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Eclesiologia Ecumênica

Sumário

Introdução

1 O pluralismo eclesial: enriquecimento e desafios para a Igreja una

2 Urgências e tarefas de uma eclesiologia ecumênica

3 Percursos de uma eclesiologia ecumênica

4 Igreja ecumênica, em que sentido?

4.1 Horizonte bíblico 

4.2 Horizonte teológico

4.3 Horizonte missionário/pastoral

5 Discernimento e hermenêutica da comunhão

5.1 Modelos de unidade

5.2 Visibilidade da comunhão

Conclusão

Referências

Introdução

A compreensão e a elaboração de uma eclesiologia ecumênica têm por raiz a relação intrínseca entre igreja e ecumenismo, entendendo este conceito como via para a unidade cristã, um chamado e imperativo do Senhor para seus discípulos e discípulas: “Que todos sejam um, para que o mundo creia” (Jo 17,21). Aqui, o ecumênico invoca o eclesial como território próprio, com seus sujeitos e vínculos próprios. Assim, há uma “relação de identidade” entre igreja e ecumenismo: “o ecumênico, como condição e expressão da comunhão, é elemento estruturante da identidade da igreja” (WOLFF, 2007, p. 44). A igreja é entendida como koinonia (comunhão) na fé apostólica professando a unidade como uma de suas qualidades essenciais (notae ecclesiae). Entretanto, a divisão cristã perdura, agravada por inimizades, ofensas e posturas proselitistas que contradizem a comunhão. Essas divisões sinalizam o pecado individual e coletivo dos membros da igreja, dificultando também a vocação à santidade.

Para sanar tal situação, o Espírito Santo suscita a “comunhão … a conversão e a renovação” da igreja (UR n. 6-7; CMI, 1998, n. 39). E pelo mover do Espírito, artífice da comunhão (1Cor 12,13; Ef 4,3,), as igrejas buscam a reconciliação entre si, numa unidade não só no plano intra mas também inter-eclesial, como extensão visível e espiritual do Corpo de Cristo no mundo (Ef 4,12-13; 1Cor 12,12-13). Neste sentido, o ecumenismo refere-se à Igreja una como um meio se refere ao fim. E vem exercido como um serviço eclesial pela oração, o testemunho comum, a cooperação prática e o diálogo metódico desenvolvido em fóruns, comissões e conselhos de Igrejas. Assim, “o que define a igreja” também “define o ecumenismo” (VON SINNER, 2011, p. 67) no sentido de promoção da unidade cristã. Esse fato justifica a necessidade, e a urgência, de uma eclesiologia ecumênica.

1 O pluralismo eclesial: enriquecimento e desafios para a Igreja una

O pluralismo eclesial resulta de compreensões distintas do Evangelho, que dão origem a diferentes espiritualidades, doutrinas, instituições e projetos de missão que configuram as diversas tradições eclesiais. Em si mesmo, isso é legítimo pois a dinamicidade da mensagem do Evangelho está livre de qualquer tentativa de interpretação totalizante, de modo que a fé cristã é sempre compreendida a partir das interpelações que os diferentes contextos apresentam para a vivência do Evangelho. O Vaticano II reconhece o valor da diversidade que se expressa “nas várias formas de vida espiritual e de disciplina, como na diversidade de ritos litúrgicos e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada” (UR 4). Na direção conciliar, o papa Francisco afirma:

O Espírito Santo faz a “diversidade” na Igreja… E esta diversidade é deveras tão rica, tão bonita. Mas depois, o mesmo Espírito faz a unidade, e assim a Igreja é una na diversidade… Ele faz ambas as coisas: faz a diversidade dos carismas e depois a harmonia dos carismas … “O Espírito Santo, Ele é a harmonia”, porque faz esta unidade harmoniosa na diversidade. (FRANCISCO, 2014)

E assim surgem as várias igrejas locais, como instâncias de comunhão na fé, onde o Evangelho é ouvido, os sacramentos são celebrados e se vive a fraterna concórdia entre os membros da “congregação dos santos”, o povo de Deus. As diferentes tradições eclesiais centram a igreja local na eucaristia (CD 11; FÉ E ORDEM, 2015, n. 42-43) e na supervisão dos pastores (FÉ E ORDEM, 2015, n. 52-53). Cada igreja local vive a “solicitude para com a igreja universal” e forma uma comunhão universal, a catholica, communio de igrejas num corpus ecclesiarum (FÉ E ORDEM, 2015, n.31-32).

Contudo, controvérsias doutrinais na história do cristianismo separaram diferentes tradições eclesiais, dividindo o corpo cristão, de modo que o pluralismo eclesial levanta a questão sobre a verdade da igreja, ou como ser igreja verdadeira (BURMANN, 2018). Assim foi no século V, com as disputas sobre o dogma cristológico e o surgimento das igrejas copta, armênia e egípcia; no século XI, com a questão do filioque e a divisão entre Oriente e Ocidente; na Reforma protestante do século XVI e, atualmente, com um tipo de pentecostalismo que vai além da afirmação da pentecostalidade eclesial, fragmentando ainda mais o corpo cristão. Então, a pluralidade não mais é acolhida e reconhecida como enriquecimento da igreja una. Cada tradição eclesial afirma-se numa normatividade exclusiva para a compreensão e a vivência do kerigma, com divergências na doutrina, na organização institucional, na espiritualidade e na prática pastoral. Tal divergência é mais do que expressão de um posicionamento hermenêutico diferenciado do Evangelho. Trata-se de uma divisão que não permite às Igrejas se reconhecerem mutuamente na mesma fé e como membros do mesmo corpo.

2 Urgências e tarefas de uma eclesiologia ecumênica

A superação dessa divisão justifica, e exige, uma eclesiologia ecumênica. Nenhuma tradição eclesial expressa sozinha a igreja em sua perfeição ou plenitude como Corpo de Cristo. Isso requer disponibilidade para acolher expressões pluriformes do Evangelho, com uma releitura do pluralismo eclesial que identifique elementos que convergem para a comunhão: “Esse é o desafio para a eclesiologia ecumênica, que só é possível se, enraizada em uma tradição particular, souber colher a realidade da Igreja que se encontra para além da própria tradição” (WOLFF, 2007. p. 31).  A consciência eclesial ecumênica torna-se, então, um imperativo para situar as igrejas no atual mundo plural com espírito de diálogo e cooperação. Explicita a “cultura do encontro” e a sinodalidade como “caminhar juntos” no discernimento do Evangelho. Isso implica o esforço para, de um lado, assumir juntos as fontes da fé eclesial, bíblica e patrística. De outro lado, exige atualizar o ser e o agir da Igreja ao tempo atual, evitando agregar novos elementos divisionistas.

Desse modo, são estabelecidas as tarefas de uma eclesiologia ecumênica: 1) explorar no interior do pluralismo eclesial as possibilidades de encontro e de diálogo, percebendo tal pluralismo como “amplitude de possibilidades da percepção da fé em Jesus Cristo e das experiências eclesiais cabíveis nas Escrituras” (WOLFF, 2007, p. 31); 2) reinterpretar os pressupostos (históricos, socioculturais e teológicos) que em outros tempos e circunstâncias causaram e sustentaram as divisões entre as igrejas, verificando sua pertinência ou não na atualidade (RUGGIERI, 2000, p. 14);  3) interpretar em perspectiva ecumênica os elementos bíblicos, patrísticos, as orientações normativas das lideranças eclesiásticas e as vivências das comunidades, desenvolvendo sistematicamente a concepção de igreja na perspectiva da comunhão intereclesial.

Essas tarefas reforçam a importância de dois procedimentos da parte das confissões cristãs, com vistas a uma eclesiologia ecumênica: a) examinar e aprofundar a autoconsciência eclesial à luz do imperativo “sejam um” (Jo 17,21); b) examinar e explicitar uma compreensão de igreja de tal modo comprometida com a unidade que valorize o diálogo ecumênico como locus teológico e metodológico da eclesiologia.

A realização de tais tarefas impele as igrejas ao exercício da escuta mútua e do testemunho comum, caminhando juntas numa dinâmica sinodal. Essa abertura às outras denominações requer o olhar da fé sobre a eclesialidade da comunidade com a qual se dialoga, para discernir os modos como a Igreja de Cristo aí se realiza, suas características e ênfases. Dentre os critérios para isso está a disponibilidade das igrejas para colocarem-se “sob o mesmo Cristo” (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-LUTERANA, 1986) e seu Evangelho. As razões particulares das tradições eclesiásticas não devem ser o fator determinante das relações intereclesiais. O determinante é o Evangelho, ele tem força unitiva, de modo que é preciso ter “a palavra de Deus como sinal ecumênico da igreja” (SCHWAMBACH, 2018). Por conseguinte, uma eclesiologia ecumênica requer das igrejas o compromisso para o encontro, o conhecimento mútuo, o diálogo perseverante, o discernimento histórico e teológico, que possibilitam mirar à unidade como dom do Espírito Santo. Ao dialogarem com disposição teologal e atitude de serviço à comunhão, as igrejas exercitam as condições para receber e fazer frutificar esse dom.

3 Percursos de uma eclesiologia ecumênica

No âmbito católico, as raízes para uma renovação da eclesiologia com positivas implicações ecumênicas estão ainda no século XIX, com Adam Mohler (1796-1838) e John H. Newmann (1801-1890), os quais favoreceram para que o tema da unidade se situasse para além do âmbito jurídico, desenvolvendo uma eclesiologia no horizonte do mistério que enfatiza a interioridade e a sacramentalidade das estruturas e instituições eclesiais (MOHLER, 1996; 2018), e uma noção de santidade e historicidade que supera o tom apologético conflitivo (NEWMAN, 1994; 2005). Mas a primeira proposta de uma eclesiologia em perspectiva ecumênica no catolicismo é de Y. Congar (1937), direção na qual seguem teólogos da estatura de J. Danielou, K. Rahner, H. von Balthasar, entre outros, embora não tenham focado no tema. Mais recentemente, temos L. Sartori (1969), J. M. Tillard (1987), W. Kasper (1988), H. Kung (1992), G. Cereti (1997), para citar alguns. Mas é no âmbito do protestantismo que a eclesiologia ecumênica se desenvolve com mais força, como vemos em luteranos como Oscar Cullmann (1986) e W. Pannemberg (2009); no meio reformado, com John H. Leith (2015); J. Moltmann, com várias contribuições ecumênicas como a teologia da esperança (1967), da criação (1985), da Trindade (1981) e a pneumatologia; Lukas Vischer (1981); dos anglicanos lembremos James H. Garrisson (2011), o “Relatório de Virgínia”, da Comissão Inter-Anglicana de Teologia e Doutrina (1996); Jaci Maraschin (1995); e da tradição ortodoxa, destacamos a pneumatologia de Evdokimov e a teologia de J. D. Zisioulas (2003). Há também significativos trabalhos conjuntos para uma eclesiologia ecumênica (FRIES; RAHNER, 1987).

Merece destaque o resultado eclesiológico do trabalho das comissões de diálogo, tanto bilaterais (católico-luterana, anglicano-metodista, luterano-reformada etc.), quanto multilaterais (Conselhos de Igrejas). À medida que essas comissões trabalham e publicam seus resultados, cresce a percepção de que o mistério da igreja deve ser explicitado ecumenicamente. Desse diálogo emergem elementos que possibilitam teólogos/as de diferentes igrejas sistematizarem uma compreensão eclesiológica comum. Uma instância apropriada a esta tarefa é a Comissão Fé e Ordem, ou seja, a comissão teológica do Conselho Mundial de Igrejas, da qual destacam-se os trabalhos Batismo, Eucaristia e Ministérios (1982); Rumo à partilha da fé comum (1998), e Igreja: uma visão ecumênica (2015).

Os Relatórios e Declarações Finais dos trabalhos das comissões de diálogo mostram a importância da documentação histórica e da releitura das fontes confessionais, iluminadas por sólido estudo bíblico, teológico e pastoral no trato das respectivas eclesiologias. As ênfases eclesiológicas distintas, antes que impedimento, são um convite ao diálogo e uma oportunidade de discernimento, como atesta Kasper (2009, p. 643):

O abundante material relativo à Igreja (tratado nas Comissões bilaterais) demonstra que a questão da eclesiologia está no centro do diálogo ecumênico. No campo eclesiológico deu-se um significativo passo avante a partir da firme disposição de superar muitos mal-entendidos e lacunas: se reconhece que os Diálogos revisitaram e resolveram certas controvérsias e certos conflitos históricos. Em muitas questões examinadas, se alcançou uma ampla compreensão comum quanto à natureza e à missão da Igreja. Está claro que os participantes desse Diálogo não se encontram mais na situação em que estavam no século XVI, nem do período sucessivo, caracterizado por polêmicas e controvérsias. (KASPER, 2009, p. 643)

Isso demonstra a postura honesta e responsável dos participantes do diálogo, dispostos a indagar-se mutuamente:

Como essas ênfases eclesiológicas surgiram e se desenvolveram, nas denominações? Essa diversidade de visões compromete a comunhão, ou oferece chances de enriquecê-la? As antigas controvérsias têm hoje algum sentido ou há como resolvê-las? Em que medida essas distinções podem ser complementares? É possível colher, das ênfases confessionais, uma eclesiologia fundamental comum, que ilumine o diálogo no presente e no futuro? (FÉ E ORDEM, 2015, p. 18)

A resposta a tais questões precisa afirmar o ecumenismo como princípio formal na compreensão da igreja, um paradigma eclesiológico. Então a eclesiologia ecumênica adquire um estatuto próprio. A perspectiva ecumênica da igreja tem, assim, um caráter e uma função acadêmica: é uma investigação sobre o mistério da igreja utilizando as fontes, o método e o instrumental hermenêuticos adequados para garantir a plausibilidade de nesse mistério se encontrarem diferentes tradições eclesiais. Ela quer expressar a veracidade da igreja com a maior profundidade e amplitude possível, relacionando diversas tradições práticas e concepções teóricas do ser eclesial, identificando divergências e consensos nessas tradições e discernindo as verdades da igreja na perspectiva da comunhão no único Evangelho.

4 Igreja ecumênica, em que sentido?

Cabe esclarecer em que sentido se pode falar de eclesiologia ecumênica, bem como esclarecer o que essa não seja. Partindo da negação, não se trata da soma material das eclesiologias vigentes, nem da sua sobreposição como andares de um prédio, de composição fixa, cujas conexões se ocultam na estrutura imóvel. Também não seria uma eclesiologia exclusivamente espiritual, projetada na futura concórdia celeste dos crentes, sem compromissos com a realização visível da unidade batismal, congregacional, ministerial e missionária. Sem esses vínculos e relações, a igreja seria reduzida a uma ficção ou simbolização sem efeito, pois as estruturas paralelas e fixas podem servir como suporte para a interconexão e a partilha entre os sujeitos, mas por si não bastam para realizar a unidade dos cristãos, porque esta unidade implica a dinâmica simultânea de ser “membros do Corpo de Cristo” e “membros uns dos outros” (1Cor 12,27 e Rm 12,5). E isso requer que as conexões sejam visíveis, não só ocultas; e dinâmicas, não rígidas; num equilíbrio entre os elementos estruturais e os espirituais. Paulo fala de “articulações” em “crescimento, construindo-se no amor, graças à atuação de cada membro” (Ef 4,16); e Pedro diz que o Edifício-Igreja é feito de “pedras vivas” (1Pd 2,5). A comunhão espiritual se dá por elementos testemunhais visíveis, sinodais, ministeriais e sacramentais, numa unidade orgânica, vital, multiforme, dinâmica e fecunda do Corpo de Cristo (Rm 12; Ef 4,11-13) – ilustrada também por João na analogia eclesiológica da videira (Jo 15,1-8).

Então, em sentido positivo, a eclesiologia ecumênica parte do compromisso de cada denominação cristã para com a unidade plena da Igreja de Cristo na história humana, não só pela realização da Igreja Una no âmbito de sua comunidade e/ou família confessional, mas também na comunhão progressiva com as demais comunidades e/ou famílias confessionais. Os horizontes dessa eclesiologia já alcançaram importantes consensos, com destaque para os que se seguem.

4.1. Horizonte bíblico  

Há consensos na  concepção bíblica da igreja como: Povo de Deus – “O povo que formei para mim deverá anunciar o meu louvor” (Is 43,21); santuário onde Deus habita – “habitarei no meio dos israelitas” (Ex 29, 45ss; Lv 26,11ss), como “templo santo do Deus vivo” (1 Cor 3,16; Ef 2,20; Ap 11,1); templo do Espírito – “casa espiritual” (1Pe 2,5), povo consagrado pelo Espírito Santo (Tt 3,5; Ef 1,13); Corpo de Cristo formado por muitos membros (1Cor 12,12.27; Rm 12, 4-5). A Igreja se faz o Povo universal, sujeito histórico-escatológico, regenerado no batismo e reunido na ekklesía tou Theou (1Tm 3,15), as assembleias e/ou tradições eclesiais que lhe dão corpo, movimento, estrutura e visibilidade, tendo Jesus Cristo por Cabeça (Col 1,18). Justamente pelo fato de a Igreja ser a realização concreta do Povo de Deus, na oikoumene das línguas e nações (At 2,6), na koinonia de dons e ministérios (Ef 1,11-13), não poderá descuidar da unidade, sob risco de trair o Evangelho e frustrar sua própria vocação.

4.2. Horizonte teológico

O amplo consenso bíblico possibilita significativas convergências teológicas na concepção da igreja e a busca de consensos sobre as divergências que persistem. Destacamos:

a) Mistérica e institucional: essa adjetivação é aceita por praticamente todas as denominações em diálogo, ao professarem a Igreja como realidade querida por Deus e expressão do agir salvador de Cristo, na força do Espírito Santo. O mistério trinitário se mostra na igreja desde a Aliança com o Povo de Israel, fundada no tempo por Jesus Cristo e manifestada pelo Espírito Santo no Pentecostes. Unida a Cristo como corpo e esposa, a igreja atravessa os séculos como sinal do Reino de Deus, até sua consumação escatológica (Rm 12; Ef 5, 31-32). A igreja é mistério (mysterion) em analogia e participação no mistério pascal de Cristo; e instituição, pois realiza-se no tempo como povo e assembleia visível, dotada de ofícios e ministérios (particularmente a supervisão episcopal), com estruturas de comunhão, participação e missão, para bem cumprir o anúncio do Evangelho confiado pelo Senhor (Mt 28,19). Ela é, assim, sacramento do Reino de Deus (LG 1.5.48)

b) Ontológica ou funcional: aqui as igrejas expressam distinções entre uma eclesiologia mais mistérico-sacramental e uma eclesiologia mais kerigmático-testemunhal. As tradições Ortodoxas, Orientais, Católica Romana, Anglicana e, em certa medida, as Metodistas de governo episcopal, compreendem a igreja como meio de graça em sentido objetivo, associando a congregação terrena, o Corpo histórico, àquela celeste, o Corpo glorioso do Ressuscitado. Atribuem uma densidade ontológica à igreja, não por autorreferência, mas por sua identidade com o Corpo de Cristo, mediador da salvação. Outras tradições, como a Luterana e a Reformada-Presbiteriana, insistem menos na ontologia, mas professam a sacramentalidade da igreja em virtude da graça divina que age pelo anúncio do Evangelho, pelo batismo e pela ceia memorial do Senhor, ministrados corretamente segundo a vontade de Jesus. Desse modo, há uma comunhão espiritual entre todos os batizados nas diferentes confissões, partilhando a mesma graça e o mesmo chamado a fazer parte do Reino de Deus, embora se reúnam em assembleias distintas. Já outras tradições, como Batistas, Menonitas, Metodistas de Santidade e, a seu modo, os Pentecostais, atribuem à igreja um valor mais funcional do que ontológico: a igreja é a congregação reunida, localmente definida; como evento da Palavra de Deus naquele tempo-espaço, como obra da graça para com os crentes ali congregados. A ênfase é mais funcional, valorizando o kerigma, a pregação e as ministrações pelas quais a igreja comunica a graça de Jesus Cristo ao coração dos crentes – de quem se espera uma resposta à altura do chamado, com santidade e testemunho.

c) As notas da igreja: com base nos elementos acima, é possível trabalhar ecumenicamente as notae ecclesiae – unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade. As igrejas professam essas notas no Credo niceno-constantinopolitano, como propriedades dadas por Cristo à sua igreja, que permitem o seu reconhecimento na história como igreja querida por Deus. Mas não existe consenso no entendimento do modo de realizar cada nota nas tradições eclesiais. E “o objetivo mútuo do chamado à unidade visível significa necessariamente que cada igreja deve reconhecer as demais como expressões verdadeiras do que o Credo chama ‘a Igreja uma, santa, católica e apostólica’” (FÉ E ORDEM, 2015, p. 11). Assim, o diálogo deve prosseguir na afirmação conjunta da igreja em suas características essenciais: a) una em sua constituição íntima porque um só é o Cristo que a constitui como seu Corpo, um só é o Evangelho pregado, uma só é a missão. E essa unidade precisa assumir forma na ordem temporal da igreja, como o povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em vista da consumação escatológica. b) santa, que se fundamenta no fato de a igreja ter sido “separada” para Deus Uno e Trino, e com ele se relacionar no serviço/culto. E precisa ganhar forma histórica no testemunho da santidade de Deus ao mundo atual, o que se expressa no comportamento de seus membros. c) católica, no sentido que a fé da igreja é “universal”, significando “toda abrangente”, “plena”. Assim, a igreja não está exclusivamente presente em uma única tradição eclesial, nem é superioridade numérica, mas uma realidade espiritual e qualitativa, como plenitude dos bens da salvação e da fidelidade à totalidade de vida redimida trazida por Jesus Cristo. d) apostólica, pela fidelidade aos ensinamentos transmitidos pelos apóstolos de que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16; Lc 9, 20), fundamento ou a “rocha” sobre a qual se constrói a comunidade de fé (Mt 7,24-25).

O desafio é uma eclesiologia ecumênica capaz de expressar consenso nessas propriedades da igreja, com justificativa histórica e teológica consistentes. É preciso mostrar como unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade se implicam mutuamente e concorrem para a realização plena da igreja na qual diferentes tradições cristãs possam se sentir membros em pé de igualdade.

4.3 Horizonte missionário/pastoral

A igreja tem consciência que a missão que recebeu de Jesus é evangelizar. E “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG n. 176). O horizonte e objetivo da missão são anunciar o Reino de Deus que se faz presente na história, transformando as situações que contradizem o Evangelho que as igrejas acreditam e anunciam. Trata-se do Evangelho da “vida em abundância” (Jo 10,10) vivido por relações de fraternidade, solidariedade e prática da justiça. A missão situa a igreja no mundo em que vivemos, a encarna nas vicissitudes e nas alegrias humanas (GS n. 1). Por isso, a atividade missionária da igreja vai além da ideia de salvar almas, busca a salvação integral da pessoa: corpo, espírito, mundo, cosmos e tempo. Neste sentido, fé e sociedade/cultura/economia/política e questões ecológicas interagem na missão da igreja. E destas, as questões ecológicas merecem particular atenção (COLET, 2017). Mantendo suas especificidades, esses âmbitos se complementam, pois todos dizem respeito à vida. E missão é fortalecer a vida em sentido amplo, contextualizada socioculturalmente e ecologicamente.

O ecumenismo é missionário, nasceu e se desenvolve em contexto de missão, de modo que a eclesiologia ecumênica é também missionária. A missão que Jesus confia aos discípulos (Mt, 28,19; Mc 16,15) não é exclusividade de uma única denominação, mas de todas as pessoas que nele creem. E as igrejas em diálogo são chamadas a discernirem juntas as interpelações que o mundo atual apresenta para a vivência da fé cristã. Isso exige delas a capacidade para desenvolverem projetos comuns e anunciarem o único Evangelho. Para tanto, faz-se necessário o abandono de toda pretensão de exclusividade no espaço em que cada igreja se encontra, reconhecendo o valor da missão que outras igrejas ali também realizam, e colocando-se à disposição para trabalhos conjuntos. A missão precisa ser ecumênica.

Portanto, a missão/pastoral é outro importante horizonte da eclesiologia ecumênica. O diálogo e a cooperação na missão criam significativas possibilidades de diálogo sobre questões eclesiológicas, progredindo nas convergências e nos consensos sobre a igreja, sua natureza e fim. E assim se realiza a unidade da Igreja de Cristo no mundo: o testemunho comum do Evangelho “para que o mundo creia” (Jo 17, 21).

5 Discernimento e hermenêutica da comunhão

A eclesiologia ecumênica exige o desenvolvimento da hermenêutica da comunhão como a que melhor penetra na profundidade do mistério de Deus Uno e Trino, e à luz desse mistério compreende-se a verdade da igreja.  As tradições particulares assumem um sentido universal quando isso acontece. Assim, as igrejas podem discernir juntas sobre o modelo de unidade/comunhão possível entre elas, e os elementos que dão visibilidade à unidade/comunhão.

5.1 Modelos de unidade

A eclesiologia ecumênica tem como escopo identificar e justificar os elementos que afirmam a koinonia como constitutiva da natureza, identidade e missão da igreja.  O diálogo até agora realizado já possibilita identificar propostas nessa direção, formando quatro principais modelos: 1) unidade orgânica: é, talvez, a mais antiga proposta de Fé e Constituição (Edimburgo, 1937) como união de organismos eclesiais. Por esse modelo, as igrejas seriam convidadas a renunciarem a elementos identitários para se fundirem “em um único corpo” (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-LUTERANA, 1994, n. 17), sendo a unidade “um organismo vivente” (FÉ E ORDEM, 2005, cap. VI) com uma estrutura organizacional homogênea, uniforme; 2) em cada lugar: proposta da III Assembleia Geral do CMI (Nova Delhi, 1961), compreendendo a unidade como a mútua aceitação entre igrejas locais, onde os cristãos são batizados, ouvem a Palavra, celebram os sacramentos e são orientados por seus pastores na vivência da fé em Cristo; 3) associação corporativa: afirma a possibilidade de comunidades eclesiais diferentes formarem uma comunhão de fé e de vida sem perderem autonomia e especificidades em suas teologias e religiosidades de valor permanente para a fé apostólica. Entre as igrejas se estabeleceria um “acordo substancial sobre questões de fé e de uma comum constituição do episcopado segundo a concepção da igreja primitiva” (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-ANGLICANA, 1994, n. 136); 4) comunidade conciliar: proposta na V Assembleia do CMI (Nairobi – 1975), pela qual cada igreja possui em comunhão com as demais a plenitude da catolicidade e o testemunho da mesma fé apostólica. Numa “comunhão conciliar”, a diversidade identitária não é cancelada e não é empecilho para a comunhão (CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS, 2001, relação da II seção, n. 7), que acontece no batismo, na eucaristia, na aceitação mútua de membros e ministros, na profissão do Evangelho e no serviço ao mundo. É uma “comunhão conciliar de igrejas locais, entre si efetivamente unidas” (CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS, 2001, relação da II seção, n. 4), tendo como estrutura vinculante reuniões conciliares convocadas segundo as exigências da realização da vocação comum, encontros de caráter representativo, como intercâmbio permanente de informações, projetos e experiências; 5) unidade numa diversidade reconciliada: a unidade em Cristo não acontece “apesar” da diversidade ou “contra” ela, mas com e na diversidade (CULLMANN, 1986). Consideram-se legítimas as várias formas dos patrimônios confessionais pertencentes à riqueza da vida de toda a igreja, exigindo de cada tradição eclesial um “encontro aberto com a herança dos outros”, permitindo a visão de uma unidade que tem a característica de ser uma “diversidade reconciliada” (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-LUTERANA, 1994, n. 32). O papa Francisco tem explicitado reiteradamente essa compreensão de comunhão eclesial com a imagem do poliedro (EG n. 236). E no Brasil, teólogos ecumênicos a expressam como “unidade plural” (WOLFF, 2007, p. 223-235).

5.2 Visibilidade da comunhão

A comunhão eclesial precisa ser visível, possibilitando que os elementos teológicos acima verificados tenham incidência na organização da vida eclesial. A Comissão de Fé e Ordem, no Documento BEM (1982), apresentou de modo sistemático os fundamentos e as convergências sobre o batismo, a eucaristia e os ministérios como centrais na visibilidade da comunhão. Além disso, ponderou a linguagem e as práticas litúrgicas; examinou as formas de exercício ministerial, especialmente a episkopê (supervisão); esclareceu as diferentes concepções sacramentais da ordem e da ceia, ora divergentes, ora complementares; e revelou a consistência dos elementos teológico-litúrgicos partilhados pelas igrejas, como suporte para posteriores resoluções e consensos eclesiológicos. Em 1998, Fé e Ordem publicou o documento Natureza e finalidade da Igreja e, em 2005, aprofundou esse tema em Natureza e missão da Igreja. Note-se que a passagem, nos títulos, de “finalidade” para “missão” reflete uma específica abordagem teológica e paradigmática: o mistério e o agir da Igreja não se definem de modo autorreferido, mas em relação ao desígnio salvador de Deus Trino para a humanidade e a Criação, de modo que a missio ecclesiae sinaliza e serve à missio Dei. Com tal escopo, o diálogo avançou de 2006 a 2012, resultando no documento A Igreja: para uma visão ecumênica (FÉ E CONSTITUIÇÃO, 2015).

Essa “visão” comum requer elementos estruturais e institucionais que efetivamente visibilizem a comunhão. Desses elementos, os ministérios ordenados apresentam particular complexidade para uma eclesiologia ecumênica. Em todas as igrejas existe um ministério específico, pastoral, ordenado, que se distingue do ministério ou sacerdócio comum dos fiéis, embora essa distinção não seja compreendida ou explicitada de igual modo. Divergências sobre o ministério ordenado se manifestam principalmente na concepção teológica de sua natureza sacramental, a sua estrutura (hierárquica ou não), competências pastorais e jurídicas, a sucessão apostólica, o sujeito do ministério ordenado (homem ou mulher): “As particularidades dessas orientações garantem as particularidades eclesiológica das diferentes tradições (eclesiais), pois ministério e igreja se implicam mutuamente” (WOLFF, 2018, p. 310).

De qualquer modo, todas as igrejas entendem que seus ministérios eclesiásticos estão enraizados na missão que Cristo deu à sua igreja para pregar o Evangelho (Mt 28,19; Mc 16,15;). Essa missão procede do batismo, de modo que todas as pessoas batizadas a têm. Mas ela é exercida de um modo particular nas ordens eclesiásticas pelo serviço à comunidade através da proclamação da Palavra, da celebração do culto e da administração dos sacramentos. Pela relevância de tal missão, católicos e ortodoxos a entendem procedente do sacramento da ordem, e não apenas do batismo. Nesse sentido, o ministério ordenado compõe uma hierarquia de governo e de referência para a comunhão. E aqui ganha particular importância o diálogo ecumênico sobre o ministério da episkopé e o ministério petrino, o que diz respeito, em última instância, ao tema da autoridade na igreja.

Conclusão

A eclesiologia ecumênica é uma exigência da própria igreja. Em sua natureza de comunhão, a igreja será plenamente realizada se forem ampliadas as fronteiras institucionais e doutrinais para além de uma tradição eclesial, acolhendo na comunhão outras formas de ser igreja. A ecumenicidade da igreja não é um teologúmeno, uma abstração ou uma mera especulação eclesiológica. É uma forma privilegiada de explicitar a natureza, identidade e missão da igreja como comunhão. Trata-se de uma comunhão plural, unidade na diversidade, pela qual a igreja se enriquece pelos diferentes dons e carismas que o Espírito concede às confissões eclesiais, que juntas buscam dar ao mundo um testemunho convincente da mesma fé em Cristo e no seu Evangelho do Reino.

Elias Wolff. Programa de Pós-Graduação em Teologia – PUCPR. Texto original em português. Enviado em 30/08/2022; aprovado em 30/10/2022; publicado em 30/12/2022.

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Bíblia e Ciência

Sumário

Introdução

1 Dos primórdios à revolução científica

2 A revolução científica e a Igreja

3 Questões contemporâneas

Conclusão

Referências

Introdução

A fé cristã, cujo livro sagrado é a Bíblia, e a ciência convivem no Ocidente há 20 séculos. A fé quer dar uma resposta abrangente ao sentido da vida e do mundo a partir da Revelação divina. A ciência quer conhecer toda a realidade segundo a razão que analisa e demonstra. O sujeito humano que crê e conhece é o mesmo. Ele não pode se fragmentar nem renunciar à possibilidade de crer e de conhecer, ou mesmo de conhecer pela fé e pela razão científica que analisa e demonstra. No passado, estes dois domínios não eram separados ou independentes. A teologia, a filosofia e as diversas ciências estavam profundamente interligadas, em uma interdependência hierárquica. A modernidade operou uma separação entre estes saberes, dando-lhes autonomia. Eles passam a coexistir, não sem estranhamentos e conflitos. Na história da Igreja, se nota uma relação bastante complexa, que vai do estímulo à aversão, da tolerância à perseguição violenta, da convivência fecunda à mútua exclusão, conforme a síntese do historiador Georges Minois utilizada neste verbete (MINOIS, 1992, p. 2-33). Os conflitos entre fé cristã e ciência sempre envolvem a maneira de se entender e de se interpretar a Bíblia.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) afirma que a pesquisa em todos os campos do saber, conduzida de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca se opõe à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus. Pelo contrário, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza é, de certo modo, conduzido pela mão de Deus, mesmo sem se dar conta, pois Deus sustenta todas as coisas e as faz ser o que são. E o Concílio também deplora certas atitudes de cristãos por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da ciência, e pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levando muitos a pensarem que a fé e a ciência eram incompatíveis. Como exemplo desse desacerto, é citado o caso de Galileu Galilei (GS, n. 36).

O caso Galileu se tornou um emblema do conflito. Antes e depois dele, há outros conflitos e igualmente interações positivas. Vale a pena conhecer algo dessa história que revela bastante sobre a fé cristã, o Ocidente e os percursos que dão origem à modernidade.

1 Dos primórdios à revolução científica

A bem da verdade, há textos bíblicos muito favoráveis à ciência. Os livros dos Provérbios, Salmos, Sabedoria e Eclesiástico abundam em louvores ao saber, ao estudo e à pesquisa: “a ciência é a coroa das pessoas prudentes” (Pr 14,18); “é o Senhor que dá a sabedoria, e de sua boca vem o conhecimento e a razão” (Pr 2,6). A ciência é um dom de Deus, e o livro da Sabedoria é um verdadeiro hino ao saber científico. Na prática, entretanto, havia um conhecimento bastante limitado. Na cosmologia bíblica, o mundo foi feito em seis dias. A terra é o primeiro astro do universo, surgida antes do sol e das estrelas. Ela é imóvel e tem o formato de um prato. As montanhas da terra sustentam a abóbada celeste. Esta abóboda é uma placa sólida, o firmamento, onde os astros estão pendurados. Acima do firmamento, há um reservatório de águas de onde vem a chuva. Basta que as suas comportas se abram, que a chuva cai. Acima de tudo está o trono de Deus, que vê os homens pelas aberturas do firmamento. Esta era a cosmologia no VI século antes de Cristo, que serviu de base para as narrativas da criação do livro do Gênesis.

No Novo Testamento, Paulo não coloca diretamente o problema da ciência, mas da evangelização e das resistências enfrentadas por ele no anúncio do Evangelho. Para ele: “a ciência infla, mas o amor edifica” (1Cor 8,1); e “mesmo que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e toda a ciência… se me falta o amor, eu nada sou” (1Cor 13,2). A oposição entre a “loucura da cruz” e a “sabedoria do mundo” está no coração do ensinamento de Paulo, que enfrentou a rejeição do Evangelho pelos sábios gregos. Ele interroga: “Deus não converteu em loucura a sabedoria deste mundo”? (1Cor 1,20). Esses ensinamentos não são estimulantes para a ciência.

Tal desconfiança foi herdada pelos Padres da Igreja e por Santo Agostinho: “é inútil perscrutar profundamente o que sustenta a natureza das coisas, como fazem os filósofos gregos chamados físicos […] eles preveem a eclipse do sol, mas não se dão conta do que sustenta todas as coisas” (AGOSTINHO apud MINOIS, 1990, p. 120). Havia também uma expectativa iminente da vinda gloriosa de Cristo e do fim do mundo, que durou até o século XVII. Para alguns Padres da Igreja, a ciência era inútil: por que estudar a estrutura de um mundo destinado a desaparecer brevemente? Além disso, ela tornava os homens orgulhosos. Mesmo assim, a ciência era possível e era um meio de se conhecer a verdade.

O homem dispõe de dois caminhos para o conhecimento da verdade: a fé e o estudo racional da natureza. Para cada um havia um manual: o livro da Revelação, a Sagrada Escritura, na qual Deus confiou os seus segredos à humanidade, e o “livro da natureza” (liber naturae), o universo no qual vivemos, a criação, que também vem de Deus. Cada livro tem uma chave de leitura: a fé para as Escrituras e a razão para a natureza. E cada livro tem o seu leitor autorizado: os teólogos e os cientistas.

Se há contradição sobre certos pontos entre teólogos e cientistas, é porque um ou outro se enganou, e convém revisar suas interpretações. Se uma verdade científica é provada, declara Santo Agostinho, compete aos exegetas e teólogos reverem suas interpretações, pois nada é mais danoso à religião do que cristãos sustentando erros científicos em nome da Bíblia (AGOSTINHO, 1972, p. 615-616). Dessa maneira se arruína toda a credibilidade da Escritura. Estas intuições de Santo Agostinho são válidas hoje e permitem dirimir grandes conflitos, ainda que ele não aceitasse plenamente a autonomia da ciência. Para Santo Agostinho, a autoridade da Escritura era superior à das ciências. Diante de hipóteses contraditórias da ciência, o teólogo é que deve escolher a hipótese mais plausível, em função das exigências da fé. Por exemplo: está dito no Gênesis que Deus separou as águas superiores das águas inferiores. Eis uma verdade de fé. O papel da ciência é explicar como isso é possível. Ora, entre as teorias científicas gregas, há uma que afirma a presença de cavidades situadas na abóbada celeste que são próprias para reter água: eis aí uma boa teoria.

No Ocidente, a ciência esteve a serviço da fé na Idade Média e assim se desenvolveu. No ano 990 foi criada em Chartres uma escola episcopal, que ficou conhecida como a Escola de Chartres. Ela foi dirigida de 1006 a 1028 pelo bispo Fulbert e ganhou tal prestígio que se tornou o principal centro científico dos séculos XI e XII, com a ambição de realizar a síntese entre fé e ciência. Lá, muitos homens de Igreja se lançaram com entusiasmo no estudo das ciências, que revelavam as maravilhas de Deus. Confiantes na racionalidade do mundo, cuja garantia era Deus, eles se propuseram a explicar as Escrituras. Tudo poderia ser explicado pela física e pela matemática, e um homem como Thierry de Chartres teve a ambição de descrever os seis dias da criação nos termos da física.

O fato mais curioso dessa época é o papa do ano 1000, Gerbert, eleito com o nome de Silvestre ll. Com ele, a ciência tomou posse da sé de Pedro. Gerbert foi um grande cientista do seu tempo, provavelmente o melhor matemático e astrônomo, e tinha um vasto conhecimento de física, química, medicina, zoologia e botânica. Um homem enciclopédico avant la lettre, antes que esse termo existisse. Pode-se imaginar uma consagração mais radiante do matrimônio entre Igreja e ciência? Ele foi professor do bispo Fulbert e um dos maiores entusiastas da síntese entre fé e ciência. Esta incipiente ciência medieval, hoje em grande parte ultrapassada, levantou problemas e foi precursora da ciência moderna.

No século XIV, surgiu o nominalismo, uma corrente filosófica que operou uma desconstrução e uma reelaboração do saber até então existente. O seu principal expoente é o franciscano Guilherme de Ockham. Para ele, o mundo é uma multiplicidade de seres individuais, absolutamente contingentes, sem relação de nexos imutáveis e necessários, sem uma natureza ou essência. Os seres individuais são puro ato da vontade divina criadora, resultantes de uma escolha que, sendo divina, não é limitada ou constrangida por nexos imutáveis e necessários, decorrentes da natureza, da causalidade ou de outra razão metafísica. Nominalismo vem de nome. O conhecimento humano se limita ao nome que atribuímos aos seres. Não há natureza ou essência, elementos que as coisas possam ter em comum.

Segundo Ockham, o conhecimento que podemos ter do mundo é um conhecimento provável, baseado em repetidas experiências, pois aquilo que aconteceu no passado tem uma grande probabilidade de acontecer no futuro. Com isso, o pensamento nominalista rompeu com a estrutura conceitual-especulativa precedente, incluindo a cosmologia antiga, e favoreceu a tradição experimental. Com essa ruptura, ele abriu caminho para a ciência moderna.

Discípulos de Ockham começaram a colocar em xeque o geocentrismo e afirmar o movimento parcial da Terra. Foi sugerida a hipótese de que alguns planetas giravam em torno do Sol. Em 1377, o teólogo e astrônomo francês Nicolau Oresmo mostrou que seria muito mais simples explicar o movimento celeste se fosse a Terra que se movesse, e declarou que as passagens da Bíblia que falavam do movimento do Sol não são, senão, imagens, maneiras de falar, “como lá onde está escrito que Deus se arrependeu, se encolerizou, se acalmou e outras coisas que não são literais” (ORESMO apud MINOIS, 1992, p. 12). Oresmo foi feito bispo de Lisieux e em nenhum momento foi importunado pelas suas audaciosas hipóteses. No século XV, o filósofo e cardeal Nicolau de Cuza também divulgou ideias audaciosas, dizendo que o universo não tem centro, que a Terra se move e que os planetas são povoados.

Ao se tratar da ciência no Ocidente, não se pretende desvalorizar outras civilizações que têm sua originalidade e que também fazem parte do patrimônio comum da humanidade, assim como a civilização cristã. Esta se beneficiou de contribuições científicas gregas, judaicas e islâmicas. No final do primeiro milênio e início do segundo, as maiores bibliotecas do mundo estavam no mundo islâmico. Obras clássicas gregas foram traduzidas para o árabe. A medicina e a astronomia árabes eram notáveis. É desta civilização que vieram o álcool, a álgebra e o algarismo.

2 A revolução científica e a Igreja

Um marco fundamental no pensamento ocidental e na história humana foi a revolução científica. Com ela, a ciência se separa da filosofia e da religião, e ganha autonomia. A química se separa da alquimia, a medicina da magia e a astronomia da astrologia. Surge um novo paradigma, uma nova forma de pensar e uma nova visão de mundo que marcaram definitivamente a cultura moderna. Tudo passou a ser questionado pela ciência e o seu domínio se estendeu depois à psique, à sociedade, à economia, e outros âmbitos da realidade. Os demais saberes tiveram que se repensar e várias certezas inabaláveis se desfizeram.

O cônego e canonista polonês Nicolau Copérnico retomou as teorias sobre o movimento da terra e compôs a teoria heliocêntrica, embasada em observações e cálculos matemáticos. Ele mostrou que o movimento da terra é suficiente para explicar todas as desigualdades que aparecem no céu. Estava convencido de que a função do estudioso é a de procurar a verdade em todas as coisas, até o limite concedido por Deus à razão humana. A sua grande obra De revolutionibus orbium coeslestium (Das Revoluções das Esferas Celestes) foi publicada em 1534 e teve uma repercussão muito grande. Deslocando a terra do centro do universo, Copérnico mudou também o lugar do homem no cosmo. A revolução astronômica implicou também uma revolução filosófica.

Para o historiador da ciência Thomas S. Kuhn:

Homens que acreditavam que sua morada terrestre fosse apenas um planeta, girando cegamente em torno de uma entre bilhões de estrelas, começavam a avaliar a sua posição no esquema cósmico de modo bem diferente dos seus antecessores, que viam a Terra como o único centro focal da criação divina. (KUHN apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 212)

Depois de Copérnico, os astrônomos passaram a viver em um mundo diferente. Ele foi o autor de uma revolução que levou o seu nome: a Revolução Copernicana. No fluxo desta revolução intelectual surgiram outros nomes como Johannes Kepler, em fins do século XVI e início do século XVII. Ele descobriu as órbitas elípticas dos planetas e o seu tempo de revolução em torno do sol, relacionando-os com as respectivas distâncias. As suas descobertas muito originais foram movidas por uma fé no sistema copernicano, que se vinculava à fé platônica de que uma razão matemática divina presidiu a criação do mundo. A sua vida de cientista, de expectativas alegres e amargas desilusões, de reiterados esforços e sucessivos fracassos, os becos sem saída em que se coloca, a tenacidade com que empreende o desenvolvimento de difíceis cálculo, a constância e perseverança na busca de uma ordem, devem-se à fé de que ela existe e foi Deus que a criou. Vemos em sua vida uma verdadeira luta com o Anjo, que no fim não lhe nega a sua bênção (KUHN apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 246).

Dentre os grandes nomes da revolução científica, Galileu Galilei (1564-1642) é considerado o fundador da ciência moderna, por ter teorizado o método científico e a autonomia da pesquisa científica. Matemático e astrônomo, ele se utilizou de uma descoberta então recente, a luneta, aperfeiçoou-a e a apontou para o céu. A partir daí fez notáveis inovações, viu coisas que ninguém tinha visto antes, e tirou conclusões inusitadas. Viu que a lua não é, em absoluto, feita de uma superfície lisa e polida, mas áspera e desigual. E, da mesma forma, que a face da terra possui grande parte coberta de proeminências, vales e sinuosidades. Com esta constatação, golpeia-se a distinção entre corpos terrestres e celestes, pilar de sustentação da cosmologia de Aristóteles e de Ptolomeu. Também Galileu estava convencido de que os conhecimentos geométricos e matemáticos são definitivos, necessários e seguros, pois a natureza está escrita em linguagem geométrica e matemática.

