pelo ítalo-americano Louis Rossetto, um dos principais especialistas em tecnologia e na assim chamada revolução digital, juntamente com Nicholas Negroponte, um cientista informático americano famoso por seus estudos inovadores no campo das interfaces homem-computador. Atualmente é dirigida por Chris Anderson, que trabalhou anteriormente para The Economist, Nature e Science. Wired (que literalmente significa conectado) trata de questões tecnológicas e como elas influenciam a cultura, a economia e a política. Desde fevereiro de 2009, ela é também publicada na Itália. No que diz respeito aos ciborgues, Wired é uma das mais ricas fontes de material e reflexões.

[2] Com revolução digital refere-se à série de enormes mudanças no mundo da comunicação e na sociedade contemporânea como um todo, causadas pela possibilidade de reduzir todo tipo de informação a cadeias de bits e bytes.

[3] O original está em inglês, a tradução é nossa. Os petabytes são uma medida da capacidade de memória de um computador. Um petabyte è igual a 250, ou seja 1.125.899.906.842.624, bytes – um byte é a unidade de medida para o cálculo do armazenamento de massa. Retornaremos a este assunto em profundidade nos próximos tópicos.

[4] Para se ter uma ideia de quão grande é a quantidade de dados que somos capazes de processar hoje, basta dizer que os primeiros computadores dos anos sessenta como o ENIAC foram capazes de armazenar cerca de dez bytes, enquanto hoje, em média, um usuário doméstico tem uma capacidade de 1 terabyte (a milésima parte de um petabyte) em seu computador, 460 terabytes são todos os dados climáticos digitais da Terra, 530 terabytes são todos os vídeos contidos no sistema de transmissão internet YouTube, e 1 petabyte de dados é processado a cada 72 minutos pelos server do Google, o popular mecanismo de busca da Internet (ANDERSON , 2008, p. 106).

[5] O assunto é vasto e complexo para ser discutido em detalhe nesse texto. Para mais detalhes, ver BENANTI, 2020.

[6] Pense em fenômenos como fake news, o surgimento do sharp power, os eventos no Capitólio ou o Brexit, na esfera pública, ou como o digital está moldando as expectativas e os modos de relações românticas com plataformas e modalidades nunca antes vistos, para citar apenas alguns exemplos.

[7] A tradução é minha.

[8] A tradução é nossa. Aristóteles introduziu a teoria sobre as causas em Física II 3-7, Metafísica Δ 2, Metafísica A 3-10 e Analítica Posterior II 111. Ela tem sido objeto de muito debate desde o início. A importância da teoria de Aristóteles sobre as causas se deve principalmente ao fato de que, a partir dela, podemos falar de conhecimento quando podemos dar conta dos princípios e causas que desempenharam um papel na ocorrência de um determinado evento.

[9] Com Sebastiano Maffettone escrevemos um artigo sobre sustentabilidade digital, publicado em Il Mulino, v. 2, 2021.

Padres Capadócios

Sumário

Introdução

1 Quem são os Padres Capadócios?

2 Por que são tão importantes?

3 Principais contribuições teológicas

3.1 O fim da controvérsia ariana

3.2 Contribuições para a Cristologia

3.3 A contribuição à mística

3.4 Exegese

4 Homens de Igreja

5 O monaquismo

Conclusões

Referências

Introdução

O presente texto propõe uma iniciação geral aos Padres Capadócios. Começa com uma breve apresentação biográfica sobre cada um, indica, em seguida, por que eles são importantes no conjunto da Igreja e da teologia cristã, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Num terceiro momento, são apresentadas as contribuições teológicas de cada um, tanto na controvérsia que se seguiu à solução de Niceia ao problema do arianismo, quanto na elucidação de questões cristológicas, na reflexão sobre a mística cristã e no desenvolvimento da exegese. Num quarto momento, é indicada a contribuição dos três Capadócios na organização da Igreja e, no quinto, ao monaquismo.

