Mística Inter-Religiosa

Sumário

Introdução

1 A revelação de Deus

2 O diálogo inter-religioso

3 A mística inter-religiosa

Conclusão

Referências

Introdução

Em um contexto fragmentado e diverso, que marca as sociedades contemporâneas, percebe-se um forte pluralismo religioso que desafia as diferentes tradições religiosas. Entretanto, essa realidade cria a oportunidade para que essas tradições possam chegar a uma maior profundidade, assumindo sua real vocação: a de ser caminho para que o ser humano, no mais íntimo de si, entre em contato com a Realidade Última, Deus.

Nesse sentido, os estudos de religião evidenciam que o cultivo da verdadeira experiência religiosa amplia as possibilidades da razão humana, além de permitir e favorecer em seu exercício, dentro do marco insubstituível da finitude que lhe é consubstancial, a felicidade da pessoa religiosa.

Logo, torna-se favorável pensar em uma mística inter-religiosa que seja capaz de impulsionar o diálogo entre as religiões para além de uma simples troca de ideias, conhecimento conceitual ou formulações de verdades.

Em vista disso, abordaremos, em seguida, alguns temas que podem contribuir na construção de uma mística inter-religiosa: a revelação de Deus, a partir da perspectiva da maiêutica histórica, como a propõe Andrés Torres Queiruga, e o diálogo inter-religioso, impulsionado pela experiência religiosa. Finalizaremos apontando a sua importância para a própria experiência religiosa, para a relação entre os religiosos e religiosas das mais diversas experiências de fé e para a convivência harmoniosa na sociedade.

1 A revelação de Deus

A partir do entendimento de que é comum para muitas religiões a convicção de terem sua origem numa revelação divina, é possível pensar que “a revelação é um dado constitutivo da estrutura mesma da religião” (QUEIRUGA, 1995a, p. 20).  Desse modo, caminhos para a comunicação entre as diferentes tradições religiosas podem ser abertos por causa de uma maior tematização da autocomunicação divina, pois é Deus que insiste em querer revelar-se a todos e de modos sempre novos: “Deus é livre para revelar-se quando e como quer” (QUEIRUGA, 1995b.  p. 102).

Ampliar a concepção de Deus presente nas tradições religiosas permite contemplar com mais profundidade seu mistério, é o que propõe o teólogo Andrés Torres Queiruga quando alarga a compreensão sobre a revelação de Deus. Ele utiliza a intuição de Sócrates sobre o termo ‘maiêutica’, ‘dar-à-luz’, e resguarda a importância do mediador (maieuta = parteiro), para com a sua comunidade. Assim sendo, “o mediador, com sua palavra e seu gesto, faz os demais descobrirem a realidade em que já estão colocados, diante da presença que já os estava acompanhando, a verdade que, vinda de Deus, já era ou está sendo” (QUEIRUGA, 1995a, p. 113).

A pessoa religiosa, quando se deixar interpelar por esta Presença, apreende a profundidade de sua realidade, abre-se a uma experiência singular da revelação e se descobre no próprio ser a partir de Deus, no mundo. Essa ação parte sempre de Deus, em direção à pessoa. Quando este acolhe a presença reveladora de Deus permite, por meio desse seu ato, uma abertura ao seu próprio crescimento, à sua realização humana.

Ou seja, na revelação “não se manifesta o que o homem é por si mesmo, e sim o que começa a ser por livre iniciativa divina. Não se trata de um desdobrar imanente de sua essência, mas de uma determinação realizada por Deus na história” (QUEIRUGA, 1995a, p.115). Nesse sentido, para Queiruga, a revelação se dá maieuticamente na história.

Como maiêutica histórica, a revelação “não consiste num estático sempre aí, senão em um ‘sempre aí’ dinâmico, que se atualiza constantemente no novo de sua realização mediante a liberdade do homem e de sua história” (QUEIRUGA, 1995a, p.195).  Ela tem seu aspecto maiêutico na função da palavra, pois possibilita o novo, ‘traz à luz’; não leva para fora de si, nem fala de coisas estranhas, mas devolve ao ser humano à sua mais radical autenticidade. A revelação de Deus ao ser humano implica um intenso encontro consigo mesmo, que se desdobra numa maior percepção sobre a vida e numa melhor contribuição na construção da história.