Na física, ele compôs leis do movimento, e na astronomia, retomou o sistema copernicano, enriquecido de novas observações e cálculos, tornando-o quase irrefutável. Diante do conflito com as Escrituras, propôs uma nova interpretação e uma nova relação do livro sagrado com a ciência.

Para Galileu, erram aqueles que pretendem se deter sempre no puro significado das palavras, pois então na Escritura apareceriam não somente diversas contradições, mas também graves heresias e blasfêmias, já que seria necessário ver em Deus pés, mãos e olhos, bem como efeitos corporais e humanos, como os de ira, de arrependimento, de ódio e até, por vezes, de esquecimento das coisas passadas e de ignorância das futuras. Ciência e fé para ele, em síntese, situam-se e relacionam-se da seguinte maneira: 1) A Escritura é necessária para a salvação do homem; 2) Os “artigos relativos à salvação e ao estabelecimento da fé” são tão firmes que contra eles “não há qualquer perigo de que possa se insurgir nunca alguma doutrina válida e eficaz”; 3) Devido às suas finalidades, a Escritura não tem nenhuma autoridade no que se refere a todos aqueles conhecimentos que podem ser estabelecidos por meio de “sensatas experiências e necessárias demonstrações”; 4) Quando fala sobre aquilo que é necessário para a nossa salvação (ou sobre coisas não cognoscíveis por outro meio ou por outra ciência), a Escritura não pode ser desmentida; 5) Entretanto, na medida em que os escritores sacros dirigiam-se ao “vulgo rude e indisciplinado”, em muitas passagens a Escritura necessita de interpretação; 6) A ciência pode constituir um meio pra interpretações corretas; 7) Nem todos os intérpretes da Escritura são infalíveis; 8) Não se pode comprometer a Escritura em coisas que o homem pode conhecer com sua razão; 9) A ciência é autônoma: suas verdades são estabelecidas com sensatas experiências e demonstrações certas, e não com base na autoridade da Escritura; 10) Nas questões naturais, a Escritura vem em último lugar (GALILEU apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 264-266).

Pode-se concluir, portanto, que na opinião de Galileu a ciência e a fé são compatíveis. A ciência nos diz “como vai o céu” e a fé nos diz “como se vai ao céu”. E quando surgem aparentes contradições, deve-se suspeitar logo que o cientista se transformou em metafísico, ou então que o religioso transformou o texto sacro em um tratado de física ou de biologia. As afirmações de Galileu, com esta hermenêutica inovadora, dão um novo lugar à Bíblia na configuração do conhecimento humano.

Algumas de suas posições já tinham sido, de alguma maneira, defendidas por Nicolau Oresmo no século XIV. Por que então Galileu foi condenado? Por causa da Contrarreforma. A Igreja Católica, ciosa do combate ao protestantismo, assume uma postura bastante defensiva em relação a novidades. O Concílio de Trento proíbe que se interpretem as Escrituras contra o consenso unânime dos Padres da Igreja (DENZIGER; HÜNERMANN, 2007, n. 1507). Naquele tempo, não se poderia admitir que um fiel cristão qualquer – mesmo um grande cientista – estabelecesse princípios hermenêuticos de interpretação da Bíblia, e propusesse interpretações deste ou daquele trecho. Aí está a raiz do choque entre Galileu e a Igreja.

Um teólogo jesuíta, o cardeal Belarmino, com o intuito de salvar o magistério da Igreja, afirmava que o sistema copernicano dava conta de explicar as aparências da observação e dos cálculos matemáticos, mas não correspondia à realidade. Tanto Copérnico quanto Galileu estavam convencidos do contrário, ou seja, de que o movimento da terra é real.

No mundo protestante, a teoria de Copérnico também foi hostilizada.

Em seus Discursos à Mesa, Lutero parece ter afirmado (1539): “As pessoas deram ouvidos a um astrólogo de dois vinténs, que procurou demonstrar que é a Terra que gira e não os céus e o firmamento, o sol e a lua […]. Esse insensato pretende subverter toda a ciência astronômica. Mas a Sagrada Escritura nos diz que Josué ordenou ao sol – e não à terra – que se detivesse”. No seu Comentário ao Gênesis, Calvino cita o versículo inicial do Salmo 93, que diz: “Sim, o mundo está firme, jamais tremerá”. E se pergunta: “Quem terá a ousadia de antepor a autoridade de Copérnico à do Espírito Santo”? (REALE; ANTISERI, 1990, p. 259)

Na Contrarreforma, a Igreja Católica criou instrumentos de proteção de sua fé e de combate ao protestantismo. Um deles foi a Inquisição Romana, constituída pelo papa Paulo III, em 1542, dirigida por uma comissão permanente de cardeais para lutar contra a heresia. Tal instituição logo tomou o nome de Congregação do Santo Ofício. Ela estava encarregada de lutar contra todos os desvios doutrinais e morais, e não hesitou em condenar severamente as teses que lhe pareciam perigosas ou contrárias à pureza da fé, bem como as pessoas que as defendiam.

Em 1600, o dominicano Giordano Bruno foi queimado vivo em Roma por decisão do Santo Ofício. Em seus escritos, mais poéticos que rigorosos, perpassados de hermetismo mágico, ele afirmava que: o universo era infinito e eterno, composto de uma infinidade de corpos minúsculos, os átomos; ele possui uma multidão de mundos iguais ao nosso; as estrelas são enormes bolas de fogo; o sol não é senão uma estrela, e a terra é um ponto minúsculo que se move no espaço. Este universo é tudo, e Deus não é separável do mundo. Com esta concepção panteísta, Bruno negava a doutrina da Santíssima Trindade. O motivo de sua condenação foram suas afirmações religiosas, e não suas concepções sobre o cosmo. Mas, posteriormente, ele foi erroneamente considerado o primeiro mártir da ciência (NUMBERS, 2012, p. 79-88).

Além da Inquisição, outro instrumento de controle foi criado pela Igreja: o Index librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos), ou simplesmente o Index. Foi obra do Papa Paulo lV, em 1559, que consistia numa lista constantemente atualizada de obras proibidas, julgadas contrárias à fé e à moral, cuja leitura era proibida aos fiéis.

Em 1616, o Santo Ofício condenou a doutrina de Copérnico e transmitiu a sentença à Congregação do Index. Galileu foi advertido para que abandonasse a ideia copernicana e não mais a ensinasse, sob pena de prisão. Como continuou a ensinar a doutrina proibida, ele sofreu um novo processo da Inquisição. Em 1633, Galileu foi condenado à prisão perpétua em regime domiciliar e a abjurar diante do tribunal suas ideias. Estes são os termos da condenação:

Dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, o referido Galileu, pelas coisas aduzidas em processo e por ti confessadas como referidas acima, te tornaste para este Santo Ofício veementemente suspeito de heresia, isto é, de haver mantido e crido em doutrina falsa e contrária às sagradas e divinas escrituras, que o sol seja o centro da terra e que não se mova do Oriente para o Ocidente, ao passo que a Terra se mova e não esteja no centro do mundo, além de que se pode manter e defender como provável uma opinião depois de ela ter sido declarada e definida como contrária à Sagrada Escritura. E, consequentemente, estás incurso em todas as censuras e penas dos cânones sagrados e outras constituições gerais e particulares impostas e promulgadas contra semelhantes delinquentes. E pelas quais nos contentaremos se, em termos absolutos, mais que antes, maldigas e detestes os referidos erros e heresias, bem como qualquer outro erro e heresia contrários à Igreja Católica e Apostólica, do modo e na forma que por nós te serão dados. (SANTO OFÍCIO apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 273)

A interpretação tradicional da Bíblia prevaleceu sobre a interpretação inovadora do cientista. E Galileu abjurou:

Eu, Galileu, filho daquele Vicente Galileu de Florença, nesta minha idade de setenta anos, constituído pessoalmente em juízo e ajoelhado diante de vós, eminentíssimos e reverendíssimos cardeais, inquisidores gerais em toda a república cristã contra a herética maldade, e tendo diante de meus olhos os sacrossantos Evangelhos, que toco com as próprias mãos, juro que sempre acreditei, acredito agora e, com a ajuda de Deus, acreditarei também no futuro em tudo aquilo que a Santa Igreja Católica e Apostólica mantém, prega e ensina […]. Portanto, querendo eu retirar da mente das eminências reverendíssimas e de todo fiel cristão essa veemente suspeição, justamente concebida em relação a mim, com coração sincero e fé não fingida, abjuro, maldigo e detesto os referidos erros e heresias e, em geral, todo e qualquer outro erro, heresia e seita contrárias à Santa Igreja. E juro que, para o futuro, nunca mais direi nem admitirei, por voz ou por escrito, coisas tais pelas quais se possa ter de mim semelhante suspeita. E, se conhecer algum herético ou suspeito de heresia, o denunciarei a este Santo Ofício, ao inquisidor ou ordinário do local onde me encontrar. (GALILEU apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 274)

A Igreja da Contrarreforma e do medo condenou Galileu. E o ano de 1633 foi emblemático na história das ideias e no conflito entre fé e ciência. Descartes se surpreendeu com a condenação de Galileu, por ser ele “italiano e amigo do papa”. Somente em 1820 a Igreja permitiu a publicação de livros que ensinavam o movimento da Terra, com o imprimatur concedido à obra do cônego Settele. E somente em 1846 as obras de Copérnico e Galileu foram retiradas do Index.

Não obstante as severas restrições eclesiásticas, o processo da revolução científica não se interrompeu. Outro grande nome desta transformação intelectual é o físico inglês Isaac Newton, autor da obra Plilosophiae naturalis principia mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), publicada em 1688. A sua obra expõe o que hoje se chama física clássica, com as leis do movimento, da gravidade, da aceleração e da ótica. Ele formulou os postulados da simplicidade e da uniformidade da natureza. A natureza é simples de tal maneira que não devemos atribuir aos fenômenos mais causas do que as suficientes para explicá-los. A natureza é uniforme: o que acontece com a luz e a gravidade na terra, acontece também em qualquer outro planeta. Da obra de Newton resultou um quadro unitário do mundo, e uma efetiva e sólida reunião da física terrestre e da física celeste. Este quadro unitário pôs fim à crença oriunda da Antiguidade grega de uma diferença essencial entre os céus e a terra, entre o mundo supralunar e o mundo sublunar, entre a mecânica e a astronomia.

Em outros campos da ciência, convém lembrar o filósofo e matemático Gottfried Leibniz, um dos autores do cálculo infinitesimal, e William Harvey, médico e descobridor da circulação sanguínea. Os cientistas fundaram suas academias para a promoção dos conhecimentos naturais, como a Royal Society of London for the Promotion of Natural Knowledge, em 1662; e a Académie Royale des Sciences, em 1666, no reinado de Luís XIV. A instituição inglesa tinha como lema: Nullius in verba, expressando que não é preciso basear-se na palavra de ninguém. A frase é extraída de um poema de Horácio: Nullius addictus iurare in verba magistri, / quo me cumque rapit tempestas, deferor hospes; que quer dizer: “sem ser obrigado a defender sob juramento as palavras de um mestre, deixo-me levar de bom grado onde me arrastar a tormenta”. Ou seja, na ciência não vale o argumento de autoridade, mas sim o que pode ser demonstrado. Era a autonomia da ciência que se configurava. E tudo isso para glória de Deus, “a honra e o benefício deste Reino” e o bem universal da humanidade (REALE; ANTISERI, 1990, p. 218).

Na cristandade católica, junto com os avanços também são feitas outras restrições. Já no século XVII, a teoria dos átomos é formalmente proscrita pelos jesuítas e proibida de ser ensinada em seus colégios, pois era considerada incompatível com o dogma da transubstanciação. As obras científicas de Descartes são postas no Index em 1664. A teoria da circulação sanguínea de Harvey é contestada porque contradiz Aristóteles e Galeno. Em 1751, o naturalista e matemático Georges de Buffon é repreendido, a pedido da faculdade de teologia de Paris, por afirmar em sua História Natural que o relevo terrestre foi modelado pelo mar, que a terra era originalmente um pedaço de estrela incandescente, e que o sol se extinguiria por falta de combustível. Tais afirmações eram consideradas “princípios e máximas que não são conforme a religião” (MINOIS, 1992, p. 6).

No século XVIII surgem teorias geológicas que negam o dilúvio universal, afirmando que a aparição do homem remonta há centenas de milhares de anos, e que a Terra tem mais de seis mil anos. São posições que contradizem a letra da Sagrada Escritura, e a Igreja Católica as condena à medida que aparecem. Em 1784, o abade Giraud-Soulavie, cujo trabalho é a base da geologia moderna, é obrigado a renunciar às suas atividades científicas, e a Igreja proíbe a publicação dos dois volumes de sua História Natural da França Meridional.

Na verdade, a situação era complexa porque a Igreja Católica estava longe de ser um bloco unido. Enquanto uma ordem religiosa condenava certa doutrina, outra doutrina contestada era tolerada. Um parlamento proibia certo livro, mas tal bispo o admitia. O Santo Ofício proibia certa opinião, mas tal universidade a ensinava. Isto tornava possível diversas interpretações, formando-se fendas na cristandade que permitiam o avanço científico.

No final do século XIX, a Igreja Católica atua no mundo científico com um propósito apologético: defender as verdades da fé ameaçadas pela ciência, distinguir a “falsa” da “verdadeira” ciência, e criar a “ciência católica”. Esta tem por finalidade principal, como escreve o abade Jauge:

A defesa da fé no terreno científico. Ela se propõe a recolher, em meio ao clero e aos católicos instruídos, o conhecimento das respostas dadas hoje em dia pelos teólogos e pela ciência profana às numerosas objeções que, acobertadas por uma ciência enganosa, são dirigidas contra as verdades cristãs. (MINOIS, 1992, p. 23)

Este propósito é bem compreensível naquele contexto em que cientistas endurecidos e sarcásticos pensavam que a verdadeira ciência conduz ao materialismo e ao ateísmo. A ciência católica fracassou porque a sua própria perspectiva de defesa da religião, situando a pesquisa científica num contexto de luta, era contrária à própria ideia de pesquisa científica, que deve visar unicamente o conhecimento e não justificar esta ou aquela filosofia ou religião. Entretanto, no próprio movimento da ciência católica surgiram vozes que denunciaram a defasagem da Igreja em relação à ciência. Em 1897, no Congresso da Ciência Católica realizado em Friburgo, na Suíça, o abade Boulay acusou a hierarquia católica de impor erros científicos no Catecismo em nome da fé:

Um grande número de catecismos de perseverança, destinados a adolescentes de doze a quinze anos, contém verdadeiras heresias científicas, erros positivos confundidos com os ensinamentos das verdades mais essenciais da religião. Os adolescentes e jovens que leem, que estudam esses manuais com toda confiança, são incapazes de fazer uma triagem necessária. Ensinar-lhes a criação do mundo em seis dias, continuar a enquadrar todos os acontecimentos bíblicos na cronologia vulgar de 4000 anos antes da era cristã, não é enganar conscientemente suas jovens inteligências? Não é expô-los à tentação do escândalo e da dúvida, uma vez que depois eles descobrirão os erros destes ensinamentos que lhes foram transmitidos em nome de uma autoridade dogmática e infalível? (BOULAY apud MINOIS, 1991, p. 257)

Este alerta tem uma validade extraordinária ainda hoje, diante da difusão de um fundamentalismo religioso. Naquela época, entretanto, prevaleceu na doutrina católica a leitura literal dos três primeiros capítulos do Gênesis, conforme a determinação da Santa Sé de 1909 (DENZIGER; HÜNERMANN, 2007, n. 3512-3514). Apesar disto, a Sé romana teve iniciativas positivas no campo científico, como a criação do Observatório Astronômico do Vaticano, em Castel Gandolfo, e da Pontifícia Academia de Ciências, que tempos depois foi presidida pelo médico brasileiro Carlos Chagas Filho, entre 1972 e 1988.

No século XX, um dos nomes mais importantes do diálogo entre fé e ciência é o do paleontólogo e teólogo jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Sua obra é considerada a mais sedutora e audaciosa tentativa de síntese entre a ciência moderna e a fé. Suas principais publicações são O Meio Divino (1927), O Fenômeno Humano (1940), O Coração da Matéria (1950) e O Crístico (1955), que expressam uma grandiosa visão baseada na “evolução aplicada ao cosmos e ao espírito”. Partindo da criação, ele vê o universo realizando um vasto movimento de complexificação que, através de muitas mutações, permite a emergência do espírito e da consciência a partir da matéria, rumo à plenitude que é a realização do Cristo cósmico, o Ômega. Este processo diz respeito a todos os seres humanos. Cada um está inserido no movimento da realização do Cristo, por amor.

As ideias de Teilhard de Chardin foram mal-recebidas pelas autoridades eclesiásticas, sofrendo muitas censuras e proibições que ilustram a dificuldade do diálogo entre a Igreja e a ciência ainda no século XX. As consequências teológicas dessa síntese lhe causaram problemas. Reprovaram suas ideias por terem escamoteado o pecado original e o mal, e com isto a redenção; por não terem dado o devido valor à transcendência em relação ao mundo material, e à especificidade do espírito em relação à matéria. Teilhard morreu no anonimato, exilado pelas autoridades romanas. Após sua morte, seus livros foram publicados por editoras não católicas, e sua venda foi proibida nas livrarias católicas em 1957. No entanto, o seu pensamento é bem vivo e influenciou o Concílio Vaticano II. Nas últimas décadas, ele foi elogiado pelos papas.

Em meio às controvérsias entre fé e ciência, desde o final do século XIX os estudos bíblicos no mundo católico começam a progredir para além do sentido literal (LEÃO XIII, 1893, n. 39).  No pontificado de Pio XII (1939-1958), uma encíclica trata dos “gêneros literários” na Bíblia. O que os autores sagrados exprimem não é tão claro como nos escritores do nosso tempo, diz o papa. O seu significado não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, mas também pelo contexto mais amplo dos tempos antigos do Oriente. O intérprete atual deve se servir da história, da arqueologia, da etnologia e das outras ciências para examinar e distinguir claramente que gêneros literários empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. Com um justo conceito da inspiração bíblica, não se deve estranhar que nos autores sagrados, como também em seus contemporâneos, encontrem-se certos modos de expor e contar, certas particularidades idiomáticas, especialmente das línguas semíticas, certas expressões aproximativas ou hiperbólicas, talvez paradoxais, que servem para gravar as coisas mais firmemente na memória. Nenhum dos modos de falar dos antigos, especialmente entre os orientais, é incompatível com as Sagradas Escrituras, uma vez que o gênero adotado não repugna à santidade e verdade de Deus (PIO XII, 1943, n. 20).

Com a incorporação de elementos histórico-críticos na interpretação da Bíblia, passou-se a admitir, ainda que com restrições, a teoria da evolução. Pio XII afirmou que é lícito supor a origem do corpo humano na matéria viva pré-existente. No entanto, ele condenou o poligenismo, a teoria de uma origem múltipla da humanidade admitindo-se nela indivíduos que não descendem do primeiro homem, Adão. Para o papa, isto contraria a doutrina do pecado original, cometido por ele e transmitido a todos os demais pela geração, junto com as suas consequências, tornando-se pecado próprio de cada ser humano. Não se deve proceder como se nada houvesse nas fontes da Revelação a exigir nesta matéria científica a máxima moderação e cautela (PIO XII, 1950, n. 35-37). Há um progresso considerável, não resta dúvida, mas permanece a tutela religiosa sobre a ciência.

No Concílio Vaticano II (1962-1965), houve um grande encontro da Igreja com o mundo moderno, permitindo a resolução de vários problemas e a superação de muito mal-estar. A Igreja Católica, após séculos de relutância, aceitou a liberdade de consciência e a liberdade religiosa, com a “justa autonomia das realidades terrestres”, que incluem a separação entre Igreja e Estado, e a autonomia da ciência.

 Em relação à Bíblia, a Revelação divina nela transmitida é entendida como autocomunicação de Deus ao ser humano, que alcança a sua plenitude em Jesus Cristo (DV, n.2). A ênfase está na relação interpessoal, e não na transmissão de um conjunto de enunciados imutáveis com um sentido unívoco. O método histórico-crítico é assumido pelo Concílio e bem sintetizado: o leitor contemporâneo deve buscar o sentido que os autores sagrados em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretenderam exprimir servindo-se dos gêneros literários então usados. Devem-se levar em conta as maneiras próprias de sentir, dizer ou narrar em uso no tempo deles, como também os modos que se empregavam frequentemente nas relações entre os homens daquela época (DV, n. 12).

Há um novo tom, muito mais positivo, no sentido de confiança e de colaboração. O Concílio reconhece que as pesquisas recentes e as descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências para a vida e exigem novos estudos dos teólogos. Na ação pastoral da Igreja, devem ser conhecidos e aplicados não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, especialmente da psicologia e da sociologia, para que os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta. Os fiéis são exortados a viverem em estreita união com os outros homens do seu tempo, e a compreenderem bem o seu modo de pensar e sentir, que se exprime através da cultura. Que eles saibam conciliar os novos conhecimentos científicos e suas últimas descobertas, com os costumes e a doutrina cristã. Que a prática religiosa e a retidão moral acompanhem nos fiéis o conhecimento científico e o progresso técnico, de modo que eles sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão (GS, n. 62).

 Na mensagem final do Concílio, os homens dedicados ao pensamento e à ciência são exortados a considerarem que talvez nunca como hoje, por graça de Deus, foi tão bem-vinda a possibilidade de um profundo acordo entre a verdadeira ciência e a verdadeira fé, servindo uma e outra à única verdade. Que não se impeça este precioso encontro (PAULO VI, 1965).

Convém observar que, ao se reconhecer nas ciências profanas um importante auxílio para uma vida de fé mais pura e adulta, fica implícito o risco de negligência dessas ciências, contribuindo para uma fé menos pura e menos adulta. Com os novos ventos conciliares de reaproximação e de reconciliação, Paulo VI, em 1966, pôs fim ao Índice de Livros Proibidos.

Anos depois, no pontificado de João Paulo II, foi dado um considerável apoio às pesquisas científicas, sobretudo pelas visitas feitas a centros de pesquisa e pelos pronunciamentos dirigidos aos cientistas. O mais importante deles é uma carta escrita em 1988 ao diretor do observatório astronômico do Vaticano, o jesuíta George Coyne, por ocasião dos trezentos anos da publicação da Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de Newton.

O papa diz que é necessário que o cristianismo, as grandes religiões e a comunidade científica se empenhem num diálogo que supere a fragmentação da cultura moderna, rumo a uma visão unificada. Esta unidade é o que permite dar sentido à realidade e à vida. Ele enfatiza que ciência é ciência, e religião é religião, cada qual com seus princípios e procedimentos. Que a teologia não professe uma pseudociência, e que a ciência não seja inconscientemente uma teologia. O cristianismo possui em si mesmo as suas próprias fontes de justificação e não espera que a ciência seja a sua base apologética. E adverte os teólogos contra o uso apressado de teorias científicas com finalidade apologética. A ciência está aí, interpela a teologia, e a sua visão de mundo inevitavelmente é assimilada pelos cristãos, constata João Paulo II. Que eles o façam com profundidade e discernimento, e não de modo acrítico e superficial, de modo a humilhar o evangelho e envergonhar os cristãos diante da história. A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição, e a religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos (JOÃO PAULO II, 1988).

O isolamento de ambas, portanto, é mutuamente prejudicial. O uso da ciência pode ser massivamente destrutivo, e as posições da religião podem ser obscurantistas e estéreis. Cada uma pode trazer à outra um horizonte mais amplo, para o bem de todos. Outra importante contribuição desse papa foi um documento da Cúria Romana sobre a interpretação da Bíblia. Nele se refuta, com sabedoria e firmeza, a leitura fundamentalista da Sagrada Escritura.

Essa leitura parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes, excluindo toda a compreensão que leve em conta o crescimento histórico e o desenvolvimento do texto bíblico. Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico. O fundamentalismo, com raízes no princípio de Lutero da sola Scriptura (somente a Escritura), foi organizado posteriormente por um amplo segmento protestante que se opunha à exegese liberal. O nome deste movimento reativo está diretamente ligado ao Congresso Bíblico Americano, realizado em 1895. Os princípios do fundamentalismo são: a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal na segunda vinda de Cristo. Esta leitura se difundiu muito em outros Continentes, influenciando também os católicos.

A abordagem fundamentalista tende a tratar o texto bíblico como se ele fosse ditado pelo Espírito Santo, palavra por palavra. Esta abordagem é perigosa, adverte o documento, pois ela é atraente para pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas da vida. Ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas, esta abordagem pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas ilusórias. O fundamentalismo convida, sem dizer, a uma espécie de “suicídio do pensamento”. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem (PCB, 1993, I. F).

O mesmo documento romano avalia o uso do método histórico-crítico, que coloca em evidência de maneira sobretudo diacrônica o sentido expresso por autores e redatores da Bíblia. Este método possui limites, pois se restringe à procura do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua produção. Não se interessa por outras potencialidades de sentido, que se manifestaram no decorrer de épocas posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja. No entanto, o método contribuiu para a produção de obras de exegese e de teologia bíblica de grande valor. Com a ajuda de outros métodos e abordagens, ele abre ao leitor moderno o acesso ao significado do texto da Bíblia, tal como se pode ter (PCB, 1993, I. A).

O diálogo entre fé e ciência prossegue com o papa Bento XVI. Ele se empenhou no aprofundamento e na releitura do conceito de lei natural que, segundo a tradição judaico-cristã, está “inscrita no coração do homem” e orienta os seus juízos éticos (Rm 2, 14-16), indicando o bem a ser feito e o mal a ser evitado. Para o Papa, a contribuição dos cientistas deve ser maior do que possibilitar o domínio humano sobre a natureza. Eles devem ajudar a compreender a responsabilidade do ser humano pelo seu semelhante e pela natureza que lhe é confiada. Assim, é possível desenvolver um “diálogo fecundo entre crentes e não crentes; entre filósofos, juristas e homens de ciência”. Este diálogo pode também oferecer ao legislador um material precioso para a vida pessoal e coletiva (BENTO XVI, 2007).

Ele retoma o conceito patrístico de liber naturae (livro da natureza). A Igreja ensina que Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens um testemunho permanente de si mesmo na criação. Como no centro da Revelação divina está o mistério de Cristo, é preciso reconhecer que a própria criação, livro da natureza, também constitui parte essencial de uma sinfonia de diversas vozes na qual o Verbo único se exprime. A criação nasce do Logos, trazendo o sinal indestrutível da razão criadora que a regula e guia (BENTO XVI, 2010b, n. 7-9). Esta certeza está expressa nos Salmos: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; pelo sopro da sua boca, todos os seus exércitos” (Sl 33,6). O livro da natureza é uno e indivisível, seja a respeito do meio ambiente, seja a respeito da vida humana e do seu desenvolvimento integral (BENTO XVI, 2009, n. 51). O teólogo também tem um olhar sobre a natureza pesquisada pelo cientista, buscando a racionalidade e a unidade oriundas da razão criadora.

3 Questões contemporâneas

Com todas as mudanças ocorridas nos últimos cem anos, restam ainda questões conflitivas. Uma delas é a doutrina do pecado original, baseada nos primeiros capítulos da Bíblia. Ainda hoje se ensina que no início da história humana houve um homem e uma mulher criados em um estado de santidade, dispensados da morte e vivendo em harmonia com a natureza ambiente (CIC, 1992, n. 390 e 398-400), em um ambiente e em uma situação tradicionalmente chamados de “paraíso terrestre”. Esta doutrina se tornou inadmissível para a ciência. Teilhard de Chardin, partindo de seus estudos paleontológicos, confidenciava já no início dos anos 1920:

Quanto mais ressuscitamos cientificamente o passado, menos encontramos lugar para Adão e para o paraíso terrestre. […] Não há o menor vestígio no horizonte, não há a menor cicatriz, indicando as ruínas de uma idade do ouro ou a nossa amputação de um mundo melhor. (CHARDIN, 1969, p. 62-63)

O acesso à fé cristã por parte de muitas pessoas é bloqueado por causa do ensinamento sobre o pecado original. Um exemplo disto é o filósofo do direito Norberto Bobbio, um dos mais importantes em sua área no século XX. Ele era sensível à dimensão religiosa do ser humano, que contempla e sente os próprios limites, sabendo que a razão humana é uma pequena lâmpada iluminando um espaço ínfimo em comparação com a grandiosidade e a imensidão do universo. Bobbio constatou que “quanto mais sabemos, mais sabemos que não sabemos”. Ampliou-se enormemente o espaço da consciência humana, mas quanto mais esse espaço se alarga, mais a consciência se dá conta da vastidão que desconhece. Mesmo se mantendo nos limites de sua própria razão, Bobbio tem o “senso do mistério”, comum tanto ao homem da razão quanto ao homem de fé. A diferença, para ele, é que o homem de fé preenche este mistério com revelações e verdades vindas do alto, das quais Bobbio não consegue se convencer. Uma dessas verdades é o pecado original, esta culpa originária e coletiva transmitida de geração em geração. Para ele, é algo extremamente primitivo, ligado a uma concepção tribal (BOBBIO, 2000, p. 7-9).

O historiador Jean Delumeau, autor de vasta obra sobre o medo, a culpabilização no Ocidente e a ideia de paraíso, propõe às igrejas cristãs um urgente aggiornamento (atualização) a respeito do pecado original. Que seja reconsiderada a enormidade atribuída à falta primeira – a condenação à morte e a culpabilidade hereditária resultante. É melhor se falar do “pecado do mundo” que Jesus vem “tirar”, conforme o Evangelho de João (1,29), para significar que todos nós nascemos em um mundo no qual o pecado já existe. Um mundo no qual a maldade, o orgulho, a vontade de poder e a concupiscência se acumularam desde o início da humanidade (DELUMEAU, 2007, p. 77-94).

Apesar desta divergência, de um modo geral a atitude recente da Igreja Católica diante do conhecimento científico é de respeito à sua autonomia, de encorajamento à pesquisa e de maravilhamento diante das descobertas. A hostilidade e a desconfiança do passado cederam lugar à colaboração dinâmica. No entanto, nas ciências aplicadas à vida e à sua transmissão, a situação ainda é conflitiva por causa das interdições da moral católica. A oposição da Igreja aos meios artificiais de contracepção, à inseminação artificial e à fecundação in vitro não é aceita pelos não católicos e nem mesmo por muitos fiéis católicos. Também na antropologia, há divergência sobre o entendimento da criação do ser humano como homem e mulher, e a diversidade sexual e de gênero (LIMA, 2019).

Conclusão

A Bíblia e a ciência são diferentes níveis de saber. O livro sagrado dos cristãos é fonte e alimento de sua própria fé e pode ser lido com proveito também por não crentes. O mundo em que os cristãos vivem é profundamente marcado pela ciência e por sua linguagem. Não se pode ignorá-la, nem na compreensão das Escrituras, nem na elaboração da teologia, nem no diálogo com a contemporaneidade, nem no engajamento em favor de um mundo mais justo e solidário. A ciência sempre pode alertar a religião contra erros e superstições, e a religião sempre pode alertar a ciência contra idolatrias e falsos absolutos.

O relato científico sobre o ser humano permite perceber que a pessoa humana está profunda e intrinsecamente interligada às outras criaturas do planeta, como filha da terra e filha do universo; e a pessoa humana tem a dignidade e a responsabilidade particular pelo fato de ser aquela criatura em que o universo chegou à autoconsciência (HAIGHT, 2012, p.17). Ciência e fé podem se unir na profunda admiração pela criação e no ato de louvor ao Criador, conforme o exemplo do astrofísico contemporâneo Enrico Medi, cuja causa de beatificação está em processo. Ele escreveu:

Ó vós, misteriosa galáxia […] Eu vos vejo, calculo, entendo, estudo e descubro, penetro e recolho. De vós eu tomo a luz e faço ciência, tomo o movimento e o torno sabedoria, tomo o brilho das cores e o torno poesia; recolho-vos, estrelas, em minhas mãos e, tremendo na unidade do meu ser, levanto-vos acima de vós mesmas e, em oração, ofereço-vos ao Criador, que somente por meu intermédio vós mesmas podeis adorar. (MEDI apud BENTO XVI, 2010a).

Luís Corrêa Lima, PUC-Rio. Texto original português. Enviado: 25/08/2022; Aprovado: 30/11/202e; Publicado: 30/12/2022

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Para aprofundar mais:

ARNOULD, J. Darwin, Teilhard de Chardin e Cia. São Paulo: Paulus, 1999.

CONCILIUM (Revista Internacional de Teologia). Evolução e Fé, n. 284, 2000/1.

MALDAMÉ, J.-M. O pecado original: fé cristã, mito e metafísica. São Paulo: Loyola, 2013.

PETERS, T; BENNETT, G. (org.). Construindo pontes entre a ciência e a religião. São Paulo: Loyola/Unesp, 2003

VAZ, H. Universo científico e visão cristã em Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 1967.

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A sapiência em Israel

Sumário

Introdução

1 Contextualização histórica do período literário sapiencial

1.1 Do surgimento ao período dos Juízes: Israel pré-estatal (1250-1000 aC)

1.2 A Monarquia (Israel estatal: 1000-587 aC)

1.3 O Exílio (587–538 aC)

1.4 O pós-exílio – época persa (538-332 aC): período de reconstrução

1.5 A época grega (333-63 aC): o helenismo

1.6 A reação ao Helenismo

2 A sabedoria em Israel

2.1 Continuidade ou inovação?

2.2 A teologia da retribuição ou da justa recompensa

2.3 Crise da sapiência e recomeço

2.4 A sapiência e Jesus

3 A literatura sapiencial israelita

3.1 A literatura

3.2 As formas ou gêneros literários sapienciais básicos

Conclusão

Referências

Introdução

A sapiência de Israel brota da cepa comum dos povos circunvizinhos.[1] Esse saber evoluiu e se fez livro, do período da tardia reconstrução pós-exílica ao início do helenismo, e com finalidades claras. Entre elas, destacam-se a educação da pessoa num ambiente em mudança (ad intra) e a tentativa de verbalizar a fé do povo da aliança numa linguagem apta ao diálogo com os vizinhos e, particularmente, com o mundo “globalizado”, ou seja, impregnado pelo helenismo, o mundo da sofia (ad extra). A sapiência bíblica terá que avaliar pressupostos teológicos como a teologia da retribuição, passará por crises, se purificará e desembocará no NT, sobretudo, no agir de Jesus e nos Evangelhos. Em termos de literatura, a sapiência israelita está condensada no seguinte conjunto de livros: Jó, Pr, Ct, Ecl, Eclo e Sb. Esses aspectos e outras particularidades serão apresentados a seguir.

1 Contextualização histórica do período literário sapiencial

Esta contextualização não pretende abordar de forma pormenorizada a história de Israel. Quer apenas lembrar suas principais etapas e, nelas, pontos relevantes que ajudem a entender em que momento da história aparece a literatura sapiencial.

1.1 Do surgimento ao período dos Juízes: Israel pré-estatal (1250-1000 aC)

Cerca de 1250 aC, emerge no Antigo Oriente Próximo uma nova grandeza que porta o nome de Israel. O evento fundante e catalizador desta nova realidade é a saída do Egito, o êxodo, sob a liderança de Moisés. Israel é, na verdade, uma confederação de tribos lideradas por juízes (Jz 2,16.18), isto é, libertadores (Ex 18,21-26; 1Sm 8,1-3; Rt 1,1), que incialmente atuavam apenas em momentos de crise, e pelos anciãos (1Sm 8,4). A unidade básica é a família (casa) inserida no seu clã e na sua tribo. A fé, simbolizada na Arca da Aliança, é nômade e histórica. O Deus, YHWH, caminha com seu povo. Israel ainda não é um Estado, não é reconhecido como nação. Não tem um governo central, como lhe caracteriza a frase referida a este período: “nesse tempo não havia rei em Israel” (Jz 17,6; 18,1; 19,1; 21,25), embora, na verdade, Javé reinasse sobre ele (Jz 8,23b; 1Sm 8,7b; 12,12b) num pacto de Aliança. Essa etapa ficará conhecida como período dos juízes ou tribalismo.

1.2 A Monarquia (Israel estatal: 1000-587 aC)

Em torno da virada para o primeiro milênio aC, Israel enfrenta alguns desgastes, como: o arrefecimento da fé que os unia, como o caso dos filhos de Eli (1Sm 2,12-17.22-25), a consulta à necromante por Saul (1Sm 28) ou a veneração de Baal (Jz 8,33-34); atritos entre as tribos, como o crime de Gabaá (Jz 19) ou a rejeição de Benjamim (Jz 21,15-25); juízes corruptos (1Sm 8,3) e tentados a serem rei, como Gedeão (Jz 8,22) e Abimelec (Jz 9,1-6). Por outro lado, aparecem as “novidades” do momento, como: a domesticação do boi, animal já presente no código da aliança (Ex 20,22–23,19) e na primeira guerra de Saul (1Sm 11), associado ao domínio do ferro (1Sm 13,19-22) e a comercialização do azeite (Ex 23,11) como fatores comerciais; não surpreende o aparecimento de endividados (1Sm 22,2). Um sistema já ineficaz para a defesa é confrontado com a ameaça externa de segurança, como o conflito com os filisteus (1Sm 4,1-11) e os amonitas (1Sm 11,1-11). Esses fatores serviram de pretexto a uma (nova) classe abastada que necessitava de um novo sistema de governo centralizado e que correspondesse a seus interesses. Israel quer ter um rei como as outras nações (1Sm 8,5.19b-20). Assim, inicia-se o sistema monárquico com Saul e Davi, chegando ao seu pleno desenvolvimento em Salomão. Trata-se de um governo central, com exército, palácio e corte, com um amplo aparato administrativo que se serve de um esquema de tributação, corveia, comércio externo e luxo (1Rs 9–10), enquanto encanta o povo com as grandes construções (1Rs 5,15–7,51). Constrói-se um templo para Javé, a Arca da Aliança será fixada no templo (2Sm 6; 1Rs 8) e a religião torna-se a-histórica, sedentária, estatizada, a serviço da ideologia monárquica. Todo um aparato litúrgico, envolvendo sacerdócio, altar e sacrifícios, corrobora para este fim. Israel agora é um Estado, mas desde Davi passa a ser um Estado imperialista (1Rs 5,1). Ora, para gerir tudo isso se pressupõe a sabedoria de Salomão (1Rs 5,9-14; 10,1-8).

A partir de Salomão, o reino é divido (1Rs 12). O reino do norte, Israel, será dominado pelos assírios com a queda de sua capital, Samaria, em 722 aC, e o reino do sul, Judá, terá seu fim com a invasão babilônica à sua capital, Jerusalém, em 587 aC. Uma avaliação da monarquia pode ser vista na fábula de Jotão (Jz 9,7-15), a propósito do rei Abimelec: os inúteis querem ser reis, mas não passam de espinheiros sobre o povo. A monarquia afundou-se na infidelidade ao Deus da aliança, expressa na idolatria e nas injustiças sociais.

Destaca-se, neste contexto, a figura dos profetas. Poucos comem à mesa dos reis. A maioria deles, fiéis à aliança e à fé dos pais, criticam sem descanso os desmandos dos reis e da sociedade, tentando corrigir a rota sociopolítica e conclamando à fidelidade à aliança. Tentavam, em vão, levar à interiorização dos valores da fé e recuperar sua força histórica. Apesar do esforço, não puderam evitar o exílio.

1.3 O Exílio (587–538 aC)

Nabucodonosor, rei da Babilônia, e seu exército sitiam Jerusalém, saqueiam o templo e o palácio do rei e levam cativos a família real, a elite da cidade e os profissionais de seu interesse (2Rs 24,10–25,24; Jr 52). Deixam para trás cerca de 50 a 100 mil pessoas, sobretudo, os pobres (2Rs 25,12; 24,14; Jr 39,10; 40,7b; 52,16). Alguns conseguiram fugir (2Rs 25,22-25; Jr 40,7-12; 42,11-15; 43,7; Is 11,11). A ruína que os babilônicos deixam atrás de si, bem como a sorte dos que ficaram, podem ser percebidas a partir do Livro das Lamentações. Israel está agora sem terra, sem templo, sem altar, sem sacrifícios e sem Jerusalém. Suas instituições fracassaram. Daniel, escrito tardio, mas contextualizado no exílio (Dn 1,1-2), descreve este quadro: “Não há mais, nestas circunstâncias, nem chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocaustos, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias diante de ti para encontrarmos misericórdia” (Dn 3,38-39a, adição grega). Onde foram parar as promessas divinas? Aquelas a Abraão (Gn 12,1-3.7), a Davi (2Sm 7,4-17)? Que sorte teve a estabilidade do templo (altar, sacerdócio, sacrifícios) assegurada a Salomão? Deus ainda se lembra de seu povo? Onde estava que não evitou a catástrofe? O que fazer quando as instituições fracassam? Abre-se aí uma grande crise de fé, uma grande “noite escura” para o povo. O exílio cria um grande problema teológico para Israel. Por conseguinte, depois do exílio, ele não será mais o mesmo. Israel precisará reencontrar sua identidade, refazer sua visão de Deus, refazer seu caminho. A catástrofe, porém, longe de destruir a fé, a purifica e se reverte em chance. O exílio passa a ser visto como juízo e não passividade de Deus, não como punição, mas ocasião de avaliação e recomeço. Era o desafio de ver, na desgraça, a graça.

1.4 O pós-exílio – época persa (538-332 aC): período de reconstrução

Após 50 anos, Ciro, rei da Pérsia, libera o retorno dos exilados. Nem todos os dispersos voltaram e, dos que voltaram, alguns não foram para Jerusalém, mas, certamente, todos mudaram o modo de pensar. Inicia-se a fase da reconstrução (538-332 aC). Ela será marcada, de um lado, por um Israel repatriado (Golá), que acaba de viver uma experiência de internacionalidade e animado por uma mentalidade aberta de ser servo, luz das nações (Is 42,6; 49,6), retomando a perspectiva universalista iniciada em Abraão. Por outro lado, o retorno para Israel não foi só físico-geográfico, voltar implicava a preocupação de reconstruir sua identidade e a pureza da fé.

Tudo mudou: política sem monarquia, religião sem templo e seu aparato, sociedade sem rei e sem instituições. Israel precisa se reinventar, reconstruir sua ideia de Deus, encontrar uma nova forma de se organizar, celebrar, conceber a vida, enfim, a experiência gera uma reflexão nova, descobre outros critérios para perceber a presença de Deus na trama da vida. Algumas mudanças de foco serão notáveis como: passa-se do rei/sacerdotes à família; do palácio à casa; do templo à criação e ao cotidiano; de Israel ao universo; do israelita ao ser humano; do profeta ao sábio; da teofania à experiência da vida. Era preciso encontrar nova forma de pensar a relação com o divino, com a vida e com o outro.

  Pré-exílio Pós-exílio
Instituição Palácio/templo Casa
Protagonista Rei/sacerdote Família
Motivadores Profetas Sábio
Manifestação de Deus Teofania/revelação Experiência da vida
Foco Governo: Israel Homem: universo

Pouco mais tarde (ca. 445 aC), não desvinculado da preocupação com a identidade, o governador Neemias reconstrói os muros de Jerusalém (Ne 3) e resgata a ideia do Levítico (Lv 20,24-26) de que povo eleito é povo separado (Ne 9,2; 10,29.31; 13,3.23-27.30). Na mesma linha, o governador e sacerdote Esdras, preocupado em oferecer uma base normativa para o povo, repropõe a observância da Lei (Esd 7,25-26; Ne 8), restabelece o templo com seu aparato (Esd 3; 6) e radicaliza o pensamento de Neemias: quem se casou com mulher estrangeira deve mandá-la embora com seus filhos (Esd 9,1-2; 10,2-3.11.18-19.44; 6,21). Na sua visão, era preciso purificar a etnia. Com estes três elementos, a lei, o templo e a raça, Esdras coloca as bases daquilo que, mais tarde, vai se chamar Judaísmo.

Portanto, a abertura inicial dará lugar a um fechamento, uma espécie de “nacionalização da fé”. É o muro físico se tornando um muro ideológico. A intenção de ambos era sadia, restaurar a identidade do povo, mas a leitura estreita do pensamento de ambos contribuirá, mais tarde, para a fragmentação do povo, sobretudo, a partir do período dos Macabeus (167-134 aC). O contraponto a esse pensamento será oferecido respectivamente nos livros de Jonas e Rute.

Ora, entre 500-322 aC, na Grécia, atuavam figuras como Heródoto, Fídias, Eurípedes, Sófocles, Sócrates, Platão e Aristóteles. Está em ebulição um fenômeno chamado filosofia.

1.5 A época grega (333-63 aC): o helenismo

Em 332 aC, emerge Alexandre, o Macedônio (1Mc 1,1), na história conhecido como Alexandre Magno, e apanha o mundo de surpresa. Ele sonha com um domínio mundial, quer ocupar a oikumene, isto é, o mundo habitado de então. “Empreendeu, então, numerosas guerras, apoderou-se de fortalezas e eliminou os reis da terra. Avançou até as extremidades do mundo e tomou os despojos de uma multidão de povos, e a terra silenciou diante dele (1Mc 1,2-3)”.