1 Quem são os Padres Capadócios?

Com o termo “Padres Capadócios” indicam-se três bispos do séc. IV: Basílio de Cesareia (da Capadócia) (†379), também conhecido como Basílio Magno; seu amigo Gregório de Nazianzo (†389), conhecido no Oriente cristão pelo apodo de “o Teólogo”; e o irmão de Basílio, Gregório de Nissa († depois 394). O termo “capadócios” se refere à região de onde eram originários, a Capadócia, região oriental da península da Anatólia, a atual Turquia. O costume de mencioná-los juntos testemunha a percepção que a Igreja sempre teve de sua união e unidade de ação, seja no campo teológico, seja no da ação política eclesiástica de enfrentamento das fases finais da controvérsia ariana. Depois da reforma conciliar, a liturgia latina celebra Basílio e Gregório Nazianzeno num único dia, 2 de janeiro, enquanto o nome de Gregório de Nissa se encontra no Martirológio Romano no dia 10 de janeiro, onde, aliás, se encontrava também no Martirológio antes da Reforma. É a mesma data do calendário bizantino. Note-se que no calendário bizantino (gregoriano) Basílio e Gregório Nazianzeno, além de sua festa específica (respectivamente 1º de janeiro e 25 de janeiro) são celebrados também na festa dos Três Santos Doutores, dia 30 de janeiro, juntamente com João Crisóstomo. O culto litúrgico do Nisseno aparece mais tarde em relação ao de seu irmão e do Nazianzeno: a menção mais antiga que conhecemos está na versão georgiana do Lecionário de Jerusalém (séc. VII), no dia 23 de agosto. Provavelmente não se podem excluir como causa algumas posições teológicas de Gregório de Nissa, que pareciam demasiado origenianas (mesmo que se discuta sobre qual a real ideia nissena a respeito da apocatástase). Também a condenação de Orígenes, em 553, provavelmente terá influenciado no tardio surgimento do culto litúrgico do Nisseno.

2 Por que são tão importantes?

A importância dessas três figuras para a história da Igreja e da teologia dificilmente pode ser subvalorizada. Assim escreve M. Simonetti:

Com Basílio, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa a fusão entre profundo sentir cristão e paideia grega fica completa e se realiza no nível mais alto, seja da espiritualidade cristã, seja da formação clássica. De alta extração social, educados do modo mais tradicionalmente refinado e completo e, ao mesmo tempo, crescidos em ambientes profundamente cristãos, eles realizaram o ideal de um cristianismo culto, que soube aceitar tudo o que havia de válido no helenismo, sem desfigurar as linhas mestras da mensagem cristã, numa síntese que haveria de permanecer paradigmática para a cristandade oriental. (SIMONETTI, 1990, p. 89)

A família de Basílio e de Gregório Nisseno é efetivamente um dos primeiros exemplos de famílias já cristãs desde algumas gerações, de grande cabedal econômico e cultural e que participaram da história da evangelização da própria região, dando inclusive testemunho pessoal no decorrer das perseguições. Sua teologia, portanto, reveste-se de particular interesse, entre outras razões, porque se trata de um dos primeiros produtos de pessoas educadas na mais clássica paideia grega, mas, ao mesmo tempo, formadas já em ambiente que havia tempo era cristão. Basílio e Gregório de Nazianzo estudaram juntos em Atenas, que ainda era a capital da cultura dessa época. Basílio se mudou depois para Constantinopla, onde, segundo o testemunho do Nisseno, foi discípulo do famoso rétor Libânio. Basílio nos deixará uma obra importante, conhecida sob vários nomes, sendo o mais comum Discurso aos jovens, em que mostra como o estudo dos clássicos, feito cum grano salis certamente, não só não é perigoso para a fé, mas se torna até mesmo propedêutico para o subsequente estudo da Sagrada Escritura e da teologia. Gregório de Nazianzo é um finíssimo literato e um rétor muito capaz, e suas obras, tanto teológicas como literárias, mostram sua cultura e seu apurado gosto literário clássico.

Além de ser ligada à evangelização da Capadócia, a família de Basílio e do Nisseno é também uma família que deu à Igreja um número impressionante de santos. A avó de Basílio, Macrina Senior, foi discípula de Gregório Taumaturgo (mártir, celebrado a 2 de março) que fora, por sua vez, discípulo de Orígenes e se conta entre os evangelizadores da Capadócia. No Martirológio romano antes da Reforma, Macrina Senior era recordada dia 14 janeiro (na reforma litúrgica seu nome foi omitido). Os pais de Basílio são igualmente mencionados no Martirológio (seja no antigo como no reformado) no dia 30 de maio. Além da avó e dos pais de Basílio e Gregório Nisseno, essa família inclui ainda dois santos: um outro irmão de Basílio e Gregório, Pedro, bispo de Sebaste (que era celebrado no dia 9 de janeiro, mas hoje é mencionado no dia 26 de março) e a irmã Macrina Júnior (cuja memória litúrgica, em ambos os calendários, permanece no dia 19 de julho). Macrina terá uma influência muito digna de nota sobre Gregório de Nissa, que a recordará com acentos comoventes em uma carta (Ep. 19) e à qual dedicará uma obra importante, o De Anima et resurrectione, definido por alguns como o Fédon cristão, em que o diálogo sobre a morte e a ressurreição se desenrola entre Gregório e sua irmã no leito de morte, desempenhando a irmã o papel “socrático”. Não se pode não notar quão importante tenha sido a presença feminina na transmissão e na vivência pessoal de Basílio e do Nisseno (PAMPALONI, 2003; SUNBERG, 2017). As perseguições enfrentadas pela família foram, sem dúvida, uma das fontes que deram a Basílio aquela peculiar energia com que soube opor-se a tudo que impedisse a liberdade da Igreja. Também a família de origem de Gregório de Nazianzo se localizava mais ou menos nas mesmas coordenadas. Era uma família aristocrática e abastada, seu pai (conhecido como Gregório, o Velho), depois da conversão do paganismo, tornou-se bispo de Nazianzo e sua mãe, chamada Nona, também recordada no Martirológio romano (5 de agosto), exerceu um papel importante seja na conversão do marido como na educação do filho, que dedicou à mãe uma comovente lembrança num de seus discursos (Orat. 18).