Desse modo, como um dado constitutivo de toda religião – por ter em sua estrutura o ser humano como seu lugar privilegiado – nenhuma delas pode exaurir a riqueza do Mistério divino. O cristianismo, por exemplo, diante dessa constatação, não deve renunciar à experiência da revelação cristã como manifestação plena e universal de Deus em Jesus Cristo.

A revelação, que aconteceu de maneira insuperável em Jesus, possibilitou o rompimento de toda particularidade. Foi em Jesus que Deus encontrou a oportunidade de entregar-se totalmente à humanidade. Logo, a universalidade do cristianismo se concretiza no estilo de vida e na práxis do cristão, na sua experiência de fé e de religiosidade, porque em Jesus Cristo a universalidade se dá no próprio dinamismo de sua revelação para toda a humanidade.

Nesse sentido, esta Presença consegue ser mais bem percebida por meio de uma experiência religiosa, em que o sujeito religioso vive, nas diferentes tradições religiosas, nas mais variadas formas.  Experiência esta que conduz o ser humano ao encontro com Deus e, ao mesmo tempo, a voltar-se aos demais e auxiliar os que estão em busca de tal caminho. Afirma ainda Queiruga que esse “não faz mais que iluminar, na consciência, a experiência transcendental da própria realidade já agraciada pelo Espírito” (QUEIRUGA, 1995a, p. 1224).

Essa revelação ao ser humano implica para este em um intenso encontro consigo mesmo, em uma maior percepção sobre a vida e uma melhor contribuição na construção da história rica em significado para si e para a sociedade. Nessa perspectiva, a partir da revelação acontecendo maieuticamente na história, dá-se a realização do ser humano, pois, “na resposta à revelação, o homem está se realizando a si mesmo: está construindo, desde a última radicalidade, a história de seu ser” (QUEIRUGA, 1994a, p. 200).

Deus que não cessa de querer revelar-se, nunca deixa de insinuar-se à humanidade por desejar a libertação e a felicidade do ser humano.  Esta é a maior expressão do seu amor: o fato de se dar a conhecer. O sujeito, quando acolhe essa Presença, passa a ser construído desde a sua profundidade, e realiza-se como pessoa. Apenas nesta relação é possível aos seres humanos compreender esse amor de Deus como possibilidade de ser a sua autêntica realização.

Diante do desejo de Deus em querer revelar-se e ser para o ser humano a possibilidade de sua realização é possível entender que, para um sadio pluralismo religioso, impõe-se às religiões superar suas tendências à exclusão recíproca; que isso seja a oportunidade para o exercício da compaixão, da misericórdia e da hospitalidade inter-religiosa.

2 O diálogo inter-religioso

Refletindo sobre o ser humano e Deus, percebemos que o problema não é a religião, mas a dificuldade de vivê-la à altura que exige. Isto é, que a experiência religiosa seja a expressão de quem acolheu a revelação da presença misteriosa que nela habita; quando, portanto, os religiosos e as religiosas puderem dizer ‘Deus’, não apenas por ouvir dizer, mas pela experiência realizada no mais íntimo de si, uma experiência pessoal de transcendência, de realização humana, de consentimento a sua presença amorosa.

Por consequência, o diálogo inter-religioso poderá ter melhor resultado se ele atingir um nível mais profundo, a comunhão para além das palavras e de todos os conceitos, na experiência mais profunda de todo ser religioso. Em um lugar que possa entrar em comunhão com o diferente, com o inefável, com o Absoluto.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) deu um grande salto com relação às outras religiões. Seu ensino sobre as religiões se caracterizou por uma atitude positiva diante das demais, iniciando uma abertura sem precedentes nos posicionamentos oficiais da Igreja em sua relação com os não cristãos. Em seguida, grandes avanços foram feitos, no entanto, todos os paradigmas apresentados se mostraram insuficientes para resolver o desafio da relação do cristianismo com as outras religiões (DUPUIS,1999, p. 106-107).