A mentalidade helênica começa a dominar o mundo. É a cultura urbana “globalizante”, a cultura da polis. Ela porta consigo elementos novos: filosofia, economia, cultura, humanismo, administração, esportes (2Mc 4,9.12.18), enfim, todo um sistema educacional voltado, sobretudo, para os jovens (ephēbos). Era, em termos bíblicos, aquilo que, na nossa linguagem moderna, seria a primeira “globalização”.

Jasão, um judeu pró-helenismo, adquire junto ao rei Antíoco IV Epífanes (175-164 aC), mediante suborno (2Mc 4,7-9), o cargo de sumo sacerdote. “Tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos” (2Mc 4,10). Na sequência, o texto classifica os novos costumes como contrários à Lei de Israel (v. 11b), estrangeiros (v. 13) e idólatras (vv. 19-20). Na verdade, encontram-se duas visões da vida e do mundo, duas mentalidades, dois paradigmas, que o autor de Macabeus chama de “estilos de vida”. Trata-se, de um lado, de um Israel rural agarrado à Lei, segundo a visão de Esdras e Neemias e, de outro, a visão externa pagã helenista, abraçada, sobretudo, pela elite urbana de Jerusalém e por muitos dentre o povo (1Mc 1,11-15.52). Este quadro culminará na rebelião macabeia mais tarde. O helenismo é visto por grande parte como ameaça à fé israelita (2Mc 4,13-17a).

1.6 A reação ao helenismo

Jerusalém ou Atenas? Israel se encontra diante de dois paradigmas. Três opções despontam no horizonte: refutar radicalmente o helenismo, deixar-se “engolir” por ele ou dialogar criticamente, uma vez que o helenismo oferecia também elementos positivos? Os sábios de Israel preferem dialogar com a mentalidade grega. É possível abrirem-se à influência grega sem, no entanto, trair a originalidade da fé. Afinal, a abertura para o mundo é compatível com a fé de Abraão. Para isso, era preciso codificar os valores de sua fé numa linguagem apta a dialogar com a cultura grega. Os sábios israelitas verbalizarão seu patrimônio teológico e cultural numa linguagem que os vizinhos pudessem entender. Ora, a este propósito emerge uma parte significativa da literatura sapiencial ou a redação final de algumas destas obras e, mais tarde, a própria tradução da Bíblia (LXX). Cada autor bíblico (como Ecl, Eclo e Sb) reagirá, de forma crítica, com maior ou menor aderência ao helenismo. É a fé dialogando com a razão, a sapiência (ḥoḵmāh) dialogando com a sofia!

2 A sabedoria em Israel

2.1 Continuidade ou inovação?

A sabedoria bíblica parte do ambiente e patrimônio sapiencial comum do, assim chamado, Crescente Fértil. Todavia, alcançou grandes proporções e não foi mera cópia, mas releitura criativa à luz da fé no Senhor. Os sábios bíblicos deram continuidade com originalidade. A superioridade da sabedoria israelita pode ser vista já no elogio ufanista ao seu patrono: “A sabedoria de Salomão foi maior que a de todos os orientais, maior que toda a sabedoria do Egito. Foi mais sábio que qualquer pessoa…” (1Rs 5,10-14; 10,4-8). E ao povo: “Só existe um povo sábio e inteligente: é essa grande nação!” (Dt 4,6b). Apresentar-se-ão a seguir alguns aspectos dessa sabedoria a título de exemplo.

Também para o israelita bíblico existe uma ordem cósmica, criada e mantida por Deus, e o ser humano é convidado a espelhar essa ordem da natureza no seu modo de viver. Tudo está interligado e, numa trama de relações, a harmonia da criação interpela e instiga o ser humano a se organizar e a viver harmonicamente consigo mesmo, com os demais e com o mundo ao seu redor. Portanto, a visão de um cosmo criado, e nele, a nossa existência, que recebem de Deus-criador consistência e assistência, não é secundário para o sábio de Israel.

Todavia, para o israelita bíblico, esta ordem cósmica não é uma divindade imutável e cíclica na qual o ser humano é apenas uma peça passiva. Ele também cria, discerne, escolhe, decide, corrige-se, ajusta-se a situações imprevistas, é livre e atua com habilidade, tem consciência, responsabilidade e prudência, é protagonista, faz história, contempla e busca sentido. Enfim, ele se torna artesão da própria vida, faz um caminho, tem as rédeas da vida na mão, dá razões à sua existência e procura ser feliz. O sábio bíblico não delega a responsabilidade de modelar a própria vida a terceiros, não se conforma em confiar em “horóscopo”. Por isso, Alonso Schökel prefere definir a sabedoria bíblica como oferta de sensatez, que entra na esfera valorativa (SCHÖKEL, 1984, p. 20). De certa forma, a sabedoria de Israel, mais que “bom senso”, é uma opção de vida, um modus vivendi. Para Scaiola, “a sapiência é a arte de dirigir a própria vida com êxito” (SCAIOLA, 1997, p. 36). Para Lorenzin, “a sapiência é a arte de saber pilotar a própria existência, observando os acontecimentos do mundo, perscrutando a própria experiência e aquela dos outros” (LORENZIN, 2013, p. 9). Portanto, a sabedoria bíblica não é apenas saber viver para sobreviver, defender a vida. Lutar pela sobrevivência o animal também o faz e não é sábio. A sapiência desafia a olhar mais longe, a viver de modo tão sensato e prudente que a pessoa se torne feliz. Nas palavras do livro de Provérbios: “Feliz o homem que encontrou a sabedoria” (Pr 3,13a; ainda Eclo 14,20).[2] É a religião prática que se traduz numa conduta ética diferenciada. Por isso, ser inteligente, saber muito ou tudo ainda não significa ser sábio.

A sensatez humana esbarra em Deus como sua fronteira (Ecl 1,8; Pr 21,30; Jó 11,6-7). Neste aspecto, o saber humano é limitado. Isso implica um respeito reverencial a Ele como fonte do saber (Br 3,12). É o que a literatura sapiencial chama de yir’aṯ YHWH (= temor do Senhor), princípio do saber (Jó 28,28; Pr 1,7; 9,10; 15,33; Sl 111,10; Eclo 1,14.16.18.20). Assim, o sábio israelita descobre que a sabedoria, que adquire como tarefa na experiência da vida, é, de fato, um dom de Deus (Ecl 2,26; Eclo 1,1.10a; 11,15; 24,3; Pr 2,6; Sl 51,8b; Gn 41,39; Ex 28,3; 31,1-5; 36,2; 1Rs 5,9.26; 10,24; 2Cr 1,12; Jr 10,12; 51,15) e vem, também, pela oração (Sb 8,21–9,18; Eclo 24,2; 1Rs 3,6-14; 2Cr 1,10-11). A sabedoria é um atributo divino. Ora, que Deus era sábio e dava a sabedoria ao rei, já era conhecido no Crescente Fértil. Todavia, ganha agora em Israel proporções e clareza até então não vistas.

Algumas obras sapienciais tentam vincular a sapiência escrita com a corte e, particularmente, com Salomão (Pr 1,1; 10,1; 25,1; Ecl 1,1; Sb 7,7-9; 9,7-8; Ct 1,1), o grande sábio (1Rs 5,9-14). De certa forma, seria algo um tanto anacrônico, uma vez que o período de Salomão não é compatível com a data desses escritos. Por outro lado, hoje se sabe que só a partir do séc. VIII-VII aC Israel alcança as condições econômicas necessárias para investir na escrita e, por conseguinte, na produção literária. Além disso, a literatura sapiencial seria redigida no pós-exílio quando a corte já era coisa do passado. Logo, a atribuição a Salomão se deve ao notório fenômeno da pseudonímia ou pseudoepigrafia.

Quanto às escolas, exceto a atuação de Qohélet, que ensinava o saber ao povo, examinava e corrigia provérbios (Ecl 12,9), e o convite de Sirácida (séc. II aC) “entrem na minha escola” (Eclo 51,23), usando a expressão bet midrash = casa da instrução, isto é, escola, não se sabe praticamente nada a respeito de escolas em Israel. Elas virão a partir desse período, portanto, algo bastante tardio. Assim, corte e escola não são relevantes para a sapiência israelita. O foco será, sobretudo, a vida cotidiana e, nela, a casa, ou seja, a família (Tb 4,3-21). Certamente, também por isso o Decálogo focaliza o pai e a mãe (Ex 20,12; Dt 5,16). Juntamente com os genitores e, particularmente, com o pai, aparece imediatamente o mestre, o sábio e o ancião. O mestre ganha tamanha estima que é chamado de pai e o discípulo de filho. Já entre os sumérios, o mestre era o “pai da escola” (ummia), diferenciando-se do “pai da casa”, e o discípulo ou aluno era o “filho da escola” (CIMOSA, 1997, p. 402). No livro dos Provérbios, por exemplo, em muitas passagens, é difícil saber se se fala do pai “biológico” ou do pai-mestre. Ora, aí na atuação do pai, mestre e ancião emerge outra fonte da sabedoria, a tradição (Eclo 24,30-34). Outra fonte de sapiência em Israel era o intercâmbio com os vizinhos, que não era reduzido ao comércio.[3] Tudo isso nos permite falar de uma sapiência a partir de baixo. Para um povo majoritariamente analfabeto, ela circulava de boca em boca. A literatura sapiencial é um ato segundo. A corte e a escola, certamente, tiveram um papel em sua coleta, redação, sistematização, divulgação e promoção.

No pós-exílio:

A sabedoria como dom de Deus. Esse pensamento já era conhecido no Oriente Antigo. Para os cananeus, por exemplo, a sabedoria era um atributo de El, deus supremo, que a concedia ao rei. Agora, porém, sobretudo no pós-exílio, essa dimensão teológica passa a ser central na teologia judaica. A fé israelita começa a ser traduzida ou verbalizada em linguagem sapiencial. O saber, a partir do temor, é sistematizado teologicamente.

A sabedoria não está vinculada à formação de gente da corte ou elites, mas a todo ser humano. Então emerge aos poucos o oficio de mestre e sua respectiva classe.

Ela é personificada. Fala e age como pessoa (Pr 1–9; 31,10-31; Jó 28; Eclo 24) e, mais precisamente, como mulher. É da família: mãe (Sb 7,12) e irmã (Pr 7,4). Dela alguém pode se enamorar (Sb 8,2) e com ela se casar (Eclo 7,19). Ela convida para um banquete em sua casa (Pr 9,1-6). Está presente em Deus e atua com ele desde a criação (Pr 3,19; 8,22-31; Sb 7,21-22). É distinta dele, embora proceda da sua boca (Eclo 24,3), mas ele sabe onde ela se esconde (Jó 28,13.20.21.23). Ela manifesta a glória e a luz divina (Sb 7,25-26). Entretanto, a insensatez ou tolice também se personifica e seduz (Pr 9,13-18).

Sábio e justo. À medida em que vai se configurando a figura do sábio como alguém sensato, prudente e responsável, passa-se a ser visto como alguém moralmente bom. Entra-se já na esfera moral. Sábio passa a ser sinônimo de justo. O ímpio, por sua vez, é o insensato. Àquele são reservadas a felicidade e a prosperidade e a este a ruína. Isso é claro no Sl 1, por exemplo, um salmo sapiencial. Quando, em determinadas circunstâncias ou contexto, não é possível praticar a justiça, sobretudo, com ações mais comunitárias, se pode ser justo.

Sapiência e lei. Para o deuteronomista, Israel será um povo sábio e inteligente aos olhos dos povos à medida em que observa a lei (Dt 4,5-8). O Sirácida identificará a sabedoria com a lei (Eclo 24,22-25; 19,20), que passa a ser vista como dom da sabedoria de Deus. Sábio torna-se aquele que perscruta a lei divina (Eclo 6,37; 15,1; 39,1). O salmista transforma isso num ideal de vida: é feliz quem faz da lei o centro da vida (Sl 1,1-2). Ambas são como os rios que fertilizam a terra e produzem colheitas (Eclo 24,25-27; Sl 1,3).

Em se tratando de sapiência, o foco não é Israel, mas o universo, não é o israelita, mas o ser humano, não é a história, mas o cotidiano, não é Deus, mas o semelhante, não é a revelação, mas a experiência, não é o mandamento, mas o conselho, não são as alturas, mas a vida.

Muitas vezes é necessário dizer o óbvio, ou seja, essa literatura sapiencial, que verbaliza a sabedoria que brota da experiência da vida, é palavra de Deus, canônica. Isso significa que Deus também fala através da sabedoria popular.

2.2 A teologia da retribuição ou da justa recompensa

A teologia da retribuição ou da recompensa. No discurso aos sábios, Eliú defende Deus, dizendo: “Ele retribui ao homem segundo suas obras, e dá a cada um conforme a sua conduta” (Jó 34,11). Eis aí o princípio da teologia da retribuição ou da justa recompensa divina. Deus, sendo justo, paga a cada um segundo o que merece, ou seja, segundo suas obras (Sl 62,13b). A base, portanto, é a justiça divina. Desse modo, o mal se paga com o mal, e o bem com o bem, e nesse mundo, uma vez que a vida futura só será clara no Livro da Sabedoria e Dn 12,2-3. Nessa perspectiva, a felicidade, a riqueza, o bem-estar são recompensas pela observância da lei divina, pela fidelidade a Deus. São sinais de bênção! A graça é o prêmio dos fiéis, dos bons. A enfermidade, o infortúnio, a opressão e a pobreza são castigos pela infidelidade e desobediência. A desgraça é o castigo dos ímpios, dos maus.

Na verdade, isso já era claro em Dt 30,15-20. Embora essa retribuição visasse o coletivo e não o indivíduo, de qualquer forma, Deus se apresenta como aquele que assegura a justa recompensa. Para que a lei e os preceitos divinos se a observância e a negligência teriam o mesmo resultado? Que valor teria a práxis da justiça (Sl 73,13-14)? Portanto, chega-se à seguinte equação: acolher e praticar a lei = vida próspera; rejeitá-la = ruína, desgraça. Consequentemente, essa equação se desdobra numa outra: rico = abençoado; pobre, sofredor = preguiçoso, pecador. Esquematizando de outro modo: rico = fiel à lei = Deus ajuda; pobre = infiel = Deus castiga. Assim, quem cai na desgraça é porque pecou e ela é o castigo merecido. Esse esquema dava segurança. Os sábios abraçaram ingenuamente esta sabedoria (Pr 10,3; 13,25; 14,11; 15,6). O Sl 1, tipicamente sapiencial, faz uma bela síntese desse esquema polarizado.

Nota-se aí uma propensão da sapiência em definir (ou possibilitar ler) o modo de atuar de Deus a partir da nossa conduta, como se a graça estivesse condicionada ao mérito humano. Ora, a teologia da retribuição ou da justa recompensa continua atuante disfarçada sob o título de Teologia da Prosperidade.

Com o passar do tempo, essa equação tornou-se engessada numa fórmula matemática, mecânica, fria. Transformará o pobre, o excluído e o vulnerável, em responsável por sua própria desgraça, sua própria pobreza e vulnerabilidade, enquanto a sociedade rica podia lavar as mãos, eximir-se de qualquer compromisso com os fracos. Já não se questionava o sistema econômico excludente e empobrecedor, nem a procedência da riqueza (se vem de exploração, corrupção e rapina). A teologia da retribuição será utilizada para legitimar a indiferença social e as injustiças, enquanto cala o grito do excluído. Resta-lhe acolher com paciência o “castigo” de Deus. O oprimido torna-se um pecador público e, consequentemente, abandonado por parentes e amigos, seu círculo imediato de convívio. Perverso, porém, é colocar tudo isso num esquema religioso, teológico, difícil de romper. É pobre ou enfermo porque pecou e recebe a merecida paga. Ora, essa leitura da teologia da retribuição, que foi se cristalizando ao longo do tempo, corresponde à realidade da vida? O que está por trás dessa leitura?

O profeta Jeremias chama a atenção contra essa leitura ingênua (ou perversa?): “Por que prosperam os ímpios e vivem em paz os traidores?” (Jr 12,1). O profeta deixa perceber que essa visão teológica não corresponde à realidade. Há pessoas justas e trabalhadoras que se dão mal na vida, não têm êxito, e há ímpios públicos que prosperam e seu êxito é tentador para o justo (Sl 73). O sistema econômico que vivemos jamais permitirá que uma doméstica e um operário honestos melhorem seu nível de vida. A perspectiva de Jeremias será desenvolvida com toda clareza em Jó. Veja, por exemplo, Jó 21,7-34. O adversário reconhece que Jó parte da experiência ao colocar na boca dele as seguintes palavras: “Eu sou justo e Deus me nega o direito. Apesar do meu direito, passo por mentiroso, uma flecha me feriu sem que eu tenha pecado” (Jó 34,5-6). Ora, Jó é ferido e passa por um sofrimento atroz (Jó 2,7.13), mas o texto insiste que ele era “um homem íntegro e reto, que temia a Deus e se afastava do mal” (Jó 1,1.8; 2,3). Portanto, Jó coloca em xeque a sapiência: ela não sabe explicar porque o justo e o inocente sofrem. Isso tira o alicerce da leitura feita em base à teologia da retribuição.

Também nessa linha, Qohélet, partindo de suas observações da realidade, afirma: “Já vi de tudo em minha vida sem sentido: gente honrada que perece em sua honradez e gente malvada que vive longamente em sua maldade” (Ecl 7,15). Ele questiona seriamente as riquezas (Ecl 2,1-11; 5,9–6,8), valor apreciado também pelo sábio como sinal de bênção. Elas não duram e nem bastam para dar segurança, sentido e plenitude à vida. Essa visão é retomada pelo Sl 49. Qohélet questiona a visão mecânica da providência divina bem como a mentalidade de que justo é sinônimo de feliz e de prosperidade sem percalços.

Enfim, haveria nesse esquema espaço para a ação livre, salvífica e gratuita de Deus? Teria lugar para o perdão e a misericórdia divina? A pessoa, sendo justa e reta, é automaticamente salva? Seria ela autora da própria salvação? Na perspectiva do NT, o patrão da parábola teria pagado igualmente a todos (Mt 20,1-16)? Jesus teria feito alguma cura, se as enfermidades e as deficiências fossem a justa paga de Deus? Fica claro que atrás da equação cristalizada da teologia da retribuição, de sua visão mecânica, se esconde, na verdade, uma falsa ideia de Deus e da relação com ele. Jó é categórico ao mostrar que a visão de Deus não pode ser terceirizada, nem reduzida à mera tradição: “Eu te conhecia só de ouvir [tradição], mas agora meus olhos te veem [experiência]” (Jó 42,5).

2.3 Crise da sapiência e recomeço

O confronto da teologia com a realidade da vida e uma nova experiência de Deus (espiritualidade) permitiram a Jó e a Qohélet colocarem em xeque a teologia em voga e abrirem os olhos dos sábios. Percebem que a sapiência tem limites, que o sábio não sabe tudo, que os enigmas da vida (como o sofrimento, a morte, o mal gratuito) não se resolvem com abstrações do nível da teologia da retribuição. A base da relação com Deus não pode ser o mérito, o desempenho pessoal, mas a gratuidade. O agir humano não condiciona a graça divina, mas decorre dela que sempre o precede. Nesse nível, Jó e Qohélet não levam a sapiência israelita à ruína, mas lhe possibilitam um recomeço. Ajudam-na a perceber o mistério insondável, sua fonte. O sábio percebe, então, que sapiência é também dom divino. Quando a razão cansa, o dom continua! Ela se abre para a fé e o temor divino e renasce vigorosa.

2.4 A sapiência e Jesus

A sabedoria personificada (Eclo 24) se autoelogia (v. 1) e diz: “Armei a minha tenda (kata-skēnēō) nas alturas… […] e Aquele que me criou armou a minha tenda (skēnē) e disse-me: ‘acampa (kata-skēnēō) em Jacó, em Israel recebe a tua herança” (Eclo 24,4a.8).

O evangelista recorre a essa linguagem para falar da encarnação do verbo: “O verbo se fez carne e armou sua tenda (skēnēō) entre nós” (Jo 1,14). É a sabedoria criada (Pr 8,22; Eclo 1,4.9; 24,8.9), encontrando no Verbo incriado o seu ápice. Para ele converge toda a tradição sapiencial, tudo que é bom e verdadeiro na sabedoria humana. Simultaneamente, a sabedoria, enquanto eterna, está presente junto de Deus e distinta dele, presente na criação. Com ela, Deus cria o mundo. Ela, como mestre-de-obras ou artífice da criação, personificada como pessoa, que desceu entre os homens e os convida ao banquete, servirá para verbalizar a fé no Cristo como Verbo pré-existente, primogênito, sabedoria personificada que desce do céu, se faz carne, arma sua tenda entre nós, fala em primeira pessoa, como mediador da criação, é Lógos junto de Deus e distinto dele (Jo 1,1-3), que revela o Pai (Jo 1,18), assumindo dimensão humano-divina. Portanto, a sapiência prestará um serviço decisivo à cristologia.

Jesus tem postura inequivocamente profética, mas ensina como um sábio. A sua pedagogia é sapiencial. Ele ensina, sobretudo, através de ditos e parábolas e seus interlocutores se maravilham e se interrogam: “de onde lhe vêm essa sapiência…?” (Mt 13,54). Algo mais que Salomão (Mt 12,42; Lc 11,31).

Para Paulo, Jesus é a “sabedoria de Deus” (1Cor 1,24.30). Nele “se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e conhecimento” (Cl 2,3). Todavia, não se limita às categorias gregas ou judaicas, antes apresenta a sabedoria da cruz, a aparente loucura que extrapola tudo que é sensato (1Cor 1,22-30). Assim, o apóstolo evidencia que o sofredor, longe de ser um castigado por Deus, é um lugar teológico.

3 A literatura sapiencial israelita

3.1 A literatura

Na opinião de alguns autores, a literatura sapiencial bíblica constitui-se numa espécie de “pentateuco”: Pr, Jó, Ecl, Eclo e Sb. Não são narrativas, como o Pentateuco e Históricos, nem leis, como o Pentateuco, não acusam nem denunciam, como os proféticos (ALONSO SCHÖKEL, 1984, p. 17). Também não são orações, como os salmos, embora encontremos alguns hinos (ex.: Pr 8; Eclo 24; 42-43), bem como salmos ou parte deles que são sapienciais. Enfim, eles apresentam conteúdo e forma próprios, que se diferenciam dos demais blocos do Antigo Testamento.

A Bíblia hebraica (TM) inclui esses livros no bloco dos, assim chamados, Escritos, excetuando Eclo e Sb por serem gregos. A tradução grega (LXX) os classifica como Livros Poéticos e inclui Ct e Sl. A tradição latina (Vulgata) chama-os de Livros Didáticos e faz o mesmo que a versão grega. A tradição católica chama-os de Livros Sapienciais, mantendo o número de livros das versões grega e latina, incluindo os, assim chamados, deuterocanônicos, Eclo e Sb, isto é, do 2º cânon, o grego. A tradição protestante, por sua vez, exclui Eclo e Sb, considerando-os apócrifos, seguindo a Bíblia hebraica.

Por um lado, os três livros sapienciais hebraicos (Jó, Pr, Ecl) fazem parte dos Escritos, mas nada, em nível formal, os une, exceto o fato de serem, na sua maior parte, poéticos. Aliás, a autocrítica sapiencial de Jó e Ecl, de certa forma, questiona a sapiência otimista de Pr (LORENZIN, 2013, p. 16). Por outro lado, o Cântico dos Cânticos, assim como Salmos, aparece junto ao “pentateuco sapiencial” em todas as tradições acima apresentadas (TM, LXX, Vg, Católicos).

Na verdade, a sapiência do Antigo Oriente Próximo e, particularmente, aquela israelita parte da experiência da vida, como já se insistiu. Ora, as duas experiências fundamentais da vida são o sofrimento e o amor. O sofrimento dá consistência e purifica o amor. Este, por sua vez, ilumina e dá sentido ao sofrimento. São como dois lados da mesma moeda. Em termos de literatura sapiencial bíblica, o sofrimento é apresentado de modo mais explícito no livro de Jó e o amor, no livro dos Cânticos. Jesus une as duas perspectivas. Uma síntese pode ser vista no verso joanino: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1b). Não por acaso, nossa língua apresenta um termo de síntese para ambas as realidades: paixão!

Em termos de gênero literário, os livros de Tb e Est se enquadram entre os relatos, mas impregnados do modo sapiencial de pensar. Particularmente Tb 4,3-21; 14,8-11. Muitos autores reconhecem também uma clara tônica sapiencial em Gn 2–3; 37–50; 2Sm 9–20; 1Rs 1–2 e o poema de Br 3,9–4,4.

Enfim, máximas sapienciais estão espalhadas por toda a Bíblia. Portanto, a ideia de um “pentateuco sapiencial” é só parcialmente correta, como conclui Lorenzin (2013, p. 16).

3.2 As formas ou gêneros literários sapienciais básicos

Mashal. É uma forma ou gênero literário exclusivamente sapiencial. Originariamente aplicado ao dito popular ou refrão. Trata-se, normalmente, de construções breves, de fácil memorização, que compactam ou “zipam” uma sabedoria, resultante de observações e experiências, de valor universal e que circula de boca em boca, isto é, se transmitem oralmente, daí o nome ditos. A tradução mais próxima para mashal seria provérbio, cujo plural corresponde ao nome da obra intitulada Livro dos Provérbios. Mais tarde, o dito passa a ser escrito. O mashal é a célula basilar da sapiência e está para a parábola assim como a semente para a planta. Procura-se chegar à compreensão de algo mediante comparação ou analogia. Enfim, o mashal faz pensar!

Sentenças e conselhos. No decorrer do tempo, um dito popular pode evoluir para a sentença ou o conselho ou mesmo ditos mais cultos. A sentença e o conselho se distinguem, sobretudo, pela forma verbal: a sentença recorre ao indicativo e o conselho, ao imperativo.

Existem outras formas sapienciais, mas não exclusivas da sapiência como, por exemplo: ditos numéricos, enigmas, adivinhação, diálogos e debates, discursos, listas (onomástico), narrações autobiográficas (confissões) ou didáticas, poemas (didáticos), fábulas, alegorias, orações (hinos, ações de graças e salmos), perguntas. Existem ainda os recursos estilísticos, também conhecidos como formas ornamentais ou artísticas, e também não exclusivos da literatura sapiencial como, por exemplo: o paralelismo, os recursos sonoros (paranomasia: assonância, aliteração, jogo de sons e palavras); as repetições (anáfora ou repetição inicial, repetição final, poemas acrósticos ou alfabéticos, enumerações, uso de sinônimos e as antíteses); as descrições ilustradas com exemplos, comparações, imagens, metáforas; hipérbole, paradoxo; aforismos (marcados pela brevidade e concisão); a pergunta retórica, as questões impossíveis e assim por diante (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1984, p. 70-71).

Conclusão

O profeta parte da revelação divina, exorta, emite oráculos e está preocupado com a comunidade da aliança, com o povo eleito. Ele se escuda na autoridade divina (expressa na Palavra), em um Deus que se revela do alto e na história.

O sábio, por sua vez, parte da experiência da vida, aconselha, emite sentenças. Sua autoridade vem da vivência cotidiana e dos anos. Observa a ordem da criação e a trama das relações humanas e descobre o mundo e o cotidiano como espaço da manifestação de Deus. Sua preocupação extrapola as fronteiras de Israel, ele quer formar o ser humano, confronta-o com seus dramas e ajuda-o a perscrutar os enigmas da vida.

A sabedoria bíblica apresenta-se como sensatez que ajuda a pessoa ser feliz. Prepara o ser humano para viver, conviver e pensar. Todavia, a sabedoria que o sábio exercita como tarefa descobre também nela o dom, que culminará em “Cristo, sabedoria de Deus” (I Cor 1,24.30).

Como cada sábio apresentou os resultados de suas observações em cada livro sapiencial bíblico que compõe esta parte das Escrituras, para cada um desses livros será elaborado um verbete nesta enciclopédia.

Fr. Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Texto original em português. Enviado: 12/09/2022. Aprovado: 15/11/2022. Postado: 30/12/2022.

 Referências

 ALONSO SCHÖKEL, L. Uma oferta de sensatez. Ensayo sobre la literatura sapiencial. In: ALONSO SCHÖKEL, L.; VILCHEZ LÍNDEZ, J. Proverbios. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 17-37.

CIMOSA, M. Educazione e insegnamento nei libri Sapienziali. In: BONORA, A.; PRIOTTI, M. et al. Libri Sapienziali e altri scritti. Turim: Elle Di Ci, 1997 (Logos CSB 4), p. 399-411.

LORENZIN, T. Esperti in umanità. Introduzione ai libri sapienziali e poetici (Graphé 4). Turim: Elledici, 2013.

NICACCI, A. A casa da sabedoria. Vozes e rostos da sabedoria bíblica. São Paulo: Paulinas,1997.

SCAIOLA, D. La Sapienza in Israele e nel Vicino Oriente Antico. In: BONORA, A.; PRIOTTI, M. et al. Libri Sapienziali e altri scritti. Turim: Elle Di Ci, 1997 (Logos CSB 4), 29-42.

VILCHEZ LÍNDEZ, J. Historia de la investigacion sobre la literatura sapiencial. In: ALONSO SCHÖKEL, L.; VILCHEZ LÍNDEZ, J. Proverbios. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 39-82.

VILCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e sábios em Israel (BL – 25). São Paulo: Loyola, 1999.

[1] Como pode ser visto no verbete: A sapiência no Antigo Oriente Próximo e cuja leitura recomenda-se.

[2] A bem-aventurança é uma forma literária comum na sapiência. Ela condensa um ideal de vida caracterizado pelo termo feliz. Para outros exemplos: Jó 5,17; Pr 8,32b.34; 28,14; Eclo 14,1.2; 28,8.9; 26,1.26b; 31,8; 48,11; 50,28; Sb 3,13.14. Nos Salmos, aparece cerca de 26 vezes.

[3] Certamente é isso que tenta mostrar o livro de Jó, ao apresentá-lo como homem da terra de Hus (Jó 1,1); as palavras de Agur e Lamuel, rei de Massa (Pr 30,1; 31,1), sábios da Arábia; a coleção dos sábios (Pr 22,17–24,22), notável pelo seu paralelo com o egípcio Ensinamento de Amen-em-ope. Segundo Niccacci, “o movimento da sabedoria é o que Israel produziu de mais aberto para o exterior” (NICCACCI,1997, p. 49).

A sapiência no Antigo Oriente Próximo

Sumário

Introdução

1 A sabedoria no Oriente Antigo

1.1 O que é a sapiência?       

1.1.1 Sapiência: saber viver

1.1.2 Sapiência: saber fazer

1.1.3 Sapiência: saber pensar

1.2 Origem da sabedoria

1.2.1 No tempo

1.2.2 No espaço

1.2.3 No modo e na meta

1.3 Características da sapiência antiga

2 A literatura sapiencial do Antigo Oriente Próximo ou Crescente Fértil

2.1 No Egito

2.2 Na Mesopotâmia

Conclusão

Referências

Introdução

A Bíblia grega dos Setenta (LXX) ou Septuaginta abre sua Parte II com os, assim chamados, livros poéticos (RAHLFS, 1979). São eles: Sl, Pr, Ecl, Ct, Jó, Sb e Eclo. A Bíblia Hebraica insere-os num conjunto mais amplo, chamado Ketûbîm = Escritos. A versão latina, a Vulgata (Vg), seguindo a Septuaginta, classifica-os como livros didáticos. Nessa trilha, o cânon católico denomina esse grupo de livros (poéticos e) sapienciais, do latim, sapientia = sabedoria. Trata-se de uma literatura caracterizada por verbalizar um saber que brota da experiência da vida e visa facilitar a vivência humana e suas relações. A literatura sapiencial bíblica emerge da experiência comum dos povos do Antigo Oriente Próximo. Ela nasce no mesmo solo de uma literatura similar já presente. Os livros sapienciais bíblicos são, portanto, ramos de uma cepa comum já existente numa dinâmica de continuidade e inovação. Para entendê-los melhor é imprescindível uma introdução naquela sapiência comum pré-israelita ou contemporânea de Israel.

Ora, a esse serviço dispõe-se este verbete. Ele pretende definir o que é a sapiência no Antigo Oriente, apresentar sua origem (no tempo e no espaço) e sua finalidade, suas características, bem como a literatura que a codifica.

1 A sabedoria no Oriente Antigo

1.1 O que é a sapiência?       

Em que consiste a sabedoria? O que é a sapiência? Ora, existe um saber empírico, científico, mensurável que vem do laboratório, dos experimentos. O cientista descobre que se juntar duas moléculas de hidrogênio com uma de oxigênio resulta água. É um saber não popular. Existe outro tipo de saber teórico-especulativo que vem da filosofia. Certamente, Aristóteles diria que se trata do conhecimento dos princípios ou das causas primeiras. É um saber pouco popular. Existe ainda um saber que brota da experiência da vida, o saber prático. Talvez, o mesmo Aristóteles o chamaria de phrónesis.[1] Esse saber, que emerge da experiência da vida, a Bíblia chama de ḥoḵmāh = sabedoria, em latim, sapientia, de sapere: ter gosto, degustar, perceber, compreender. Trata-se de um saber que consiste num degustar as coisas. Tal saber é, sobretudo, popular, acessível a todos. Na linguagem popular: “A vida também ensina” ou “o mundo é uma escola”. O sábio sabe viver, sabe fazer e sabe pensar.

1.1.1 Sapiência: saber viver

O homem antigo começa a se dar conta que a natureza tem suas leis, percebe que existe uma ordem cósmica universal. Um camponês precisa conhecer as estações de chuva e seca, frio e calor, e o ciclo da lua para plantar, cruzar os animais ou pescar, descobrir as ervas medicinais, o fluxo do tempo, o calendário, entre outras coisas (Sb 7,17-20). As leis fixas, os ciclos, dão segurança. Descobrir essas leis escondidas na natureza que favorecem a vida e ajustar-se a elas é tarefa do sábio (CRB, 1993, p. 19). Portanto, quanto mais se domina a ordem incrustrada na natureza se vive melhor, se adquire qualidade de vida. Por outro lado, a observação das experiências repetidas gera um saber. Desta forma, este tipo de saber não é externo, emerge inicialmente de dentro. O êxito da vida depende de sua maior ou menor harmonia com a ordem natural.

Entretanto, povos do Oriente Antigo, como os egípcios e os mesopotâmicos, entendiam que essa ordem do cosmo, as leis da natureza, vem da divindade, está vinculada a ela. A criação é ordenada conforme o querer dos deuses. São eles que estabelecem e mantêm a ordem do mundo. Essa ordem, na qual se espelha a sociedade, os egípcios vão chamar de Ma’at, depois personificada numa divindade, e os sumérios de Me. Assim, a divindade-criadora atrai a atenção dos sábios. Israel assimilou esse pensamento, fazendo obviamente sua releitura.

Aos poucos, portanto, o sábio passa a entender que, para viver bem, precisa adequar sua conduta às leis da natureza, à ordem cósmica. Logo, à ordem cósmica deve corresponder a ordem ética. A pessoa deve ordenar a vida moralmente segundo a ordem querida por Deus, manifestada na criação. O sábio busca espelhar na sua vida a harmonia da criação. Nas palavras de Scaiola:

A sua ação criadora dá consistência e ordem a este mundo e à vida humana. Tal ordem do mundo preside também a vida do homem, o qual deve ordenar moralmente a sua existência segundo a ordem querida por Deus. O sábio é quem chega a conseguir em si mesmo a harmonia existente na criação. (1997, p. 41 – tradução nossa)  

1.1.2 Sapiência: saber fazer

Num primeiro momento, a sabedoria é o dom ou talento que alguém tem para fazer algo nas mais variadas áreas da vida humana. Pense em alguém que toca com categoria um instrumento “só de ouvido”, sem nunca ter estudado música. Trata-se, portanto, de uma aptidão, destreza, habilidade (técnica), maestria em qualquer esfera do agir humano, particularmente no manuseio de objetos, metais, cerâmica, madeira e na arte (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 38-39). É o saber fazer, é o artesão. O texto seguinte exemplifica bem isso:

Moisés disse aos israelitas: ‘Vede, o Senhor chamou a Beseleel por seu nome… e o encheu com o espírito de Deus, de sabedoria (ḥoḵmāh), entendimento e conhecimento para toda espécie de trabalhos; para elaborar desenhos, para trabalhar o ouro, a prata e o bronze, para lapidar pedras de engaste, para trabalhar a madeira e para realizar toda espécie de trabalho artístico. Também lhe dispôs o coração, a ele e a Ooliab,… para ensinar os outros. Encheu-lhes o coração de sabedoria (ḥoḵmāh) para executar toda espécie de trabalho, para entalhar, para desenhar, para recamar a púrpura violeta e escarlate, o carmesim e o linho fino, e para tecer; hábeis em toda espécie de trabalhos e desenhistas de projetos. Beseleel, Ooliab e todos os homens de coração sábio (ḥāḵām), nos quais o Senhor havia depositado sabedoria (ḥoḵmāh) e entendimento para exercer com perícia toda espécie de trabalhos para o culto do santuário… (Ex 35,30–36,1)

Essa habilidade, o saber fazer, pode se manifestar também na política[2], no comércio (1Rs 9,26–10,43), na agricultura ou na organização da casa (Pr 31,10-31). Esse saber fazer pode ser inato, mas também se adquire e se transmite. Eis a importância da relação mestre-discípulo, pai-filho.

1.1.3 Sapiência: saber pensar

Num segundo nível, a sabedoria resulta da observação dos sábios que colhem o saber incrustrado discretamente na natureza (Ecl 1,9) e nas realidades da vida. O sábio é um observador atento. Esse é o caso de Qohélet (Ecl 3,10.16; 4,1.4; 6,1; 8,16). Eles ruminam suas observações e elaboram ou verbalizam, “zipam” o saber em cápsulas como ditos, provérbios, máximas, sentenças, conselhos e aforismas que servem para iluminar a própria vida.[3] É um saber cuja autoridade está no ensinamento verdadeiro que porta consigo e, através dele, se impõe. Trata-se de uma sabedoria que goza da força da evidência e como tal só resta ser acolhida.

Situações novas, porém, exigem do sábio reflexão sobre o saber adquirido e sua releitura, de tal modo que o ajude a responder às novas circunstâncias. O sábio questiona(-se) e chega a certas conclusões. Chega-se assim às atividades espirituais (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 41). O sábio descobre que não só usa as mãos (artífice), mas pensa, tem emoções e transcende, refletindo sobre os mistérios da vida e buscando respostas. Por exemplo, por que sofrem o justo e o inocente? Por que os ímpios prosperam? Por que a morte? O foco do sábio é o ser humano inserido em seu meio (na criação e no dia a dia) com seus dramas existenciais e suas alegrias, nas suas relações interpessoais e com a divindade.

1.2 Origem da sabedoria

1.2.1 No tempo

Já o homo sapiens, encurralado pelos desafios da sobrevivência, precisou usar a cabeça. Então nasce a ḥoḵmāh, a sabedoria. Ela aparece a partir das necessidades reais de defesa da vida, para enfrentar os dramas da existência como doença, morte, sofrimento, injustiça, inimigo, guerra e espada. Seu foco é, portanto, a vida humana lá onde ela se manifesta. Portanto, a sapiência aborda questões cotidianas como amor, matrimônio, família, amizade, educação, saúde, trabalho, organização, governo, justiça, e se ocupa de necessidades imediatas como comer, beber, falar, amar, vestir e trabalhar (CRB, 1993, p. 18-19).

1.2.2 No espaço

Todos os povos e culturas expressam de algum modo a sua experiência de vida. Assim, a sapiência está incrustrada em todos os lugares onde a presença humana se estabelece. Em se tratando da sapiência bíblica, o olhar se volta para o mundo circunvizinho de Israel. Os sábios israelitas não inventaram a roda, partiram das raízes comuns dos povos do Antigo Oriente Próximo, e, mais exatamente, do assim chamado Crescente Fértil ou Meia Lua. Segundo Vílchez Líndez:

O Crescente Fértil ou Meia Lua compreende a imensa região em forma de arco (daí seu nome) que se estende da desembocadura dos rios Eufrates e Tigre, no golfo Pérsico, ao vale do Nilo, circundando o deserto da Arábia pelo norte e pelo oeste. Nessa região nasceram, desenvolveram-se e morreram as grandes civilizações antigas da Mesopotâmia e do Egito, bem como as dos povos das regiões intermediárias da Anatólia, Síria e Palestina. É preciso levar em consideração também o deserto, cuja importância na formação do povo de Israel foi notável. Segundo a tradição bíblica, o deserto foi o berço da sabedoria e o ponto de referência dos sábios de Israel. (1999, p. 17-18)

A Mesopotâmia compreende três grandes civilizações interligadas entre si: Sumer (sumérios), Babilônia e Assíria. Da Síria, merece destaque sua capital Ebla, grande centro cultural (cultura eblaíta) destruída em 1600 aC, Ugarit e mesmo Alepo. Em todos esses povos encontram-se literaturas sapienciais. Fica claro, portanto, que a sabedoria em si, à qual pertence aquela bíblica, é mais antiga que Israel.

1.2.3 No modo e na meta

No Egito a sapiência aparece vinculada às escolas voltadas para a aristocracia do ambiente, sobretudo, de corte. Visava a educação dos príncipes, dos vizires, dos filhos da elite, dos futuros diplomatas e escribas. Era básico saber escrever, ler, adquirir certo domínio da oratória e ter conduta digna da corte. É comum encontrar na literatura egípcia de então o rei ensinando ao príncipe, ao vizir e ao escriba, transmitindo seus respectivos ofícios a seus filhos ou sucessores. É uma sapiência marcada pela forma da instrução ou ensinamento, não raro de cunho moral. Ensina-se também a magia, predição do futuro e a interpretar sonhos (SCAIOLA, 1997, p. 30). Vale destacar a visão positiva do pós-morte, isto é, a vida continua. A isso se deve, por exemplo, a arquitetura egípcia. Obviamente, do ambiente de corte, essa sapiência espalha-se também, com menor intensidade, na vida comum.

Na Mesopotâmia, já a partir dos sumérios, sábio, belo e forte é o rei e a sabedoria está vinculada às habilidades em volta dele, como é o caso daquela do escriba. O rei devia administrar a justiça e a sabedoria, dada pelos deuses, agradar o povo com boas obras, particularmente construir templos. Mas o rei era sábio enquanto dava mostras de respeito reverencial aos deuses e fazia sua vontade. Nessa postura estava o princípio da sabedoria. A terminologia sapiencial era aplicada não só ao rei e aos escribas, mas também ao artesão, arquiteto, mestre, adivinho, médico, músico e conselheiro. Já dispunham de instituições educativas, a e-dubba = “casa das tabuinhas”, e de um curriculum de estudos que consistia de alfabetização, aritmética, música, preparação e elaboração de documentos, composição de arquivos e de crônicas, redação, cópia e estudos de obras literárias (mitos e narrativas épicas, hinos, orações, cantos e lamentos). Através desse aparato, propunham ideais morais e éticos, embora com uma visão um tanto negativa da existência. Acreditavam num panteão antropomórfico invisível e tinham forte visão da humanidade como criada. O sofrimento e a morte atraíam acentuadamente a atenção destes sábios como mostra a sua literatura. Com esses elementos, os sábios definiram o modo de pensar sumério. A Babilônia tem uma sapiência mais voltada para a adivinhação e ritos litúrgicos. A Assíria apresenta uma literatura didática vinculada à corte e aos escribas e ocupa-se também do culto e da magia (SCAIOLA, 1997, p. 32-34).

Em Canaã, mais precisamente, em Ugarit, a sabedoria não se afasta sensivelmente daquela mesopotâmica. Também já existiam escolas e se usavam as tabuinhas. De Biblos, na Siro-fenícia, o alfabeto se espalhou pelo mundo greco-romano (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1984, p. 47). Sua sapiência era prática, caracterizada pelos conselhos. Por outro lado, a sabedoria era uma arte difícil de conseguir. Então se passa a ver nela sinal de atuação da divindade. É a divindade que a concede ao rei. Para os cananeus a sabedoria é, portanto, um atributo do Deus supremo El, o pai dos deuses (CAZELLES, 1986, p. 125-6). Ora, os cananeus emprestam sua língua e cultura a Israel.

1.3 Características da sapiência antiga

A sapiência do Antigo Oriente Próximo é mais antropocêntrica. É um saber voltado para os dramas humanos, que se interessa pela realidade existencial, buscando responder a seus desafios e iluminar o destino humano. Logo, não foge, mas encara o sofrimento! Não se reduz à mente, ao intelecto, mas engloba o todo (holística). Por isso, desde a corporeidade até os espaços que ocupamos são fontes para se fazer a experiência desse saber.

Não é monopólio de ninguém. Está presente em todos os povos e culturas. É universal, aberta no tempo e no espaço. Um dito como “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” tinha, pois, sua validade na idade da pedra e continua tendo hoje (tempo). É uma verdade para um brasileiro e para um japonês (espaço).

É “ecumênica”. É um saber que vale para qualquer credo e para os sem credo. Vale também para qualquer raça e cor.

A sapiência é, de certa forma, anônima. Normalmente, ninguém sabe onde, quando e como surgiu e muito menos quem é o autor de um dito ou de uma máxima. Quando muito se diz: “provérbio chinês”, “sabedoria hindu”, por exemplo. Mas é a expressão de uma cultura, de um grupo ou categoria de pessoas. Por ela o coletivo fala, tem voz.

A ética da sapiência não é imperativa, não impõe preceitos, mas dá conselhos, busca oferecer valores com a força da experiência. Neste sentido, a sapiência não é moralista nem tem penalidade (legal).