Basílio e os dois Gregórios representam um caso praticamente único na história da teologia. Antes de tudo pela amizade entre eles, especialmente entre Basílio e o Nazianzeno, embora nos últimos anos a amizade entre Gregório e Basílio provavelmente tenha sido submetida a dura prova e talvez tenha, de algum modo, experimentado certo arrefecimento. Em segundo lugar, pela colaboração que souberam manter, embora não sem dificuldades, devido aos diferentes temperamentos dos três e uma certa “exuberância” na liderança por parte de Basílio em relação ao irmão e ao amigo durante a luta contra o imperador Valente. Mas foi, sobretudo, uma união peculiar no esforço comum no campo da teologia, em que cada um fez frutificar as próprias capacidades de um modo sinergético. A profundidade teológica e a visão geral dos problemas da Igreja de Basílio, a sensibilidade teológica e literária do Nazianzeno, unida à sua habilidade de rétor, os dons de especulação filosófica e a experiência mística do Nisseno imprimiram uma marca indelével na história do desenvolvimento da teologia. Verificar a possibilidade de explicitar seu método de fazer teologia “juntos” seria um tema que mereceria aprofundamento. Depois da morte de Basílio, que, segundo a maior parte dos pesquisadores, ocorreu em 379, o amigo e o irmão recolheram sua herança. Os tumultuosos acontecimentos que implicaram Gregório de Nazianzo em Constantinopla e depois no concílio que Teodósio quis fosse realizado na capital em 381, não impediram que esse concílio e o papel que nele desempenharam os dois Gregórios representassem a vitória decisiva da teologia dos três Capadócios sobre o perigo ariano.

3 Principais contribuições teológicas

3.1 O fim da controvérsia ariana

A contribuição teológica dos Capadócios se situa na fase final da controvérsia ariana e, sem dúvida alguma, foi de impacto decisivo para sua cessação. O concílio de Niceia, com a afirmação do termo homoousios, tinha certamente cortado pela raiz toda possibilidade de existência da posição de Ário, mas, já que o termo ousia não era percebido como claramente distinto de hypostasis, os bispos orientais, que desde sempre tinham sustentado uma teologia trinitária tripostática (ou seja: que sublinhava a distinção das três hipóstases divinas) viam no termo homoousios o perigo de negar uma distinção real entre o Pai e Filho, já que afirmar a mesma substância teria podido entender-se também como afirmar a mesma hipóstase. O temor não era infundado, pois em Niceia, entre os apoiadores de Atanásio e do homoousios, estava também Marcelo de Ancira, cuja posição monarquiana radical era conhecida e por ela haveria de ser condenado pouco depois. Marcelo negava a distinção das hipóstases na Trindade, pois, para ele, isso significaria afirmar três deuses distintos, e propunha uma modalidade puramente econômica da distinção entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que seriam, em última análise, uma só “pessoa”. A aceitação das conclusões do concílio da parte dos bispos orientais foi obtida sob inegável pressão de Constantino, que desejava encerrar rapidamente a questão por motivos de natureza política e estratégica, depois da ainda recente derrota de Licínio (324) e de ter-se tornado assim o único imperador. Mas uma convergência teológica não foi de fato alcançada, e esse fato causará a tensão interna que deflagrou imediatamente depois, levando a um vintênio de tumultuoso suceder-se de sínodos e propostas de fórmulas de fé, já a partir do importante sínodo de Antioquia de 341 (para essas fórmulas, em KELLY, 1989).