Diante de tantos modelos que procuraram preservar a identidade cristã, sem se fechar à novidade proposta por outras tradições religiosas, reconhecendo-as em sua alteridade, talvez uma madura experiência cristã de Deus pode ser para os cristãos a possibilidade de encontro com religiosos de outras religiões. É certo que, mesmo que a pretensão de unicidade e universalidade da salvação cristã apresente dificuldades para o diálogo inter-religioso, não podem ser desprezadas as afirmações do Novo Testamento e de toda a tradição de experiências cristãs sobre a revelação divina decisiva e definitiva em Jesus Cristo.

As experiências de místicos como Thomas Merton e Raimon Panikkar são testemunhos que se caracterizam pelo esforço em aprofundar, no reconhecimento da especificidade e singularidade, sua própria experiência cristã de Deus, a partir de sua fé, no diálogo com outras tradições religiosas.

Assim, o pluralismo religioso sugere mergulhar nas raízes da profundidade do próprio Mistério divino pelo qual o religioso se torna capaz de encontrar em si mesmo, não somente quem ele é, mas a Deus. Lembremos que a experiência religiosa faz parte da experiência humana. Segundo Panikkar, a experiência de Deus “não só é possível, como também necessária para que todo ser humano chegue à consciência de sua própria identidade” (PANIKKAR, 1998a).

Cada religião é um canal especial em direção ao Absoluto. Não obstante, por detrás e mais além das características externas, como o credo, os ritos etc., pelas quais é reconhecida e por meio das quais é transmitida. Elas contêm em seu interior um chamado fundamental para que o religioso e a religiosa possam ir mais além de si mesmos, na medida em que têm por essência ser um sinal do Absoluto (MELLONI, 2008, p. 229). Essa realidade contribuirá para o diálogo inter-religioso não se deter “nas diferenças, às vezes profundas, mas confiar-se com humildade e confiança a Deus, que é maior do que o nosso coração” (Diálogo e Anúncio, 1996, n. 35).

Assim sendo, a mística é a possibilidade para que as religiões se descubram, por meio de seus místicos junto com outros crentes e não crentes, o sinal da presença e condição da permanência da fé. Ou seja, deve-se evitar no diálogo inter-religioso o dogmatismo e a indiferença. E, nenhum sujeito religioso está mais bem preparado contra esses perigos que o sujeito místico, por se encontrar na união com Deus; por viver uma experiência de fé na mais absoluta confiança.

São os místicos, nas religiões, os primeiros a reconhecerem que a revelação de Deus tem se dado por muitas mediações, pois eles conseguem “ver na história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, tudo ordena e tudo eleva” (BOFF, 1983, p. 15).

Esses reafirmam que a autêntica fonte das religiões se encontra na experiência mística, pois todas fazem a mesma experiência de ser; porém a expressam segundo a época, cultura, educação e religião que vivenciam (MELLONI, 2008, p. 173). Sem desaparecerem as diferenças entre as tradições religiosas, diz Amaladoss, que “elas vivenciam o mesmo Deus. Mas não têm a mesma experiência” (AMALADOSS, 1996. p. 88).

Por conseguinte, os crentes de cada tradição, quando assumem sua verdadeira identidade religiosa, são capazes de reconhecer e acolher o outro em sua diferença sem negar a sua própria experiência. Logo, “a mística é a ou-topia, o ‘não-lugar’, das religiões e de todo diálogo, na medida em que aponta um campo de ação que está mais além de toda mediação e, ao mesmo tempo, é o lugar mais essencial e originário das diversas crenças e caminhos” (MELLONI, 2008, p. 09).

Desse modo, a autocompreensão do cristão de sua real vocação o abre às demais tradições religiosas (QUEIRUGA, 1999, p. 296). Uma vez que a experiência de Deus, que se dá por meio da experiência de fé, impulsiona o sujeito à acolhida, à aceitação e ao seu reconhecimento com consciência de que esse contato o coloca diante de uma Presença que já existe.

Mesmo que o diálogo inter-religioso tenha se chocado permanentemente com o dogmatismo e com o relativismo indiferente, o cultivo da dimensão mística pode eficazmente ajudar a evitar esses obstáculos, pois a experiência mística permite captar o íntimo parentesco de todas as religiões ao pôr em contato quem a vive com a raiz de onde todas elas procedem.