A sapiência é dom e tarefa. “Não se nasce sábio”, já dizia a máxima do egípcio Ptah-hotep (2500-2420 aC) (ANET, 412). Esse pensamento aparece também em Sir 6,18.22.32; 50,28. Adquire-se sabedoria no confronto da capacidade cognitiva com a experiência, bem como através da educação, da formação permanente. É um saber transferível. Eis aí o papel da tradição. Por outro lado, o verdadeiro sábio não cria dependência, antes ajuda a descobrir (CRB, 1993, p. 22-23). O saber é contínua descoberta, aprendizagem permanente. Seu limite é Deus. Nesta perspectiva, a sabedoria é tarefa. A capacidade de aprender, porém, vem de Deus, é dom.

 O elefante, por exemplo, apresenta várias partes bem diferentes entre si, embora seja o mesmo elefante. Um cego que apalpa, por exemplo, a tromba de um elefante e um outro cego que apalpa a barriga do mesmo elefante, fazem ambos a mesma experiência, porém, não descreverão de igual modo o elefante apalpado. De forma análoga ao elefante é a realidade humana com seus múltiplos aspectos. As máximas ou ditos sapienciais, que procuram abarcar essa realidade, tanto podem se complementar como, até mesmo, se contradizer. Neste sentido, a literatura sapiencial porta consigo certa ambiguidade.

O seu ambiente é aquele das relações do dia a dia, do convívio, e, portanto, a família (a casa), a plantação e os animais (o campo), a natureza (a criação), a porta ou praça (da cidade), a escola, a corte, o templo, o comércio (relações com outros povos), o diálogo ou debate (livro de Jó, por exemplo), a tradição (transmissão oral ou escrita) e a política (arte de governar). Trata-se do ambiente que os modernos chamariam de “secular” ou “profano”. Não é o culto, embora a sabedoria também “abre a boca na assembleia do Altíssimo” (Eclo 24,2). Na verdade, a sabedoria alarga o espaço da manifestação da divindade. O sábio israelita, em particular, entende que Deus não se manifesta apenas nas teofanias, nos gestos salvíficos, nos oráculos, no templo e no culto, mas nessa esfera “secular” e na criação.[4] Se a ordem da criação está intimamente vinculada à vontade do Criador, como chamá-la de secular? Além disso, o sábio percebe ou descobre o extraordinário de Deus no ordinário da vida. Eis a espiritualidade sapiencial e o contributo teológico da sapiência (bíblica). Daí porque a dicotomia sagrado-profano seja superada na sapiência. Distingue-se, mas não se separa. Nessa perspectiva, o criado e a sapiência são religiosos. De igual modo, a realidade cotidiana é lugar para a experiência de Deus.[5] Enfim, “a teologia sapiencial é a primeira em apresentar a fundo a possibilidade de conhecer Deus na criação” (VON RAD, 2000, p. 444). Assim, uma espiritualidade fuga mundi, se não souber com clareza de “que mundo” está fugindo, pode se reverter, na verdade, numa espiritualidade fuga Dei.

No primeiro milênio aC, sobretudo na Mesopotâmia, começa-se a perceber uma relação entre causa e efeito, entre o agir humano e suas consequências, vinculados à divindade. Em Israel, será a base da Teologia da Retribuição.

Enfim, em se tratando de método, nas palavras de Lorenzin, “se pode dizer que o método sapiencial é um método indutivo, que parte da reflexão sobre a vida e sobre a realidade” (2013, p. 29).

2 A literatura sapiencial do Antigo Oriente Próximo ou Crescente Fértil

2.1 No Egito

A literatura sapiencial egípcia é caracterizada como instruções ou ensinamentos destinados aos príncipes, filhos das elites, vizires e futuros escribas. Trata-se de uma formação voltada para o ambiente de corte. A relação entre o mestre e o aprendiz era aquela de pai-filho. Entre as obras destacam-se:

a) Ensinamento a Kaghemni (datável no Antigo Império: 2815-2400 aC). Trata-se do vizir Kaires ensinando a seu filho o seu ofício. O filho deve ser moderado e ter controle no que fala (LORENZIN, 2013, p. 10).

b) Ensinamento do príncipe Herdedef (ca. 2640 aC). Seria o mais antigo exemplo do gênero literário com fins didáticos. Inicia-se com alguns pensamentos sobre a morte (LORENZIN, 2013, p. 10). Por exemplo: “Adorna tua casa na necrópole e enriquece o teu lugar no Oeste… Uma baixa recepção é para quem está morto, (mas) uma alta recepção para quem está vivo e tua casa da morte está (destinada) à vida” (ANET, 419).

c) Ensinamento de Ptah-hotep (ca. 2450 aC). Ptah-hotep era vizir do rei Isesi, que viveu ca. 2500-2420 aC. Transparece nessa obra todos os âmbitos da vida e da atividade de um funcionário da corte. Ele deve ser exato, submisso, modesto, ter astúcia na corte, autoridade em casa e prudência à mesa, defender a justiça no tribunal e exercer a bondade para com os pobres (LORENZIN, 2013, p. 10). A obra pode ser considerada o manual mais antigo dedicado à formação integral de um filho da elite. Suas sentenças se aproximam do Livro dos Provérbios. Entre elas:

Um bom discurso é mais oculto que a esmeralda, mas ele pode ser encontrado com as serventes nas pedras de amolar. (ANET, 412)

Não responda em estado de turbulência. (ANET, 414)

d) Instrução a Meri-ka-re (ca. 2100 aC). São instruções de um sábio, o rei Set, ao seu filho e sucessor, o faraó Meri-ka-re, último rei da 10ª dinastia. Trata-se de conselhos serenos, espiritualmente elevados e nobres, mas desconhece a realidade sociopolítica da época. Desta sabedoria:

Sê um artífice na fala, (assim que) possas ser forte, (pois) a língua é uma espada para [o homem], e um discurso é mais valioso que qualquer batalha. Ninguém pode driblar o habilidoso de coração… Aqueles que conhecem sua sabedoria não o atacam e nenhum infortúnio ocorre onde ele está […]

Faça justiça enquanto perdurares sobre a terra. Acalme o que chora, não oprimas a viúva, não expulses um homem da terra de seu pai, e não prejudiques os funcionários em seus cargos. Esteja atento para não punir injustamente […]

Não faças diferença entre o filho de um nobre e um homem comum, (mas) toma para ti um homem por causa do trabalho de suas mãos. (ANET, 415)

e) A instrução a Khety, filho de Duauf. Datável entre 2000-1800 aC. O pai dirige-se ao filho, enquanto o leva para a escola para tornar-se escriba. Sua instrução visa motivar o filho ao oficio de escriba. Faz-se, portanto, grande elogio a esse ofício, enquanto satiriza os demais. Algo semelhante sobre os ofícios aparece em Eclo 38,24-34 e sobre o sábio escriba em Eclo 39,1-11 (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 20; LORENZIN, 2013, p. 11).

f) A instrução [ou Livro da sabedoria] de Ani (ca. 1450 aC). Ani é um escriba que instrui o filho para ser escriba e, enfim, para a vida. Insiste-se na quietude, piedade pessoal e atividade ritual. O filho, Konzu-hotep, tem a mente mais aberta que o pai em relação às novas correntes de pensamento. Entre as instruções: “As andorinhas voam, mas chega uma hora em que pousam” e “O êxito não pertence aos homens; um é seu plano, outro o do Senhor da vida” (apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 20-21). Esse último dito assemelha-se a Pr 16,9.

g) A instrução do rei Amen-em-het (ca. 1960 aC). O texto aparenta transmitir o conselho que Amen-em-het I, 1º faraó da 12ª dinastia, deu a seu filho. Trata-se da reação de um velho e experiente governante e, como tal, transparece algo do pessimismo sombrio e do idealismo social da época. A específica historicidade do texto foi contestada em base do fato que quem está oferecendo o conselho é um rei já morto. Este argumento pode ser válido, mas o texto é histórico em sua aplicabilidade para nossos tempos. Amen-em-het I morreu por volta de 1960 aC. Todavia, todo o documento existente desse texto vem da 18ª à 20ª dinastias (1500-1100 aC) quando a instrução era já muito popular para os alunos (ANET, 418-419).

h) Amen-em-opet (entre 1000 a 600 aC). Obra de alto nível religioso e humano, encontrada e publicada em 1923. Ela apresenta o aspecto mais religioso da sapiência egípcia. São conselhos de um escriba ao filho caçula, Hor-em-maa-kheru, sacerdote em um templo do deus Min, para fazer dele um homem piedoso e fiel administrador, enfim, para que tenha êxito. Para tanto, precisa ter equilíbrio e boa conduta. O modelo de homem que transparece é o tipo “silencioso” (gheru), isto é, paciente, humilde e fiel a deus, oposto ao “fogoso” (shemu), que seria o arrogante, o ambicioso, o ímpio. Algo semelhante ao comportamento do justo e do ímpio da literatura sapiencial bíblica (NICCACCI, 1997, p. 49-50). Pr 22,17–24,22 é considerado, na opinião comum dos estudiosos, um paralelo inspirado nesse ensinamento de Amen-em-opet. De modo particular, a frase: “Considera estes trinta capítulos, que instruem e educam” (Amen-em-opet XXVII), encontra sua equivalência em Provérbios: “Escrevi para ti trinta máximas de experiência” (Pr 22,20). Essa frase bíblica pode ser explicada melhor à luz daquela. Ainda da obra de Amen-em-opet:

Guarda-te de roubar de um infeliz e de atormentar quem está debilitado; Não ambiciones um palmo de terra, nem ultrapasses a divisa de uma viúva. (ANET, 422)

 Deus gosta mais de quem honra o pobre do que de quem adula o rico. (ANET, 424)

i) Narrativa (ou Protestos) do camponês eloquente (ca. 2000 aC). Essa obra, assim como as duas que seguem, reflete um período cujo modo de pensar é marcado pelo pessimismo e pelo cinismo (SCAIOLA, 1997, p. 31). Segundo Vílchez Líndez, “trata-se de um magnifico exemplo de oratória egípcia. O camponês, despojado de seus bens por um ladrão, recorre à justiça do país, expõe o caso, que defende com nove discursos, e no final a justiça é feita” (1999, p. 23).

j) Disputa entre um homem e sua alma (ou Diálogo de um desesperado com a sua alma). Datável entre 2200-2040 aC. Segundo Vílchez Líndez, trata-se de um homem aborrecido com a vida, que deseja morrer. Pensa que o suicídio seja a solução para seus problemas. Mas sua alma não quer segui-lo, pois não sabe o que vem depois e teme. Tem início um diálogo entre ele e sua alma. Ela o convence a esquecer, pois, no esquecimento, estaria o remédio. Ele se decide a buscar os prazeres da vida e desiste de suicidar-se (1999, p. 22). Segundo Lorenzin, a obra “contesta o otimismo do Ensinamento de Herdedef, sustentando que a sepultura é uma amargura e um produzir pranto que torna miserável o homem” (LORENZIN, 2013, p. 11).

k) Canto do harpista. Convida a desfrutar o agora, uma vez que, no depois, não há nada e de lá não se retorna. Obviamente que o tom é de ceticismo e pessimismo frente à efemeridade da existência e da incerteza futura. A temática já aparece nas tumbas do terceiro milênio (LORENZIN, 2013, p. 11; VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 23).

l) As instruções de Ank-sesonqy (séc. V-IV aC). São ensinamentos de Ank-sesonqy ao filho. Reflete um ambiente camponês, sabedoria prática com uma dose de cinismo. Seu autor aprecia a repetição e frases breves. Por exemplo: “Quem não recolhe lã no verão não terá calor no inverno” (apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 22). Talvez, Ank-sesonqy seja o mesmo Sesac que aparece em 1Rs 14,25-26; 2Cr 12,2-9.

m) Onomástico (também chamado Ensinamento de Amen-em-opet). A obra, de um autor também chamado Amen-em-opet, mostra o interesse egípcio pela natureza. Segundo Lorenzin:

trata-se de outra forma sapiencial egípcia na qual são enumerados todos os fenômenos naturais ou um grupo mais especializado destes, sob títulos genéricos; 610 entidades organizadas hierarquicamente: objetos celestes, cidades, povos, ofícios, construções, tipos de regiões, produtos agrícolas. Trata-se de uma das primeiras enciclopédias do saber e pode constituir a chave para entender as máximas concernentes às árvores, animais, pássaros e peixes atribuídas a Salomão (1Rs 5,13). (LORENZIN, 2013, p. 11-12)

Podem ser vistos como exemplos bíblicos destas listas enciclopédicas ou onomásticos: o catálogo de pedras preciosas (Jó 28,12.15-19); o catálogo de profissões manuais (Eclo 38,24–39,11); os astros e fenômenos naturais (Eclo 43); os ciclos dos tempos e as plantas (Sb 7,17-20).

2.2 Na Mesopotâmia

Na Mesopotâmia, três civilizações deixaram seu legado sapiencial. Primeiro foi Sumer (os sumérios). A ela devemos:

a) O homem e o seu deus. Também chamada de Lamentação de um homem a seu Deus ou ainda Jó sumério e datável entre 2000-1700 aC. A obra, um ensaio poético, seria uma versão do motivo do livro de Jó. Nela, uma pessoa absolutamente justa e inocente é golpeada pela enfermidade e pelo sofrimento. É acusado injustamente e cai na desconfiança do rei e dos amigos, sem que a divindade reaja. Ele grita continuamente ao seu deus até que esse lhe responda e transforme o seu sofrimento em alegria. Uma vez atendido, ele louva deus. A causa do sofrimento, mesmo de um justo, poderia ser seu pecado, incrustrado em sua natureza humana desde que nasceu. Assim, o sofrimento seria a justa reação de deus diante do pecado humano. Diferente de Jó, ele confessa seu pecado. A obra ajuda a entender a posição dos amigos de Jó (SCAIOLA, 1997, p. 32.63), mas não responde porque o ser humano nasce em estado de pecado. Falando de seu sofrimento, esse sofredor diz: “Meu deus, o dia resplandece acima da terra, e para mim o dia é sombrio… Lágrimas, lamentos, angústia e depressão tomam conta de meu ser. O sofrimento me assola, porque sou um ser que (apenas) chora” (ANET, 590).

Essa obra mostra-se mais madura em relação à sua homônima paleobabilônica e de argumentação semelhante. O ser humano não é um joguete nas mãos da divindade que deve resignar-se em face à dor. A obra sugere que, atrás de cada sofrimento, há um pecado do indivíduo, ainda que inconsciente, não restando aos deuses outra escolha que não seja puni-lo (SIMIAN-YOFRE, 2005, p. 22).

b) Epopéia de Gilgamesh (ca. 2000 aC). Segundo Scaiola, trata-se do texto mais famoso de toda literatura mesopotâmica sobre o tema da morte, da qual nem o rei com sua sapiência escapa. Ainda segundo a autora:

nessa [obra] se descreve o falimento de toda sapiência humana diante da morte na forma de um confronto sem saída entre o desejo do homem e a vontade dos deuses… Em Gilgamesh, a morte aparece como o limite insuperável que os deuses impuseram aos viventes. A sapiência, mesmo se orientada à vida e ao bem-estar, desilude porque faz o homem descobrir os seus limites, que são os limites da condição mortal. (SCAIOLA, 1997, p. 33)

Conforme Ceresko, a obra conta a história de Gilgamesh, um antigo rei mesopotâmico que perde um grande amigo, Enkidu, por causa dos ciúmes de uma deusa. O rei, muito abalado com a morte do amigo e pelo confronto com a realidade da própria mortalidade, põe-se a buscar o segredo da imortalidade. Seu empreendimento não resulta em nada, senão na resignada e pacífica aceitação do destino humano. A sábia Siduri, responsável pela bebida aos deuses, sintetiza:

Gilgamesh, por que segues esse caminho? A vida que buscas, jamais encontrarás. Quando os deuses criaram o homem, impuseram a morte à humanidade e retiveram a vida em suas próprias mãos. Alimenta-te, Gilgamesh, diverte-te dia e noite. Prepara, a cada dia, alguma ocasião agradável. Dia e noite sejas folgazão e alegre! Enverga vestes bonitas, perfuma teus cabelos, banha teu corpo. Observa o pequeno que te pega as mãos, deixa tua esposa feliz, aconchegada ao teu peito! Porque esta é a tarefa da (humanidade)! (apud CERESKO, 2004, p. 17)

c) O mito de Adapa. Refere-se ao mais célebre dos sete sábios lendários antediluvianos. Já de início, afirma-se que o deus Ea dá ao devoto a sabedoria, mas não a vida eterna. Em seguida, o mito apresenta uma reflexão sobre a morte. Em sua trama, apresenta o ser humano que deixa escapar a chance de obter a imortalidade ou não consegue realizar o desejo de tornar-se imortal. Isso ocorre com Adapa, apesar de toda a sua excepcional sabedoria (SCAIOLA, 1997, p. 34).

d) Instruções [ou Preceitos] de Shuruppak. Trata-se de uma coleção de ditos com instruções que um certo Shuruppak, sobrevivente do dilúvio, dá a seu filho Ziusudra (ou Utnapushtu na versão acádica). O filho “deve seguir as orientações divinas e construir um barco para salvar a vida humana e a de todas as espécies para que a paz seja estabelecida sobre a terra. Estes conselhos são semelhantes àqueles de Deus a Noé nos textos bíblicos (Gn 6–10)” (BRITO, 2011, p. 21).

Dessa sabedoria: “Não prejudiques a filha de um homem livre, pois o pátio saberá disso” (ANET, 595).

A segunda civilização foi a Babilônia, que apresenta a mais rica tradição sapiencial do Antigo Oriente Próximo. Destacam-se:

e) Um homem e o seu deus (ca. 1950-1530 aC). Texto paleobabilônico, numa escritura cursiva difícil, própria da época. Consta de 69 linhas com a menção do escriba, Kalbanum. Nas primeiras 11 linhas, descreve a situação de um homem miserável golpeado por um profundo sofrimento, embora seja amigo íntimo de seu deus (linha 1). Logo de início, sua relação com a divindade é marcada por uma oração de lamento e lágrimas. Ele não entende a razão do seu sofrimento. Não se lembra de ter pecado. Depois a situação muda e deus vem consolar seu fiel. O sofrimento humano é responsabilidade da divindade dentro de um processo pedagógico divino, uma espécie de prova. Ao final, prevalece o favor e o consolo divino (SIMIAN-YOFRE, 2005, p. 11-15). Nessa obra, a pessoa aparece como um joguete nas mãos dos deuses e, portanto, não deve procurar solução ao problema da dor. A resposta à questão do sofrimento fica um tanto aquém daquela da obra homônima suméria (SIMIAN-YOFRE, 2005, p. 22).

f) Poema do justo sofredor (Ludlul bêl nêmeqi) (ca. 1500-1200 aC). É o texto religioso mais famoso da literatura mesopotâmica sobre o tema do justo sofredor. O poema, introduzido com a frase “quero louvar [ou eu enaltecerei] o senhor da sabedoria”, é um hino de louvor a Marduk, senhor da sabedoria e deus principal do panteão babilônico, pelos benefícios recebidos, mais exatamente, ter sido libertado de todos os sofrimentos. Trata-se de um monólogo, considerado o “Jó babilônico”, tal é sua afinidade com aquela obra. Nesse monólogo, descoberto em 1875, o devoto questiona por que Marduk permite que seu fiel sofra.

Um venerador de Marduk, abandonado por seu(s) deus(es) sem motivo e, golpeado por vários infortúnios e enfermidades, lamenta o abandono: “O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu. Minha deusa foi-se embora e permanece distante, o espírito benevolente que sempre estava junto a mim retirou-se (I 43-45). (ANET, 596; apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 24).

Inclusive seus parentes e amigos o abandonaram. Ora, por que seu deus permite que seu fiel venerador sofra tais infortúnios? Isso abala-lhe a fé, pois parece que o culto e a devoção não fazem efeito, uma vez que a enfermidade não cessa.

O meu deus não veio me resgatar, tomando-me pelas mãos; nem minha deusa teve compaixão de mim ficando a meu lado. Meu infortúnio estava esperando e minha parafernália funerária pronta” (II 112-114) (ANET, 598; apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 24).

Esse devoto descreve seus infortúnios, ignorando as acusações dos opositores. É convencido de que sua miséria não resulta de seus pecados. Assim como Jó, o sofredor está convencido de sua inocência e não consegue entender os desígnios dos deuses: “Quem pode conhecer a vontade dos deuses do céu? Quem pode compreender os planos dos deuses do abismo? Onde os humanos aprenderam o caminho de um deus?” (II 36-38) (ANET, 597; apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 24).

Por fim, por intervenção de Marduk, que “pode devolver a vida a quem está no fundo do poço” (IV 35), tem suas forças restauradas. O fiel é salvo de sua angústia e reintegrado na vida religiosa e social. Ele agradece o dom da vida e da saúde a seu benfeitor (Tábua IV) diante de todos. Esse é o foco do texto. É notável como a divindade passa da indiferença ou ira à compaixão. Aliás, Marduk, senhor da sabedoria e deus compassivo, apresenta um duplo caráter: enfurece-se à noite, ordena e faz pecar, mas se dispõe ao perdão durante o dia.

Por um lado, o poema se afasta de Jó por atribuir o sofrimento mais diretamente à ira da divindade. Por outro, deixa claro que a vida inteira e as disposições de Deus são um verdadeiro mistério para a pessoa (SCAIOLA, 1997, p. 34.64; VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 23-24). O ser humano está em suas mãos, mas seus desígnios são insondáveis.

g) Teodiceia babilônica (ca. 1000 aC). Conhecido também como Diálogo do sofredor com seu amigo ou ainda Diálogo sobre a miséria humana. Trata da justiça divina na forma de diálogo. A obra é associada àquela de Qohélet, inclusive chamada de Qohélet babilônico. É um poema acróstico de 27 estrofes de 11 linhas ou versos cada uma, começando com a mesma sílaba. Desenvolve-se o tema do sofrimento e do mal como contraste com a justiça dos deuses. São eles os responsáveis pela tendência humana ao mal (LORENZIN, 2013, p. 14).

Todo o poema é um diálogo entre um homem que sofre (estrofes ímpares) e seu amigo (estrofes pares). A causa do sofrimento não é a enfermidade, […] mas a situação social do protagonista: é órfão (I 11), pobre (VII 75), desprezado (XXIII 253) e perseguido (XXV 275). Tem-se aqui um problema filosófico bastante conhecido nos ambientes sapienciais: por que o pobre, o desvalido, apesar de ser justo, piedoso e fiel (VII 71-73), não é protegido pelos deuses; ao contrário, é por eles abandonado à própria sorte e às injustiças da sociedade. (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 24)

O sofredor sustenta que os deuses o puniram sem motivo. Seu amigo tenta responder suas querelas, na lógica de que o sofrimento é consequência do pecado. Ele deve ter ofendido a divindade e deve esperar e acolher a retribuição na paciência (SCAIOLA, 1997, p. 34). Deste modo, a questão desemboca no mistério divino. O sofredor se acalma, silencia sua queixa e acolhe sua sorte, como se vê na última estrofe: “Que me ajude o deus que me abandonou; que a deusa [que de mim esqueceu] se mostre compassiva; que o pastor [o rei], o sol do povo, apascente (seu rebanho) como caberia a um deus” (XXVII) (ANET, 604).

A obra apresenta grande semelhança com Jó.

h) Conselhos de sabedoria (entre séc. XIV-XIII aC). Segundo Lorenzin, trata-se de uma coleção de provérbios (em cerca de 150 versos), cuja forma e conteúdo fazem lembrar aqueles bíblicos. São admoestações de um vizir ao próprio filho que recordam aquelas dos sábios egípcios e hebreus na forma de máximas que emergiam de constatações tiradas da experiência ou mesmo dos princípios da religião. Por exemplo:

Evita os mexeriqueiros e os preguiçosos, sê cauteloso no falar,

Não uses uma linguagem inconveniente.

Usa bondade com os indigentes e socialmente humildes.

Pratica a religião e experimentarás as vantagens. (LORENZIN, 2013, p. 13)

A terceira civilização foi a Assíria. Entre suas obras, destacam-se:

i) Aḥiqar. Aḥiqar foi conselheiro de Senaquerib (704-681 aC) e de seu filho Assaradon (680-669 aC). O poema, também classificado como novela, sentenças ou sabedoria de Aḥiqar, teve grande difusão em várias línguas em todo Crescente Fértil e chegou até Elefantina (alto Egito, séc. VI ou V aC). Dos arquivos judaicos de Elefantina, chegou até nós a versão aramaica. Aḥiqar aparece em Tb 1,21-22; 2,10; 11,18; 14,10. A sapiência de Aḥiqar conta as façanhas desse conselheiro régio, “excluído por uma calúnia de certo Nadan. Condenado à morte, é salvo por um subterfúgio. A sua estória emoldura conselhos, proibições e exortações que ele dá ao neto. Encontram-se na obra, sobretudo, ensinamentos a respeito da discrição, da modéstia, da moderação e da retidão. Recomenda-se severidade e educação para os filhos, usando também a vara para preservá-los do mal” (LORENZIN, 2013, p. 13). Entre suas sentenças, destacam-se as instruções referentes à “boca”:

A palavra é como um pássaro: uma vez solto, ninguém pode (capturá-lo). (ANET, 428)

Um bom jarro guarda a palavra em seu interior, mas um jarro quebrado a deixa escapar. (ANET, 429)

Outras obras mesopotâmicas:

j) Diálogo entre um amo pessimista e seu criado (ca. 1000 aC).[6] Segundo Lorenzin:

Trata-se de uma conversação entre o patrão e seu escravo. Toda atividade proposta com entusiasmo pelo patrão é acolhida pelo escravo com o mesmo entusiasmo. Quando o patrão afirma que quer seguir o plano oposto, também o escravo inverte a própria posição, enumerando as vantagens da nova posição e as desvantagens do plano originário. Conclui-se que nada é absoluto, que não vale a pena fazer qualquer coisa, que a única resposta é a morte. A diferença entre esta obra e o Qohélet está, sobretudo, na fé desse autor. (2013, p. 14)

Vílchez Líndez sistematiza a estrutura do poema e apresenta um ulterior comentário:

Mantém-se rigorosamente a estrutura nas onze estrofes das doze conservadas total ou parcialmente:

1. Ordem do amo: ‘Servo, obedece-me’.

2. Resposta do servo: ‘Sim, meu senhor, sim’.

3. Conteúdo da ordem: ‘Traga-me o carro […]’ etc.

4. Resposta afirmativa do servo, justificando o desejo de seu senhor.

5. O amo muda de parecer.

6. Resposta do servo justificando a nova atitude do senhor.

À primeira vista, surpreende a inconstância do amo, que expressa um desejo e, em seguida, muda radicalmente de opinião. Além disso, é impressionante a facilidade com que o servo se adapta à vontade de seu amo: servilismo? Na verdade, o servo é o único que raciocina, porque sua personalidade situa-se num nível mais elevado que a de seu senhor. Aparece assim a intenção satírica do autor desse vivíssimo diálogo, confirmada de modo magistral na última estrofe. O amo pergunta ao servo: ‘O que é bom?’; o que o servo responde cinicamente: ‘Arrancar meu pescoço, teu pescoço e lançá-los ao rio. Isso é (o) bom’. Não parece boa resposta ao amo; de fato, a solução é muito carinhosa. Por isso, o amo muda de opinião: ‘Não, servo, te matarei e te mandarei à frente’. A fina ironia do servo põe um ponto final a essa sátira entre o amo rico, porém aborrecido da vida, e o escravo, privado de tudo, menos do duro trabalho e da sabedoria, sua única riqueza: ‘Então, desejaria meu senhor viver ainda três dias mais que eu?’

O diálogo, como a vida real, ensina-nos que riqueza e sabedoria, pobreza e necessidade nem sempre estão unidas, tampouco podem-se identificar. O livro dos Provérbios, a seu modo, diz-nos a mesma coisa: ‘De que serve ao tolo ter dinheiro para comprar a sabedoria se carece de bom senso?’ (Pr 17,16). (1999, p. 25-26)

    k) Disputas e fábulas. No mundo mesopotâmico existiam também muitas fábulas, mas delas restam apenas fragmentos. Como é típico desses gêneros, as plantas e os animais discutem entre si. Atrás da aparente fantasia literária, elas oferecem reflexões sapienciais sobre a vida, fortes sátiras da realidade social e criticam as normas pelas quais a vida na sociedade se rege (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 26).

l) Ditos populares, conselhos e provérbios (acádicos). Eles sempre estiveram presentes em todos as culturas e épocas, também na Mesopotâmia. A título de ilustração:

Se eu não fui, quem poderia ter ido a meu lado? (ANET, 425);

Quando as formigas são esmagadas, mordem a mão de quem as fere;

Em boca fechada, não entra mosquito (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 26).

Conclusão

O sábio do Antigo Oriente Próximo e, com ele, o sábio bíblico não aprendiam a nadar por correspondência, nem viviam em vitrines. O confronto da inteligência inata comum ao homo sapiens com o mundo cotidiano, com a casa comum, e com os outros, produziu maravilhas. O ser humano aprendeu a viver e a conviver, a fazer e a pensar. Pensou desde a descoberta do fogo, perscrutou os mais profundos enigmas da vida. Aos poucos, do antropocentrismo vai emergindo um teocentrismo e a sabedoria humana vai manifestando o divino já antes mesmo de Israel. A capacidade humana de produzir arte (ars), a necessidade de “armazenar” o saber para não esquecer, e o desejo de transmitir as descobertas às gerações futuras ou mesmo de se defender fizeram com que o sábio verbalizasse, “zipasse” e codificasse seu saber por escrito. Assim, a sapiência se fez livro. Esse caminho dos povos do Antigo Oriente a Bíblia continuou e inovou. Nesse nível deve ser entendida a Sapiência em Israel ou a Sabedoria Bíblica do verbete a ela dedicado.

Fr. Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Texto original em português. Enviado: 31/07/2022. Aprovado: 15/10/2022. Publicado: 30/12/2022.

Referências

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VON RAD, G. Teología del Antiguo Testamento I (BEB 11). Salamanca: Sígueme, 82000.

[1] Para Sirácida, o sábio é o phrónimos (21,21.24.25), ou seja, o disciplinado, pois a disciplina é enfeite de ouro (v. 21), a pessoa prudente, que põe na balança o que fala (v. 25). Enfim, é pleno de bom senso, de virtude prática que lhe permite deliberar e escolher bem; é polúpeiros (v. 22), isto é, pessoa experiente, culta e modesta, amadurecida no embalo da vida; é pepaideuménos (v. 23), que quer dizer bem-educada, sabe adaptar-se e se orientar de modo acertado nas várias circunstâncias da vida.

[2] Como Davi (2Sm 14,20), Salomão (1Rs 5,9-14.21), os assessores do faraó são chamados sábios (ḥāḵām) (Gn 41,8.33.39; Ex 7,11); o rei da Assíria se diz sábio (Is 10,12-13).

[3] Para exemplos atuais: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”; “barata esperta não atravessa galinheiro”; “quem dorme no chão não cai da cama” entre tantos outros. Os provérbios são setas que apontam o rumo de uma vida correta.

[4] Convém lembrar que a ordem cósmica (vista antes) procede da divindade e por ela é assegurada. “Todo o mundo é permeado da presença de Deus, o qual é o responsável pela realidade com a qual os sábios entram em contato. Quando faz a experiência do mundo, Israel faz experiência de Deus” (LORENZIN, 2013, p. 208).

[5] Conforme GILBERT – ALETTI: “O longo obscuro esforço dos homens para encontrarem o caminho certo de sua existência pode ser também um lugar no qual ressoe a palavra divina. A fé mostra ao sábio a presença atuante de Deus no curso rotineiro da vida” (GILBERT; ALETTI, 1985, p. 5).

[6] Também conhecida como Diálogo pessimista entre o senhor e o servo ou ainda simplesmente Diálogo pessimístico. O texto pode ser lido, sob o título reflexões acádicas sobre a vida, em: PRITCHARD, 1966, p. 296-298.

Mística laica e secular

Sumário

1 Tensão entre mística e modernidade

2 Princípios da secularização

3 Literatura e cultura moderna

4 Etapas da secularização

Referências

1 Tensão entre mística e modernidade

Sabe-se que existe uma mística cristã. Seus grandes frutos estão localizados especialmente entre os séculos XI e XVII, isto é, o que corresponde aos períodos da historiografia de língua inglesa da High Middle Ages (XI ao XIII) e Late Middle Ages (XIII ao XV), acrescentando Renascimento e Barroco, mas é claro que tem suas fundações na Antiguidade, seu desenvolvimento na primeira mística medieval (V ao XI) e o ápice no monasticismo do século XII, como periodiza Bernard Mcginn (1996, p. ix-xvi). É possível discordar à vontade de periodizações como essa e da própria noção de mística. Há quem justifique o uso do termo, há quem implique com ele. Houve uma polêmica alemã nos anos 1980 na qual Kurt Flash nega que Eckhart seja místico (FLASCH, 1988, p. 94-110) e Alois Haas considera tal caracterização inevitável (ver o artigo de Haas, “Was ist Mystik?”, em RUH, 1986, p. 319-342, e a discussão em seguida em RUH, 1986, p. 342-346). Alain de Libera concorda com Flasch (LIBERA, 1999, p. 278, 288-290), mas a maior parte dos especialistas, como Bernard Mcginn, não viram sentido na provocação, que só levou a uma renovação dos estudos e problematizações em torno do conceito (MCGINN, 2005, p. 108, 527). Por trás dessa polêmica, há uma clara tentativa de historiadores da filosofia medieval (é o caso de Flasch e Libera) de legitimar a autoralidade de Eckhart como filósofo (ou teólogo-filósofo) negando-o enquanto místico, como se não fosse possível existir as duas coisas num mesmo autor, numa mesma obra, num mesmo pensamento. No fundo, a briga secular das faculdades de filosofia e teologia encontrou mais um episódio nessa querela em torno da herança do pensador renano.

Se mesmo a um dos autores centrais da mística cristã medieval é negado, por alguns, o pertencimento nesse espaço contraditório do saber, o que se dirá, então, da vaga hipótese da existência de uma mística na modernidade? A controvérsia em torno desse termo tão amado e odiado não é nova: ela começa no surgimento de sua substantivação, no século XVII. Ele já servia para demarcar o lugar de uma espiritualidade artificialmente separada de outras áreas da teologia, isto é, convinha ao isolamento e ao distanciamento da experiência religiosa (CERTEAU, 2015, p. 168-170). À medida que a modernidade foi se desenrolando, chamar algo de místico se tornou sinônimo de antigo, medieval, extremamente devoto. No momento do surgimento dos textos de relatos de visões, experiências inefáveis e tratados de condução da alma, a mística era vista como algo estranho, extravagante, diferente e suspeito. Passou-se o tempo e o termo adquire, para progressistas que desgostam dele, sinal de velharia, conservadorismo, arcaísmo.

É nesse ponto que identificamos as curiosas peculiaridades do conceito, que estão diretamente ligadas ao destino da própria noção de “Ocidente”: um dos maiores teóricos da poesia do século XVII, Nicolas Boileau (1636-1711), afirma: “Os místicos são modernos; não se via deles na Antiguidade” (LESCURE, 1863, p. 23; CERTEAU, 2015, p. 173), o que significa, para o juízo de valor dele, algo como desenraizados, perdidos, desprezíveis. Naquele momento, chamar alguém de moderno era, para uma maioria de conservadores, sinônimo de xingamento.

Tem-se dois traços bem curiosos da história do termo: primeiro, aqueles que foram caracterizados como místicos foram, em seu tempo, vistos como demasiadamente ousados, estranhos, idiossincráticos (século XII ao XVI); depois, o aparecimento do vocábulo foi ligado à primeira caracterização de temperamentos modernos. É preciso insistir que sua substantivação, significando não só indivíduos contemplativos, santos, mas personalidades apaixonadas que buscam o contato direto com Deus, é moderna? Logo, tanto o objeto quanto a origem do termo são vistos, pelo menos até o século XVIII, como modernos. O gosto pelos místicos como pertencentes a uma nostálgica Idade Média é invenção do romantismo e o desgosto por eles como algo supersticioso e ultrapassado é introduzido pelo racionalismo e iluminismo e consagrado pelo positivismo.

O adjetivo, desde o século XVI, granjeia uma tensão entre o querer saber e o querer esconder e mobiliza “uma erótica no campo do conhecimento” (CERTEAU, 2015, p. 150-151), segundo Certeau: ele se prestava a significar o lado oculto e espiritual de algo (CERTEAU, 2015, p. 148-165). Denotava já um valor sobrenatural para qualquer coisa. Por causa desse sentido, foi desde o início exagerado por uns e ridicularizado por outros. Ao longo da modernidade, a dupla convivência da atração e do descrédito só aumentou. Os defensores do valor existencial da experiência colidiam com o aborrecimento da compleição pragmática e realista ou com os psicólogos positivistas que patologizavam a experiência mística de mulheres.

A caracterização do “Ocidente” como o lugar de desenvolvimento da racionalidade científica e econômica, como execução do domínio técnico da natureza, colocou a “mística” no espaço contrário de todo êxito objetivo, logo, como antiocidental. Quem se inquieta com a mística não vê nela senão um traste, um incômodo; quem é atraído por ela encontra em seu ninho de fantasia e entusiasmo um refúgio acalentador. Daí as frequentes aproximações dela com a poesia. Octavio Paz (1982) afirma: “construiu-se o edifício das ‘ideias claras e distintas’ que, se tornou possível a história do Ocidente, também condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas de apreender o ser por caminhos que não fossem os desses princípios”. Não há nenhuma validade naquilo que não é legível, consequente e útil. O que ocorre com as práticas que não se enquadram nesse modelo cartesiano? “Mística e poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (PAZ, 1982, p. 123). Não são poucos os críticos que caracterizam a poesia ou mais especificamente a lírica como uma espécie de contemplação natural (STAIGER, 1975, p. 60-61). Ainda assim, a irritação positivista contra os místicos não deixou de influenciar boa parte da própria crítica literária. Autores que estão demasiadamente próximos de características detectadas como místicas tendem a ser vistos como antiquados, atrasados, defasados, devotos e mesmo obedientes a dogmas, logo, menores, pois o que qualifica, por excelência, um escritor moderno é a ruptura com a autoridade e a ousadia formal (que tende a se confundir com a ousadia comportamental). Contudo, deve-se recordar que, no seu surgimento, o místico fora notado como estranho, extravagante e mesmo moderno. Se examinassem a história do termo e das obras às quais ele se refere, encontrariam nos místicos exatamente o que procuram: ousadia formal e comportamental, a maior prova é que inovaram a escrita literária de sua época com novos modos de dizer. Tais críticos não se dão conta da ignorância que conservam dessa história e de como são vítimas de um típico senso comum acadêmico, estabelecido pelo positivismo, que tem sido repetido e reproduzido até hoje.

Assim, verifica-se uma tensão permanente na modernidade com o conceito de mística. Há uma modernização triunfante, burguesa, ocidental, e há uma modernidade crítica, antiburguesa, intelectual e literária que às vezes adota o termo afirmativamente para defender seu potencial crítico contra a racionalidade, às vezes não encontra nele senão dogmatismo, superstição e crendice. Inclusive, a maior parte dos usuários da palavra não conhecem nem sua teoria, nem sua crítica, nem sua história, muito menos os autores e as obras dessa história, pois, de fato, por um lado, a mística não se reduz aos seus grandes escritores e pensadores (assim como a poesia não se reduz à obra dos maiores poetas), mas não conhecer nada de nenhum deles – de Teresa de Ávila, João da Cruz e Silesius – é desconsiderar não só as melhores expressões do fenômeno, como qualquer expressão qualitativa dele. Aquele que fala de filosofia sem ter lido um filósofo, ou de poesia sem ter lido um poeta, por exemplo, geralmente será motivo de zombaria nos espaços profissionais do conhecimento, no entanto, não é o caso quando o objeto em questão é a mística: a melhor prova de competência no assunto é desdenhar dele. Portanto, há um descompasso entre o fenômeno e suas expressões, entre o vago conhecimento do conceito e os sistemas filosóficos, teológicos e espirituais que deram forma a ele ao longo da história. Já que a mística não é uma área do saber como a filosofia e a teologia, ninguém tem a obrigação e poucos manifestam interesse em tomar conhecimento de algo de suas diferentes expressões ou de se demorar um bocado nas armadilhas conceituais de sua problemática, isto é, de se precaver um pouco em tomar conhecimento da sua teoria (interdisciplinar por natureza), que existe faz tempo e cuja bibliografia é numerosa. Em suma: a palavra suscita ódios e paixões; de qualquer modo, no campo acadêmico, é rejeitada por uma maioria que ignora estudos a seu respeito, acarinhada por alguns entusiastas que também não têm muita noção de sua história e examinada por uma minoria especialista, geralmente estudiosa de Idade Média e questões de espiritualidade em geral.

É inevitável constatar a rejeição e o fascínio da mística na modernidade; mais difícil é examinar as suas contradições. Uma vez posto o núcleo nervoso dos afetos que a palavra e o fenômeno suscitam, agora é preciso entender o longo percurso histórico não da mística propriamente dita (do século XII ao XVI), mas do que diferentes historiadores e teóricos chamaram de mística da modernidade, neomística ou mística secularizada, sendo o último conceito o de minha preferência, empregado por Theodor Adorno a respeito do compositor Arnold Schönberg (ADORNO, 1978, p. 460; ADORNO, 2018, p. 328).

2 Princípios da secularização

Se se reflete sobre a chamada mística vernacular, isto é, aquela que foi escrita nas línguas nascentes da Europa, chamadas vulgares, observa-se como se iniciou o próprio conflito de místicos com a Igreja a partir da interessante tese de Niklaus Largier. Os místicos em geral (como Eckhart) e as místicas beguinas em particular aspiravam se aproximar de um maior número de leitores escrevendo nas línguas que eram faladas. Fora de um vocabulário latino que já estava bem codificado, o vínculo que tais autores ostentavam com o divino, no plano espiritual, se dava, ironicamente, num plano mais concreto enquanto contato direto com o leitor comum (que não precisava, inclusive, ser alfabetizado, pois o livro podia ser lido por uma pessoa e ouvido por várias).

De um ponto de vista midiático, a comunicação vernacular é a grande prova de que mesmo o florescimento da mística hoje vista como tradicional já era secularizado, no sentido estrito de que as experiências religiosas saíam do espaço monástico para se impregnar no mundo cosmopolita nascente. Tal desejo de se comunicar com um público inexplorado era motivo de desconfiança e temor das autoridades eclesiásticas: o novo meio precisava ser controlado. Livros de místicas, como os de Marguerite Porete, foram queimados. Os críticos autorizados assinalaram que a teologia selvagem das beguinas não conhecia o seu assunto e elaboraram formas de “discernimento dos espíritos” para corrigir pregações desviantes. Tais críticos da mística vernacular (como Jean Gerson, 1363–1429) foram alguns dos primeiros antimísticos da história – e não há como entender a história da mística sem eles (ANDERSON, 2011, p. 13-16, 81-89).

Quando houve a Reforma, a impressão de panfletos (Flugschriften) possibilitou o advento de uma grande revolução. Martinho Lutero (1483-1546) se beneficiou da disseminação midiática de suas ideias. Quando, porém, observou que os místicos entusiastas se aproveitavam dos mesmos meios para divulgarem sua interpretação livre das Escrituras, resolveu controlá-los. A argumentação de Lutero levou a substituir a prática medieval de discernimento dos espíritos pela institucionalização de uma ordem secular (weltliche oberkeit; LUTHER, 2016, p. 211) absolutamente dissociada da religiosa, em que a expressão da fé deve ser regularizada pelo uso correto da lei e da razão. Nesse sentido, a exegese inspirada dos “entusiastas” passou a ser coibida (LUTHER, 2016, p. 74-76, 169, 282). A ordem secular se tornou uma instituição pedagógica que controla as formas pelas quais a Bíblia pode ser lida. Ela possuía um caráter normativo que limitava a comunicação religiosa (LARGIER, 2009, p. 38-42).

O modo como novos entusiastas burlaram essa proibição foi sair, paulatinamente, do domínio religioso e perscrutar outro: a natureza, empregando os mesmos “tropos místicos” num discurso poético. Foi basicamente esse o deslocamento de Silesius (1624-1677). Se a escrita das beguinas utilizava um paradigma visionário num ambiente litúrgico, os pensadores e poetas do século XVI e XVII buscaram relações entre o mundo material e o mundo espiritual. Agora a experiência do mundo é o palco dos tropos místicos – unidade, amor, sofrimento, delicadeza. A partir dos saberes de tradições alquímicas, a imaginação passa a ganhar o primeiro plano ao produzir toda uma cosmopoiesis (MAZZOTTA, 2001, p. 74) e ensinar uma pedagogia da percepção (LARGIER, 2009, p. 48-52).

É nesse domínio da percepção da natureza que um livro seminal do romantismo, Os discípulos de Sais (escrito entre 1798-1799, publicado postumamente em 1802), de Novalis (1772-1801), quer intervir. A filosofia hermética renascentista construiu babéis de sistemas analógicos, demonstrando minuciosamente que a semelhança entre as coisas (entre plantas, pedras, animais, deuses, planetas) segredava uma semelhança mais fundamental com regiões espirituais. A grande tarefa era encontrar a assinatura das coisas, isto é, a marca divina essencial que dá sentido aos objetos. Novalis, grande leitor de Paracelso (1493-1541) e Jakob Böhme (1575–1624), busca nesse mundo mágico das semelhanças o reflexo narcísico de um eu infinito, romântico, e quer chegar a uma síntese entre o saber medieval, hermético e iluminista. Quem vai produzir tal síntese é o poeta e filósofo erudito alemão (NOVALIS, 1991, p. 39-44; NOVALIS, 1989, p. 39; BÖHME, 1988, p. 25).