A fase seguinte, que podemos fazer iniciar com a morte de Constantino e a divisão do império entre seus filhos, viu o imperador Constâncio impor, para a paz religiosa do império – do qual, depois da morte de seu irmão Constante (350) e da derrota do usurpador Magnêncio (353), ele se tinha tornado o único imperador –, uma fórmula de fé que pudesse satisfazer a todas as partes, mas que na realidade resultava inaceitável tanto para os bispos orientais, como, naturalmente, para os mais fiéis a Atanásio, pois acolhia expressões de claro sentido ariano. Os adeptos da nova fórmula são chamados homeusianos, do termo homoiousios, “semelhante” ao Pai, proposta para dizer o que teriam pretendido Atanásio e os outros nicenos, sem usar, no entanto, o termo discutido. Por esse motivo, o termo “semiariano” para essa posição é hoje inaceitável. Constâncio conseguiu, contudo, obter, pela força e coerção, a assinatura de quase todos os bispos, quer do Oriente quer do Ocidente. Isso foi obtido através da celebração simultânea de dois concílios distintos, um em Selêucia Isáurica, outro em Rimini, nos quais o imperador tinha separado os orientais, mais divididos entre si, dos ocidentais, muito mais unidos na fidelidade nicena. Mas a aclamação a imperador de Flavio Claudio Juliano (conhecido como O Apóstata), por parte das legiões estacionadas na Gália, em 360, e a morte de Constâncio no ano seguinte, frearam a consolidação da pax religiosa sonhada por ele. Depois da morte de Juliano na luta contra os Sassânidas, em 363, coube a Valente subir ao trono da parte oriental do império. Sendo ele simpático aos arianos, o projeto foi retomado com vigor. Ficou, porém, dessa vez limitado só ao Oriente, uma vez que seu irmão Valentiniano, imperador no Ocidente que o tinha nomeado para governar a parte oriental do império, era niceno.

Este é o momento mais importante em que se encontram em ação os Capadócios, sobretudo Basílio. Ele teve o mérito de ter compreendido que, contrariamente ao que tinha pensado a corrente homeusiana, na qual se reconhecia o imperador Constâncio, uma solução política a um problema teológico não pode funcionar (e o mesmo se verificará também um século depois com a recepção do concílio de Calcedônia e o fracasso do Henotikon). Então, além da cuidadosa política eclesiástica de defesa da Igreja em face da hostilidade de Valente, Basílio elaborou uma solução que resultaria definitiva ao problema da distinção entre ousia e hypostasis, baseando-se numa distinção aristotélica entre “ousia primeira” e “ousia segunda”, uma que indica a substância em geral e a outra a substância individual, ou a hipóstase (para o caminho que levou Basílio a tal resultado, em SIMONETTI, 2006). Assim, consagrou-se a fórmula trinitária uma só ousia e três hipóstases. A outra contribuição decisiva, sempre decorrente da polêmica com os arianos, foi a respeito da divindade do Espírito Santo, tema que se tornou central nas discussões teológicas a partir, sobretudo, de 370, e sobre a qual Basílio escreveu uma obra famosa (De Spiritu Sancto), de grande interesse também porque Basílio aí apela à lex orandi como fonte da teologia.

Uma das evoluções do pensamento ariano, muito além das próprias posições de Ário, foi a que se tornou conhecida como anomea, para a qual a diferença entre o Pai e o Verbo era absolutamente radical. Um dos representantes teológicos mais famosos dessa corrente foi sem dúvida Eunômio, bastante ativo na segunda fase da controvérsia ariana. Seu racionalismo teológico radical foi refutado em duas obras, uma de Basílio e outra de seu irmão Gregório, talvez a mais célebre. Contra a teologia anomea são também os célebres cinco discursos teológicos de Gregório de Nazianzo, pronunciados em 380, em Constantinopla.