3 A mística inter-religiosa

Para o psicólogo William James, a raiz e o centro da religião pessoal encontram-se nos estados de consciência mística (JAMES, 1996, p. 285-287).  Sendo esta região o lugar do seu nascedouro é, também, o lugar em que podem se encontrar para aprender a escutar-se e a respeitar-se e, assim, colaborarem juntas na transformação do humano, da sociedade.

Nessa experiência, o ser humano é provocado a um aprofundamento de si e, nesse encontro consigo, descobre-se no desapego que o impulsiona para o exercício da alteridade (BINGEMER, 2013, p. 82-84). Ou seja, para a descoberta do outro, pois a experiência mística não se fecha no encontro amoroso do fiel com Deus. Ao contrário, “Deus vem a ele e ele quer perder-se em Deus. E Deus sempre o reenvia ao outro homem” (CATTIN, 1994, p. 30.) Esta é a razão de ser das religiões serem capazes de indicar caminhos para a Vida (MELLONI, 2008, p. 239). Por isso, todas incidem nas três dimensões que constituem o ser humano: sua afetividade, sua capacidade cognitiva e sua ação no mundo (PANIKKAR, 1999).

As tradições religiosas oferecem um modo de trabalhar sobre estas três dimensões, de um jeito que se vá dando forma à transformação que tem que fazer continuamente. Essa experiência acontece a partir da purificação dos afetos e a iluminação da inteligência para que a ação de cada pessoa sobre o mundo seja a mais transparente, pura e desinteressada possível.

Esta experiência provoca a transformação da vida, que, no lugar de estar centrada na angústia pela sobrevivência, torna-se gozo e oferenda, com a certeza de formar parte de uma totalidade infinita que é pura celebração. Isso acontece por permitir a quem vive perceber a presença do mistério em toda parte, pois “Deus conhece todas as línguas e compreende o suspiro silencioso exalado pelo coração de um amoroso” (TEIXEIRA, 2004. p. 28.)

Por conseguinte, todas as tradições entendem a Vida como via, como caminho, até essa progressiva abertura ao Absoluto. De diversos modos, contém uma progressão em três tempos que, no cristianismo, tomando-os do neoplatonismo, conhece-se como as vias purificativas, iluminativa e unitiva. A progressão no caminho é uma experiência humana universal (MELLONI, 2008, p. 241).

Melloni sugere a aplicação dessas três etapas ao encontro inter-religioso. Para ele, a etapa purificativa encontra-se na conversão que supõe reinterpretar as próprias crenças, ler os textos sagrados e praticar os próprios ritos de um modo que não seja exclusivista. A etapa iluminativa vai aparecendo quando vai-se passando do primeiro estranhamento e de uma informação superficial sobre o outro ao conhecimento e compreensão dessa alteridade, isto é, quando se começa a compreender os textos alheios a partir deles mesmos, ou seja, captá-los com o coração, entendendo por coração a sede mais profunda e receptiva do ser humano.

Por último, a via unitiva do diálogo inter-religioso é assintótica, pois se sustenta no paradoxo de uma união que celebra e venera a diferença. Esta união a-dual entre as religiões é a mesma que acontece no interior de cada caminho entre o Todo e a parte, entre Deus e a criatura, entre samsara e nirvana (MELLONI, 2008, p. 244). Esta união é o não-lugar comum das religiões na medida em que cada uma vai desprezando seu centro em favor do absoluto de Deus.

Alguns são os sinais para que uma religião possa chegar a ir além de si mesma, assimilando um Mistério sempre maior, provocando o “enriquecimento recíproco e a cooperação fecunda na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do homem” (Diálogo e Anúncio, 1996, n. 35), a que “chamamos nosso ser mais profundo, o divino em nós e em tudo o que existe” (MELLONI, 2008, p. 178). Pois é certo que apenas um coração transformado pela experiência de Deus, saberá dialogar e conviver com o diferente. Um coração assim não falará de ouvido, nem com sábias palavras, porém vazias; falará desde o vivido, desde a experiência, raiz e meta de todo autêntico diálogo, colocando em comum suas experiências do divino (MELLONI, 2008, p. 190).