Dificilmente se entende os anseios espirituais do romantismo, isto é, do início da literatura moderna, sem examinar a ligação intrínseca dele com o hermetismo. Se Novalis desenvolveu tal nexo umbilical com Paracelso e Böhme, William Blake (1757-1827), Honoré de Balzac (1799-1850) e Charles Baudelaire (1821-1867) preferiram um outro autor. Não é exagero afirmar que não há pensador mais influente para a literatura imaginativa do século XIX do que o controverso “iluminado” chamado Emmanuel Swedenborg (1688-1772). Sua teoria das correspondências não é original: na verdade, não passa de uma versão oitocentista da doutrina da semelhança renascentista. Porém, foi especialmente lendo-o que a maior parte dos nomes mais importantes da poesia moderna nascente a conheceu e foi especialmente por causa dele que ficaram fascinados por ela e a incorporaram em suas poéticas. Aqui tem-se um ponto intrincado a observar: assim como muitos se referem à mística sem conhecer, especialmente quando propõem ou recusam uma relação entre mística e modernidade, de fato não é fácil localizar com precisão nem qual a influência de fundo que uma corrente literária moderna está mobilizando nem que tipo de relação de transmissão já existia dentro daquilo que está sendo periodizado em algum momento da mística anterior à modernidade e que vai ser relevante para ela.

Tropos místicos saíram do contexto de uma mística vernacular – mas ela ainda estava diretamente ligada à tradição, seja seguindo o modelo litúrgico, seja o modelo ascensional do tratado – para entrar numa cosmologia da semelhança. Quando tal esquematização do universo chega ao século XVIII, com Swedenborg, ele cria sua própria ordo rerum cretarum (ordem das coisas criadas – por exemplo, a forma do céu descrito por ele obedece ao corpo humano) dentro desse modelo, sem disputar uma possível reforma da Igreja, ao contrário, ele é totalmente ridicularizado pela teologia e pela academia, mas se torna um best seller, circulando inclusive na aristocracia da época (SWEDENBORG, 2008, p. 9-24). Isso parece lembrar a literatura de autoajuda atual, mas é um caso muito diferente, pois é considerado pelos melhores autores do século XIX e XX como um ótimo escritor (ver a enorme admiração que Jorge Luis Borges (1899-1986) tem por ele, por exemplo; BORGES, 1985, p. 185). Swedenborg inspira a poética de muitos poetas e, no caso de Baudelaire, especialmente, o poema “Correspondances” vai se tornar a ponta de lança de todo o simbolismo.

Logo, há uma rede complexa de transmissões de motivos nupciais, analógicos e apofáticos que vão mudando de natureza e função em cada momento histórico, mas, ao mesmo tempo, vão delineando grandes condutos simbólicos que atravessam os séculos. Tanto uma abordagem filológica ultrapassada quanto uma historiografia muito restrita não saberiam examinar o emaranhado denso, movente, variável, mas que também contém certas invariantes (daí Claudio Willer, um dos maiores pesquisadores do assunto, advogar o exame das continuidades; WILLER, 2010, p. 30-32). Não é fácil entender nem perscrutar tais ligações íntimas entre neoplatonismo, mística, hermetismo, romantismo, simbolismo e modernismo; inversamente, é sempre mais simples negá-las como se não existissem. O fato é que tais nexos são patentes, gritantes, ao mesmo tempo que são muito menos examinados do que se deveria, pois, justamente, como a mística e, mais ainda, o esoterismo são marcados pela rejeição acadêmica, pouca gente se dispõe a examiná-los. Há tanto o desleixo, muito comum, em ignorá-los e menosprezá-los quanto o perigo, também, de projetar neles uma tradição perene que contém a verdade eterna e está por trás dos grandes gênios da humanidade, o que é igualmente falso. Logo, o bom pesquisador deve ser um equilibrista diante de dois lados do abismo: nem subestimar, nem superestimar, devendo, contudo, deixar claro que, se não se pode supervalorar ontologicamente como o fazem os perenialistas, é preciso apontar a força filosófica e estética real que tal pensamento analógico teve em diferentes épocas, e não menos em tempos seculares, modernos; por conseguinte, é preciso dar o valor que ela merece, isto é, estimá-la.

3 Literatura e cultura moderna

Nesse caso, o movimento literário que de fato incorporou, em toda a sua poética, a teoria das correspondências foi o simbolismo. A prática da musicalidade verbal, das sutilezas, sugestões, sinestesias, o anseio pelo ambiente vivido na superestesia, em outras palavras, uma busca espiritual feita da pompa dionisíaca de estímulos sensoriais harmônicos e melódicos encontrou no simbolismo um ponto de convergência. A alternância baudelairiana entre spleen e ideal, ou a mallarmiana entre vontade de nada e vontade de eternidade (MICHAUD, 1961, p. 190) foi traduzida entre a primeira fase decadentista, pessimista, e a segunda propriamente espiritualista, positiva. É no período do nascimento do simbolismo propriamente dito que a mística da modernidade toma de fato consciência de si mesma: “o momento privilegiado onde todas as relações se descobrem, onde todas as coisas se revelam como solidárias, como unidas num universo infinito que as ordena” (MICHAUD, 1961, p. 412 – a tradução de todos os textos citados de outras línguas é minha). Tal compreensão é exposta precisamente no livro manifesto de Charles Morice, La littérature de Tout à l’heure:

Até que a ciência tenha decidido alcançar o Misticismo (Mysticisme), as intuições do Sonho superam a Ciência e celebram esta aliança ainda futura e já definitiva do Sentido religioso e do Sentido científico em uma festa estética onde se exalta o desejo muito humano de uma reunião de todos os poderes humanos, retornando à simplicidade original. (MORICE, 1889, p. 287)

É a poesia que chega a uma síntese das contradições entre ciência e religião, ao reconhecer no sonho e na mística a superioridade da intuição em face da objetividade e da razão. Tal intuição analógica desvenda a solidariedade fundamental de todas as coisas. “A arte é a reconstrução do real segundo as correspondências secretas e a harmonia soberana da criação” (MICHAUD, 1961, p. 418).

Assim como Henri Bremond detectou, entre o século XVI e XVII, um despontar de interesse por guias de espiritualidade mística (uma vague ou invasion mystique, BREMOND, 1923, p. 582-584), no período de explosão do simbolismo, depois das preliminares decadentistas, se inicia o que Jules Sageret chamou de “onda mística” (vague mystique, SAGERET, 1920, p. 7-21), quer dizer, a geração de nostálgicos foi seguida da geração de buscadores do ideal, sendo que estes ficaram especialmente fascinados pelo esoterismo (MICHAUD, 1961, p. 466). A magia invadiu os salões, várias revistas ocultistas e simbolistas surgiram e os poetas reconhecem um irmão em Joséphin Péladan, poeta e filósofo esotérico que foi organizador das famosas exposições  dos Salões da Rosa-Cruz, entre 1892 e 1897 (MERCIER, 1969; sobre os salões, ver p. 188 e 200; sobre os encontros que Catulle Mendès e sua filha Judith organizaram entre o mago Eliphas Levi e o meio literário em 1873, especialmente apresentando-o a Victor Hugo, ver p. 70; sobre a influência de Josephin Peladan no meio poético e artístico, ver p. 222-225). O que eles fizeram nessa linha na França ocorreu pouco tempo depois, no engajamento maçônico e pitagórico de um dos maiores poetas brasileiros do fim do século: Dario Vellozo, editor de várias revistas simbolistas e esotéricas entre as décadas de 1890 e 1900 (BEGA, 2013, p. 213-251).

Tais movimentos eram anticlericais e buscavam uma espécie de renovação do gnosticismo. A trajetória de Joris-Karl Huysmans (1848-1907) acompanha precisamente o destino de parte significativa do movimento: começou satanista (decadentista), atravessou o ocultismo e terminou se convertendo ao catolicismo (MICHAUD, 1961, p. 266, 469-470). Charles Péguy (1873-1914) também se iniciou anticlerical e depois de converteu (MICHAUD, 1961, p. 584-588). Parte da fase final do simbolismo foi, surpreendentemente, católica, especialmente no caso de Paul Claudel (1868-1955) (MICHAUD, 1961, p. 595-629). No Brasil, não houve conversão da primeira (dos anos 1890) e da segunda geração simbolista (dos anos 1900), quase todos anticlericais, mas a geração da revista Festa, de Tasso da Silveira e Andrade Muricy, tornou-se católica (BEGA, 2013, p. 212 e 478). Sabe-se que no fin de siècle houve um forte movimento republicano de defesa do Estado laico, que atingiu boa parte dos intelectuais. Em seguida, houve uma reação católica de retomada desses espaços culturais. No Brasil, ela se traduziu na militância de Jackson de Figueiredo (1891-1928), fundador do Centro Dom Vital, e na conversão que ele conseguiu produzir em Alceu Amoroso Lima (1893-1983), que se tornou o seu presidente (DIAS, 1996, p. 69-85). No Brasil, a renovação literária católica esteve no auge do modernismo e produziu dois dos maiores poetas nacionais: Murilo Mendes (1901-1975) e Jorge de Lima (1893-1953). Cecília Meireles (1901-1964) estava do lado da Escola Nova e distante do ativismo de núcleos católicos, mas suas leituras da mística cristã, especialmente de João de Cruz e Teresa de Ávila, foram intensas (ver GOUVÊA, 2004, p. 124 e GOUVÊA, 2008, p. 48-49).

Já o pendor anticlerical gnóstico, ocultista ou orientalista teve seus desdobramentos em vários movimentos de vanguarda em geral e em especial no surrealismo nos anos 1920 a 1950. Sua tendência libertária (ora anarquista, ora socialista, ver LÖWY, 2002, p. 31-36) se desdobrou nos beats americanos nos anos 1950 a 1970. Eles foram os precursores do modo de vida contracultural, hippie, dos anos 1960 e 1970, que conseguiu a proeza de atingir toda a juventude da época e produzir a grande revolução comportamental do século XX (WILLER, 2014, p. 165, 189-190). Os experimentos com ácido de Timothy Leary (1920-1996) e Ram Dass (1931-2020) não existiriam sem leituras do Livro tibetano dos mortos e a busca de gurus indianos.

Pode-se dizer que se o romantismo foi o início da modernidade analógica, o simbolismo foi a primeira grande onda, as vanguardas e os beats foram o desenvolvimento e a contracultura foi o ápice político e histórico, em que as leituras da filosofia perene de Aldous Huxley (1894-1963), de Timothy Leary, Ram Dass e Alan Watts (1915-1973) vão dar no best seller de Carlos Castaneda (1925-1998), no rock psicodélico e progressivo. A moda da Nova Era dos anos 1980 e 1990, embora tenha sido um enorme sucesso lucrativo, dando inclusive impulso às leituras de clássicos esotéricos e mesmo místicos, já pode ser considerada um sinal de decadência.

4 Etapas da secularização

Ao sumarizar o percurso feito aqui, pode-se, por fim, ponderar sobre as etapas históricas do processo de secularização da mística. Primeiro, a novidade da escrita vernacular mística se expõe para leitores comuns e incomoda as autoridades, que a proíbem e a corrigem estipulando a retificação do discernimento dos espíritos. Segundo, Lutero estabelece a conquista do espaço secular vernacular e público de leitura, propondo um controle racional e autorizado dos entusiastas espirituais mesmo dentro dele, motivo pelo qual a expressão da espiritualidade encontra uma recusa dentro da institucionalização do espaço público. Terceiro, a filosofia e a poesia renascentistas se deslocam das disputas doutrinais teológicas, utilizam os tropos místicos na observação da natureza e propõem sistemas cosmopoéticos de leitura do mundo que buscam a transformação da percepção.

Quarto, o pré-romantismo alemão de Novalis emprega a poética analógica renascentista da assinatura das coisas deslocando a própria magia natural para o reino da linguagem, que, a partir daí, serve para expressão de um eu infinito refletido narcisicamente no universo. A secularização chega ao cerne da subjetividade moderna. Quinto, o simbolismo toma consciência privilegiada do emprego da analogia na linguagem literária agora sem o centro dominante do eu. A centralidade do símbolo busca uma ambiência vaga e sugestiva de relações sinestésicas e oníricas dentro de uma linguagem poética imantada de musicalidade harmônica e melódica. A teoria das correspondências de Swedenborg se torna base da poética literária que cria uma busca espiritual no núcleo da técnica formal poética e de uma vida plenamente artística. A secularização chega ao cerne da linguagem poética analógica. Neste momento, explicita-se um conflito entre ocultistas anticlericais e conservadores católicos, de modo que só numa geração posterior o simbolismo tenha se tornado também uma poética apropriada para a reação de um movimento modernista intelectual católico. A secularização da mística se torna parte tanto de uma associação entre meio literário e ocultismo quanto de reação renovadora católica modernista. Ela se torna ainda mais consciente de sua vocação antiburguesa, mesmo entre católicos, mas especialmente entre os anticlericais.

Sexto, o surrealismo explode o sentido verbal e explora as relações analógicas mais distantes e dissonantes entre as coisas, provocando a revolução da antiarte e do acaso objetivo, que é uma forma de secularização metropolitana da magia do destino. A secularização chega à violência da imagem inconsciente e aprofunda seu modo de vida boêmio e antiburguês. Simbolismo e surrealismo são diferentes modos de transformação da percepção a partir de uma incorporação da busca espiritual dentro de experimentos radicais de linguagem. Se a mística começou experimentando a língua vernacular empregando modos de dizer estranhos, com oxímoros, hipérboles e negações, nesse momento ela chegou ao extremo do experimento antilógico e antirracional, em que o sonho se impregna no núcleo da forma poética.

Sétimo, com os beats e a contracultura, finalmente o impulso libertário da mística literária moderna promove um modo de vida antimetropolitano (drop out, cair fora da cidade e do sistema, ver COHN, 2008, p. 138-181) que invade a cultura de massa com experimentos vanguardistas e atinge não mais só pequenas comunidades artísticas, mas todo um movimento global de mudança de comportamento juvenil. Com as drogas e a espiritualidade indiana, o rock psicodélico e progressivo, a contracultura estiliza a onda de ácido e as experiências extáticas de iluminação em best sellers e longas suítes musicais instrumentais que indistinguem, como nunca antes nem depois, o campo pop e o erudito, o retorno à natureza e o futurismo, a ecologia e as utopias eletrônicas, o protesto e o sucesso. De qualquer modo, a irritação que acadêmicos sempre sentiram diante dos gnósticos e ocultistas se renova com sua penetração na espiritualidade hippie.

Percebe-se, então, duas características centrais da secularização da mística ao longo da Era Moderna. Primeiro, o processo de imersão no mundo só se aprofundou: desde o uso da língua vernacular, passando pela imersão na natureza, a expressão do eu, a experimentação com a linguagem poética, a busca pelo sugestivo e pelo inconsciente até a conquista da juventude global e da cultura de massa, em que arte de alto nível virou fenômeno pop em prol da abertura das portas da percepção. Por outro lado, a condenação das autoridades do discernimento dos espíritos e o banimento de Lutero do espaço secular continuou, de forma homóloga, vigorando em todas as etapas de aprofundamento da secularização: os gramáticos condenaram o uso incorreto da língua feito por simbolistas e surrealistas e tanto o Estado policial quanto a universidade fizeram de tudo para controlar os hippies no auge de seu surgimento, até que as próprias gravadoras, rádios, estúdios, grandes editoras e diferentes mídias combateram suas conquistas estéticas até produzirem um retorno ao comportamento comportado e bem direcionado aos negócios do jovem yuppie dos anos 1980.

Do mesmo modo, diversos tipos de espiritualismos, em geral ingênuos, porém mesmo manifestações que talvez mostrem um nível intelectual mais elaborado, em vez de ser objeto de estudo histórico, formal e social na universidade, mantêm-se predominantemente banidos dos espaços de saber. Portanto, o processo de secularização da mística, por mais que não deixe de se estender, de se expandir e de se profanizar, está sempre marcado pelo banimento nos espaços seculares institucionais. A espiritualidade, selvagem ou informada, ingênua ou elaborada, adentra-se nos salões, na literatura de alto nível ou na cultura de massa, mas não pode ser estudada e refletida na maioria das epistemologias em vigor, por mais abertas e soltas que pretendam ser.

Eduardo Guerreiro Losso. Professor de Ciência da Literatura da UFRJ e bolsista de produtividade do CNPq. Texto original português. Enviado: 15/11/2021; aprovado: 20/12/2021; publicado: 30/12/2021

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Liturgia das horas

Sumário

Introdução

1 Desenvolvimento Histórico

2.1 A oração das horas no Novo Testamento

2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante

2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica

2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. V         

2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II

3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das Horas

4 Simbolismo e Teologia da Liturgia das Horas

5 Pastoral

Considerações conclusivas

Referências

Introdução

A Liturgia das Horas é uma das várias formas de oração da Igreja, que visa santificar o dia inteiro através da oração ininterrupta. Composta por hinos, salmos, cânticos, antífonas, leituras bíblicas e textos de grandes escritores eclesiásticos e documentos do Magistério, ela é rezada em horas determinadas: Horas Maiores: Laudes (ao amanhecer) e Vésperas (ao entardecer); Horas Menores: Terça (à metade da manhã), Sexta (ao meio-dia), Nona (à metade da tarde) e Completas (antes do repouso noturno). Assim sendo, já se pode perceber que seu simbolismo é cósmico e que, por causa dos diferentes fusos horários das diversas regiões do nosso planeta, a cada hora a Terra é banhada por uma onda de oração. Essas horas têm também um valor simbólico-sacramental, uma vez que remetem a determinados eventos importantes na vida de Jesus de Nazaré e dos Apóstolos, portanto, um caráter salvífico (cf. AUGÉ, 2005, p. 230).

A Liturgia das Horas, como já sugere o próprio nome, insere-se na dinâmica ritual e teológica do espaço e do tempo litúrgicos. Essa dinâmica, por sua vez, enraíza-se no fato da encarnação do Verbo eterno do Pai, Jesus Cristo. De fato, com a encarnação do Verbo, Deus irrompe na história humana e, de modo indelével, se une à humanidade assumindo a nossa carne na pessoa de Jesus de Nazaré. O Eterno entra no espaço e no tempo e, com esse fato, transforma o krónos em Kairós, ou seja, em tempo de salvação.

Contudo, essa dinâmica da encarnação do Verbo eterno recebe sua luz do Mistério Pascal de Cristo. De fato, no centro de toda a vida da Igreja – estrutura, culto, ação apostólica, espiritualidade, teologia, ética etc. – está a Páscoa do Cristo. Disso se conclui que a Liturgia das Horas é um tipo de oração essencialmente pascal, todas as horas referem-se ao Mistério Pascal de Cristo. Aliás, é esse último que está no centro, não só da Liturgia das Horas, mas de toda a vida litúrgica da Igreja.

1 Desenvolvimento histórico
2.1 A oração das horas no Novo Testamento

Certamente aqui não é nossa intenção encontrar a estrutura da Liturgia das Horas, conforme a conhecemos hoje ou o mais próximo disso, mas simplesmente encontrar as raízes bíblicas do costume da Igreja de rezar em horas determinadas, algo que sempre esteve presente na sua vida desde os seus primórdios. A Liturgia das Horas, embora tenha suas raízes na oração de Jesus e dos seus santos Apóstolos que, por sua vez, seguiam os costumes de sua religião, o judaísmo, conheceu um longo e profundo desenvolvimento ao longo da história da Igreja, o que veremos a seguir.

2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante

Nos evangelhos podemos encontrar informações sobre a oração de Jesus. Ele, seguindo os costumes da religião de seus pais, o judaísmo, observava as suas prescrições litúrgicas além de se dirigir a Deus na intimidade ao Pai. Assim sendo, Jesus, desde a infância, na companhia de seus pais, frequentava anualmente o templo nas grandes festas pascais (cf. Lc 2,41), e também na idade adulta (cf. Jo 2,13-14). Costumava frequentar a sinagoga em dia de sábado (cf. Mt 12,9; Mc 3,1; Lc 4,16). Afastava-se sozinho para rezar em lugares desertos (cf. Lc 5,16) e, às vezes, à noite (Mc 1,35). A oração era um hábito na vida de Jesus; o evangelista Lucas cita várias vezes a oração de Jesus (cf. 5,16; 6,12; 9,18.28-29 passim); e nesses momentos ele se dirigia a Deus na intimidade filial (cf. Lc 10,21; 22,42; 23,43.46; Jo 11,41-42; 17,1).

A prática da oração de Jesus não se restringia a ele, pois ensinava seus discípulos a orar (cf. Mt 6,5-13); e recomendava vivamente aos seus discípulos a oração incessante (Lc 18,1-7; 21,36)). Ensinava-lhes, além da oração pessoal, a oração comunitária (Mt 18,19-20).

Além disso, sabemos que os evangelhos não são a biografia de Jesus, senão uma cristologia das comunidades dos seus redatores. Portanto, é de se imaginar que as orações que os evangelistas atribuem a Jesus são também as orações praticadas pelas comunidades, no seio das quais surgiram esses tratados baseados nas experiências que elas fizeram do encontro com Jesus de Nazaré.

2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica

Entretanto, os outros escritos neotestamentários – além dos quatro evangelhos – nos dão informações sobre a oração das primeiras comunidades cristãs. Podemos ver Pedro e João subirem ao Templo para a oração das três horas da tarde (At 3,1), isto é, a hora nona. Mas, ao que tudo indica, também toda a comunidade da Igreja nascente tinha o costume da oração incessante. De fato, “eles eram assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42); também “de comum acordo iam diariamente ao Templo com assiduidade: partiam o pão em casa, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). O apóstolo Tiago recomenda à sua comunidade: “Algum de vós está sofrendo? reze” – aqui se trata da oração pessoal, mas logo a seguir se refere à oração da Igreja (TEB, nota versão): “Algum de vós está doente? Mande chamar os anciãos da Igreja e estes orem” (Tg 5,14).

2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. V         

Esse hábito da oração pessoal e comunitária incessante passará às comunidades pós-apostólicas e acompanhará a Igreja ao longo de toda a sua história, até os nossos dias. Já no final do séc. I ou início do séc. II, na Didachè, capítulo IX, recomenda-se rezar a oração do Pai Nosso três vezes ao dia. No norte da África, onde muito cedo se formaram fervorosas e bem estruturadas comunidades cristãs, temos o testemunho de Clemente Alexandrino (Stromata); também temos informações do primeiro escritor eclesiástico de língua latina de que se tem notícia, Tertuliano (De oratione; De ieiuno), passando por Cipriano (De oratione dominica) a Agostinho de Hipona (Sermones ad competenti).

Atribuída a Hipólito de Roma, temos também a Traditio Apostólica (início do séc. III) que nos dá informações das horas de oração: ao amanhecer antes de começar qualquer atividade (esta hora na Igreja); à hora terça, à hora sexta e à hora nona, onde quer que esteja; antes do repouso noturno; e, por fim, à meia-noite. No final do séc. IV, a peregrina Egéria, que passou três anos na Palestina, dá informações sobre a liturgia de Jerusalém, especialmente, sobre as orações das horas na Igreja da Anástasis: Vigília (monges, virgens e leigos) entoam hinos, salmos, aos quais se responde com antífonas; depois que chegam dois ou três presbíteros e os diáconos, dá-se início à oração da manhã. O bispo chega com seus presbíteros e reza uma oração e dá a bênção aos que indicam seus nomes, por detrás das grades que fecham a gruta do túmulo onde o corpo de Cristo foi depositado. Depois voltam a se reunir no mesmo lugar à hora sexta e nona; à décima hora se faz o lucernário, as Vésperas (SCh, 2002, p. 239-241); não menciona uma oração noturna, mas nas páginas seguintes relata os ofícios solenes da Epifania, os quarenta dias que a seguem e os ofícios das festas pascais: Quaresma, Semana Santa, Páscoa, Oitava até Pentecostes (SCh, 2002, p. 251-305).

A partir dessa época, isto é, séc. IV, começam as primeiras tentativas de se organizar a oração das horas. Os autores costumam distinguir dois caminhos: um primeiro seguiria numa direção que chamamos Ofício Catedral, e um segundo numa outra direção que chamamos Ofício Monástico. O Ofício Catedral – também o paroquial – já era constituído das Horas Maiores – Laudes e Vésperas – sendo as Laudes precedidas de uma vigília aos domingos e dias festivos. O Ofício Monástico, além dessas duas Horas Maiores, se constituía de três horas diurnas, Terça, Sexta e Nona, e mais a Primeira e Completas. Além disso, os monges institucionalizaram as vigílias de oração como ofício cotidiano, uma vez que o seu ideal era o de recitar integralmente o Saltério (cf. LEIKAN, 2000, p. 48).

Digna de nota é a presença do Salmo 62 nas Laudes e do Salmo 140 nas Vésperas em todas as Igrejas já desde o séc. IV, segundo o testemunho de Eusébio de Cesareia (Comentário ao Salmo 140 e 142), João Crisóstomo (Catequeses batismais) e das Constituitiones Apostolorum. Esse último documento (fins do séc. IV ou inícios do V) já registra a presença do Nunc dimittis (Lc 2,29-32) no ofício vespertino.

2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II

Entretanto, o Ofício monástico desenvolveu-se de tal forma que acabou influenciando o Ofício catedral. Para além do surgimento de novas línguas e o uso cada vez mais restrito do latim, outras razões – que não vem ao caso serem expostas aqui – fizeram com que o povo não tivesse mais acesso à liturgia em geral, passando o ofício a ser de “mão de obra especializada”, ou seja, do clero e dos monges. A partir do séc. IX, em muitas Igrejas locais, impunha-se ao clero a obrigação de recitar o ofício, então, fortemente influenciado pelo Ofício monástico que, por sua vez, previa mais horas e textos mais longos: ao longo do curso de uma semana, recitava-se todo o saltério e, em um ano, lia-se toda ou quase toda a Bíblia, e mais os hinos, cânticos, antífonas, responsórios etc.

Aqui não se pode deixar de mencionar a Regra de São Bento que, principalmente por obra de Carlos Magno, se impôs em quase todos os mosteiros do Ocidente. Na Regula Monasteriorum Sancti Benedicti Abbatis prescrevem-se sete orações das horas por dia citando o Salmo 118,164: “Eu vos louvo sete vezes cada dia” (Cap. XVI). Essas horas são: Laudes, Prima, Terça, Sexta, Nona, Vésperas e Completas.

Para a Hora Noturna, durante o Inverno (início de novembro até a Pascoa), são previstos 6 salmos precedidos do versículo “Abre, Senhor, os meus lábios e minha boca anunciará o vosso louvor”, ao qual segue o Salmo 3, o Glória, o Salmo 94 com antífona, seis salmos com antífonas, três leituras bíblicas com responsório, mais 6 salmos com aleluia, leitura do Apóstolo, e conclui-se com a súplica litânica, ou seja, Kyrie eleison (Cap. IX). A Hora Noturna é rezada na metade da noite por causa do Salmo 118,62: “Alta noite eu me levanto e vos dou graças”. Para o restante do ano, por causa da brevidade das noites, se faz apenas uma leitura do Antigo Testamento, permanecendo todo o resto como no período de Inverno (Cap. X). Aos domingos, porém, leem-se quatro leituras com responsório depois dos seis primeiros salmos e mais quatro depois dos outros seis salmos; três cânticos do Antigo Testamento com Aleluia; mais quatro leituras com responsório, Te Deum laudamus, leitura do Evangelho, Te decet laus e bênção final (Cap. XI).

As laudes, por sua vez, se compunham do Salmo 66 com antífona, seguido do Salmo 50 com Aleluia, o Salmo 117 e 62, o Benedictus, “Laudes”, uma leitura do Apocalipse, com responsório, hino ambrosiano, um versículo, cântico evangélico e se concluíam com a litania (Cap. XII). Para as demais horas, as composições são as seguintes: Prima: três salmos com um único Glória, hino, depois o versículo Deus, in adiuntorium meu…, três salmos, uma leitura, um versículo, Kyrie eleison e conclusão; a Terça, a Sexta e a Nona, o Ofício segue a mesma ordem para as três: versículo, o hino próprio da hora, três salmos, as leituras, o Kyrie eleison e as preces finais (Cap. XVII). Aqui se recomenda que, se a comunidade for numerosa, recitem-se os salmos com antífona.

As Vésperas se compõem de quatro salmos com as antífonas, a leitura, responsório, hino, versículo, cântico evangélico, a prece litânica e se concluem com o Pai Nosso. Nas Completas, se recitam os três salmos seguidamente sem antífona, o hino, uma única leitura, o versículo, o Kyrie eleison e se concluem com a bênção (Cap. XVII).

Da influência das regras dos mosteiros romanos no Ofício catedral surgirá uma espécie de Ofício monástico-eclesiástico; uma dessas novas regras será adotada pelo papa e os seus curiais a partir dos finais do séc. X ou início do séc. XI, o que ficou conhecido como Breviário da Cúria romana (cf. RAFFA, 2004, p. 655). Na primeira metade do séc. XIII, São Francisco de Assis adotará esse Ofício para sua ordem, o que, por sua vez, contribuirá para sua grande difusão em quase todo o Ocidente, se tornando a forma predominante (cf. RAFFA, 2004).

Na reforma tridentina do Breviário Romano, Pio V, com a bula Quod a nobis (1568), reduziu o número de salmos, mas introduziu o Ofício de Santa Maria no Sábado; reduziu ainda os textos hagiográficos. A bula não contempla os leigos, quando elenca os grupos de pessoas que estão obrigadas a rezar o ofício, e compromete o simbolismo das horas ao prever a recitação privadamente, chega mesmo a equipará-la à comunitária com a consequente recitação na hora que se pudesse. Doravante, o Breviário de Pio V será praticamente a única regra em toda a Igreja do Ocidente. Uma nova reforma só viria já no séc. XX, por obra de Pio X, com a bula Divino afflatu: reduziu o número de salmos em todas as horas, mas manteve a recitação do saltério no curso de uma semana fazendo uma nova distribuição dos salmos. Pio X fez essa reforma tendo em vista, sobretudo, as exigências do trabalho pastoral do clero.

Da reforma promovida pelo Vaticano II surge a Liturgia das Horas de Paulo VI, promulgada em 1º de novembro de 1970, a que usamos hoje. As grandes novidades aqui são: distribuição dos salmos em quatro semanas (cf. SC 91); a supressão da Hora Prima (SC 89); a possibilidade de a hora chamada Matinas ser recitada a qualquer hora do dia, embora conserve no coro a índole de louvor noturno, e reduz-se o número de salmos, mas propõe leituras mais longas; para as chamadas Horas Menores, a saber, Terça, Sexta e Nona, pode-se escolher uma delas fora do coro (SC 90) e, por fim, o uso da língua vernácula (SC 101). Recomenda-se ainda devolver fidelidade histórica aos martírios ou às vidas dos Santos (SC 92) e que “sejam retiradas ou mudadas aquelas coisas que sabem a mitologia ou são menos condizentes com a piedade cristã” (SC 93).

3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das Horas

A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (IGLH), no Capítulo II, muito apropriadamente, apresenta o rito com o título “A santificação do dia ou as diversas Horas do Ofício Divino”. São sete os momentos de oração (cf. Sl 118,164): Ofício das Leituras, Laudes, três Horas Médias, Vésperas e Completas. A Introdução do Ofício é, na primeira hora rezada (Laudes ou Ofício da Leituras), o Invitatório “Abri os meus lábios, ó Senhor. E minha boca anunciará o vosso louvor”, com o que “os fiéis são convidados cada dia a cantar os louvores de Deus e a escutar sua voz…” (ILGH 34); segue-se o Sl 94(95), que pode ser substituído pelos salmos 99(100), 66(67) ou 23(24) com suas respectivas antífonas. O salmo de abertura é rezado de forma responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um refrão, mas, se for rezado individualmente, basta dizer a antífona no seu início e seu fim.

A hora chamada “Matinas” comparece na Liturgia das Horas de Paulo VI sob o título “Ofício das Leituras” que, como prevê a Sacrosanctum Concilium – já o mencionamos mais acima – pode ser rezado a qualquer hora do dia, embora conserve seu caráter de oração noturna (cf. SC 89; ILGH 57). Quando se abre o Ofício, reza-se no início o Invitatório, como dito no parágrafo anterior. Diferentemente da salmodia do ordinário do rito, o Salmo Invitatório é recitado de forma responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um refrão, e o mesmo se diga para as outras opções de salmos previstos para esta hora. Quando o Ofício das Leituras não abre o ofício cotidiano, ele é aberto como as demais horas, ou seja, versículo de abertura e, logo em seguida o Hino. A salmodia, como nas demais horas, é composta de três salmos com as antífonas correspondentes; a isso segue o versículo, que faz a transição da salmodia para a escuta da Palavra de Deus. De fato, logo a seguir se lê uma leitura bíblica seguida de seu responsório. A segunda leitura é tomada das obras dos Santos Padres ou de outros escritores eclesiásticos. Aos domingos, dias de solenidade ou festa, entoa-se o Te Deum. O Ofício é encerrado com a Oração Conclusiva e o “Bendigamos ao Senhor. Graças a Deus”.

As Horas Maiores, ou seja, Laudes e Vésperas, são abertas com o versículo introdutório “Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Socorrei-me sem demora”. As Laudes, porém, se forem a primeira oração do dia, são abertas com o Invitatório, seguido do Glória ao Pai, o hino próprio da hora, a salmodia com as respectivas antífonas com Aleluia – exceto no tempo da Quaresma – ditas no início e no fim, neste último caso, são precedidas do Glória ao Pai… Segue-se a recitação do hino, dos dois salmos, entre os quais, recita-se um cântico do Antigo Testamento, cada qual destes três elementos com suas respectivas antífonas no início e no final. Em prosseguimento, se lê a leitura breve com seu responsório – caso seja oportuno, pode-se fazer uma homilia ou um breve tempo de silêncio antes do responsório; essa leitura pode ser substituída por uma mais longa escolhida à vontade. Então recita-se o Cântico evangélico Bendictus – O Messias e o seu precursor (Lc 1,68-79) – com a sua antífona. Seguem as preces para consagrar o dia e o trabalho a Deus; a oração do Pai Nosso e, concluindo a ofício, a oração conclusiva e a despedida.

As Vésperas têm uma estrutura muito semelhante. Nunca se abrem com o Invitatório porque não é a primeira oração do dia. O Hino é o próprio dessa hora e outra diferença está na salmodia, ou seja, em vez de se rezar um cântico do Antigo Testamento, como nas Laudes, reza-se um do Novo Testamento. Outra diferença ainda está no Cântico evangélico: aqui se recita o Magnificat. Tudo o mais é feito como nas Laudes, evidentemente com os conteúdos próprios de cada hora. Observe-se aqui que nos sábados não há Vésperas porque, nesta hora, rezam-se as primeiras Vésperas do domingo, que é sempre solenidade; exceção a isto que acabamos de dizer é o Sábado Santo, porque não se rezam as primeiras Vésperas do Domingo de Páscoa que não pode ter outra oração antes da grande Vigília Pascal.

As Horas Médias têm uma estrutura bem mais simples: abertura como as Horas Maiores – nunca o versículo “Abre meus lábios, Senhor…” –; o hino próprio de cada hora; salmodia – quando se rezam as três horas, somente uma usa os salmos distribuídos no Saltério com suas antífonas, para as outras duas tomam-se dos Salmos Complementares, os assim chamados “Salmos Graduais”; leitura breve com seu responsório, oração conclusiva e despedida: “Bendigamos ao Senhor. Graças a Deus”. Observe-se que nestas três horas não se faz menção da memória dos Santos.

Antes do repouso noturno, a Igreja convida seus fiéis a elevarem suas mentes a Deus, em ritmo de oração. Para tanto, recitam-se as Completas que, como o próprio nome sugere, conclui o ofício cotidiano. De todas as horas, as Completas são as mais simples e breves em sua estrutura. Esta hora antes do repouso noturno é iniciada como as demais horas, – exceto a primeira oração do dia, isto é, Ofício das Leituras ou Laudes –, continua com o Hino, a salmodia composta de apenas um salmo, salvo quando são rezadas depois das primeiras vésperas dos domingos e solenidades, quando se rezam os salmos 4 e 133(134). Depois da salmodia se faz a Leitura Breve com o responsório “Senhor em vossas mãos entrego meu espírito… Vós sois o Deus fiel que salvastes vosso povo. Glória ao Pai…”; logo em seguida entoa-se o Nunc Dimittis, o Cântico de Simeão (Lc 2,29-32), com sua antífona. Essa hora termina com a Oração Conclusiva seguida da bênção “O Senhor todo-poderoso nos conceda uma noite tranquila e, no fim da vida, uma morte santa”; e, por fim, reza-se uma das antífonas de Nossa Senhora propostas na Liturgia das Horas.

Antes de passarmos ao próximo ponto é útil lembrar que a Liturgia das Horas segue o Ano Litúrgico e o Calendário Romano. Deste modo, o conteúdo eucológico varia de acordo com o teor teológico de cada tempo (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa e Tempo Comum) – eis porque não se diz o Aleluia no final das antífonas na Quaresma –; e do mesmo modo celebram-se as solenidades, as festas e a memória dos Santos.

4 Simbolismo e teologia da Liturgia das Horas

Nas últimas décadas, se verifica uma forte tendência de fazer teologia da liturgia em geral e de suas celebrações “a partir da Lex Orandi”[1], ou seja, comentar a teologia dos sacramentos e demais celebrações litúrgicas a partir, principalmente, do rito e de seus conteúdos. Para a Liturgia das Horas não poderia ser diferente, tendo em vista a riqueza simbólica e espiritual de suas diversas horas.

Muito útil para a sua compreensão é começar pela nomenclatura. “Liturgia das Horas” é um título surgido em 1959 e é muito apropriado, porque expressa a finalidade dessa oração da Igreja, a saber, a santificação do curso do dia, em que o fiel se santifica – no rito bizantino se diz “relógio” pelo mesmo motivo. “Ofício Divino”, usado ainda hoje ao lado de Liturgia das Horas, este termo foi usado outrora para designar todo ato de culto e, depois, para designar a celebração litúrgica da Igreja, mas parece que visa também acenar para o caráter obrigatório, canônico, (Officium, dever) de sua recitação (cf. RAFFA, 2004, p. 652). “Breviário” parece-nos um tanto pobre para designar tão rica expressão litúrgica da Igreja, uma vez que foi usado para designar compilação, abreviação etc. dos diversos livros litúrgicos usados para a oração das horas na Idade Média. Ainda ao longo da história da liturgia foram usados os seguintes nomes: cursus, preces horariae, opus Dei, horae canonicae (cf. RAFFA, 2004, p. 652).

Originalmente, o Oficio das Leituras – na Sacrassanctum Concilium ainda se usa a expressão “Matinas” – tem caráter noturno. Rezava-se na metade da noite, sobretudo nos mosteiros, uma referência ao Salmo 118(119),62. O simbolismo dessa hora é o das “trevas”, das quais Cristo nos arrancou. Podemos encontrar um exemplo no hino “A noite escura apaga”. Já na primeira estrofe se diz: “A noite escura apaga da treva toda cor…” sugerindo que as trevas nos impedem a visão física, metáfora da visão beatífica. E segue “Juiz dos corações a vós nosso louvor” sugerindo que o nosso louvor ao Cristo é incessante.

Isso que acabamos de dizer parece ser reforçado pela parábola das “dez virgens” (Mt 25,1-10), que se insere num quadro literário de teor marcadamente escatológico: a vinda do Filho do Homem (Mt 24,26-35); desconhecimento do dia do juízo final (Mt 24,36-51); os talentos (Mt 25,14-30); o juízo final (Mt 25,31-46). O simbolismo das lâmpadas com óleo suficiente para serem acesas à chegada do esposo sugere não só uma atitude de vigiar (cf. Mt 24,42), mas sobretudo o estar preparado para a “hora”.

As Laudes têm um simbolismo natural, o sol, pelo fato de serem rezadas às primeiras luzes. O sol, “o astro nascente”, de fato, é uma referência bíblica ao Messias (para indicar o descendente de Davi: Jr 23,5; Zc 3,8; 6,12; o verbo correspondente para indicar o do astro messiânico: Nm 24,17; cf. Ml 3,20; Mt 2,2; Lc 1,78). O sol, portanto, a luz, é um simbolismo já presente tanto no Antigo como no Novo Testamento, aqui especialmente na literatura joanina:

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um homem enviado por Deus; o seu nome era João.  Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por ele. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz. O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem (Jo 1,4-9).

João volta a insistir neste simbolismo: “Novamente Jesus lhes dirigiu a palavra: ‘Eu sou a luz do mundo. Aquele que vem em meu seguimento não andará nas trevas; ele terá a luz que conduz à vida’” (Jo 8,12); e mais adiante escreve: “por quanto tempo eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5); e ainda:

Jesus lhes respondeu:

A luz ainda está entre vós por pouco tempo. Caminhai enquanto tendes a luz, para que as trevas não se apoderem de vós; pois quem caminha nas trevas não sabe para onde vai. Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da      luz. (Jo 12,35-36)

E mais: “Eu, a luz, vim ao mundo a fim de que todo aquele que crê em mim não pereça nas trevas” (Jo 12,46). Notemos que, em todos esses versículos, Jesus se autoidentifica com a luz, símbolo da salvação, enquanto à treva é identificado o pecado, o não estar e andar na presença de Deus.

Contudo, João não é o único a usar o simbolismo da luz aplicado ao Cristo e à salvação que Ele nos alcançou em seu mistério pascal. Podemos também encontrar esse simbolismo nos escritos paulinos: “Dai graças ao Pai que vos permitiu partilhar da herança dos santos da luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do Filho do seu amor” (Cl 1,12-13; cf. 1Ts 5,5; Hb 6,4; 10,32).

Robert Taft observa que o simbolismo da luz, ao ser aplicado aos que vivem em Cristo (Ef 5 e 1Jo 1,5-7; 2,8-11), tem uma dimensão moral e comunitária, bem como observa que o livro do Apocalipse é concluído com um belo hino que faz referência à luz do Cordeiro na Cidade Santa da Jerusalém celeste (Ap 21,22-26) (TAFT, 2000, p. 157).

Mas vejamos agora como esse tema da luz, no seu simbolismo natural, o sol, aparece no rito das Laudes, com uma clara referência à ressurreição de Jesus. De início, observemos que este tema é constante nessa hora por causa do hino Benedictus, também conhecido como “Canto de Zacarias”. No hino do Advento, proposto para essa hora, podemos ler: “Em meio à treva escura, ressoa clara voz. Os sonhos maus se afastem, refulja o Cristo em nós. Despertem os que dormem feridos de pecado. Um novo sol já brilha, o mal vai ser tirado”. No hino proposto para o tempo de Natal, o sol aparece como marcador da duração do louvor, mas não é aplicado ao Cristo tampouco à sua ação salvadora. Para o tempo da Quaresma, curiosamente o simbolismo da luz/sol não aparece no hino proposto para o domingo, o dia do sol, mas está no hino proposto para os dias da semana: “Ó Cristo, sol de justiça, brilhai nas trevas da mente. Com força e luz, reparai a criação novamente”. No hino das Laudes da Semana Santa, o tema é mais ligado aos mistérios da paixão de Cristo e não faz referência ao simbolismo luz/sol. Para os domingos de Páscoa, porém, o simbolismo aparece sob a imagem da “rutilante aurora” e, para os dias da semana, o simbolismo luz/sol aparece mais explicitamente: “A fiel Jerusalém canta um hino triunfal, celebrando, jubilosa, Jesus Cristo, a Luz pascal”.

Nas solenidades que ocorrem fora do Tempo Pascal, o tema vai aparecer no hino das Laudes da Santíssima Trindade e é igualmente atribuído à Trindade: “Ó Trindade, num sólio supremo que brilhais, num intenso fulgor”;  e ao Filho: “Esplendor e espelho da luz sois, ó Filho, que irmãos nos chamais”; e o Espírito Santo: “Piedade e amor, fogo ardente, branda luz, poderoso clarão, renovai nossa mente, ó Espírito, e aquecei o fiel coração”. Na solenidade do Sagrado Coração de Jesus, esse simbolismo aparece na quinta estrofe do hino das Laudes: “Ficai conosco, Senhor, nova manhã que fulgura e vence as trevas da noite, trazendo ao mundo a doçura”. Esta estrofe deixa claro que nas Laudes se celebram a presença do Cristo-Luz entre os fiéis e a vitória de Cristo sobre as trevas do pecado e da morte.

Muitos são os exemplos que aqui poderíamos citar, mas estes nos bastam para percebermos que o tema luz/sol, em oposição à treva, é central no ofício das Laudes. Esta centralidade do simbolismo do sol, para além de nos remeter à ressurreição de Jesus, nos lembra uma das grandes maravilhas da criação, fonte de luz e calor, de vida de alimento, o que nos leva ao louvor e ação de graças (cf. TAFT, 2000, p. 158) por tantos dons recebidos da bondade do Senhor.

Contudo há outros elementos na estrutura das Laudes, que nos proporcionam o seu conteúdo teológico. O primeiro desses elementos é a santificação do período da manhã, mas, antes de iniciar qualquer atividade do dia, o fiel é convidado a voltar a sua mente para o Senhor (cf. IGLH 38). Assim, o cristão estará seguindo o conselho de Paulo quando diz “Portanto, quer vós comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31), ou seja, toda a sua jornada bem como todas as suas atividades temporais serão feitas diante e para a glória de Deus.