3.2 Contribuições para a cristologia

A subdivisão clássica da manualística caracteriza o séc. IV como o século das controvérsias trinitárias e o séc. V como o das controvérsias cristológicas. Na realidade, em nossa opinião, não é de fato incorreto considerar também a questão ariana como, no fundo, cristológica, enquanto se interrogava sobre a natureza divina do Verbo. E a questão sobre sua encarnação, embora, com efeito, tematizada plenamente no séc. V, não estava ausente nos séculos precedentes. Sem voltar ao séc. III com o que se poderia chamar, em jargão cinematográfico, um trailer das controvérsias do séc. V, ou seja, a famosa disputa que implicou, em Antioquia, Paulo de Samosata e o sacerdote Malquião (NAVASCUÉS 2004), sem dúvida também a segunda metade do séc. IV reconheceu a plena atualidade da questão, graças à figura de Apolinário de Laodiceia, contra o qual se movimentaram as mentes teológicas mais atentas do tempo, entre as quais os Capadócios (BELLINI, 1978). Num primeiro momento, Basílio tinha Apolinário em boa consideração, não o conhecendo pessoalmente, mas só de fama, como sendo, entre outras coisas, um férvido apoiador de Atanásio e do concílio de Niceia (LIENHARD, 2006). Chegou mesmo a consultá-lo sobre algumas questões (o epistolário basiliano). Durante seu magistério em Antioquia, no fim do séc. IV, Apolinário teve entre seus alunos também Jerônimo. Mas, quando sua cristologia começou a ser mais bem conhecida, imediatamente não só os Capadócios tomaram distância, mas formou-se outra linha de frente teológica a favor dos dois Gregórios (nesse meio tempo, Basílio já tinha falecido). Segundo Apolinário, na encarnação, o Verbo teria assumido o lugar (e, portanto, exercido as funções) do nous humano (no modelo tripartido clássico, nous, psychē e sōma) ou da alma (no modelo bipartido anima/corpus), ambos os modelos se encontram nos seus escritos ário. Se deste modo, na intenção de Apolinário, que queria assim refutar arianos e sabelianos (MCCARTHY SPOERL, 1993; MCCARTHY SPOERL, 1994), a realidade da encarnação ficava claramente afirmada, o resultado que derivava daí era, porém, inaceitável, uma vez que, se o nous, a parte que no homem especifica a humanidade, em Cristo não era humano mas era o mesmo Logos, resultavam pelo menos duas consequências absurdas: que Cristo não teria sido plenamente humano e que na prática se negava a transcendência divina, reduzida a uma das “funções” humanas. Gregório de Nazianzo salientou isso com força, fazendo seu o famoso adágio “o que não foi assumido pelo Verbo não foi salvo”. Também Gregório de Nissa escreverá uma obra inteira contra Apolinário. Em polêmica, enfim, muito provavelmente com teólogos antioquenos (BEELEY, 2011), Gregório de Nazianzo usará uma célebre expressão que esclarece sua visão: em Cristo, as duas naturezas não são allos/allos, mas allo/allo, utilizando uma distinção permitida pela língua grega e que na prática significa que em Cristo não há dois sujeitos, mas duas naturezas distintas. Na resposta a Apolinário, aparece um aspecto peculiar da cristologia de Gregório de Nissa, (chamada também “cristologia de transformação” DALEY, 2002), que se encontra profundamente relacionada com o conceito, peculiarmente nisseno, de epektasis e com uma concepção positiva da mudança (tropē) (DANIÉLOU, 1970).

3.3 A contribuição à mística

Entre os pesquisadores modernos, Jean Daniélou foi um dos primeiros que intuíram a importância da dimensão mística de Gregório de Nissa. Por muitos aspectos, Gregório foi considerado, aliás, o “pai” da mística cristã, sobretudo a partir da Vida de Moisés e de suas Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, que retomam a herança origeniana com especificidades próprias, como precisamente a ideia de progresso infinito (PAMPALONI, 2010) e a que foi chamada a mística das trevas (PONTE, 2013). O pensamento de Gregório influenciou os místicos tanto do Oriente como do Ocidente. No Oriente, para além do âmbito de língua grega, deve-se mencionar a figura do místico siríaco João de Dalyatha (PUGLIESE, 2020), enquanto, no Ocidente, certamente se deve citar o nome de Guilherme de Saint-Thierry e sua influência sobre a mística cisterciense do séc. XII.

3.4 Exegese

Não se pode deixar de acenar à exegese desses Padres. De Basílio temos o primeiro Hexaemeron de que temos conhecimento, e representará um gênero literário de enorme sucesso, sobretudo na Idade Média. A exegese do Nazianzeno e do Nisseno em geral tem muita influência de Orígenes, mas sem se prestar às acusações de alegorismo radical. Um magnífico exemplo de resposta às acusações de alegorismo é dado exatamente por Gregório de Nissa, que, para responder às críticas de que negava um real conteúdo cognoscitivo à exegese alegórica, escreveu sua Vida de Moisés em duas partes. Na primeira, apresenta a vida de Moisés mediante uma exegese literal e, na segunda, o faz por meio da exegese espiritual, ou seja, alegórica, mostrando assim que uma não exclui a outra.