A mística inter-religiosa, tendo como exemplo a experiência cristã de intimidade com Deus, provoca no interior do religioso o desvelamento da verdadeira imagem de Deus em que foi criado. De um Deus que é amor. Essa experiência torna-se para os demais religiosos de outras tradições uma manifestação desse amor.

Aqui está a importância para o melhor desenvolvimento do diálogo entre as religiões: aprofundar, por meio da fé, a experiência de encontro com Deus; descobrir-se e assumir no encontro com outros religiosos que está destinado a viver em harmonia com Deus.

Logo, partindo da presença de Deus no ‘eu’ interior, no exercício de sua capacidade de amar, o cristão torna-se capaz de encontrar Deus nos outros, encontrando a Cristo no lugar antes ocupado por sua individualidade. Para isso, faz-se necessário se desfazer de toda falsa imagem de Deus, a romper com um tipo de experiência de Deus que em muitos momentos comprova uma deficiência, como nos lembra o livro de Jó: “eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te veem” (Jó 42,5).

Isso significa se livrar de todo tipo de formalismo mecânico e compulsivo para poder despertar o fervor interior e espontâneo do coração. E, desse modo, restaurar a orientação profundamente interior da atividade religiosa, almejar a renovação e a purificação da vida interior. Por conseguinte, deixar-se surpreender pela ação do Espírito, a partir de uma experiência de profundidade no ‘eu’ mais profundo que, quando desperta, encontra-se na presença de quem é imagem, Deus.

Portanto, a experiência do Mistério, como centro, pode valorizar a vida religiosa, seja qual for o lugar em que ela floresça, superando a tentação de absolutismo e exclusivismo, bem como o perigo do indiferentismo. Nesse sentido, o caminho para o diálogo inter-religioso deve ser perpassado pela experiência de profundidade desse Mistério.

Nesta experiência de mergulho, a pessoa religiosa se torna capaz de interiorizar e de contemplar, de entrar em si, orar e reconhecer em seu interior a presença silenciosa e amorosa de Deus; de deter-se diante da natureza e do cosmos e descobrir neles a presença do Deus vivo, de reconhecer na história, nos seres humanos a manifestação de Deus; de viver e experimentar que, quanto mais unido a Ele, mais seu semelhante pode ser.

Percebe-se que o contexto de pluralismo religioso indica onde são necessárias as transformações: nas formas de prática religiosa, na procura por viver em profundidade, na recuperação da dimensão da experiência íntima do mistério de Deus e da experiência da unidade com ela.

Entre os níveis de encontro com suas respectivas formas de diálogo que o cristianismo tem buscado concretizar, acredita-se que a experiência de Deus é o que alcança o nível mais profundo. Deve-se estar convicto de que a presença de Deus não é algo exterior à pessoa, que Ele não está fora, mas no próprio interior, na própria vida.

De acordo com o monge Thomas Merton, o auge da vida interior é a contemplação; a experiência de Deus em profundidade, a mística (MERTON, 2007, p. 76). Logo, torna-se importante para a experiência cristã não apenas a consciência do eu interior, mas também, pela fé, uma apreensão exterior de Deus, na medida em que ele se faz presente em seu eu interior.

Nesse mesmo sentido, para Raimon Panikkar a Realidade é totalmente relacional. (PANIKKAR, 1998b, p. 135). O ser humano não é um ser isolado, seu vínculo com o corporal e o divino lhe é constitutivo. A mística é uma experiência humana em sua plenitude, permitindo com que o ser humano faça a experiência do seu último fundamento, do que realmente é. Assim sendo, é uma experiência necessária para que todo ser humano chegue à consciência de sua própria identidade. O requisito indispensável para acolher a experiência de Deus é a integração do interior humano. Logo, o ser humano deve estar em harmonia consigo mesmo e com o universo. Harmonia entre ele e a sua “casa”, entre Deus e os seres humanos, entre contemplação e a ação, entre tudo o que vive e tudo o que morre, entre a renúncia e a conquista de si mesmo.

Por ser uma experiência de profundidade, o ser humano descobre em si mesmo e nos outros seres a dimensão de profundidade, de infinito que existe em tudo. Esta experiência concede humildade e, ao mesmo tempo, liberdade.