As Vésperas e as Laudes são chamadas de Horas Maiores. As Vésperas, porém, são celebradas ao despontar do entardecer. Como nas Laudes, o simbolismo central é o tema da luz em oposição à treva. Ao pôr-do-sol, acendem-se as lâmpadas; isto significa a luz de Cristo que treva alguma pode vencer. Para além de evocar as trevas da paixão de Cristo, as Vésperas nos fazem meditar sobre a transitoriedade da nossa vida e de toda Criação. Isto que acabamos de dizer nos abre para a dimensão escatológica da oração vespertina, uma vez que tal transitoriedade da vida deve nos abrir para a esperança da vida eterna. Outros grandes temas que aparecem neste ofício são a ação de graças pelos benefícios recebidos, o trabalho realizado e o bem que pudemos fazer ao longo do dia. Contudo, o tema das trevas nos faz recordar a nossa condição pecadora e, por isso, nos leva ao arrependimento e pedido de perdão pelos pecados que, porventura, tenhamos cometido. Ainda o tema da treva nos convida a pedir proteção divina contra os perigos que ela oferece.

Vimos que, nas Laudes, o simbolismo sol/luz, em oposição à treva, nos recorda a salvação em oposição ao mal e ao pecado em várias passagens bíblicas. Algo semelhante acontece nas Vésperas, por exemplo, no hino proposto para estas horas até o dia 16 de dezembro no Tempo do Advento, o simbolismo luz (redenção) versus trevas (pecado) aparece explicitamente: “Eterna luz dos homens, dos astros Criador, ouvi as nossas preces, de todos Redentor” (1ª estrofe); “Se a sombra do pecado a tudo escurecia, Esposo, vós saístes do seio de Maria” (3ª estrofe). Após o dia 16 até as vésperas do Natal, o hino proposto liga o tema da luz, na sua forma verbal “iluminar” à concepção virginal de Maria por obra do Espírito Santo. No tempo do Natal até a Epifania, Jesus é “Do Pai luz e esplendor” (2ª estrofe).

No tempo da Quarema, o hino de Vésperas também não traz o tema da luz, mas nos dias da semana sim: “A abstinência quaresmal vós consagrastes, ó Jesus, pelo jejum e pela prece, nos conduzis da treva à luz”. Aqui notemos, entretanto, que o simbolismo treva e luz é aplicado ao pecado (treva) e à salvação (luz), ou seja, a luz é simbolismo da ação salvadora de Cristo e treva da ação pecaminosa da humanidade. Para o Tempo Comum, tomemos como exemplo o hino das primeiras Vésperas do domingo da primeira semana: “Ó Deus, autor de tudo, que a terra e o céu guiais, de luz vestis o dia, à noite o sono dais” (1ª estrofe); “Senhor vos damos graças no ocaso deste dia. A noite vem caindo, mas vosso amor nos guia” (3ª estrofe); “E assim, chegando a noite, com grande escuridão, a fé, em meio às trevas, espalhe o seu clarão” (5ª estrofe). Aqui tampouco o simbolismo da luz é aplicado ao Cristo, mas os termos luz, dia, noite, ocaso, escuridão, trevas e clarão indicam a origem da luz em Deus e sua difusão em meio às trevas como obra da fé. Além de indicar com muita precisão a hora do ofício de Vésperas, celebra a confiança da fé na luz divina para atravessar a escuridão da noite, metáfora do pecado e da morte.

Nas segundas Vésperas do primeiro domingo, se celebra o Deus da criação e da autoria dos tempos: “Criador generoso da luz, que criastes a luz para o dia, com os primeiros raios da luz, sua origem o mundo inicia” (1ª estrofe); “Vós chamastes de ‘dia’ o decurso da manhã luminosa ao poente. Eis que as trevas já descem à terra: escutai nossa prece, clemente”. Em seguida aparecem os temas do arrependimento e do perdão pelos pecados cometidos ao longo do dia: “Para que sob o peso dos crimes nossa mente não fique oprimida, e, esquecendo as coisas eternas, não se exclua do prêmio da vida” (3ª estrofe); “Sempre à porta celeste batendo, alcancemos o prêmio da vida, evitemos do mal o contágio e curemos da culpa a ferida” (4ª estrofe).

As Horas Menores ou Hora Média, a saber Terça (às nove horas), Sexta (ao meio-dia) e Nona (às quinze horas), têm um caráter simbólico-sacramental, pelo fato de fazerem referência aos momentos chave do mistério de Cristo e da ação apostólica dos Doze (cf. IGLH 75). Seu intuito é que os cristãos interrompam suas atividades e orem para a santificação do dia e de suas próprias atividades. Mas vejamos como os temas ligados ao mistério da paixão de Cristo aparecem no rito, especificamente, nos hinos dessas três horas.

Na Oração das Nove Horas, o hino proposto para o Tempo de Quarema é exemplar, porque confirma o que acabamos de dizer no parágrafo precedente. A primeira estrofe é um louvor às três virtudes teologais, dons que nos são oferecidos pelos méritos da paixão de Cristo: “Na fé em Deus, por quem vivemos, na esperança do que cremos, no dom da santa caridade, de Cristo as glórias entoemos”. A confirmação do que acabamos de fazer bem como a referência à paixão de Cristo aparecem na estrofe seguinte: “Ao sacrifício da Paixão na hora terça conduzido, Jesus levando a cruz às costas, arranca às trevas o perdido”. Essa referência à redenção sobressai mais nitidamente na terceira estrofe: “Vós nos livrastes do decreto duma total condenação; do mundo mau livrai o povo, fruto da vossa redenção”.

Na Oração das Doze Horas a referência à paixão de Cristo já aparece de modo explícito na primeira estrofe: “Na mesma hora em que Jesus, o Cristo, sofreu a sede, sobre a cruz pregado, conceda a sede de justiça e graça a quem celebra o seu louvor sagrado”. A estrofe seguinte é importante pelo fato de veicular a Liturgia das Horas ao sacramento da eucaristia: “Ao mesmo tempo ele nos seja a fome e o Pão divino que a si mesmo dá; seja o pecado para nós fastio, só no bem possa o nosso gozo estar”. Aqui se concebe a eucaristia como sacramento do sacrifício de Jesus.

A Oração das Quinze Horas, por sua vez, usa do simbolismo numérico para evocar o mistério da morte redentora de Cristo: “O número sagrado, três vezes três das horas, abrindo um novo espaço, nos chama à prece, agora. Ao nome de Jesus, perdão seu povo implora” (1ª estrofe). A terceira estrofe celebra a vitória da cruz sobre a morte e o retorno da luz após as densas trevas, uma clara referência à ressurreição de Cristo: “Agora morre a morte, vencida pela cruz; após as trevas densas, serena, volta a luz; o horror do mal se quebra, nas mentes Deus reluz”.

5 Pastoral da Liturgia da Horas

A liturgia em geral, já bem antes do final do primeiro milênio e devido a vários fatores, deixou de ser acessível ao povo cristão, já o dissemos, tornando-se “ofício” de “mão de obra especializada”, isto é, monges e clero. À eucaristia o povo assistia, mas não participava; ia à missa apenas para ver o “milagre eucarístico”. O famoso Decreto de Graciano (1140-1150) deixa muito clara a distinção entre os “espirituais” (os monges e o clero), classe destinada ao ofício divino, e os “carnais”, aqueles que se casam e podem depositar suas oferendas no altar, pagar os dízimos… (THION, 2005, p. 342). Uma situação que perdurou na Igreja Católica até o Concílio Vaticano II. Isso já aponta para o desafio de uma mudança de mentalidade, consolidada por séculos de história. Para agravar esse desvio, a Igreja precisa lidar com a questão do estilo de vida moderno, que deixa as pessoas cada vez mais sem tempo para cuidar de sua vida pessoal e, aqui, a dimensão espiritual é a mais prejudicada.

Algumas iniciativas têm sido tomadas: o reconhecimento oficial da Igreja que a liturgia é culto público, inclusive a Liturgia da Horas:

O exemplo e o preceito do Senhor e dos Apóstolos de orar sempre e com insistência não devem ser considerados como regra meramente legal, mas derivam da essência íntima da própria Igreja, que é comunidade e deve expressar seu caráter comunitário também ao orar. Mas a oração da comunidade tem dignidade especial, já que o próprio Cristo disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (Mt 18,20). (IGLH 9)

E mais adiante se reconhece que “A Liturgia das Horas, como as demais ações litúrgicas, não é ação particular, mas algo que pertence a todo o Corpo da Igreja e o manifesta e atinge” (IGLH 20), seguindo um princípio vital estabelecido pelo Vaticano II (SC 26). Além disso, reconhece que a Liturgia das Horas é ápice e fonte da atividade pastoral (IGLH 18), algo sobre o qual os leigos vêm assumindo cada vez mais sua responsabilidade. Contudo a participação dos leigos na oração das horas é ainda muito tímida.

Com relação à linguagem, no Brasil, há três décadas surgiu o Ofício Divino das Comunidades, porém a participação do povo continua tímida[2]. No conjunto da América Latina, difundiu-se também a prática da Leitura Orante, ligada não tanto à Liturgia das Horas, mas à prática, também monástica, da Lectio Divina. Urge, contudo, que tais iniciativas sejam aprofundadas por peritos em liturgia e lideranças comunitárias, sem os quais qualquer reflexão teológico-pastoral fica comprometida, e por pastores verdadeiramente comprometidos com as comunidades cristãs.

Contudo, adverte-se que seria totalmente ilusório esperar do cristão contemporâneo um grau de comprometimento semelhante ao dos cristãos dos primeiros séculos da vida da Igreja. Contudo, é neste mundo, através de avanços tecnológicos gigantescos que oferecem às pessoas diversões de todo o tipo, que a Igreja continua sendo enviada a anunciar, testemunhar e celebrar o Evangelho de Cristo.[3]

Considerações conclusivas

Ao longo do texto, procuramos conceituar, mostrar a evolução histórica, apresentar a teologia simbólica e os desafios pastorais da Liturgia das Horas. Com isso, esperamos ter conseguido mostrar o verdadeiro espírito dessa forma de oração da Igreja, que lhe é essencial. Chegamos à conclusão de que se trata de algo verdadeiramente evangélico e vital para o caminho dos cristãos, apesar de todas as suas vicissitudes. Uma vez que é o exercício sacerdotal de Cristo que une a si sua dileta Esposa, a Igreja, sob a ação do Espírito Santo, a Liturgia das Horas conserva sua força de santificar o ser humano e consagrar o tempo e todas as atividades humanas ao Deus da vida, banhando o mundo, a cada hora, com uma onda de Oração.

Marco Antonio Morais Lima, SJ. Universidade Católica de Pernambuco. Texto original português. Submetido: 15/11/2021. Aprovado: 15/12/2021. Publicado: 30/12/2021.

 Referências

AUGÉ, M. Liturgia. História, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005.

CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum Concilium. Constituição sobre a sagrada liturgia. Petrópolis: Vozes, 1968.

CONGREGAÇÃO DO CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas/Paulus, 1995.

LEIKAM, R. M. La Liturgia delle Ore nei primi quattro secoli. In: CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica. Manuale di liturgia V. Casale Monferrato: Piemme, 2000. p. 90-130.

RAFFA, V. Liturgia das Horas. In; SARTORE, D.; TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 2004. p. 651-670.

TAFT, R. F. Teologia della Liturgia delle Ore. In: CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica. Manuale di liturgia V. Casale Monferrato: Piemme, 2000. p. 150-165.

[1] Veja-se a este respeito a breve, porém profunda, exposição de TABORDA, F. O Memorial da Páscoa do Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21-37.

[2] Sobre o Ofício Divino das Comunidades, veja-se o verbete nesta mesma Enciclopédia.

[3] Muito se investiu nos últimos anos na criação de aplicativos, que disponibilizam, em formato digital, o conjunto da Liturgia das Horas. Outros formatos, ligados à Leitura Orante, também estão disponíveis, como Lecionaltas, Passo a Rezar, Prayer walking etc.

Mística e testemunho

Sumário

1 A experiência mística e o ato de testemunhar

1.1 Fundamentação bíblica

1.2 Elaboração sistemática

2 O testemunho no/dos místicos cristãos

2.1 A Patrística e o Medievo: elogio da contemplação

2.2 Do século XVI ao século XIX: a respeito da vida ativa

2.3 Século XX e a época contemporânea: leitura mística dos sinais dos nossos tempos

3 Rumo a uma mística testemunhal intercultural

1 A experiência mística e o ato de testemunhar

O vínculo entre a experiência mística e o ato de testemunhar pode ser considerado tanto na sua dimensão pessoal quanto na sua dimensão social e eclesial (SCANNONE, 2005, p. 81-101). Se consideramos a mística como a experiência radical da presença de Deus em sua dimensão pessoal e comunitária, o testemunho é, então, a evidência de tal presença, não somente na verificação do contato com a proximidade da divindade, mas também nas palavras e fatos que correspondem e dão autenticidade ao elemento teologal da experiência. A mensagem testemunhal do místico verifica, portanto, a existência e realidade de Deus, mas não o faz separadamente da transformação do faz a experiência em um portador ativo e alegre do Verbo divino. Segundo o Papa Francisco, o sujeito coletivo ativo das místicas populares oferece uma nova abertura tanto no diálogo como no relato da dinâmica pessoal do evangelho em uma cultura plural (EG 122-124; ROSETTI, 2014).

1.1 Fundamentação bíblica

O profeta no Antigo Testamento é, em primeiro lugar, um proclamador da palavra divina. Não fala a partir da sua própria autoridade, mas como mensageiro. O vínculo entre a mística e o testemunho se destaca na abertura completa do profeta à atualidade da palavra de Deus. Por exemplo, Ezequiel, um sacerdote exilado na Babilônia, apresenta a simbologia do comer o rolo de Deus (Ez 3). Assim, o profeta incorpora a palavra que transcende toda a nossa compreensão finita na sua missão e em seu ministério. O profeta é, de certo modo, “engravidado” pela gloriosa palavra. Pelo chamado do povo à fidelidade e à visão do vale dos ossos secos, é recordada a capacidade transformadora do profeta no meio do povo e a favor da vontade de Deus: “Farei deles uma nação única na terra, nas montanhas de Israel: um único rei será o rei de todos eles” (Ez 37,22). As pegadas da palavra absoluta passam pelo mundo, revelando-se no campo frutífero da ação humana.

Há vários modos de vislumbrar uma mística testemunhal no Novo Testamento, principalmente em certas cartas de São Paulo e no livro dos sinais do evangelho de São João. Através da fé em Jesus Cristo, São Paulo fala, em Gal 2,20, da sua união com o Cristo crucificado: “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim”. Essa temática foi desenvolvida mais tarde na espiritualidade dos Passionistas, por exemplo, mas, no fundo, manifesta o poder salvífico de Deus que se submeteu à morte por nossa causa. Deus crucificado se solidariza, portanto, com os seguidores fiéis que cumprem a lei de Deus, sem rejeitá-la e com a esperança de uma união total com o ato de amor encarnado na cruz de Jesus Cristo. Além disso, a união mística não pode ser separada da ação do Espírito, enviado para dar testemunho da verdade (Gal 4,1-20).

O livro dos sinais do evangelho de João relata o ministério de Jesus começando com o casamento em Caná. Nesse contexto, a prática da verdade se transforma no foco do evangelho de Jesus Cristo (Jo, 2-12). Segundo Jo 3,21, “quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus”. As palavras simples da mãe de Deus durante o casamento exortam à fidelidade no seguimento e, assim, a partir da cotidianidade da experiência, surge o misticismo do evangelho (Jo 2,5). A prática da verdade não é, então, um mero utilitarismo ou uma instrumentalização da palavra divina. Ao contrário, o seguidor testemunha a verdade em um caminho entre trevas, iluminado pela luz da fé. O crente se encontra acompanhado pelo bom pastor Jesus: Maria de Betânia que ungiu os pés do Senhor e os secou com seus cabelos (Jo 11, 1-11), a mulher evangelizadora da Samaria (Jo 4), Lázaro (Jo 11), e todas as outras pessoas fiéis rejeitadas pela hegemonia intolerante dessa época. Todos os crentes no evangelho de João testemunham em palavra e em obra, com o auxílio do Espírito de Jesus Cristo.

Concluamos com uma breve lembrança dos testemunhos dos mártires cristãos. Santo Estevão, o primeiro mártir, foi arrastado para fora da cidade para ser apedrejado. Assim recebeu o Espírito do Senhor, perdoando, na ocasião, seus perseguidores (At 7,58-60). Tiago, o irmão de João, foi morto à espada por ordem do rei Herodes (At 12,1-2). No livro do Apocalipse, encontramos numerosas referências simbólicas ao martírio (Ap 6,9-11). Por exemplo, a visão das almas dos decapitados “por causa do testemunho de Jesus e pela palavra de Deus” nos recorda também do sofrimento na cruz do Cordeiro de Deus (Ap 5,9-12; 20,4). O martírio cristão no seu momento originário é um ato de testemunhar. O martírio cristão, no fundo, é o paradigma da mística do testemunho, dando continuidade ao despojamento por amor do outro até a hora da morte. O martírio, porém, abraça toda a vida do batizado e não somente nasce no último momento.

1.2 Elaboração sistemática

O testemunho do místico não se limita à interioridade subjetiva da pessoa humana; ou seja, um testemunho que vem como um dom do Absoluto não é inteiramente uma mensagem interior e privada. O ato de testemunhar contribui para a articulação da mensagem. É um ato performativo pelo qual a expressão corporal e exterior na vida ativa configura a comunicação do testemunho, porque configura o próprio testemunho. Pregue sempre e de vez em quando utilize palavras! Foi o que recomendou são Francisco de Assis e isso é verdadeiro.

Há uma reflexão atual que se concentra no uso do testemunho da mística para a política contemporânea. Os pensadores mais importantes dessa linha são Eric Voegelin e Ernesto Laclau, além de Emilce Cuda que considera a relação entre o peronismo político e a linguagem mística a partir da teologia do povo do Papa Francisco (CUDA, 2016, p. 131-151). O místico, segundo Laclau, congrega o povo sob um simbolismo unificador. A política latino-americana pode aprender algo sobre a identidade do povo a partir do poder discursivo da linguagem mística. O conteúdo religioso é importante somente para a realização de um programa político.

A New Age religiosa na América Latina não ignora o vínculo entre misticismo e o testemunho. Como o peronismo inédito, a New Age instrumentaliza o discurso religioso para gerar uma experiência puramente interior e terapêutica e/ou para facilitar um universalismo falso de perspectivas e culturas, que mantém diferenças fundamentais. O legado de Madame Helena Blavatksy na América Latina – que não é superficial nem em seu alcance nem em sua popularidade – é, contudo, um bom exemplo desse fenômeno de divulgação popular.

Qual abordagem teológica nos serviria para repensar o vínculo em sua dimensão intrínseca, sem identificar todo misticismo com o testemunho cristão como tal, e vice-versa? Segundo uma linha que se encontra tanto na América Latina como entre os latinos dos EUA, é preciso reconectar a beleza e a justiça social. A beleza da religiosidade popular que contemplamos não é indiferente ao clamor dos pobres com os quais devemos nos solidarizar.

2 O testemunho nos/dos místicos cristãos

2.1 A Patrística e o Medievo: elogio da contemplação

Na Patrística e na Idade Média, há várias vinculações da experiência mística com o testemunho, incluindo o comentário ascético sobre a virgindade e o martírio, mas um tema transversal é a orientação da alma à vida contemplativa, seja no isolamento do deserto na oração pelo mundo, seja em uma comunidade monástica rezando os salmos. Orígenes, por exemplo, veio de uma família cristã de Alexandria e escreveu tratados muito importantes durante o terceiro século da cristandade sobre a contemplação. No seu tratado sobre a oração, que inclui um comentário testemunhal a partir da recitação do Pai Nosso, diz que Cristo mesmo acompanha a pessoa que reza no nome de Cristo (BINGEMER.; PINHEIRO, 2016, p. 43-45).

O tema dos pobres não foi ignorado pelos padres da Igreja. No quarto século, São João Crisóstomo pregou que o cristão contemplativo honra a Jesus Cristo quando se dispõe ao serviço dos pobres. Um dominicano do século XIII, Johann Eckhart, também retomou a espiritualidade da pobreza, mas enfatizou a disponibilidade completa da alma. Segundo Eckhart, esse desprendimento representa a última forma de liberdade cristã em união com Deus, indo além de um formalismo moral (BINGEMER; PINHEIRO, 2016, p. 181-194).

O testemunho público das religiosas avança na Idade Média tardia, ainda que não todas as mulheres compartilhem da mesma liberdade. Santa Catarina de Sena, no mesmo século que Eckhart, entre 1377-1378, compôs seu Diálogo para mostrar uma forma de misticismo na família dos dominicanos que se abriu à plenitude de Deus, mas com a humanidade de Jesus Cristo como a ponte entre Deus e o homem. Santa Catarina de Gênova escreveu no século XV e combinou um misticismo da purificação da alma no amor ardente por Deus com o impulso, igualmente ardente, por uma obra caritativa no serviço dos enfermos de sua cidade atacada pela praga. Essa trajetória influenciou espiritualmente a leiga canadense Catherine de Hueck Doherty, com a fundação, em 1947, da Casa de la Madonna. Em suma, o testemunho da antiguidade cristã sobre uma certa prioridade da oração não exclui totalmente o testemunho de amor na vida prática. Muitos autores, como os já citados, buscaram um equilíbrio teológico entre a vida contemplativa e a vida ativa.

2.2 Do século XVI ao século XIX: a respeito da vida ativa

A modernidade introduz uma nova forma de vida para o cristão que muitas vezes se aproxima da mentalidade da Reforma protestante. Certamente o ato de testemunhar, principalmente a partir da leitura pessoal da Bíblia, recuperou sua importância no século XVI, também por causa de um espírito reformador dentro da Igreja Católica. Porém, a hipótese de Eric Voegelin a respeito do legado da Reforma radical merece igual atenção. Isso porque, segundo o cientista político austríaco, a rebeldia sociocultural contra Deus e o homem dessa época tem suas raízes em um espiritualismo exagerado da antiguidade pagã e especificamente no seu perfil gnóstico. A hipótese de um gnosticismo moderno se afirma facilmente em uma atitude reacionária e nostálgica, mas há recursos na nova espiritualidade para concretizar o misticismo do testemunho cristão sem qualquer gnosticismo. Aqui podemos mencionar dois exemplos ilustres, o primeiro do começo e a segunda do fim dessa época: Santo Inácio de Loyola (1491-1556) e Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897).

Santo Inácio introduziu a ideia da contemplação na ação nos seus Exercícios Espirituais. Os jesuítas, e também leigos e leigas dedicados ao caminho inaciano, discernem um espírito missionário que vem do alto, segundo o carisma de Santo Inácio. A missão inaciana impulsiona o cristão para as periferias do mundo e da sociedade. Santa Teresinha morreu muito jovem no Carmelo de Lisieux, mas sua autobiografia espiritual deixou um testemunho da pequena via, que promove uma espiritualidade do cotidiano orientada para o Pai misericordioso. Uma seguidora surpreendente de Santa Teresinha era Dorothy Day, a leiga norte-americana do século XX que encontrou na pequena via o fundamento espiritual do seu pacifismo e compromisso social disseminado através do jornal radical O Trabalhador Católico (The Catholic Worker). A vida ativa da época moderna não deve ser, portanto, um abandono dos frutos da contemplação de Deus. Ao contrário, os testemunhos de Santo Inácio e de Santa Teresinha nos mostram de modos diversos uma espiritualidade concreta e antignóstica, que realiza a comunhão da Santíssima Trindade no nível da história do indivíduo e do povo.

2.3 Século XX e a época contemporânea: leitura mística dos sinais dos nossos tempos

A modernidade tardia, que se desenvolveu paulatinamente no século XX, apresentou novos desafios para a comunidade cristã global. Mesmo antes do Concilio Vaticano II e do chamado da constituição pastoral Gaudium et Spes para discernir os sinais dos tempos à luz do evangelho, algumas testemunhas cristãs se comprometiam com o misticismo do povo de Deus. Santo Alberto Hurtado (1901-1952), por exemplo, foi um educador jesuíta que fundou o Lar de Cristo, em Santiago do Chile, para cuidar das crianças e que defendeu, ardentemente e com rigor, os sindicatos chilenos. Sua mística social está centrada na realidade pessoal do corpo de Cristo:

A “mística social” do P. Hurtado aponta para a transformação da sociedade em seu conjunto, como expressão de amor a Cristo-próximo. Por essa razão, a luta por estruturas sociais justas à qual Alberto Hurtado exorta uma e outra vez, em nenhum caso, poderia realizar-se com prejuízo de pessoas concretas, como sucede com os totalitarismos que ele critica, e, de modo algum, adia o dever de caridade imediata para com os mais necessitados, que ele simultaneamente promove (COSTADOAT, 1996, p. 286).

O anúncio do Reino de Deus funcionava, para o Padre Hurtado, como o ideal utópico capaz de oferecer um sinal do futuro ainda não realizado. O amor de Cristo exortou o cristão a se comprometer no e para o campo político, sem qualquer ideologia mundana.

Thomas Merton (1915-1968) foi um trapista norte-americano e grande admirador da espiritualidade das tradições asiáticas não-cristãs. A partir do claustro monástico e do seu compromisso com a meditação cristã sobre o Deus inefável, Merton nos educou a respeito da prioridade do diálogo inter-religioso e do desafio complicado da realização da paz para o mundo de hoje.

Pedro Casaldáliga, o bispo emérito de São Félix do Araguaia no Brasil, nasceu em 1928 e morreu em 2020. Ele construiu, através de escritos pastorais e antologias de poesia, uma espiritualidade mística da libertação. Seu elogio a “São Romero de América” (1980) abriu a porta para a canonização, pelo Papa Francisco, do bispo salvadorenho e mártir, em 2018. No século XX, a palavra poética com sua criatividade aberta e expressão incisiva pode, então, traduzir novamente a herança bíblica da mística testemunhal.

3 Rumo a uma mística testemunhal intercultural

Hoje em dia, a consciência social existe em um mundo virtual, globalizante e secular. O cristão deve orientar-se a partir de um ato de testemunhar, indo além de todo indiferentismo e proselitismo. Nem o relativismo pós-moderno nem a xenofobia nacionalista podem satisfazer o coração aberto em busca da verdade de um Deus que transcende absolutamente nossas perspectivas culturais limitadas. Um desafio muito atual seria, então, a articulação da relação entre a beleza do testemunho expressada na vida ativa e pública do testemunho de Jesus Cristo e a atualização do bem comum (BINGEMER; CASARELLA, 2017, principalmente p. 147-151).

O encarregar-se da realidade da qual falou o jesuíta salvadorenho Ignacio Ellacuría impulsiona a realização de uma visão do bem na forma de uma ação social a favor dos pobres. O elemento teologal dessa visão protege a mística social e impede o reducionismo. Somos seguidores do profeta divino que revelou o anúncio do Reino quando nos encontramos na companhia de um santo como Alberto Hurtado ou como Oscar Romero. Nosso enfoque permanece na encarnação do Reino no presente. A abertura ao diálogo com o outro como outro e o espírito da reconciliação social nos encorajam durante o processo de discernir o bem comum. O testemunho faz avançar, assim, a causa do Reino, sem relativismo nem proselitismo. O ato de testemunhar não é diminuído nesse processo. Ao contrário, o testemunho de uma Boa Nova cresce através da ação complementar do encontro com o outro, porque o cristão se dispõe dialogicamente a discernir uma articulação mais clara da universalidade de sua visão particular.

Podemos ainda confirmar a atualidade da interculturalidade a partir de dois cristãos contemporâneos inseridos no diálogo entre o cristianismo e o islamismo: Louis Massignon e Chrétien de Chergé.

Louis Massignon (1883-1962) foi um especialista em uma figura relativamente ignorada das tradições islâmicas: o místico persa medieval de Bagdá, Mansur al-Hallaj. Seus amplos estudos dos princípios do sufismo são muitas vezes criticados pela perspectiva orientalista. No entanto, Massignon forjou um misticismo comparativo com dois eixos: a sagrada hospitalidade e a substituição mística. Massignon, como sacerdote melquita e seguidor de Charles de Foucauld, queria forjar um espírito de hospitalidade ao forasteiro dentro do cristianismo, a partir do modelo árabe que experimentou em suas viagens pelo Oriente Médio. Além disso, Massignon queria propor, mais problematicamente, a salvação dos muçulmanos por causa da solidariedade na oração realizada por certos cristãos.

Christian de Chergé (1937-1996) foi o prior da comunidade cisterciense de Tibhirine, quase inteiramente assassinada durante um conflito violento que durou anos entre o governo da Argélia e terroristas muçulmanos (BINGEMER, 2018, p. 33-101). Seu testamento final é um testemunho místico de suprema importância, porque inclui o pedido a Deus de perdoar o seu amigo “do último momento”, ou seja, o assassino hipotético do futuro. De Chergé reconfigura a visão beatífica com Deus. Na hora da morte, quer ver a seu amigo/inimigo com a misericórdia de Deus para realizar a purificação do mundo pelo amor absoluto. A hospitalidade não é então limitada pela ação que realizamos nesta vida. Sem desprezar a noção cristã de Deus como juiz, de Chergé destaca a dimensão espiritual do encontro com o outro. O sofrimento e a violência, que existem no mundo por causa da intolerância e ignorância de outras tradições religiosas e culturais, devem, portanto, ser subjugados à purificação unitiva de Deus.

Conclusão

Para concluir, é preciso reconhecer a mutualidade entre a renovação do testemunho cristão e a prática do misticismo. Muitas vezes essa complementariedade se realiza a favor de um individualismo que contradiz o anúncio do Reino e a autocomunicação de Deus a seu povo fiel e pobre. Porém, a recuperação de uma opção preferencial pelo misticismo do povo de Deus não pode, no futuro, evitar nem os desafios do diálogo inter-religioso nem as vozes dos povos indígenas. Existem, de todo modo, novas pistas dentro da teologia política que reconhecem não somente a importância do ato de testemunhar, mas também a pluralidade das culturas cristãs e não cristãs no mundo de hoje (BINGEMER; CASARELLA, 2017). A atualidade desse modelo de misticismo popular recuperará a crítica de toda religião interesseira que evita o clamor dos pobres e também ignora o pluralismo latino-americano de hoje (GUTIÉRREZ, 2006, p. 39-43). A purificação da dimensão política da fé cristã exige uma transformação pessoal que testemunha o anúncio do Reino e proclama a grandeza de Deus não à margem dos pobres inocentes de Deus, mas em solidariedade radical com eles.

Peter Casarella. Duke Divinity School (USA). Texto original em espanhol. Enviado: 11/06/2019. Aprovado: 12/12/2021. Publicado: 30/12/2021.

Referências

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SEIBOLD, J. R. La mística popular. Buenos Aires: Obra Nacional de Buena Prensa, 2006; Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press, 2008.

Movimento litúrgico

Sumário

Introdução

1 Passos históricos do movimento litúrgico

1.1 Pré-história do Movimento Litúrgico

1.2 Início e teologia do Movimento Litúrgico

1.3 Desenvolvimento do Movimento Litúrgico

1.4 O Movimento Litúrgico no Brasil

2 A contestação do Movimento Litúrgico

3 Nova fase do Movimento Litúrgico

Conclusão

Referências

Introdução

Com um pequeno olhar sobre a história da liturgia, damo-nos conta de que sempre houve períodos históricos nos quais a liturgia foi reconhecida com particular atenção, tanto que se caracterizou em toda a vida da Igreja e em todas as épocas como fonte e cume da vida cristã.

Nos inícios do séc. XX, ganha força um grande movimento de renovação litúrgica na Igreja do Ocidente. É o chamado Movimento Litúrgico, que teve a sua pré-história no período do Iluminismo (séc. XVIII) e da restauração católica (séc. XIX). O Movimento Litúrgico nasceu por força da necessidade da Igreja em resgatar a sua identidade. Sofrendo com a influência do individualismo e do racionalismo modernos, o culto da Igreja, suas formas de celebração e sua Teologia haviam sido relegados a um plano secundário.

Após a tormenta da Revolução Francesa e o insucesso das ideias iluministas, o período sucessivo, o Romantismo, teve uma influência positiva sobre a liturgia. De fato, esse período despertou o sentido histórico e levou muitos clérigos e simples fiéis à pesquisa da origem e do significado dos gestos, das vestes, dos ritos, dos objetos e das festas na liturgia.

O desejo de renovação em breve contagia as igrejas europeias. Na Alemanha, os estudos de teologia são promovidos pelos professores da Universidade de Tubinga. A reflexão teológica desses professores, centrada sobre a Igreja como corpo místico de Cristo, foi uma preciosa preparação para o Movimento Litúrgico. Aqui iremos considerar de maneira essencial alguns personagens, eventos e problemas que caracterizaram o Movimento Litúrgico e o advento do Vaticano II. Deter-nos-emos ao pensamento de algumas pessoas, cuja reflexão teológica teve importantes implicações na compreensão e concepção da liturgia e continua influenciando ainda hoje.

1 Passos históricos do Movimento Litúrgico
1.1 Pré-história do Movimento Litúrgico

No século XVII inaugura-se o movimento filosófico-cultural chamado Iluminismo, em clara contraposição à visão e afirmações do Barroco, opulento e teatral nas suas formas. O Iluminismo privilegia o essencial e a sobriedade: “Na visão iluminística do tempo, os acontecimentos são examinados à luz da razão, sem exceder no sentimento e lutando contra a ignorância e a superstição” (CONTE, 1992, p. 61). O Iluminismo foi contra todas as formas de piedade popular, vistas por ele como cheia de superstições e fanatismo. Criticava ainda severamente as celebrações pomposas e pedia uma liturgia mais sóbria e essencial, atenta para favorecer a participação dos fiéis. Instâncias nem sempre acolhidas pelos eclesiásticos, que, ao invés da renovação, preferiam tudo aquilo que não perturbasse a tranquilidade da sua vida.

Nesse período, nasceu também um grande interesse pelo estudo das fontes litúrgicas antigas, negadas pelos reformadores protestantes. Entre os grandes, merece uma atenção particular o cardeal teatino Giuseppe Maria Tomasi (1649-1713), conhecido como o “príncipe da liturgia do Ocidente”, que desejava trazer novamente à “forma original, os ofícios e os ritos em geral da Igreja” (cf. DI PIETRO, 1986, p. 11).

O Iluminismo também teve grande influência na liturgia. Esse movimento desencadeou um processo contra a centralidade tridentina e a exagerada exteriorização barroca. Os católicos exigiam uma liturgia mais simples, que se adequasse à realidade do povo e fosse por eles compreendida. O problema é que o clero via a liturgia mais como uma função educadora do povo do que como celebração do mistério de Cristo, o que comprometeu o trabalho de reforma. Em todo caso, esse movimento pode ser visto como o princípio do Movimento Litúrgico, que culminará com a reforma litúrgica do Vaticano II. E a partir daí compreenderemos que a liturgia é a fonte primordial da vida cristã.

No entanto, como tal, o Movimento Litúrgico pode ser considerado como um fenômeno muito recente, seja pela denominação, seja pelo conteúdo. A expressão “Movimento Litúrgico” aparece pela primeira vez na Alemanha, no Vesperale de A. Schott, editado em 1894, e foi acolhida para indicar um fenômeno histórico-cultural típico do nosso tempo, embora, ao longo da história, sempre houvesse movimentos que sucessivamente desembocassem em uma transformação da liturgia. É árduo, senão impossível, como ocorre com qualquer movimento, atribuir-lhe uma definição sintética e completa. A melhor talvez seja a que encontramos nas palavras de Neunheuser:

corrente que reúne vastos ambientes na busca de uma renovação em primeiro lugar da própria vida espiritual, deixando-se atingir pela força da liturgia e, em segundo lugar, da liturgia em si, partindo de uma compreensão mais profunda do seu espírito e das leis íntimas que a regem. (NEUNHEUSER, 1992, p. 787)

Disso podemos, para simplificar, indicar dois objetivos do Movimento Litúrgico: fazer da liturgia o alimento da vida cristã; responder à pergunta: “O que é a liturgia?”.

Pode-se falar de duas instâncias: a instância histórico-hermenêutica e a instância espiritual. Nelas estão implícitas, e devem ser consideradas, a instância teológica e a instância pastoral.

A restauração litúrgica tridentina resultou em um tenaz anexo às formas herdadas de uma Idade Média, na qual a liturgia tinha se tornado um fato clerical e distante do povo. A teologia do culto cristão, aquela dos Padres, tinha sido esquecida e o evento da salvação, operante na ação litúrgica, continuava totalmente ausente.

1.2 Início e teologia do Movimento Litúrgico

Não pretendemos entrar na discussão da periodização do Movimento Litúrgico, para o nosso escopo, acolhemos as fases indicadas por R. Guardini: “O Movimento Litúrgico primeiramente desenvolveu uma fase restauradora; depois aquela acadêmica; por fim aquela realística” (cf. GRILLO, 2007, p. 31), mas somos da opinião de que o Movimento Litúrgico continua.

O início do Movimento Litúrgico do século XX – preparado nos ambientes monásticos e, sobretudo, em Solesmes com o abade P. Guéranger – coincide geralmente com o chamado “evento de Malines”, uma conferência realizada em 23 de setembro de 1909, no decorrer do Congrès National des Oeuvres Catholiques, por Lambert Beauduin (1873-1960), beneditino da abadia Monte Cesar, na Bélgica, sobre “A verdadeira oração da Igreja” (cf. BEAUDUIN, 2010). Nesta conferência, L. Beauduin observou que no culto divino reinava o individualismo religioso, que as assembleias litúrgicas tinham perdido o seu caráter comunitário, que os fiéis buscavam Deus apenas em uma forma devocional, por isso a liturgia se empobrecia cada vez mais.  Referindo-se a uma afirmação tirada do motu proprio Tra le sollecitudini, em que o papa Pio X descrevia a liturgia como a mais importante e indispensável fonte da Igreja, L. Beauduin afirmou que era necessário fazer um caminho de renovação litúrgica, mediante o qual a celebração comunitária da liturgia readquirisse o seu significado profundamente eclesial. A Igreja como Corpus Christi mysticum, que por L. Beauduin tinha sido colocada em relação com a renovação litúrgica, se tornará o tema dominante na eclesiologia da primeira metade do século XX (cf. GOPEGUI, 2008, p. 18-26).

O advento do papado de Pio X (4 de agosto de 1903) sinalizou para o ML o início de uma primeira acolhida oficial das instâncias de renovação. Com a sua primeira encíclica, o papa anunciava o programa do seu pontificado: Instaurare omnia in Christo, e, nesse ínterim, com diferentes intervenções, dava início a uma primeira reforma da liturgia.

No motu proprio Tra le sollecitudini, de 22 de novembro de 1903, o papa declarava:

Sendo de fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todos os fiéis, é necessário prover antes de mais nada à santidade e dignidade do templo, onde os fiéis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja. (PIO X, 1903, na Introdução)

A ação de Pio X em favor da liturgia foi considerada uma contribuição muito importante para o desafio levado avante pelo Movimento Litúrgico. As repetidas intervenções pela revisão dos livros de canto litúrgicos, pela reforma do saltério, sobre a comunhão frequente, orientavam decisivamente a Igreja na direção de uma liturgia que começa a recuperar o seu justo lugar. Isso afirma também Rousseau:

Reconstruir a comunidade dos fiéis em torno à vida paroquial; despertar o fervor do povo através da participação ativa ao santo sacrifício da missa; apreciar a riqueza das festas eclesiais, o valor dos sacramentos, dos sacramentais; dar aos cristãos o sabor dos santos mistérios, restaurando-os na atmosfera da idade de ouro da fé, bebendo-os em goles abundantes de todos os canais da graça: eis o que era, por excelência, seu programa apostolado. Esta frase tem sido frequentemente citada: Não necessita cantar ou rezar durante a missa, mas devemos cantar e rezar a missa, que já contém uma atitude de piedade litúrgica, que seus atos posteriores apenas ampliam. (ROUSSEAU, 1961, p. 236)

Poucos conseguiram colher o conteúdo teológico das palavras do papa sobre a participação ativa dos fiéis à oração pública e solene da Igreja. Talvez até mesmo para Pio X a questão era muito mais sobre o plano exterior do que teológico. Com seu discurso, o papa buscava superar a participação passiva do povo cristão nas celebrações litúrgicas. Permanece o fato que as suas afirmações, graças a alguns teólogos do Movimento Litúrgico do tempo, tiveram uma notável repercussão na vida da Igreja.

Justamente a partir das afirmações de Pio X, o Movimento Litúrgico – que se inseriu em uma renovada visão de Igreja levada adiante por alguns teólogos, entre os quais sobretudo J. A. Möhler – propunha-se essencialmente três objetivos: 1) favorecer e incrementar a participação ativa dos fiéis à liturgia; 2) revalorizar a arte sacra; 3) redescobrir a visão teológica da liturgia e a sua dimensão pastoral.

A liturgia teve que se libertar da imagem jurídica, superar a fase historicista para chegar a uma base teológica sobre a qual foram enxertadas as reformas de tipo pastoral. Portanto, uma nova visão de Igreja caracterizou os inícios do Movimento Litúrgico. Todo o clima de transformação política, filosófica, teológica e histórico-cultural que se criou entre o período do Romantismo e do Iluminismo ajudou os leigos católicos a adquirirem uma maior consciência sobre a sua pertença à Igreja.

Aquela situação histórica, cultural e religiosa que tinha criado e difundido a imagem de Igreja como sociedade juridicamente perfeita estava já superada. Foi o Movimento Litúrgico, juntamente com o florescer dos estudos sobre os Padres da Igreja, que contribuiu de maneira decisiva e profunda para redescobrir imagens, modelos e interpretações da Igreja, aos quais até aquele momento não se tinha dado nenhuma atenção. Na convicção de fundo de que o divórcio entre povo e Igreja vinha principalmente da desafeição à liturgia, P. Parsch e o seu colaborador J. Casper se empenharam na promoção da Volksliturgie nas paróquias frequentadas por intelectuais e o povo em geral. A obra deles será continuada mais tarde pelos jesuítas H. Rahner e J. A. Jungmann, por meio da chamada teologia kerigmática. De modo particular, Jungmann, com a redescoberta da centralidade do mistério pascal, concentrará a sua reflexão sobre o caráter querigmático da liturgia, conjugado com uma concepção de Igreja como plebs sancta, em que a ideia da Igreja como corpo místico é conduzida na direção de uma eclesiologia fortemente comunitária e eucarística (cf. PAIANO, 1993, p. 72).

O Movimento Litúrgico apresentava aos homens do seu tempo

Não um rosto novo da Igreja, mas sim um rosto que ficara muito tempo na sombra; com efeito, procurava aproximá-los o mais possível daquilo que a Igreja era na sua natureza mais profunda, isto é, do seu ser sacramental e das suas celebrações litúrgicas, enquanto lhes ensinava que a Igreja é o “corpo místico” de Cristo, ou seja, o mistério do Cristo que prolonga a sua existência humana. E desta nova comunidade eclesial redescoberta nos circunstantes, que são precisamente os participantes da celebração, ponto central é o altar (NEUNHEUSER, 1987, p. 22).

Romano Guardini compreendia a relação entre Movimento Litúrgico e Igreja descrevendo o primeiro como uma corrente muito vigorosa do movimento eclesial, chegando a afirmar que era “o movimento eclesial no seu lado contemplativo. Aí a Igreja vem inserida como religiosa realidade na vida de oração. A vida pessoal passará a fazer parte da vida eclesial” (GUARDINI, 1989, p. 39). A interpenetração vital entre Igreja e liturgia vem emblematicamente destacada deste modo: “a liturgia é a criação redentora e orante, porque é a Igreja orante” (GUARDINI, 1989, p. 39).

Esta nova ordem de ideias afirmava-se sempre mais, especialmente na Bélgica, graças à obra de L. Beauduin que, juntamente com os monges do mosteiro de Monte Cesar, promoviam as famosas Semaines et conférences liturgiques, com o surgimento das grandes revistas litúrgicas. Entre as muitas, recordamos particularmente a revista Les questions liturgiques, da qual Beauduin foi fundador, e que se tornou muito rapidamente Les questions liturgiques et paroissiales.

O programa de restauração litúrgica do papa Pio X torna-se um pouco o programa de dom L. Beauduin. Ele compreendeu que para a santificação do povo de Deus era necessário iniciar com uma adequada formação do clero que, em seguida, iria trabalhar pastoralmente nas paróquias, lugar em que o povo de Deus é reunido e organizado (cf. BEAUDUIN, 1914).

Na introdução à coletânea das obras de L. Beauduin, publicada por ocasião dos seus 80 anos, foram mencionados três fundamentais méritos da obra do monge beneditino belga: ter iniciado o Movimento Litúrgico graças à riqueza de iniciativas promovidas; ter fornecido um programa e uma doutrina ao mesmo movimento, que demonstraram o seu empenho para que as atividades desenvolvidas pudessem incidir sobre o terreno propriamente pastoral; o interesse pela eclesiologia juntamente com uma grande sensibilidade e abertura ecumênica, resultantes de uma intensa reflexão teológica sobre a liturgia.