4 Homens de Igreja

De quanto dissemos por ocasião da descrição do quadro em que se desenvolveu a contribuição teológica dos Capadócios emerge a dimensão de Basílio como homem de ação capaz e decisivo na luta em favor da liberdade da Igreja, em oposição às manobras do imperador Valente. Nessa luta, atuam também os dois Gregórios como protagonistas – poderíamos dizer – apesar deles. Quando Valente dividiu a Capadócia em duas províncias (Capadócia I, com a capital em Cesareia, e Capadócia II, com a capital em Tiana) – segundo alguns pesquisadores para redimensionar o poder de Basílio, então bispo de Cesareia e metropolita da Capadócia; segundo outros simplesmente por motivos fiscais – Basílio reagiu pronta e decididamente. Para neutralizar tal plano e a ambição do bispo (ariano) Ântimo de Tiana, que teria querido ter de volta os direitos de metropolita da Capadócia II, Basílio defende a tese de que não devia haver coincidência entre circunscrições eclesiásticas e circunscrições civis. Um concílio realizado em 372 decidiu nesse sentido (DI BERARDINO, 2006) e Basílio aproveitou para criar novas dioceses na Capadócia II, nomeando bispos amigos, entre os quais o amigo Gregório, na pequena localidade de Sásima. Gregório recusou-se a ir para lá, provocando uma reação bastante dura do amigo, o que parece ter estremecido a relação entre eles. Enquanto seus pais viveram, Gregório permaneceu em Nazianzo, para depois dedicar-se, de 374 até a morte de Basílio, a uma vida retirada, como sempre tinha querido fazer. Basílio, com o mesmo método, nomeou também seu irmão Gregório para a sé de Nissa, mas as capacidades administrativas do Nisseno não eram equiparáveis às filosóficas, e foi logo facilmente contestado e, por fim, deposto por um concílio ariano, em 376. Também algumas de suas decisões foram fortemente criticadas por Basílio, que não poupou críticas ao irmão em algumas de suas cartas a outros bispos. Mais acertada foi a escolha de Anfilóquio, primo do Nazianzeno, para a sé de Icônio, e a relação com ele permanecerá sempre de grande amizade, cordialidade e respeito, diferentemente da relação com seu irmão e o amigo Gregório, e a Anfilóquio dedicará o já citato tratado sobre o Espírito Santo.

Outro campo em que Basílio se empenhou com paixão foi o apoio a Melécio, nos acontecimentos que se seguiram ao cisma de Antioquia. Procurou de todos os modos, como mostra sua correspondência com o papa Dâmaso, convencer o Ocidente da necessidade de unir os esforços para derrotar Valente, e que, para esse fim, era preciso o apoio dos “ocidentais” (inclusive de Atanásio). Parte desse esforço consistiu em convencer os nicenos radicais, por meio de sua intensa atividade epistolar e de contatos, que as posições homeusianas de Melécio, e a sua própria, eram perfeitamente ortodoxas com a fé de Niceia.

Morto Basílio em 379, os dois Gregórios adquiriram luz própria. Com a trágica derrota de Adrianópolis contra os Godos e a morte de Valente em batalha, o imperador Graciano nomeia para o Oriente um de seus generais, Teodósio, de comprovada fé nicena. O clima político e religioso sofre, então, uma profunda mudança e Gregório de Nazianzo, graças à posição eminente da irmã de Anfilóquio de Icônio, Teodósia, é chamado em 379 a Constantinopla para reavivar a exígua minoria ortodoxa. Aceita deixar seu amado retiro em Isáuria e se lança de novo à missão. Em Constantinopla, nenhuma igreja era concedida aos não arianos, e Teodósia põe à disposição uma parte do seu palácio para uma capela, que tomará o nome de Anástasis, capela da Ressurreição, sobre a qual Gregório escreverá alguns versos tocantes. Sua missão não resultou fácil e, na noite de Páscoa de 379, houve até uma incursão de arianos na capela, decididos a impedir que se celebrassem aí os batismos e se pronunciasse o símbolo não ariano. Os acontecimentos em Constantinopla se complicaram. Tendo a sede ficado vacante e considerando que Gregório não tendo jamais tomado posse de Sásima era um bispo “livre”, foi ele escolhido para a sucessão na prestigiosa sé da cidade imperial. Um usurpador chamado Máximo, com o apoio de Pedro, bispo de Alexandria, contestou sua eleição, conseguindo cooptar para seu lado até mesmo Ambrósio de Milão e o papa Dâmaso, provocando assim uma grande amargura em Gregório. Empossado em Constantinopla, Teodósio expulsou os arianos da cidade. Abriu-se então o concílio em 381. Com a morte inesperada de Melécio de Antioquia, que presidia o concílio, a presidência foi oferecida a Gregório, que, porém, teve que sofrer os ataques dos bispos egípcios, de Máximo e dos delegados romanos, que o acusaram de não poder ser bispo de Constantinopla por já ser titular de Sásima. Gregório, em plena consonância com seu caráter bastante sensível, não escolhe o caminho da resistência, mas deixa tudo e vai embora, e em seu lugar é consagrado Nectário. Esse triste epílogo deixará traços indeléveis em Gregório, como se pode verificar em muitos de seus escritos subsequentes. Os últimos anos vê-lo-ão finalmente bispo de Nazianzo, embora relutante, empenhado nos estudos, na polêmica antiapolinarista, na pregação. Morre em 390.