Diante disso, é imprescindível que os religiosos e as religiosas se conscientizem de que a mística não distrai o ser humano do cotidiano. Pelo contrário, o coloca em atenção diante dos desafios e necessidades de seu tempo. A experiência mística não separa o amor de Deus do amor ao próximo. O amor a Deus e ao próximo são um só amor. É o amor que se faz humano através de Deus que leva o ser humano à sua plenitude.

Torna-se necessária uma experiência de Deus inseparável de uma experiência de amor. O ser humano que alcança a integração do seu ser, não mais se encontra limitado pela cultura em que está inserido. Aceita a humanidade toda. Quem se abre a essa experiência transcende as divisões para alcançar uma unidade por cima de qualquer divisão.

Conclusão

O fenômeno místico e religioso adquire, nesse contexto plural, um privilegiado lugar de escuta e de resposta. De escuta, porque diante de todos os desafios enfrentados pelas religiões, compreendem a necessidade de retornarem à sua essência para atingir o coração e despertar a conversão. Isso significa conduzir seus fiéis à verdadeira experiência de Deus, visto que este é o desejo que move o coração do ser humano, que, indefeso, procura realizá-lo independentemente de qualquer tradição religiosa.

Sobre a resposta, esta se encontra na experiência de intimidade que o religioso e a religiosa vivem quando cada uma das religiões se move para o absoluto de Deus, voltados para um Mistério que sempre será para todos maior. Por consequência, “a mística é sempre religiosa e a religião é sempre mística” (VELASCO, 1999, p. 31).

Em toda experiência religiosa, encontram-se elementos místicos e em todas as pessoas existe uma predisposição ontológica e psicológica para algo que a experiência mística assegura desenvolver em plenitude. E é, então, nesta abertura ao infinito, base do elemento místico em que se conserva a origem na presença ontológica de Deus no sujeito, que se dá o encontro pela fé.

A mística é um baluarte frente aos reducionismos antropológicos de nossa sociedade e cultura, que solicita uma transformação da religião que passe da ênfase no exterior ao interior. Esse giro requer um salto na consciência religiosa, mais lúcida e desperta, pede hoje uma transformação profunda até o Mistério que a envolve e a sustenta.  Nesse sentindo, para todas as tradições religiosas se aproxima um larguíssimo e frutífero caminho quando conduz seus fiéis a uma experiência que os levem ao mais íntimo de si, ao encontro com a Realidade Última.

Por conseguinte, para o diálogo e encontro inter-religioso, torna-se necessária uma mística inter-religiosa e, nesse sentido, faz-se necessário manter e aprofundar o compromisso religioso único que é próprio para todos os crentes: recuperar a experiência de profundo encontro com o absoluto, com Deus. Como afirma Velasco, a “mística é sempre religiosa e a religião é sempre mística” (VELASCO, 1999, p. 31.)

Cada religião está em um ‘entre’: entre Aquele que o precede e Aquele para o que conduz. E cada tradição recorre a este ‘entre’ de um modo diverso, proporcionando um acesso irrepetível à Realidade primeira e última. Cada uma delas é portadora de uma aurora única, inegociável e irredutível que recorda o Mistério de uma forma insubstituível.

Referências

AMALADOSS, M.  Pela estrada da vida. São Paulo: Paulinas, 1996.

BINGEMER, Maria C. O mistério e o mundo. Paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: mística de ser e de não ter. Petrópolis: Vozes, 1983.

CATTIN, Yves. A regra cristã da experiência mística. In: Concilium 254, n. 4, 1994.

DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999.

JAMES, William. Las variedades de la vida religiosa. Península: Barcelona, 1996.

MELLONI, Javier. (org.). El no-lugar del encontro religioso. Madri: Trotta, 2008.

MERTON, Thomas. A experiência interior: notas sobre a contemplação. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et le cosmos. Entrevista com Gwendoline Jarczyk, Albin Michel: Paris, 1998b.

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RONSI, Francilaide de Q.; BINGEMER, Maria Clara L. A mística cristã e o diálogo inter-religioso em Thomas Merton e em Raimon Panikkar. Para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa. Rio de Janeiro, 2014. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do mistério. Mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004.

VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico. Estudio comparado. Madri: Trotta, 1999.

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