Para Beauduin a liturgia é o culto da Igreja

Toda a força inovadora desta simples definição reside na palavra “igreja”, que especifica em sentido formalmente cristão o “culto”. Este, com efeito, recebe da “igreja” o seu caráter “público” e “comunitário”, não, porém, em sentido tal que tornasse o culto cristão semelhante a culto qualquer, proveniente de “sociedade” qualquer que o estabelecesse por lei, mas, sim, no sentido de que a “igreja”, sendo no mundo a continuação de Cristo, exerce aquele culto todo especial e perfeito que Cristo deu ao Pai na sua vida terrena. O culto da igreja é, pois, antes de mais nada, culto cristão em sentido eminente, porque nele se exprime a natureza própria da igreja, que é comunidade visivelmente reunida em torno a Cristo. (MARSILI, 1992, p. 640)

Na definição de liturgia de Beauduin, a eclesialidade ressai como o aspecto dominante da liturgia. É liturgia, portanto, tudo e só aquilo que a Igreja reconhece como próprio nos atos de culto, porque a Igreja é a continuação de Cristo. De fato, o sujeito único e universal do culto da Igreja é o Cristo ressuscitado e glorioso. É Ele que exercita o nosso culto e cumpre aqui sobre a terra toda a nossa liturgia. E é justamente em força desta presença ativa de Cristo na história, por meio da sua Igreja, que a liturgia pode ser definida como exercício do sacerdócio de Cristo, momento com qual Ele nos constitui em sua comunidade e nos transforma em seu corpo místico. Tal sacerdócio

a) é pessoal, e isto quer dizer que é o sacerdócio pessoal de Cristo que age por meio daqueles que são seus ministros em virtude de um sacramento; b) é coletivo (nós diremos “comunitário”) enquanto Cristo, reunindo em si toda a humanidade redimida, exerce “uma ação sacerdotal coletiva e solidária, a favor e com proveito de toda a sua comunidade”; c) é hierárquico, isto é, embora sendo “Cristo mesmo quem exerce aqui na terra o seu sacerdócio”, todavia, querendo torná-lo visível, escolhe para si “ministros, instrumentos que agem em seu nome e com o seu poder, e é este o sacerdócio católico, transmissão sacramental do único sacerdócio de Cristo”. (MARSILI, 1987, p. 91)

Marsili observou que “hoje è fácil avaliar esta síntese da teologia da Liturgia apresentada no distante 1912-1920, (…), mas naquele tempo foi um fato verdadeiramente extraordinário e nem todos o compreenderam no seu pleno valor” (MARSILI, 1987, p. 91-92).

À luz da atual reflexão litúrgica e eclesiológica, porém, uma crítica pode ser feita à explicação da natureza sacerdotal da liturgia oferecida por Beaudiun. Quando ele fala da liturgia como o exercício do sacerdócio de Cristo na Igreja, aqui a igreja é só a hierarquia. Cristo exercita sim uma ação sacerdotal em favor e em benefício de toda a sua comunidade, mas isto o realiza por meio dos seus ministros. Da premissa sobre a natureza coletiva do sacerdócio de Cristo, Beauduin não chega à conclusão de que todos os fiéis agem em Cristo exercitando o seu sacerdócio comum. Ele afirmou claramente que com muita cautela deve dizer-se que em Cristo todos têm um verdadeiro sacerdócio – sacerdócio universal – e isto porque, devido ao movimento protestante, que negava o sacerdócio ministerial, podia criar-se confusão na mente (BEAUDUIN, 1954, p. 87).

Ainda que Beauduin não tenha chegado a aprofundar a reflexão teológica sobre o sacerdócio comum dos fiéis, necessita reconhecer que o seu pensamento foi o que penetrou mais profundamente no Movimento Litúrgico e isto “talvez pelo seu tradicionalismo e novidade juntos, talvez pela sua abertura à dimensão eclesiológica, talvez pela sua capacidade de ‘unir’ o momento santificador e cultual da liturgia, talvez pelas evidentes ‘recaídas’ de uma tal visão sobre o plano da espiritualidade e das pastorais” (CATELLA, 1998, p. 32). Foi exatamente a reflexão teológico-litúrgica de Beauduin que favoreceu o repensar da liturgia, dando-lhe caráter teológico, e incrementou ainda mais a sua conexão com a cristologia e com a eclesiologia

Provendo – consequentemente – a visão da intrínseca relação entre Cristo-Igreja-Liturgia e a ideia de uma redescoberta/revelação/reforma da praxe e da espiritualidade litúrgica teria produzido uma reforma/renascimento da mesma igreja. Não só, mas esta síntese será acolhida na encíclica Mediator Dei (1947) pelo papa Pio XII que será sentida como a magna charta do movimento litúrgico. (CATELLA, 1998, p. 32)

Outro ponto relevante da visão litúrgica de L. Beauduin é o seu pensamento sobre a relação existente entre eclesiologia e eucaristia. A eucaristia é a conjunção do céu e da terra, é símbolo da Igreja edificada incessantemente. Quando o cristão vive autenticamente a liturgia e, de modo particular, a celebração da missa, nesse momento, desenvolve o espírito de pertença à Igreja. A redescoberta da teologia litúrgica pressupõe e comporta uma nova concepção de Igreja.

Na Renânia, o mosteiro de Maria Laach buscava dar continuidade ao caminho iniciado, dedicando-se antes de tudo à formação do ambiente universitário, dos professores e do clero – na esperança de que estes últimos pudessem levar avante o ideal de uma vida cristã como vida litúrgica –, transformando-se em um centro de formação e de reforma litúrgica alemã. Em 1913, antes de ser nomeado abade, dom Ildefonso Herwegen encontrou um pequeno grupo de leigos (com H. Brüning e R. Schumann) que expressou o desejo de uma maior participação às celebrações litúrgicas. No ano seguinte, o jovem abade convidou um grupo um pouco mais numeroso ao mosteiro para a Semana Santa de 1914 na qual, pela primeira vez, celebrou-se a missa dialogada. Sobre a orientação do abade Herwegen, com dois outros monges, Cunibert Mohlberg e Odo Casel, e em colaboração com Romano Guardini, F. R. Dolger e Anton Baumstark, abriram a estrada para o Movimento Litúrgico alemão. Em 1918, organizaram uma tríplice série de publicações: aparece o primeiro volume da coleção Ecclesia orans, a série Liturgiegeschichtliche Quellen e Liturgiegeschichtliche Forschungen (1919). Três anos depois, iniciaram o periódico Jahrbuch fur Liturgiewissenschaft (NEUNHEUSER, 1987, p. 25).

No interior desta nova ordem de ideias, grande foi a contribuição de O. Casel, filólogo das línguas clássicas antigas. Amante das fontes, construiu toda a sua doutrina teológica sobre a Sagrada Escritura e sobre os Padres da Igreja.

Para Casel, a Igreja é o corpo místico de Cristo que realiza a si mesmo no culto que oferece ao Pai. O sujeito de cada ação litúrgica é, portanto, o corpo de Cristo. E é justamente isso que confere à liturgia superioridade em relação às outras devoções ou pias práticas. É na liturgia que acontece a presença ativa e vivificante do Senhor ressuscitado. Por meio da liturgia de fato o mistério de Cristo torna-se o mistério da Igreja, e a Igreja existe no tempo e no espaço como mistério de Cristo. Assim, na liturgia a Igreja não só anuncia a salvação, mas a atualiza, tornando-a presente aos homens hoje reunidos para a celebração dos divinos mistérios. Isso acontece especialmente durante a celebração da eucaristia. É no Il mistero della Chiesa que o autor exprime claramente esta linha de pensamento:

este é o sacrifício dos cristãos: nós, os muitos, somos um corpo em Cristo. A ecclesia celebra este sacrifício no mistério do altar bem conhecido pelos fiéis; aqui lhe é mostrada como, na coisa que ela sacrifica, ela mesma é sacrificada. […] A cabeça primeiro sacrificou a si mesma, para que o corpo pudesse se unir a ela. Em virtude de seu sacrifício, agora também nós podemos sacrificar; na eucaristia nos sacrificamos com Cristo, que apresenta ao Pai a sua natureza humana e todos nós nela. Este sacrifício da ecclesia, a eucarisita é a apresentação cotidiana do mistério do sacrifício de Cristo que inclui em si o sacrifício de todos os membros. A ecclesia oferece a si mesma por Cristo e em Cristo; sacrifica não por seu próprio poder, nem segundo um modo próprio, mas através do Senhor; mais precisamente assim se oferece em toda sua essência, porque está incluída na realidade do Senhor, isto é, em seu corpo imolado e glorificado. (CASEL, 1965, p. 408-409)

 Não nos parece arriscado afirmar que foi exatamente por tal visão de Igreja, e em particular do mistério da presença ativa de Cristo na liturgia, que se tornou a ideia central da Constituição litúrgica. Este constituiria – depois de um período de dura oposição também por parte do magistério – um reconhecimento altíssimo à reflexão e à obra do monge beneditino.

1.3 Desenvolvimento do Movimento Litúrgico

A renovação litúrgica não foi uma corrente de pensamento limitada apenas à Bélgica, Alemanha e França, mas se difundiu por outras partes.

Em 1911, aconteceu nos Países Baixos, em Breda, o congresso litúrgico que conduziu em 1912 e em 1914 à fundação da Sociedade Litúrgica respectivamente das dioceses de Haarlem e de Utrecht, e da Federação Litúrgica holandesa, em 1915.

Na Áustria, o Movimento Litúrgico se desenvolveu sob a orientação do agostiniano Pio Parsch de Klosterneuburg, que publicou Das Jahr des Heils (1923), um comentário ao missal e ao breviário para todo o ano litúrgico, e a revista Bibel und Liturgie (1926).

O Movimento Litúrgico também começou a tomar forma em outros países europeus com acentos diversos segundo o clima cultural e eclesial próprio de cada país. Houve uma evolução significativa na Espanha, dirigido principalmente pelo mosteiro de Montserrat, em Portugal, na Suíça, na Inglaterra, na então Tchecoslováquia, na Hungria e na Polônia.

Na Itália, não faltaram pessoas e ambientes que por volta daqueles anos vivessem e participassem do despertar litúrgico e eclesiológico em ato. No entanto, segundo o juízo de E. Cattaneo, o Movimento Litúrgico na Itália não teve o mesmo sucesso que em outros países. Duas são as razões desta circunstância:

A primeira era constituída pelo tradicionalismo espiritual ancorado a um catecismo antigo e a uma piedade devocional […], a segunda foi a ausência, no movimento, dos bispos italianos – exceto por algumas exceções […] – explicáveis no costume de nossa casa aguardar o verbo de Roma por uma homenagem dedicada ao Primaz da Itália, o Sumo Pontífice, e por uma dependência acentuada dos órgãos da cúria romana. (CATTANEO, 2003, p. 505-506)

Não obstante esta consideração, em nossa opinião, a obra do Movimento Litúrgico na Itália deve ser considerada importante, seja no plano teológico seja no plano pastoral. Sobre o plano teológico, notável foi a obra desenvolvida por M. Righetti, que se dedicou, sobretudo, a incrementar a reflexão teológico-litúrgica, publicando estudos científicos de particular interesse. Lugar de relevo ocupa, também, a Revista Litúrgica, fundada em 1914 junto ao mosteiro beneditino de Finálpia (Savona) e que teve como primeiro diretor dom E. Caronti. Insigne colaborador da revista foi o monge dom I. Schuster, que se tornou depois bispo da arquidiocese de Milão. Schuster enriqueceu a revista com a publicação dos seus estudos que, recolhidos e organizados, se tornaram parte fundamental da sua obra Liber sacramentorum. Do ponto de vista pastoral, relevantes foram as semanas litúrgicas organizadas, sobretudo, por iniciativa de G. Bevilacqua do Oratório de Brescia. A primeira semana aconteceu em Brescia, em 1922.

No mesmo ano em que foi fundada a Rivista Liturgica, o bispo de Ivrea, dom Matteo Filippello, publicava a carta pastoral sobre La liturgia parrocchiale, “um dos testemunhos mais significativos do movimento litúrgico italiano” (CATTANEO, 2003, p. 497). Nessa carta, o bispo convidava os fiéis da sua diocese para tomar consciência da sua pertença eclesial e a viver a vida da Igreja que, sendo “essencialmente uma sociedade religiosa”, se exprime de modo especial na liturgia. E à liturgia o povo deve participar não apenas com a presença física, “mas com a voz, com a mente, com o coração, com toda a alma” (CATTANEO, 2003, p. 498).

Cristo – Igreja – liturgia: é o trinômio sobre o qual se concentra a reflexão do também beneditino Salvador Marsili. A liturgia é o momento salvífico através do qual continua no mundo e em cada homem a ação de Cristo, ação que é redentora para os homens e glorificadora em relação a Deus. Assim compreendida, a liturgia adquire uma base essencialmente cristológica. E, a esta luz, a Igreja resulta diretamente como efeito da liturgia, antes mesmo de ser a executora:

Da liturgia nasce e da liturgia vive a Igreja. […] Os sacramentos compaginaram a igreja. Saindo do corpo atormentado e esquartejado de Cristo, formaram um corpo misterioso para Cristo, capaz de trazer toda sua vida divina. […] Da liturgia a Igreja, consequência lógica e ontológica, se é verdade que os sacramentos realizam e chamam a Igreja à existência prática. É a liturgia que santifica a sociedade, que faz a sociedade santa, ou seja, a Igreja. (MARSILI, 1938, p. 232)

De sua visão teológica da liturgia, Marsili faz brotar uma conclusão de notável consideração teológica: a liturgia não é uma realidade acidental em relação à Igreja, é, por sua vez

O princípio básico e constitutivo, de modo que sem a liturgia não pode haver Igreja […]. Não no sentido em que a existência da igreja reivindica uma liturgia para satisfazer seu dever de culto em relação à divindade, mas no sentido muito diferente de que sem a liturgia a Igreja não pode, na atual economia cristã, existir. […] A liturgia não está ao lado da Encarnação. A liturgia é o “Mistério de Cristo” sempre vivo e ativo. (MARSILI, 1939, p. 73-78)

Em termos ainda mais explícitos, Marsili afirma que “compreender a liturgia é compreender a Igreja, e a incompreensão de uma leva fatalmente a uma falsa valorização da outra” (MARSILI, 1939, p. 17).

O Movimento Litúrgico se difunde também nas Américas: o monge Virgil Milchel fundou, em 1925, o Movimento Litúrgico nos Estados Unidos, no mosteiro de São João, em Collegeville. É ele também o fundador da revista Orate frates, que em 1951 mudou o nome para Worship (cf. NEUNHEUSER, 1987, p. 30).

1.4 O Movimento Litúrgico no Brasil

No Brasil, o Movimento Litúrgico surge em 1933, no Rio de Janeiro, e teve como expoente o monge beneditino Martinho Micheler. Recém-chegado da Alemanha, ele foi incumbido de ministrar um curso de Liturgia no Instituto Católico de Estudos Superiores, fundado sob a inspiração e liderança de Alceu Amoroso Lima, com o intuito de oferecer aos universitários católicos cursos de teologia. Suas aulas tiveram grande repercussão nos meios universitários e intelectuais católicos. Eles descobrem com admiração que a Liturgia é muito mais do que um conjunto de rubricas, gestos ou ritos: é a vida do Cristo em nós, a ação da Trindade, a vida da Igreja, Corpo Místico do Cristo. No seio da Ação Universitária Católica forma-se, então, um Centro de Liturgia. Os trabalhos desse centro são inaugurados com um retiro para um grupo de seis rapazes, orientado por dom Martinho, numa fazenda do interior do Estado do Rio, com o nome de “seis dias de comunidade”. No pequeno grupo teremos a figura do futuro continuador do Movimento Litúrgico, com a reforma litúrgica, D. Clemente Isnard. Lá ele celebrou a primeira missa versus populum. A missa foi dialogada e isto era também uma novidade. Naqueles dias, aqueles rapazes também descobriram as riquezas do Ofício Divino. Mas, o importante não eram as inovações em matéria de prática de celebração, que podem parecer-nos hoje insignificantes, mas o espírito que elas supunham: a redescoberta da espiritualidade centrada na oração da Igreja. Foi este espírito que dom Martinho cultivou, numa missa semanal celebrada no Mosteiro de São Bento para um grupo de universitários. Em 1935, foi fundada a Ação Católica, com Alceu Amoroso Lima como presidente, que se tornará a grande protagonista e difusora do Movimento Litúrgico por todo o Brasil. Seja no Brasil, seja nos Estados Unidos, o movimento teve uma forte inclinação pastoral, com particular atenção à dimensão social do celebrar (DA SILVA, 1983, p. 40-74).

Era tudo muito novo: a liturgia era apresentada para além das rubricas, muito mais do que alegorismos. Começou a descobrir no Brasil uma teologia da liturgia. Após dom Martinho Michler, uma série de monges como dom Beda Keckeisen, na Bahia, dom Polycarpo Amstalden, em São Paulo, dom Hidebrando Martins, no Rio de Janeiro, a abadessa Luzia Ribeiro de Oliveira, no mosteiro feminino de Belo Horizonte, levaram adiante as ideias da participação ativa dos fiéis na liturgia, conscientes, evidentemente, de que nada se pode antepor ao Cristo, o liturgo por excelência. Teremos ainda Pe. Gregório Lutz, que pode ser considerado um dos pioneiros da reforma litúrgica. Apesar de ter estudado e sido ordenado antes do Concílio Vaticano II, a descoberta da liturgia durante os anos 1960 abriu-lhe um mundo novo. Com dom José Clemente Isnard (1917—2011), eles podem ser considerados os verdadeiros promotores da Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II em terras brasileiras (Cf. GOPEGUI, pp. 21-22).

2 A contestação do Movimento Litúrgico

A contestação do Movimento Litúrgico não demorou. A controvérsia deu-se em torno à problemática liturgia-espiritualidade, por um lado, e liturgia-compromisso cristão, por outro. Ela reaparecerá repetidamente, chegando até nossos dias.

Já nos anos 1913-1914, surgiu um veemente debate entre o beneditino Festugière, defensor do Movimento Litúrgico, e o jesuíta Navatel, contestador do Movimento.

No Brasil, essa discussão se refletiu na prolongada polêmica entre a Ação Católica, apoiada pelos beneditinos, e as Congregações Marianas, apoiadas por alguns jesuítas. Em toda esta questão, jogou um papel de destaque o Seminário Coração Eucarístico, da Arquidiocese de Belo Horizonte (DA SILVA, 1983, p. 163-199).

A discussão se prolongará até a publicação da encíclica Mediator Dei, em 1947, que assumiu oficialmente as grandes ideias do Movimento Litúrgico. Mas, como acontece em alguns escritos do Magistério, ao misturar louvores ao Movimento Litúrgico, com advertências a seus possíveis exageros, não evitará a continuação da polêmica, alimentada por leituras divergentes da encíclica papal.

O que está em jogo na discussão é a concepção da Liturgia.  Para os contestadores do Movimento Litúrgico, a liturgia é apenas o rosto cerimonial e decorativo da missa, dos sacramentos e dos sacramentais, e isso, ainda é presente na mente de muitas pessoas. Para os defensores do Movimento Litúrgico, a Liturgia é a presença sacramental da ação salvífica de Deus na história humana, é a oração do Cristo com a sua Igreja. Entendida assim, a Liturgia não pode representar ameaça alguma para a piedade pessoal, que não pode ser concebida sem ela.

O outro aspecto que levou a questionar o Movimento Litúrgico foi a relação entre celebração litúrgica e comprometimento na transformação das realidades terrenas. Esse confronto se deu no seio da Ação Católica. No Brasil, essa oposição ocorreu de maneira muito radical, ao compasso da crescente consciência da urgência de uma ação capaz de transformar as situações de injustiça em que vivia a imensa maioria da população. Se, em alguns, essa consciência levou à perda do entusiasmo pela vida litúrgica, nos mais conscientes foi causa de seu aprofundamento, instigando o Movimento Litúrgico a fazer com que as situações concretas da vida dos homens e mulheres configurassem a forma da celebração. Assim, o Movimento Litúrgico passava de uma fase voltada preferencialmente para o passado, para uma fase em que começam a postular-se reformas mais profundas, que façam da celebração litúrgica expressão das angústias e esperanças dos seres humanos hoje.

3 Nova fase do Movimento Litúrgico

Enquanto nos anos 1903-1914 as reformas de Pio X tinham precedido e suscitado o Movimento Litúrgico, a partir da Segunda Grande Guerra são os desenvolvimentos do movimento pastoral litúrgico que o papa Pio XII ratificou, ao retomar o projeto de Pio X e adaptá-lo às novas condições. Enquanto antes de 1940 tratava-se de colocar a liturgia existente ao alcance do povo e promover o canto gregoriano, em seguida, enxergar-se-á mais claramente a necessidade de uma profunda reforma dos ritos e de uma introdução parcial da língua vernácula nas celebrações (BUGNINI, 2018, p. 40-44).

Em 1947, mesmo antes de consagrar à liturgia a Encíclica Mediator Dei, o papa Pio XII instituiu, dentro da Congregação dos Ritos, uma comissão encarregada de preparar uma reforma geral da liturgia. De resto, já tinha tomado medidas específicas para atenuar a lei do jejum eucarístico, a fim de facilitar a celebração da Missa à noite e a comunhão nos países em guerra, medidas que generalizou em 1953, com a Constituição Apostólica Christus Dominus. Doravante, o uso de água natural não quebrava mais em nenhum caso o jejum eucarístico e isto, em relação a qualquer outro alimento, fixando para três horas antes da comunhão (CATTANEO, 2003, p. 508-515).

O primeiro fruto da reforma desejada por Pio XII foi a autorização para celebrar a Vigília Pascal no decorrer da Noite Santa (1951). Quatro anos mais tarde, era a vez da reforma da Semana Santa (1955). Depois de certo tempo, com o desenvolvimento do movimento bíblico, tornava-se a ter mais atenção à palavra de Deus e seu uso litúrgico. Mas, para que todos tivessem acesso, durante a celebração, à mesa da Palavra, era necessário que ela fosse proclamada na língua vernácula. Pio XII não acreditou que a questão estivesse suficientemente madura para tomar uma iniciativa geral, contentou-se em oferecer parciais autorizações para ler a Epístola e o Evangelho durante a liturgia solene (1953). Permitiu, no entanto, a publicação dos rituais bilíngues, especialmente em alemão e francês (1947). Como primeiro passo para a reforma do Breviário, operou uma simplificação das rubricas (1955) e fez elaborar um Códice das rubricas, que João XXIII publicou em 1960. Foi também João XXIII quem publicou o rito simplificado da Dedicação das igrejas e dos altares (1961). Mas já tinha decidido apresentar ao Concílio em preparação os princípios da reforma geral da liturgia (CATTANEO, 2003, p. 508-515).

Esse período constitui para a teologia um momento bastante singular, caracterizado por um intensíssimo fervor de pesquisas e de estudos em várias áreas. Trata-se do fenômeno, assim chamado na época por Romano Guardini, do “despertar da igreja nas almas” (GUARDINI, 1989, p. 21). A Igreja, nos múltiplos aspectos da vida, coligava-se ao centro dos interesses religiosos e teológicos. Assiste-se “a uma espécie de amadurecimento coletivo do que não havia ocorrido, no século XIX, senão a intuição de alguém, mas em um novo contexto histórico que exigirá, aos poucos, uma nova reelaboração da face institucional da Igreja” (FRISQUE, 1972, p. 214). E por isso mesmo, o Movimento Litúrgico deve ser pensado também em conjunto com outros movimentos que ao mesmo tempo buscavam repensar outros aspectos da praxe eclesial: o movimento teológico e cristológico com as buscas do Jesus histórico, o movimento catequético e o movimento bíblico são alguns dos tantos que tentavam mudanças.

Conclusão

O caminho do Movimento Litúrgico não foi nada fácil. Não faltaram ataques e nem discussões por parte dos fiéis e dos bispos que não estavam de acordo com algumas tendências e escolhas realizadas por aqueles que promoviam o movimento:

Mas a polêmica de maior importância (com consequências, porém, muito positivas) foi a que se desenvolveu sobre o plano seja da teologia seja da espiritualidade, em torno à visão “mistérica” da liturgia, como era proposta e defendida pelo beneditino alemão O. Casel. (NEUNHEUSER, 1992, p. 797)

Os benefícios e as intuições proféticas são evidentes hoje à luz da reforma litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II. Primeiramente, a redescoberta da participação ativa do povo na celebração litúrgica, a centralidade do Mistério Pascal, coração de toda a vida litúrgica e a necessidade da formação litúrgica dos pastores e do povo, tudo isso baseado em uma sólida eclesiologia e sobre uma séria e profunda pesquisa da natureza teológica e pastoral da liturgia. Daí a necessidade de tornar a celebração da Missa e dos sacramentos compreensíveis aos fiéis, através da simplificação dos ritos e do uso da língua local. Com o Movimento Litúrgico renasce o desejo de devolver aos fiéis o Ofício Divino para favorecer o conhecimento da Palavra de Deus e da oração da Igreja, e incrementar a vida espiritual do clero com o compromisso diário do Ofício Divino. O Movimento não negligenciou o grande campo das artes, delineando o princípio da beleza, da sobriedade e da simplicidade.

Brovelli escreveu que o Movimento Litúrgico, hoje, é para a Igreja

um importante patrimônio: esse instiga a busca do sentido da liturgia na vida da Igreja e a compreensão das suas funções específicas no conjunto do desenvolver-se da missão. Nesta luz e a partir desta perspectiva, acreditamos que resultou definitivamente esclarecida a afirmação de que fala de um movimento litúrgico como realidade que não só é parcialmente incorporado na reforma conciliar; com efeito, esse a atravessa e a supera, oferecendo as deliberações conciliares e futuras solicitações de interesse para todos os cristãos. (BROVELLI, 1987, p. 74)

Washington da Silva Paranhos. FAJE. Texto original em português. Submetido 10/10/2020. Aprovado: 30/11/2021. Publicado: 30/12/2021.

Siglas

TS = Tra le sollecitudini

ML = Movimento Litúrgico

Referências

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Exéquias

Sumário

1 A morte faz parte da vida

2 Celebrar por ocasião da morte: uma tradição da Igreja

2.1 Rituais de exéquias da Igreja latina

2.2 Considerações acerca do ritual de exéquias de 1969

3 Para melhor celebrar por ocasião da morte: sugestões pastorais

Referências

1 A morte faz parte da vida           

Francisco de Assis conclui o célebre “Cântico das criaturas” louvando a “irmã morte”: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar. […] Bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal”. O santo de Assis foi coerente com esse motivo inusitado de louvor. Seus biógrafos relatam que, no momento extremo de sua vida, ele entoou o salmo 141, juntamente com os irmãos que o acercavam. Aliás, o momento da morte de são Francisco foi tão expressivo que, até nossos dias, a família franciscana se reúne, a cada ano, na véspera de sua festa, à noite, para celebrar o transitus do seráfico pai.

A morte faz parte da vida. Não por acaso, em diversas culturas e religiões, são celebrados ritos fúnebres, no intento de honrar, reverenciar, agradecer, despedir-se, “recomendar” o ente querido à proteção da divindade. Trata-se de uma espécie de conclusão dos “ritos de passagem”. Esses ritos abarcam estágios significativos da vida humana, como: o nascimento, a infância, a idade adulta, a iniciação religiosa etc. Os ritos fúnebres evidenciam, por um lado, a despedida do defunto deste mundo terrestre e, por outro, buscam reintegrá-lo em outro lugar, que é o da memória. São igualmente importantes no processo de luto, pois, além de “homenagearem” o defunto, exercem um efeito restaurador nas pessoas que deles participam, ou seja: reforçam a comunhão, estreitam os laços de solidariedade, de cumplicidade e de compaixão mútuas.

Contudo, nos tempos atuais, é perceptível o paradoxo da negação e da banalização da morte. Ao mesmo tempo que se oculta a realidade da morte, são veiculadas nos meios de comunicação notícias com excessivas doses de sensacionalismo, dando-nos a impressão de estarmos assistindo a um aterrorizante espetáculo. E, para agravar a situação, o mundo inteiro, a partir do final do ano de 2019, se viu mergulhado num oceano de tormentas, provocado pela pandemia do Sars-CoV-2. Mesmo sabendo que o isolamento social tem sido um dos meios mais seguros para conter a propagação do vírus, igualmente se constata que essa medida preventiva provocou graves efeitos colaterais em boa parte da população do planeta. A impossibilidade de as pessoas visitarem seus parentes e amigos enfermos e de celebrarem dignamente os ritos fúnebres, em memória de seus entes queridos falecidos, tem causado danos irreparáveis em muitas pessoas.

O alto índice de patologias oriundas de um “luto complicado”, nesses tempos de pandemia, tem despertado a atenção de psicólogos e psiquiatras, “por se tratar de uma situação adversa, na qual muitos estão perdendo muitas coisas, não só pessoas, o tempo da elaboração desse momento poderá ser ainda mais longo e lento, e em esfera coletiva, já que toda a sociedade está sofrendo” (MELO, 2020, p. 1). O célebre teólogo português J. Tolentino Mendonça aponta as principais fases que devem ser respeitadas no trabalho de luto, nestes termos:

Precisaríamos primeiro chorar a nossa impossibilidade de consolação (extraordinária frase do Antigo Testamento em que São Mateus recupera, para seu Evangelho, a cena da morte dos inocentes: “Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: é Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada” – Mt 2,18). Precisaríamos depois chorar e ser consolados, em pequenos passos. E integrar então, progressivamente, a ausência numa nova compreensão desse mistério que é a presença dos outros na nossa vida. (MENDONÇA, 2016, p. 16-17)

É consenso que a pandemia tenha colocado a população mundial numa enigmática encruzilhada. O importante é que se decida por um caminho por onde o trabalho de luto seja menos traumático.

2 Celebrar por ocasião da morte: uma tradição da Igreja 

No âmbito da fé cristã, a morte é tida como coroamento de uma experiência pascal da vida. Os sacramentos de iniciação cristã, sobretudo o batismo, inserem a pessoa nessa experiência. Nas águas do batismo, se dá, sacramentalmente, a passagem da morte à vida, da sepultura à ressurreição:

Pelo batismo, fomos sepultados juntamente com ele na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós caminhemos em uma vida nova. Com efeito, se nos tornamos unidos a ele por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição. (Rm 6,4-6)

A vida cristã consiste numa progressiva configuração a Cristo, como bem expressa o Apóstolo: “Cristo será engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela morte. Para mim, o viver é Cristo e o morrer, lucro” (Fl 1,20-21). Nesse dinamismo pascal, a morte corporal é encarada como plenitude da vida. Uma vez incorporado à comunidade dos que renasceram pelas águas batismais, o cristão não vive mais para si mesmo, mas para aquele que o livrou das trevas e o transferiu para o reino do Filho amado (cf. Cl 1,13). Assim, momentos marcantes da vida da comunidade, como a morte de um irmão ou irmã, são celebrados por toda a Igreja, o corpo vivo de Cristo.

É sabido que os cristãos dos primeiros séculos incorporaram, nas celebrações litúrgicas, diversos elementos da cultura dos povos da época. Em outras palavras, os ritos cristãos são fruto de uma sadia “inculturação”, ou seja, da mútua fecundação de elementos próprios da cultura com a fé cristã. No caso dos ritos relacionados com a morte, costumes “pagãos” foram adaptados pelos cristãos, por exemplo: a) o viático (comunhão oferecida ao moribundo para fortalecê-lo na “última viagem”) substitui a moeda que gregos e romanos punham na boca do defunto, para que este pudesse pagar o “pedágio” da sua viagem para o além; b) os salmos substituem as lamentações, comuns no mundo romano; c) o refrigerium (refeição fúnebre “pagã” que se realizava sobre o túmulo do defunto, no terceiro, sétimo, trigésimo dia e no aniversário depois da morte) fez com que alguns cristãos celebrassem a eucaristia junto ao túmulo de seus entes queridos. Tal prática, pouco a pouco, foi transferida para os espaços das igrejas, dando origem às “missas pelos fiéis defuntos”.

2.1 Rituais de exéquias da Igreja latina

Num breve percurso, serão apontadas algumas características teológico-litúrgicas extraídas dos principais rituais de exéquias da Igreja latina, a saber: o ritual romano do século VII, os rituais romano-galicanos dos séculos VIII-IX, o ritual romano de 1614 e o ritual romano de 1969 (cf. ROUILLARD, 1993, p. 237-242).

O ritual romano do século VII é tido como o mais antigo e, por isso, merece uma atenção especial. Aqui, se encontra um itinerário sucinto sobre os procedimentos dispensados ao moribundo, no seu leito de morte, bem como as orientações para a celebração das exéquias. Eis o texto (com tradução nossa) do “Ordinário de como agir em favor dos defuntos”:

1. Logo que o vejas aproximar-se da morte, o doente deverá comungar do santo sacrifício, mesmo que tenha comido naquele dia, pois a comunhão será para ele uma ajuda e defesa na ressurreição dos justos. Ela o ressuscitará.

2. Após receber a comunhão, será lida por um presbítero ou diácono a Paixão do Senhor diante do corpo de enfermo, até quando a alma sair do corpo.

3. Antes, porém, que a alma tenha saído do corpo, diz-se: R/. “Santos de Deus, socorrei-o. V/. Acolha-te Cristo”. Salmo 113 (Quando o povo de Israel saiu do Egito). Antífona: “O coro dos anjos te acolha”. O sacerdote diz a oração como nos sacramentos.

4. Em seguida, o corpo é lavado e colocado no caixão. E depois que o corpo estiver no caixão, antes de sair da casa, se diz a antífona: “Formastes-me da terra e vestiste-me de carne, meu Redentor; ressuscitai-me no último dia”. Salmo 96 (O Senhor reinou).

5. Em seguida, o corpo é colocado no interior da igreja. Diz-se: Antífona: “Senhor, ordenastes que eu nascesse”. Salmo 41 (Como a corça suspira). Antífona: “Os anjos te levem ao paraíso de Deus; na tua chegada, os mártires te recebam, e te levem à cidade santa de Jerusalém”. Salmo 4 (Quando eu chamo, respondei-me!).

6. Enquanto é levado para a sepultura: Antífona: “Aquele que chamou a tua alma para a vida”. Salmo 14 (Senhor, quem morará?). Antífona: “Senhor, que tomastes a alma do corpo, faze-a alegrar-se com vossos santos em vossa glória”. Salmo 50 (Tende piedade, ó meu Deus). Antífona: “Vede, Senhor, a minha humildade e o meu sofrimento, perdoai todos os meus pecados”. Salmo 24 (Senhor, meu Deus, a vós elevo a minha alma). Antífona: “Os anjos te conduzam para o reino de Deus com glória; os mártires te recebam no vosso reino, Senhor. Da terra o moldastes e o revestistes de carne, meu Redentor, ressuscitai-o no último dia. Salmo 50 (Tende piedade, ó meu Deus).

7. E quando for colocado na igreja, todos rezam por esta mesma alma sempre, sem parar, até que o corpo seja sepultado. Cantem salmos ou responsórios, digam orações ou se façam leituras do livro de Jó e, quando chegar a hora das vigílias, ao mesmo tempo, celebrem a vigília, digam salmos com as antífonas sem aleluia. O sacerdote, porém, diz a oração, enquanto cantam a antífona: “Abri-me as portas da justiça e, entrando por elas, cantarei ao Senhor”. Salmo 117 (Dai graças ao Senhor).

Num olhar panorâmico sobre este Ordo do século VII, facilmente se percebe seu caráter pascal. Os salmos pascais 113 e 117 que emolduram o ritual deixam entrever que há uma correspondência tipológica entre as exéquias e o êxodo, ou seja: “o defunto experimenta a sua saída do Egito e o seu ingresso na terra prometida, onde é acolhido pelos anjos e pelos santos” (ROUILLARD, 1993, p. 239). Isso aparece explícito no rito descrito acima. O cortejo fúnebre – da casa do defunto, passando pela igreja, até à sepultura – possui um sentido escatológico: a comunidade “acompanha” o ente querido, na “viagem” até sua morada definitiva, a “Jerusalém celeste”. Aqui, serão acolhidos pelos habitantes do céu aqueles que “venceram a grande tribulação” (Ap 7,14). Enfim, no presente ritual, predomina a certeza de que o defunto entrará na glória, sem maiores empecilhos.

Nos rituais romano-galicanos dos séculos seguintes, a eucologia muda substancialmente. A mentalidade dos povos franco-germânicos influenciou, de forma decisiva, no conteúdo das orações e monições, a saber: a) os insistentes pedidos da misericórdia e do perdão de Deus em favor do defunto, bem como a proteção contra todos os perigos a que ele se acha exposto, na sua “viagem” para o além; b) a insegurança da parte dos fiéis quanto ao destino eterno da pessoa que acabou de falecer; c) a eucaristia, que passa a ocupar o lugar central nos funerais, e a consequente mentalidade de “sacrifício de propiciação e de sufrágio” em favor dos defuntos. Séculos mais tarde, o reducionismo chegará a tal ponto de, na missa de exéquias, os fiéis não comungarem, a fim de reverter ao defunto os “méritos” obtidos com tal celebração; d) a falta de clareza na relação entre a morte do fiel e o mistério pascal de Cristo. Aliás, Cristo e o Espírito Santo são pouco mencionados, exceto na conclusão trinitária das orações. As orações são dirigidas a Deus, mas não explicitam que ele enviou seu Filho para a salvação dos humanos. “Em suma, esta teologia do além parece quase toda inspirada no Antigo Testamento e pouco animada pela boa nova do Evangelho. […] Não é nem cristológica nem pascal” (ROUILLARD, 1993, p. 241).

O ritual romano de 1614 faz parte do conjunto de livros litúrgicos promulgados pela Igreja, depois do Concílio de Trento. O desenrolar dos funerais obedece ao antigo costume processional, a saber: da casa do defunto até à igreja; da igreja para o cemitério. Quanto à teologia, esse ritual traz no seu bojo influências diretas dos rituais anteriores, sobretudo daqueles advindos do império carolíngio. Tais influências são perceptíveis nas ambiguidades ali presentes: ao lado de uma eucologia, advinda dos antigos sacramentários romanos, que revela a plena confiança na ressurreição, convive outra, que expressa a incerteza e o terror diante da morte e do “destino da alma”. A título de exemplo, vale citar o responsório que segue à oração do Pai-nosso:

V/. E não nos deixes cair em tentação.

R/. Mas livra-nos do mal.

V/. Da porta do inferno.

R/. Arrebata, Senhor, a sua alma…

Como se pode observar, o texto sugere que todos os defuntos correm o perigo de confundir a “porta” do inferno com a do céu. Aliás, a concepção atemorizante da morte e da dúvida quanto ao destino do defunto era largamente veiculada na reflexão e pregação da Igreja, cujo ápice se deu nos séculos XVI e XVII. Outros impasses teológicos são perceptíveis como: a) a inexpressiva referência ao mistério pascal; b) a ausência de vínculo com o sacramento do batismo; c) uma eucologia exclusiva para o defunto. Nas orações, não há qualquer menção aos vivos que choram a perda de seus entes queridos; e) um ritual para ser executado exclusivamente pelo clero.

A música ritual de exéquias é, igualmente, pouco pascal. A sequência “Dies irae” e o “Ofertório” da “Missa de Réquiem” são bons exemplos disso. Nestas duas peças musicais, dentre outros aspectos, vêm expressos o medo do inferno, o pessimismo diante da vida e a crença generalizada de que “poucos se salvam”. Há quem afirme que a antífona “Domine Jesu Christe” (Ofertório) seja o texto mais enigmático – não só da liturgia de exéquias como de toda a liturgia romana –, devido ao pedido para que Cristo “liberte as almas de todos os defuntos das penas do inferno”. A rigor, trata-se de algo paradoxal, pelo fato de a teologia sustentar que é impossível passar do inferno ao paraíso, portanto, um conflito com o princípio lex credendi lex suplicandi (cf. SORESSI, 1947, p. 245-252).

Passados quatro séculos de uso desse ritual pela Igreja latina, a Congregação para o Culto Divino publicou, em 1969, um novo ritual de exéquias. A Sacrosanctum Concilium havia pedido, expressamente, que o novo ritual de exéquias exprimisse com mais clareza a índole pascal da morte cristã e que melhor correspondesse às condições das diversas regiões, também com relação à cor litúrgica e ao rito de exéquias de crianças (cf. SC, n. 81-82).

Esse ritual é composto de uma introdução geral (Observações preliminares), em que são apresentadas suas bases teológicas e pastorais e de oito capítulos, assim constituídos:

a) Vigília pelo defunto e oração quando o corpo é colocado no caixão (cap. I). Trata-se de uma celebração da Palavra de Deus, sob a presidência de um presbítero ou ministro(a) leigo(a). No momento da deposição do corpo no caixão, é previsto um breve rito constituído de salmos, leitura breve e oração conclusiva.

b) Primeiro tipo de exéquias: celebrações na casa do defunto, na igreja e no cemitério (cap. II). Aqui, conserva-se a tradição dos antigos rituais, com duas procissões, interligando três estações, a saber: da casa do defunto até à igreja, e desta ao cemitério. Nesses três locais, estão previstas orações, salmos, responsórios etc., e a eucaristia (na igreja).

c) Segundo tipo de exéquias: celebrações na capela do cemitério e junto à sepultura (cap. III). Aqui, o ritual não prevê a celebração da eucaristia. Na capela do cemitério, celebra-se uma liturgia da Palavra de Deus, seguida da “encomendação e despedida”. Junto à sepultura, rezam-se as orações indicadas e canta-se algum “canto apropriado”.

d) Terceiro tipo de exéquias: celebrações na casa do defunto (cap. IV). Esta terceira possibilidade de celebração é similar à da “Vigília” (cap. I), seguida da “encomendação e despedida”.

e) Exéquias para crianças (cap. V). Para este tipo de exéquias, há textos próprios (orações e leituras bíblicas), além da recomendação de que a cor litúrgica seja “festiva e pascal”.

f) Textos diversos: para exéquias de adultos (cap. VI), exéquias de crianças batizadas (cap. VII), exéquias de crianças não batizadas (cap. VIII).

2.2 Considerações acerca do ritual de exéquias de 1969

Sem sombra de dúvidas, o novo ritual de exéquias constitui um expressivo avanço frente ao antigo. A título de exemplo, podem-se destacar os seguintes pontos:

a) O restabelecimento da perspectiva pascal e eclesial. Essa perspectiva constitui o fio condutor de todo o ritual. Já no início das “Observações preliminares”, lemos:

A Igreja celebra com profunda esperança o mistério pascal de Cristo nas exéquias de seus filhos, para que eles, incorporados pelo batismo a Cristo defunto e ressuscitado, passem com ele da morte à vida. […] Por isso a santa Mãe Igreja oferece o sacrifício eucarístico da Páscoa de Cristo e eleva a Deus suas orações e sufrágios pela salvação de seus defuntos, para que, pela comunhão existente entre os membros de Cristo, o que para um serve de sufrágio a outros sirva de consolo e esperança. (n. 1)

Vê-se, com clareza, a íntima relação entre as exéquias e os sacramentos primordiais: o batismo e a eucaristia. Pode-se afirmar, igualmente, que a celebração das exéquias constitui o arremate de uma vida tecida no seio da comunidade eclesial e alimentada pelos sacramentos.

b) Uma eucologia mais abrangente. Vale destacar nas orações e nos prefácios a presença de diversos “temas” pouco explicitados no ritual tridentino, como: a esperança e a certeza da ressurreição, vinculadas à Páscoa de Cristo; o perdão e a misericórdia divina; o valor escatológico da eucaristia, definida como “viático na peregrinação terrena” e “penhor da páscoa eterna do céu”; a profissão de fé na vitória pascal de Cristo; maior atenção aos enlutados etc.

c) Um amplo lecionário. Assim como os demais livros litúrgicos, elaborados pós-Concílio Vaticano II, o ritual de exéquias traz um rico lecionário. As “Observações preliminares” apontam as razões para tal, nestes termos:

Em todas as celebrações pelos defuntos, tanto nas exéquias como nas outras, dá-se muita importância à liturgia da Palavra de Deus. Estas leituras proclamam o mistério pascal, despertam a esperança de um novo encontro no Reino de Deus, ensinam-nos uma atitude cristã para com os mortos e nos exortam a dar, por toda parte, o testemunho de uma vida cristã. (n. 11)

O lecionário contempla um significativo acervo de leituras do Antigo e do Novo Testamento. Os textos vêm apresentados na ordem em que são proclamados na ação litúrgica (primeira leitura – salmo responsorial – segunda leitura – aclamação ao evangelho – evangelho), e vêm distribuídos em três seções: “Exéquias de adultos”, “Exéquias de crianças batizadas” e “Exéquias de crianças não batizadas”.

d) A ampliação do acervo de salmos. O novo ritual resgata um expressivo repertório de salmos que remontam à antiga tradição de celebrações exequiais, sobretudo aqueles de conteúdo pascal e de confiança. Afinal, a linguagem poética, expressa nos diversos gêneros dos salmos, propicia à comunidade de fé solidarizar-se com quem está enfermo, aflito, inseguro, abandonado etc.: “Na minha angústia eu clamei pelo Senhor, e o Senhor me atendeu e libertou! O Senhor severamente me provou, mas não me abandonou às mãos da morte” (Sl 118/117, 5.18).

e) A revisão das exéquias de crianças. O novo ritual contemplou o pedido da Sacrosanctum Concilium para que fossem revisadas as exéquias de crianças, incluindo a criação de formulário para uma “missa própria” (cf. SC n. 82). Também foram elaborados textos para exéquias de crianças não batizadas, ou seja, daquelas cujos pais desejavam tê-las batizadas, mas foram impedidos pela morte precoce. Uma característica da eucologia dessas celebrações é o fato de se confiar a criança (não batizada) à misericórdia divina, sem fazer menção ao seu ingresso na glória celeste; pede-se sobretudo pelos seus pais. Por trás dessa “omissão”, se esconde a controvertida questão referente à sorte das crianças que morrem sem batismo. Vale recordar que, na ocasião em que tais orações foram redigidas, predominava a doutrina comum de que as “almas” das crianças não batizadas estavam impossibilitadas de desfrutar da “visão beatífica” de Deus. Essa questão foi discutida, quatro décadas depois, pela Comissão Teológica Internacional. Em 2007, o papa Bento XVI aprovou e autorizou a publicação do documento “A esperança da salvação para as crianças que morrem sem batismo”, elaborado pela referida Comissão. O estudo chega à seguinte conclusão:

A nossa conclusão é que os muitos fatores que antes consideramos oferecem sérias razões teológicas e litúrgicas para esperar que as crianças que morrem sem batismo serão salvas e poderão gozar da visão beatífica. Sublinhamos que se trata, aqui, de razões de esperança na oração mais do que de conhecimento certo. Existem muitas coisas que simplesmente não foram reveladas (cf. Jo 16,12). Vivemos na fé e na esperança no Deus de misericórdia e de amor que nos foi revelado em Cristo, e o Espírito nos impele a orar em gratidão e alegria constantes (cf. 1Ts 5,18).