O Nisseno, depois a morte de Basílio, começou uma fecunda atividade na composição de obras, que só terminará com sua morte, que aconteceu depois de 394. Ele também participou no concílio de Constantinopla e, depois que se retirou de cena seu amigo, tornou-se o mais autorizado representante da ortodoxia nicena, sendo enviado a algumas missões que manifestam a grande autoridade, intelectual e eclesial que tinha alcançado neste momento, embora não todas essas missões tenham sido concluídas de modo positivo.

5 O monaquismo

Os três Capadócios deixaram uma marca importante também para o desenvolvimento do monaquismo, particularmente Basílio e sua experiência antes da ordenação episcopal. Tal experiência, embora não caiba nos cânones do monaquismo assim como o entendemos hoje, deixou, no entanto, vestígios indeléveis, sobretudo no monaquismo oriental. Basílio, voltando dos estudos no exterior, em 355, se encaminhou para uma vida cristã mais consciente, graças à influência de sua irmã Macrina, que sempre tinha manifestado grande inclinação para a vida ascética. A influência da irmã nos é relatada pelo Nisseno: alguns pesquisadores modernos sugerem a influência de um asceta famoso naquele tempo, Eustácio de Sebaste, figura de qualquer forma importante para Basílio durante muito tempo, como detectamos por seu epistolário. Empreendeu diversas viagens por regiões conhecidas pela presença de figuras que viviam certa vida que hoje chamaríamos monástica, embora ainda carente das estruturas que atualmente associamos ao termo. Pelo fim de 357, recebeu o batismo (também com uma profunda formação cristã, o batismo naquele tempo ainda se recebia frequentemente quando adulto, como vemos no caso mais conhecido de Agostinho) e se retirou para a solidão numa propriedade da família em Anési. De lá enviou muitas cartas a Gregório para que se unisse a ele naquela vida. Por um certo tempo, o amigo foi a seu encontro em Anési. Essa experiência de busca da solidão para estar em paz, estudar e meditar foi vivida no âmbito do círculo familiar, nas suas propriedades (houve quem sugerisse um paralelo com o retiro de Cassiciacum, de Agostinho antes de seu batismo). Mais tarde, tendo passado também um tempo com Eustácio de Sebaste, embora seu ascetismo fosse demasiado radical para Basílio, este, no curso do tempo, desenvolverá uma forma de vida comum original em relação ao modelo anacorético, cuja origem se conecta com Antão do deserto, e ao cenobítico, segundo o modelo de Pacômio. Quando era ainda presbítero, cria uma verdadeira e singular pequena cidade para acolher os peregrinos, os estrangeiros e os doentes, conhecida como Basileide. Seus ensinamentos ascéticos são evidentes, sobretudo, nas suas Regras (seja a coleção chamada “breve” como a “longa”). Embora Basílio pensasse neste modo de vida para todos os cristãos, suas Regras e seus escritos constituirão a base, ainda hoje sólida, do monaquismo oriental, que, com exceção do de origem estudita, pode chamar-se com razão “basiliano”.

Conclusão

A partir desses poucos acenos, é possível compreender que o estudo dos Padres Capadócios nos transporta ao coração do séc. IV, com suas dificuldades e seus esplendores. Não é por acaso que o séc. IV é chamado de “século áureo” da patrística. É o tempo da formação da liturgia (a Igreja oriental conhece várias anáforas atribuídas a Basílio), do desenvolvimento da consciência da linguagem dogmática, dos primeiros concílios ecumênicos. Em todo este período fecundíssimo estão presentes os Capadócios. Ocupar-se com eles, portanto, se por um lado requer um esforço em grande escala porque se deve entrar na filosofia, na história, na teologia, na retórica clássica e em muitos outros âmbitos, por outro, representa uma porta magnífica para conhecer um dos períodos mais fascinantes da Antiguidade Tardia, quando o perfume do mundo clássico ainda não se havia desvanecido de todo, e a ação cultural da Igreja, em seu empenho simultâneo de inculturação e de fecundação, estava em um de seus períodos de maior esplendor. Os estudos sobre Basílio e sobre o Nazianzeno continuam sempre vivos, mas não se pode não reconhecer que dos três o que mais goza de interesse contínuo por parte dos pesquisadores, e não só limitado ao círculo dos especialistas em Antiguidade, é Gregório de Nissa, graças também ao fato de que é um dos poucos Padres de quem temos à disposição a quase totalidade das obras em edição crítica, Gregorii Nysseni Opera (GNO), empreendimento monumental iniciado por W. Jaeger. Outro sinal de interesse é que dispomos de um dicionário dedicado a Gregório de Nissa, o que facilita bastante a pesquisa de temas específicos na obra do Nisseno. Por fim, contribui muito para este atual “sucesso” de Gregório, também por parte de autores não diretamente interessados no aspecto teológico de seus escritos, o lado filosófico e místico, que parece responder bem a uma pesquisa/interesse que parece sempre atual na presente conjuntura histórica.

Massimo Pampaloni SJ (professor visitante da FAJE). Texto original italiano. Enviado: 30/09/2022; Aprovado: 30/11/2022; Publicado: 30/12/2022. Tradução: Francisco Taborda SJ

 Referências

 No volume de Moreschini, que, na minha opinião, continua ainda hoje a melhor introdução aos Padres Capadócios (onde é tratado também Evágrio), encontra-se uma excelente bibliografia para cada um deles; por isso remetemos a ela. Aqui indicamos somente algumas obras que citamos no verbete e alguns textos em língua portuguesa.

Principais traduções em português

BASILIO DE CESARÉIA. Homilia sobre Lucas 12; Homilias sobre a origem do homem; Tratado sobre o Espírito Santo. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2005.

GREGORIO DE NISSA. A criação do homem; A alma e a ressurreição; A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011.

GREGÓRIO DE NISSA. Vida de Moisés. Campinas (SP): CEDET, 2018. (Nota: esta edição usa uma tradução que há muito tempo existe na internet. Não tem indicação de quem traduziu e se a tradução foi feita do grego ou de uma tradução em outra língua).

GREGÓRIO DE NAZIANZO. Discursos teológicos. Petrópolis: Vozes, 1984.

Sugestões de leitura

BEELEY, C. A. The Early Christological Controversy: Apollinarius, Diodore, and Gregory of Nazianzen. Vigiliae Christianae, v. 65, p. 376-407, 2011.

BELLINI, E. (Ed.). Su Cristo. Il grande dibattito nel Quarto secolo. Milano: Jaca Book, 1978.

CADERNOS PATRÍSTICOS, v. 5 n. 9 (2013). (Número monográfico sobre os Capadócios)

DALEY, B. “Heavenly Man” and “Eternal Christ”: Apollinarius and Gregory of Nyssa on the Personal Identity of the Savior. The Journal of Early Christian Studies, v. 10, p. 469-488, 2002.

DANIÉLOU, J. L’être et le temps chez Grégoire de Nysse. Lieden: Brill, 1970.

DI BERARDINO, A. Cappadocia-II. Concilio. In: Nuovo Dizionario di Patristica e di Antichità cristiane. Roma: Marietti 1820, 2006.

GREGORII NYSSENI OPERA (GNO). Edição on-line. Disponível em: https://scholarlyeditions.brill.com/gnoo/ Acesso em: 12 set 2022.

KELLY, J. N. D. Early christian doctrines. 5.ed. London: A&C Black, 1989.

LIENHARD, J. T. Two Friends of Athanasius: Marcellus of Ancyra and Apollinaris of Laodicea. Zeitschrift für antikes Christentum / Journal of Ancient Christianity, v. 10, n. 1, 2006.

MATEO-SECO, L.-F.; MASPERO, G. Gregorio di Nissa, Dizionario. Roma: Città Nuova, 2007.

MCCARTHY SPOERL, K. Apollinarius and the Response to Early Arian Christology. Studia Patristica, v. 26, p. 421-427, 1993.

MCCARTHY SPOERL, K. Apollinarian Christology and the Anti-Marcellian Tradition. Journal of Theological Studies, v. 45, p. 545-568, 1994.

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MORESCHINI, C. I Padri Cappadoci. Storia, letteratura, teologia. Roma: Città Nuova, [s.d.].

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PIERANTONI, C. Apolinar de Laodicea y sus adversarios: aspectos de la controversia cristologica en el siglo IV. Santiago: Pontificia Universidad Catolica de Chile, 2009.

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