O que nos foi revelado é que o caminho ordinário de salvação passa através do sacramento do batismo. Nenhuma das considerações expostas anteriormente pode ser adotada para minimizar a necessidade do batismo, nem para retardar a sua administração. Ainda mais, como queremos, aqui, reafirmar em conclusão, existem fortes razões para esperar que Deus salvará essas crianças, já que não se pode fazer por elas o que se teria desejado fazer, isto é, batizá-las na fé e na vida da Igreja. (CTI, 2008, n. 102-103)

O ritual de exéquias de 1969 inova também em outros aspectos, como: a admissão à cremação (n. 15); o ministro das exéquias, excetuando a eucaristia, pode ser um leigo (n. 19); a sensibilidade ecumênica da parte de quem prepara e preside as exéquias, uma vez que é comum nos velórios a presença de pessoas de outros credos ou mesmo sem nenhuma prática religiosa (n. 18); a possibilidade de adaptações do ritual, pelas conferências episcopais (n. 21-22) etc.

Rematando estas considerações acerca do ritual de exéquias de 1969, é pertinente também apontar seus limites, como a existência de vestígios de uma escatologia dualista (corpo x alma) e a não adaptação do ritual da parte da maioria das conferências episcopais. Estas e outras arestas poderão ser aplainadas, à medida que as igrejas se empenharem na elaboração de rituais que, além de uma boa teologia, levem em conta a realidade cultural das comunidades de fé.

3 Para melhor celebrar por ocasião da morte: sugestões pastorais

Como foi dito no início deste texto, a Igreja, em sua solicitude pastoral, sempre buscou encorajar e consolar seus filhos e filhas no momento extremo da existência, preparando-os para o último e decisivo combate espiritual, travado entre a vida e a morte. Bons exemplos disso são o rito da “encomendação da alma” (1614) e o da “encomendação dos agonizantes” (1969). Tais ritos – compostos de orações, breves perícopes bíblicas, jaculatórias, responsos etc. – são realizados junto ao moribundo no seu leito de morte. Uma vez acontecido o desenlace, celebram-se as exéquias.

Ao celebrar a “páscoa” de seus filhos e filhas, a Igreja continua sua nobre missão de consolar e confortar os enlutados, como bem exorta o Apóstolo: “Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos igualmente que Deus, por meio de Jesus, reunirá consigo os que adormeceram. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4,14.18). Nessa esteira de longínqua tradição, é urgente que a Igreja crie meios eficazes para a sedimentação de uma “pastoral da esperança”, que sirva de contraponto ao paradoxal fenômeno de camuflagem e/ou banalização da morte, típico da sociedade hodierna.

Para maior eficácia dessa “pastoral da esperança”, dentre outras coisas, deve-se levar em conta:

a) Uma ação conjunta com a “pastoral da saúde”. O conforto espiritual dispensado ao enfermo, bem como às pessoas da família e a todos aqueles que se ocupam dos doentes, constitui um verdadeiro ministério da consolação. Esse “ministério” tende a se potencializar na vida das pessoas, sobretudo quando estas têm de enfrentar a dor da morte do ente querido e o consequente trabalho de luto.

b) Uma adequada formação para agentes da “pastoral da esperança”. A celebração das exéquias e a consequente assistência espiritual às famílias enlutadas requerem cuidadosa preparação. Trata-se de um aprendizado que privilegiará a escuta da pessoa que sofre. Sem a cultura da escuta, torna-se impossível a abertura do canal da consolação.

Escutar significa dar a palavra, dar tempo e espaço ao outro, acolhê-lo também naquilo que ele recusa de si, dar-lhe direito de ser quem ele é e de sentir aquilo que sente e fornecer-lhe a possibilidade de se exprimir. Escutar é ato que humaniza o homem e que suscita a humanidade do outro. (MANICARDI, 2017, p. 15)

Nas exéquias e nas celebrações de apoio às famílias enlutadas, a escuta tem espaço privilegiado no momento da “recordação da vida”. Aqui, as pessoas são convidadas a expressar seus sentimentos e fazer a memória da “passagem” do ente querido, à luz do mistério pascal de Cristo. Fatos, palavras e ações do(a) defunto(a) se convertem num verdadeiro “testamento” a ser cumprido por todos. Igualmente, a escuta da Palavra de Deus e sua vinculação com o que foi dito na “recordação da vida” se converterão em substancioso alimento para a vida e remédio eficaz no combate da tristeza e da dor da separação.

Outros conteúdos estudados, ao longo do processo formativo, deverão corroborar tal “escuta”.

c) A criação de roteiros exequiais adaptados às necessidades pastorais de cada região. O ritual de exéquias de 1969 deixa ampla margem para que as conferências episcopais façam adaptações, conforme as necessidades pastorais de cada região (cf. n. 21-22). Infelizmente, a grande maioria das conferências episcopais optou pela simples tradução do ritual. O liturgista Gregório Lutz – de saudosa memória –, enquanto tecia considerações sobre um novo ritual de exéquias para o Brasil, lamentou o fato de o ritual de 1969 ter sido apenas traduzido, sem qualquer adaptação, nestes termos:

É verdade que ele exprime a fé autêntica cristã com respeito à morte, mas esta fé é expressa numa linguagem que, aqui, dificilmente se entende. É por isso que este novo ritual não foi tão bem aceito como o teria sido um ritual adaptado, eventualmente com sugestões diferentes para as regiões com as tradições próprias e para ambientes diversificados. (LUTZ, 1998, p. 33)

Essa opinião de Lutz pode ser aplicada a outros países da América Latina. No caso do Brasil, o que tem acontecido, na prática, são publicações de subsídios alternativos para celebrações exequiais que são adotadas em paróquias e dioceses. A título de exemplo, pode-se destacar: “Nossa Páscoa: subsídios para a celebração da esperança” e “Celebrando por ocasião da morte: subsídio para velório, última encomendação e sepultamento”. O primeiro foi preparado pela Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB. Este subsídio é composto de quatro capítulos e dois apêndices. O primeiro capítulo contém três celebrações da Palavra; o segundo traz uma celebração para a encomendação; o terceiro apresenta um rito próprio para o momento em que o corpo é depositado na sepultura; o quarto traz uma proposta para celebrações relacionadas com a cremação (uma no crematório e outra para a deposição da urna com as cinzas). No apêndice I, se encontra um pequeno lecionário, e no apêndice II, uma coletânea de cantos apropriados.

O subsídio “Celebrando por ocasião da morte: subsídio para velório, última encomendação e sepultamento”, por sua vez, compõe-se de seis roteiros. Cada roteiro contempla uma circunstância diferente de morte, a saber: de um membro atuante na comunidade; de uma pessoa falecida após longa enfermidade; de um(a) jovem; de um(a) religioso(a); de alguém vítima da violência; de uma criança. Cada um dos roteiros é composto de três partes: a) “Velório” (celebração no formato do Ofício Divino das Comunidades: chegada, abertura, recordação da vida, salmo, leituras bíblicas, meditação, preces, louvação); b) “Encomendação e despedida”; c) “Sepultamento / cremação”. Há, também, dois pequenos ritos para o momento da cremação e da deposição das cinzas, bem como um “Ofício de apoio às famílias enlutadas”.

Em suma, o que se espera é que as diversas igrejas encontrem a melhor forma de celebrar a páscoa de seus filhos e filhas e que essas celebrações sejam momentos privilegiados de proclamar a fé no “Cristo primogênito dentre os defuntos” (Cl 1,18).

Joaquim Fonseca, OFM.  ISTA/FAJE. Texto original em português. Enviado: 08/12/2021. Aprovado: 20/12/2021. Publicado: 30/12/2021.

Referências

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CARPANEDO, P.; FONSECA, J.; GUIMARÃES, I. R. Celebrando por ocasião da morte: subsídio para velório, última encomendação e sepultamento. 4.ed. São Paulo: Paulinas, 2018.

CNBB. Nossa páscoa: subsídios para a celebração da esperança. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2004.

COMISSSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A esperança da salvação para crianças que morrem sem batismo. São Paulo: Paulinas, 2008. Documentos da Igreja, 22.

FONSECA, J. Música ritual de exéquias: uma proposta de enculturação. Belo Horizonte: O Lutador, 2010.

LUTZ, G. Pensando um novo ritual de exéquias para o Brasil. Revista de Liturgia, São Paulo, n. 149, p. 31-34, 1998.

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MENDONÇA, J. Tolentino. A mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 16-17.

RITUAL DE EXÉQUIAS. São Paulo: Paulinas, 1971.

RITUALE ROMANUM Pauli V Pontificis Maximi. Editio septima post typicam. Sanctae Sedis Apostolicae e Sacrae Rituum Congregationis Typographorum, 1949.

ROUILLARD, Ph. Os ritos dos funerais. In: VV.AA. Os sacramentos e as bênçãos. São Paulo: Paulus, 1993. p. 225-265.

SORESSI, M. L’offertorio della messa dei defunti e l’escatologia orientale. Ephemerides Liturgicae, Cittá del Vaticano, n. 61, p. 245-252, 1947.

SOUZA, Christiane P. de; SOUZA, Airle M. de. Ritos fúnebres no processo de luto: significados e funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 2019, v. 25, p. 1-7. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ptp/a/McMhwzWgJZ4bngpRJL4J8xg/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 6 nov 2021.

Matrimônio

Sumário

1 O matrimônio no conjunto dos 7 sacramentos

1.1 A “diferença” do primeiro / último sacramento

1.2 A lógica paradoxal do matrimônio 

1.3 O matrimônio é um bem?

1.4 A história dos sujeitos e o depositum fidei

2 Quatro modelos clássicos de teologia do matrimônio

2.1 O modelo das origens: matrimônio e patrimônio

2.2 A laboriosa construção de um modelo medieval: tradições romanas e bárbaras

2.3 O modelo moderno: nasce a forma canônica

2.4 A era secular e a reação católica: resistência do poder temporal

2.4.1 Arcanum Divinae Sapientiae, Leão XIII (1880) e Código de 1917

2.4.2 Casti Connubii, Pio XI (1930)

2.4.3 Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II (1965) 

2.4.4 Humanae Vitae, Paulo VI (1968)

2.4.5 Familiaris Corsortio, João Paulo II (1981)

2.4.6 Código de Direito Canônico (1983)

2.4.7 Amoris Laetitia, Francisco (2016)

3 O início de um “novo paradigma” matrimonial, familiar e relacional

3.1 Uma teologia pós-moderna com esquemas pré-modernos

3.2 A autocrítica do magistério do século XIX

3.3 Do ato ao processo: a dimensão escatológica do matrimônio

4 As questões abertas sobre união e geração

4.1 O caráter complexo do matrimônio

4.2 Os diversos bens do matrimônio

4.3 O debate sobre a indissolubilidade

4.4 Lei objetiva e processo pastoral

4.5 As formas de vida e os cinco continentes do catolicismo

5 O bem da relação sexual e o “fenômeno amor”

5.1 Os bens do matrimônio são três, aliás quatro

5.2 A geração perde a exclusividade

5.3 Do uso do sexo à experiência da sexualidade

5.4 Um único bem pode ser abençoado?

5.5 O centro e a periferia: as diferentes linguagens da Igreja

Referências

1 O matrimônio no conjunto dos 7 sacramentos
1.1 A “diferença” do primeiro / último sacramento 

O matrimônio deve ser entendido ao mesmo tempo como dado natural, como construção social e como símbolo ritual da relação entre Deus e a humanidade, entre Cristo e a Igreja. Como tal, aparece, desde as primeiras listas dos “sete sacramentos” no século XIII, como um deles. É surpreendente, porém, que, mesmo nas listas mais antigas, a peculiaridade do matrimônio tenha características “polares”. Com efeito, está colocado no final ou no início da lista, visto que representa, ao mesmo tempo, o caso por excelência e o caso limite do fenômeno sacramento. Está na cabeça ou no fim da experiência sacramental. Por um lado, de fato, é o “último” entre os sacramentos, pois “torna lícito o que seria ilícito” e pode ser entendido como remedium concupiscentiae, ou seja, como remédio para a concupiscência. Por outro lado, os próprios autores escolásticos não esquecem que ratione significationis (ou seja, “em razão do significado”) o matrimônio é também o primeiro dos sacramentos: não apenas porque foi instituído por Deus antes da queda do pecado, mas porque expressa a unidade entre Deus e a humanidade, entre Cristo e a Igreja, com uma força e uma imediatidade completamente inimitáveis. Essas duas “almas” da tradição eclesial concentram-se ambas em duas famosas expressões paulinas: o matrimônio como “distração” e como “limitação do ardor” (1Cor 7) e o matrimônio como via de acesso ao “grande mistério” da relação entre Cristo e a Igreja (Ef 5). Toda a tradição eclesial se move entre esses dois polos.

1.2 A lógica paradoxal do matrimônio  

Santo Tomás de Aquino explicita-nos, com extrema clareza, a natureza complexa deste sacramento. Na Suma Teológica (III, 65, 1, c), apresenta um famoso paralelismo entre “vida natural” e “vida espiritual” e, depois de ter ilustrado para cada sacramento seu “equivalente natural” (ao nascimento corresponde o batismo; ao crescimento, a crisma etc.), ao chegar ao matrimônio, diz que “esta realidade natural” é o sacramento. Em vez disso, na Suma contra os Gentios, aborda o matrimônio em duas partes diversas (III e IV): a maior parte do que escreve ​​encontra-se na seção onde a razão elabora os dados, enquanto poucas linhas são dedicadas à parte propriamente “revelada” e sacramental (voltaremos a isso no próximo parágrafo). Estes dois exemplos, na obra de Tomás, confirmam algo importante: no matrimônio, de forma muito particular, natureza e graça, razão e fé estão indissoluvelmente entrelaçadas. Isso significa que a assunção da realidade, seja natural, seja civil, na lógica do matrimônio é uma condição de possibilidade do sacramento. Não é por acaso que só deste sacramento se diz que não é “instituído por Jesus Cristo”, mas é “elevado” a sacramento, sendo a sua dinâmica já assegurada pela lógica da criação, da natureza e das instituições civis.

1.3 O matrimônio é um bem?

Sabe-se que Santo Agostinho, na sua obra De bono coniugali [Sobre o bem conjugal]ofereceu a primeira exposição de uma “doutrina matrimonial”, na qual, no entanto, nota-se uma particularidade que chama a atenção. Embora esse texto esteja na raiz do discurso cristão e católico sobre os “bens do matrimônio”, na realidade a questão fundamental a que o texto de Agostinho responde é a pergunta pela compatibilidade entre matrimônio e vida batismal. A polarização que já observamos acima encontra aqui um “lugar comum”: se a fé é um modo de “desposar Cristo” – e isso vale para toda a Igreja, masculina e feminina – é ainda possível ou lícito ou aconselhável para os batizados o casar-se? A questão, que teve prevalentemente respostas positivas, conserva, aqui e ali ao longo da história e nas várias tradições, a força de traduzir-se em diferentes disciplinas ou papéis sociais. Pense-se, por exemplo, em como o matrimônio incidiu diversamente no Oriente e no Ocidente sobre as formas de vida dos pastores (diáconos, presbíteros e bispos).

1.4 A história dos sujeitos e o depositum fidei 

As características particulares do sétimo sacramento sempre tiveram que mediar entre natureza, história e graça. Por essa razão, as grandes etapas da teologia do matrimônio são afetadas por uma relação muito estreita entre as formas de vida (familiar, econômica, cultural) e sua interpretação pela Igreja. Pelo menos até o séc. XV, será bastante óbvio confiar à natureza e à sociedade a articulação dessa experiência, que a Igreja se limitava a abençoar e elevar à dignidade de sacramento. As mudanças da história das instituições, da compreensão geográfica do mundo, das formas de produção e da consciência subjetiva conduzirão, a partir do século XIX, a uma mudança progressiva no modelo de matrimônio e família. E será surpreendente observar como o tema clássico do “matrimônio” se unirá sempre mais ao novo tema da “família”, ignorado pela doutrina eclesial por cerca de dezenove séculos. No entanto, deve-se reconhecer que, precisamente por causa do entrelaçamento muito singular de níveis de experiência e conhecimento, o matrimônio é objeto de profunda reconsideração natural, social, psicológica e econômica. Em todos esses níveis, a tradição teológica, após a tentativa de resistência a todo custo, foi forçada a “traduzir a tradição”, como já tinha acontecido pelo menos quatro vezes ao longo da história e como mais uma vez a Amoris Laetitia (AL) exige claramente como tarefa para as próximas décadas. Examinemos, pois, quatro formas clássicas de impostação da teologia matrimonial.

2 Quatro modelos clássicos de teologia do matrimônio
2.1 O modelo das origens: matrimônio e patrimônio 

O anúncio da plenitude da relação entre homem e mulher, como lugar de verdade da Aliança com o Pai celeste, qualifica a palavra de Jesus (Mt 19,1-9) e inaugura a superação da “dureza de coração”. Mas já nas palavras mais antigas a presença da “cláusula de exceção” – “exceto no caso de porneia” – abre espaço para uma elaboração eclesial da palavra do Mestre, o que implica uma mediação delicada entre as lógicas naturais, civis e eclesiais. A identificação dos destinatários da palavra – que foi recebida como palavra universal, mas tem características proféticas e escatológicas que indicam que tem os discípulos como destinatários primeiros – pode ser esclarecida examinando a lógica do conjunto do cap. 19 do Evangelho segundo Mateus, no qual se passa do “matrimônio” (Mt 19,3-9) ao “patrimônio” (Mt 19,16-30): a indissolubilidade do vínculo pessoal e a ausência de vínculos econômicos são anunciadas no mesmo texto, embora a tradição se tenha orientado a receber o primeiro como “norma de direito natural” e o segundo como “conselho evangélico” (cf. BARBAGLIA, 2016). O resultado é, por um lado, a valorização simbólica da união esponsal e, por outro, uma disciplina cada vez mais acurada das vivências dos cristãos. A assunção da realidade criatural (“os cristãos casam-se como todos”, da Epístola a Diogneto) ou o juízo sobre a relação no plano jurídico, profético ou escatológico colorem diversamente os primeiros séculos de recepção do Evangelho, até à primeira sistematização por Agostinho (Sobre o bem conjugal).

2.2 A laboriosa construção de um modelo medieval: tradições romanas e bárbaras 

A evolução doutrinal e disciplinar na Idade Média merece uma consideração cuidadosa (cf. CORTONI, 2021). Em primeiro lugar, surge como evidência que a doutrina do matrimônio, na sua unidade, precisou mediar diferentes tradições culturais, jurídicas e mesmo “naturais”. Há, de fato, uma longa elaboração, com a duração de alguns séculos, que tenta harmonizar a leitura do matrimônio como “consentimento” – típica da tradição romana – com a que o entende como “coito” – típica dos povos que chegaram a Roma provenientes do Norte. A síntese, que o saber teológico e jurídico sustentará nas Universidades de Paris e de Bolonha, a partir do séc. XII, oferecerá uma poderosa mediação histórica, combinando no mesmo ato a “validade do consentimento” e a “indissolubilidade por consumação”. A fórmula jurídica, porém, esconde a presença, na dinâmica do sacramento, de diversos níveis de experiência, cuja composição está permanentemente confiada também à mediação da natureza e da cultura civil e não pode ser simplesmente antecipada pela Igreja.

Resulta, portanto, extremamente útil analisar cuidadosamente uma das grandes sínteses do saber medieval sobre o matrimônio, tal como se encontra na Suma contra os Gentios (Summa contra Gentiles = ScG), de Tomás de Aquino. A temática do matrimônio encontra-se “dividida” em duas partes. A primeira, mais consistente, está no livro III (cap. 122-126), enquanto a mais estritamente sacramental se encontra no livro IV. É preciso saber que os três primeiros livros da ScG são dedicados à discussão dos argumentos “da razão natural”, enquanto o livro IV trabalha no campo da “revelação divina”. Portanto há dois discursos sobre o matrimônio:

– no livro III (cap. 122-126), o texto se ocupa do matrimônio natural, da indissolubilidade, do matrimônio monogâmico, do parentesco e da natureza pecaminosa de toda união carnal;

– o matrimônio (sacramento) encontra-se no livro IV e se limita a um único capítulo (78).

Neste capítulo 78, o discurso teológico concentra-se em algumas linhas em torno do tema da

generatio (isto é, da “geração”), como categoria central do sacramento:

Generatio autem humana ordinatur ad multa: scilicet ad perpetuitatem speciei; et ad perpetuitatem alicuius boni politici, puta ad perpetuitatem populi in aliqua civitate; ordinatur etiam ad perpetuitatem Ecclesiae, quae in fidelium collectione consistit. Unde oportet quod huiusmodi generatio a diversis dirigatur. Inquantum igitur ordinatur ad bonum naturae, quod est perpetuitas speciei, dirigitur in finem a natura inclinante in hunc finem: et sic dicitur esse naturae officium. Inquantum vero ordinatur ad bonum politicum, subiacet ordinationi civilis legis. Inquantum igitur ordinatur ad bonum Ecclesiae, oportet quod subiaceat regimini ecclesiastico. Ea autem quae populo per ministros Ecclesiae dispensantur, sacramenta dicuntur. Matrimonium igitur secundum quod consistit in coniunctione maris et feminae intendentium prolem ad cultum Dei generare et educare est Ecclesiae sacramentum: unde et quaedam benedictio nubentibus per ministros Ecclesiae adhibetur. (TOMÁS DE AQUINO, ScG, l. IV, c. 78)

Na tradução:

A geração humana está ordenada a várias coisas, a saber: à perpetuação da espécie, à perpetuação de algum bem político, como seria a perpetuação do povo numa determinada cidade, ou à perpetuação da Igreja, que consiste na assembleia dos fiéis. É, pois, necessário que tal geração seja dirigida por diversos sujeitos. Com efeito, enquanto ordenada ao bem da natureza, que é a perpetuação da espécie, dirige-se a este fim por força da natureza que a inclina para esse fim: e por isso se diz que é um dever natural. Enquanto ordenada a um bem político, está sujeita à força de lei civil. Enquanto ordenada ao bem da Igreja, convém que esteja submissa ao regime eclesiástico. Ora, o que é conferido ao povo pelos ministros da Igreja, chama-se sacramento. Portanto, o matrimônio, ao consistir na união de varão e mulher tendente à geração e educação da prole para o culto a Deus, é um sacramento da Igreja e, por isso, é prevista uma bênção dos nubentes pelos ministros da Igreja. (TOMÁS DE AQUINO, ScG, l. IV, c. 78)

Se examinarmos o texto, veremos apresentados, como num espelho, as características do modelo medieval que permanecerá até o Concílio de Trento. Resumam-se seus pontos chave:

– é caracterizado pela “pluralidade de foros”. Um mesmo fenômeno, o matrimônio, lê-se em três âmbitos: natural, civil e eclesial, aos quais correspondem três “leis” e três “lógicas”;

– a dimensão sacramental é a geração e educação dos filhos na fé;

– o sacramento consiste evidentemente na “bênção dos esposos” pelos ministros da Igreja, sem que inclua diretamente a união sexual nem o consentimento, que pertencem à lógica natural e civil.

Do ponto de vista sistemático, a “forma” do sacramento e sua ministerialidade são concebidas segundo uma visão muito diferente da atual. Já que o “consentimento” e a “consumação” pertencem à lógica racional, natural e civil, à dimensão eclesial compete simplesmente a “bênção”, que obviamente não é ato dos cônjuges (como o são o consentimento e a consumação), mas do presbítero ou do bispo.

2.3 O modelo moderno: nasce a forma canônica

A passagem que ocorre com o Concílio de Trento é de extrema importância. Não apenas porque a doutrina clássica sobre o matrimônio é reafirmada, contra a contestação protestante, mas porque, mediante o Decreto Tametsi (1563), se transforma a compreensão institucional do matrimônio: como diz a primeira palavra, “tametsi” [= embora, não obstante], há uma “concessão”, no cerne do documento, que revoluciona a história do matrimônio católico. Leiamos o primeiro parágrafo do decreto:

A santa Igreja de Deus sempre detestou e proibiu por justíssimas causas os matrimônios clandestinos, embora não se deva duvidar que, realizados com o livre consentimento dos contraentes, sejam matrimônios ratificados e verdadeiros, enquanto a Igreja não os tenha anulado;

e, por conseguinte, com razão devem ser condenados, como o santo Sínodo com anátema condena os que negam que sejam verdadeiros e ratificados, e também os que afirmam erroneamente que os matrimônios contraídos pelos filhos da família sem o consentimento dos pais são nulos, e que os pais podem torná-los ratificados ou nulos. (DH 1813)

Neste parágrafo, que abre o decreto, um mundo está mudando. Muda o papel da Igreja no matrimônio. A introdução da “forma canônica”, necessária para a validade do ato, coloca a Igreja numa nova posição. Houve resistência na época. Eis o parecer esclarecedor de um dos bispos no Concílio, que disse: “se o matrimônio clandestino fosse abolido, os matrimônios feitos livre e espontaneamente seriam abolidos e, consequentemente, seria proibida a verdadeira amizade entre os cônjuges” (assim diz o bispo de Cava dei Tirreni, Tomás Caselius).

Esta decisão inaugura a competência da Igreja nos casos matrimoniais, que permanecerá uma espécie de imprinting para todo o período moderno e que estourará na época da modernidade tardia, quando a concorrência não será mais dos primeiros Estados modernos, mas dos Estados liberais que se sucederam à Revolução Francesa. O embate girará em torno à “competência no tocante à união e à geração”. Um contemporâneo, Paulo Sarpi, que foi um cronista respeitado e crítico do Concílio de Trento, escreveu sobre o decreto:

Seja como for – diziam –, o decreto não teria sido feito senão para elaborar, dentro em breve, um artigo de fé que afirmasse que as palavras pronunciadas pelo pároco seriam a forma do sacramento… Pelo contrário, foi estabelecido que, sem a presença do sacerdote, todo matrimônio era nulo, suprema exaltação da ordem eclesiástica, visto que uma ação tão importante na administração política e econômica, que até então estava nas mãos unicamente daqueles a quem competia, ficava inteiramente submetida ao clero, não restando maneira alguma de contrair matrimônio se os padres, isto é, o pároco e o bispo, pelo interesse que fosse, se recusassem a comparecer. (SARPI)

John Bossy, por sua vez, autor de uma síntese bem-sucedida sobre a Cristandade, entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, esclarece o que aconteceu com o matrimônio no decreto:

A proposta foi aceita – era a única que poderia conciliar as partes – e virou lei. Mesmo que tivesse sido de alguma forma prefigurada pela história anterior sobre o assunto, foi ainda assim um raio em céu sereno, e não está claro até que ponto o Concílio estava ciente de ter imposto à Cristandade uma verdadeira revolução, no sentido próprio da palavra. Ao cancelar a doutrina canônica segundo a qual o contrato conjugal seguido pela cópula carnal constituía o matrimônio cristão, excluindo o vasto corpus de ritos e acordos consuetudinários por estar privado de potencialidade sacramental, transformava-se o matrimônio de processo social garantido pela Igreja em processo eclesiástico administrado pela Igreja. (BOSSY, 1997, p. 79)

A figura do matrimônio, surgida depois da metade do séc. XVI, terá grande influência em nossa maneira de pensar o sacramento, sua verdade e seus efeitos. Embora seja uma intervenção meramente disciplinar, terá não pequenas consequências doutrinais, que se farão sentir sobretudo a partir do séc. XIX.

2.4 A era secular e a reação católica: resistência do poder temporal

O título da recente Exortação Apostólica (FRANCISCO, 2016) é Amoris Laetitia, a alegria do amor, o regozijo do amor, mas também a fecundidade e a criatividade do amor. A palavra latina laetitia é rica em ressonâncias e promessas. Assim começa o documento: com a alegria do amor. Depois da alegria do evangelho – em Evangelii Gaudium – a alegria do amor – em Amoris Laetitia. Como chegamos até aqui? Pode ser útil resgatar, de forma extremamente sumária, as grandes etapas que nos trouxeram até este ponto, que é uma espécie de “novo começo”. Depois do modelo antigo, medieval e moderno-tridentino, surgiu um “modelo séc. XIX”, que tem sua estreia no primeiro documento papal da “Idade Moderna tardia”, que aborda a questão “matrimonial” em um novo contexto. Estamos em 1880, durante o pontificado de Leão XIII, poucos anos depois do “assalto da Porta Pia” e da perda do “poder temporal” dos papas. A história que começa naquele momento – e que chega a seu termo com a AL – está profundamente marcada por questões institucionais, jurídicas e políticas, que caracterizaram a evolução de grande parte dos 140 anos seguintes. Questões teológicas e questões institucionais foram se entrelaçando de uma nova forma, que não tem precedentes na história da Igreja. À luz do novo texto, podemos reler essa história de outra maneira.

2.4.1 Arcanum Divinae Sapientiae, Leão XIII (1880) e Código de 1917

Toda a grande tradição medieval, mediada com autoridade pelo Concílio de Trento, assume, com esta encíclica de Leão XIII, a problemática nova e inédita de uma reafirmação da “competência eclesial” em face da reivindicação de competência dos Estados modernos sobre o matrimônio, que o séc. XIX acabara de inaugurar. Os temas fundamentais, típicos de toda a tradição precedente, são assim “filtrados” por este novo e dramático problema. Nesta encíclica elaboram-se as “formas de pensamento e de ação” que serão posteriormente adotadas pelo Código de Direito Canônico de 1917. E que se tornarão, por muitas décadas, o eixo decisivo da compreensão “católica” do matrimônio, da família e do amor. Com seus méritos e seus defeitos. Até hoje, esse “estrangulamento” institucional lança sua longa sombra na maneira como falamos, refletimos, agimos e até rezamos sobre o amor e o matrimônio.

2.4.2 Casti Connubii, Pio XI (1930)

Cinquenta anos depois, num mundo completamente diferente, Pio XI assumia um tema particular como o da “contracepção” como “chave de compreensão” do matrimônio e da família. Isso determinará, a partir de então, uma determinada prioridade na leitura “natural” do matrimônio e da família. A renúncia à “liberdade” no contexto matrimonial traduz-se na norma de uma sexualidade puramente “objetiva”, quase purificada da subjetividade e regulada apenas naturalmente e, portanto, pelo próprio Deus. Num abraço entre graça e natureza que, a longo prazo, corre o risco de asfixiar e polarizar cada vez mais a relação com a cultura civil e sua inevitável evolução “responsável”. A identificação de Deus com o “natural” e do homem com o “artificial” criou uma polarização crescente, que não trouxe somente clareza, mas que, a longo prazo, ofuscou as mentes e os corações. Assim, o tema da “natureza”, que para a tradição teológica era garantia do “diálogo com a razão”, tornou-se princípio de confronto e oposição à cultura contemporânea.

2.4.3 Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II (1965) 

Os textos que encontramos em GS (n. 46-52) testemunham alguns fenômenos de grande importância:

– matrimônio e família são unidos e pensados ​​na categoria de “problemas mais urgentes”, mas não mais principalmente apologeticamente, mas com abertura, misericórdia e diálogo;

– propõe-se uma “leitura personalista” que, de forma alguma, exclui a manutenção das estruturas disciplinares e doutrinais do séc. XIX, mas as relê com novas lentes: a santidade familiar, o amor conjugal e a fecundidade são entendidos como parte da missão eclesial;

– o diálogo cultural torna-se um terreno promissor para o desenvolvimento comum, para o reconhecimento do bem do matrimônio e da família, como “escola de enriquecimento humano”.

Esta etapa é crucial, enquanto se enquadra na “natureza pastoral” do Vaticano II, segundo a qual a substância da antiga doutrina do depositum fidei se distingue da formulação de seu revestimento, de acordo com a alocução Gaudet Mater Ecclesia, com que João XXIII abriu os trabalhos conciliares.

2.4.4 Humanae Vitae, Paulo VI (1968)

Não obstante a mudança parcial de linguagem introduzida pelo Concílio Vaticano II e o caminho para uma “personalização” do matrimônio e da família, que certamente encontram uma afirmação de grande importância na Gaudium et Spes, ainda em 1968 encontramos na Humanae Vitae, de Paulo VI, amplos vestígios da configuração que remonta a Arcanum Divinae Sapientiae Casti Connubii: o matrimônio e a família – como lugares únicos para o exercício da sexualidade – são inteiramente “predeterminados” por Deus, deixando ao ser humano um espaço de responsabilidade tão pequeno que resulta muitas vezes quase fictício e sempre muito formal e, em todo o caso, sequestrado pelas teorias do “consentimento contratual”. A possibilidade de uma “geração responsável” torna-se um tema abstrato, ao qual não correspondem “práticas” e “disciplinas” realistas. Mas a solução ineficaz depende – mais geralmente – de um modo de pensar o matrimônio e a família “em contraste” com a cultura civil moderna. Matrimônio e família ainda podem ser “usados” como baluartes antimodernos e reservas de competência eclesiástica. Mas neste “uso” sofrem também mortificações e reduções progressivas, que paralisam o pensamento e a prática eclesial, isolando-a e marginalizando-a da cultura comum. A “paternidade responsável” torna-se um espaço de reflexão sobre o mundo e de autorreflexão sobre a Igreja, tendo em vista uma compreensão diferente da relação entre união e geração.

2.4.5 Familiaris Consortio, João Paulo II (1981)

Embora dentro de uma forte continuidade com a linguagem do século anterior, Familiaris Consortio realiza duas importantes mudanças: por um lado, introduz, inclusive no título, a expressão familiaris, que é nova no magistério, que sempre se tinha ocupado de “matrimônio”, não de família. Seu precedente é certamente o Concílio Vaticano II e seu repensar a família eclesialmente. Mas a segunda passagem decisiva é o reconhecimento aberto de uma “diferenciação” da sociedade, que doravante emerge como evidente também para a Igreja. Não existem apenas “famílias regulares”, mas também “irregulares”, que já não são mais automaticamente e ipso facto “infames” e “excomungadas”. O documento de João Paulo II não dá muita importância a essa “admissão”, mas é o início de uma pequena revolução. A lógica da contraposição à sociedade civil, inaugurada por Arcanum Divinae Sapientiae, em 1880, cem anos depois já não se sustenta mais no plano prático e operacional, mesmo que teoricamente ainda possa dar um pouco de conforto. Em vez da contraposição frontal entra em questão a conciliação na diferenciação. É apenas uma tarefa, indicada e não realizada, mas claramente reconhecida. Isso abre o caminho para uma evolução primeiro da práxis e depois também da teoria.

2.4.6 Código de Direito Canônico (1983)

No Catecismo da Igreja Católica, n. 1601, encontra-se, sob o título “O Sacramento do Matrimônio”, o seguinte texto:

O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento. (CIC can. 1055, § 1)

Se olharmos sistematicamente, um fato deve nos surpreender: este é o único dos sete sacramentos a começar com uma citação do código. Esse fato diz muito sobre a tradição, suas luzes e sombras. É uma tradição que, como vimos, é preparada pelos desenvolvimentos teóricos medievais, pelas reviravoltas institucionais modernas, e assim encontra uma linguagem e uma mens pronta para ser aplicada também às novas questões, que surgem muito mais tarde do que o Concílio de Trento. Vemos a raiz deste “início jurídico” na evolução do magistério e da experiência eclesial, tal como se desenvolveu nos sécs. XIX e XX.

O Código de Direito Canônico de 1917 definia o matrimônio nos seguintes termos: “O consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo qual cada uma das duas partes transmite e recebe o direito perpétuo e exclusivo sobre o corpo (ius in corpus), em vista de atos, por sua natureza, aptos à geração da prole” (cân. 1081 § 2 do CDC de 1917).

Podem-se observar aqui pelo menos três pontos importantes:

– o matrimônio é compreendido como um “contrato”;

– o ponto central é o “direito de dispor do corpo do cônjuge” e não o “consórcio íntimo de toda a vida”;

– a ausência de qualquer referência ao “bem dos cônjuges”.

Também a linguagem jurídica, em um século, mudou profundamente, o que não deixou de ser significativo como preparação do salto que aconteceu com a Amoris Laetitia.

2.4.7 Amoris Laetitia, Francisco (2016)

Assim, chegamos ao magistério de Francisco. É o último elo da corrente magisterial da Idade Moderna tardia. Não temos apenas um “novo” documento, seguindo um acurado processo sinodal, com uma forte exigência de conversão pastoral e de vigorosa recepção do Concílio Vaticano II. Mesmo apenas no nível do “léxico”, os “nomes do amor” mudam e se transformam: de “arcano da sabedoria divina” a “matrimônio casto”, depois à “vida humana”, a “consórcio familiar”, para finalmente chegar à “alegria do amor”. Por detrás desses nomes que mudam, vemos aflorar uma história complexa, sofrida, problemática e, ao mesmo tempo, promissora. O novo documento deve ser lido nesse “amplo arco”, no contexto dessa história recente, sem simplesmente dissolvê-lo nos 2.000 anos de história cristã, mas tampouco comprimi-lo na história recentíssima das últimas décadas. À luz deste último documento, todos os outros assumem hoje inevitavelmente novas cores e formas. Assim foi sempre na longa história da Igreja cristã, todas as vezes em que a tradição conseguiu mostrar-se e reconhecer-se não só “viva”, mas também “sã”. Para manter esta “constituição sadia e robusta”, é preciso recorrer incessantemente às fontes da tradição e oferecer uma “tradução”, como procuro fazer a seguir.

3 O início de um “novo paradigma” matrimonial, familiar e relacional

O período que se seguiu ao Concílio Vaticano II acelerou a dissolução do “modelo séc. XIX” de compreensão e articulação da experiência matrimonial. Para usar a imagem de um grande sociólogo alemão da segunda metade do séc. XX, “a sociedade moderna se distingue das formações sociais anteriores por um duplo incremento: uma possibilidade maior de relações impessoais e relações pessoais mais intensas” (LUHMANN, 2008, p. 43). O texto da AL, de fato, sancionou o encontro eclesial com este mundo por meio de uma série de novidades que merecem ser consideradas brevemente, a seguir.

3.1 Uma teologia pós-moderna com esquemas pré-modernos

O fim do modelo de teologia católica do matrimônio do séc. XIX se nutre não só de uma nova experiência de “união” e “geração”, oferecida pela sociedade aberta liberal e pós-liberal, mas também do uso de “esquemas interpretativos” diferentes dos estabelecidos entre o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II. Uma teologia “pós-moderna” da união e da geração recorre a “esquemas pré-modernos” para superar as dificuldades da leitura moderna proporcionada pela “forma canônica” tridentina, reinterpretada pela apologética do séc. XIX e pelos dois códigos do séc. XX.

3.2 A autocrítica do magistério do séc. XIX

De forma bastante explícita, a AL propõe uma “autocrítica” do estilo magisterial dos dois séculos precedentes (cf. AL n. 35-37). Em particular, sublinham-se as distorções de uma pastoral matrimonial baseada na denúncia estéril, na pretensa normatização, nos “modos inadequados de expressar as convicções e de tratar as pessoas”, no “desequilíbrio entre o fim unitivo e o fim procriativo”, na idealização ideológica da teologia, na pretensa “autossuficiência da doutrina” e na presunção de “substituir as consciências, não formá-las”.

3.3 Do ato ao processo: a dimensão escatológica do matrimônio

Um dos aspectos mais decisivos da mudança de paradigma consiste justamente em uma difícil transição de considerar o matrimônio como “ato” para pensá-lo como “processo”. A relevância dos “fatos da vida” e dos “caminhos da consciência” torna-se assim decisiva também para a teologia, como afirma, com luminosa clareza, o último número da AL:

Contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que fazemos como famílias, deixando assim de exigir das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão por algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e toda família deve viver nesse estímulo constante. (AL n.325)

4 As questões abertas sobre união e geração

Uma doutrina sobre matrimônio, família e fatos de convivência implica uma releitura do conjunto da tradição. Eis os principais elementos que sintetizam análise histórica e reflexão sistemática.

4.1 O caráter complexo do matrimônio

O matrimônio é uma “instituição” que participa simultaneamente da natureza, da cultura civil e da vocação eclesial. Nenhuma dessas dimensões, mesmo em sua relativa autonomia, pode ser considerada sem as outras. Há, portanto:

– fatos e desejos a serem assumidos;

– direitos / deveres a serem observados e processados;

– dons e mistérios a serem reconhecidos e celebrados.

A irredutibilidade de cada um desses níveis aos demais é um dos maiores desafios deste sacramento. E o desafio da tradição reside justamente em salvaguardar a correlação entre elementos não redutíveis. Essa complexidade originária do matrimônio pôs à prova a doutrina eclesial. Seja porque o matrimônio vem “antes” do sacramento, seja porque vem “no final” do sacramento. Por isso pôde ser o “primeiro” e “último” dos sacramentos. Porque no matrimônio a “graça” se mostra como natureza e, ao mesmo tempo, a natureza “já é” graça. E, em meio a esses “polos”, move-se a lei, que, por um lado, funciona como “pedagogia” e, por outro, como “reconhecimento”. Talvez seja precisamente nesse ponto que encontramos mais dificuldades no nosso tempo.

4.2 Os diversos bens do matrimônio

A reflexão sobre os “bens” do matrimônio foi, por sua vez, fruto de uma elaboração natural, cultural e eclesial. Quando falamos dos “bens” do matrimônio, movemo-nos justamente por essa encosta escorregadia. A sua identificação – inaugurada por Agostinho através da tríade proles, fides e sacramentum – realiza uma seleção dos “dados” que – de tempos em tempos – a natureza, a história e a Igreja colocam no foco de sua atenção. Assim, foi possível que surgissem “bens” que a Igreja antiga, medieval e moderna não considerava. Examinemos só três:

– o “bem dos cônjuges” e a “comunidade de vida e de amor” adquiriram nova evidência e uma consistente autonomia;

– a “sexualidade” e o “sentimento do amor” se transformaram de funções da geração a fins em si;

– uma “vocação eclesial” consciente mudou a relação entre sujeito, família e Igreja, modificando as relações entre essas diferentes experiências.

Por sua vez, os “bens clássicos” já identificados por Agostinho foram enriquecidos e transformados:

– a proles” não é simplesmente a geração, como fruto do exercício do sexo. É antes a descoberta de uma “geração responsável”. Com toda a necessária articulação de um pensamento sobre o espaço possível de “autodeterminação” do homem / mulher no gerar;

– a fides não é apenas a “fidelidade conjugal”, mas um ato de fé eclesial. A relação entre “fidelidade” e “fé” tornou-se um dos pontos-chave da releitura contemporânea do sacramento. Aqui a relação entre “ato” e “vocação” abriu espaço para uma nova competência teológica no campo que antes tinha sido praticamente sequestrado pela só e óbvia competência jurídica.

– o sacramentum não se identifica apenas com a “indissolubilidade” – com o “não poder dissolver”, ou seja, com a “negação de uma negação” – mas com o ato positivo de amar, de conviver, de estar numa aliança. Talvez um dos pontos mais delicados dessa evolução seja interpretar corretamente a palavra forte de Jesus, de que o ser humano “não deve separar o que Deus uniu”.

4.3 O debate sobre a indissolubilidade

Esta palavra-chave de Jesus – “o homem não ouse separar o que Deus uniu” – indica uma “evidência originária” e um “cumprimento final”. Um teólogo disse há algumas décadas: o vínculo é indissolúvel, mas não é inquebrável. A questão, em nível sistemático, requer uma solução que não pode ser simplesmente de caráter judicial, embora requeira novas formas jurídicas. E é significativo que a tradição tenha identificado a indissolubilidade não no plano da “diferença sacramental”, mas no da lógica natural e comum. Por isso, o remédio para o “malogro” do vínculo deve assumir a tarefa de uma nova compreensão que diz respeito:

– por um lado, aos sujeitos envolvidos e à sua consciência;

– por outro lado, à “historicidade do vínculo”, que não é apenas “ato”, mas “percurso” e “vocação”.

A solução clássica para fazer frente às crises conjugais era: o vínculo é indissolúvel, mas o sujeito ligado pelo vínculo pode ter sofrido “vícios de consentimento”. Assim se pode reconhecer o vínculo como “nulo” com base numa investigação séria dessas “causas de nulidade”. Porém, tudo o que a indissolubilidade do vínculo garante torna-se muito frágil se for submetido a uma análise do consenso em que se baseia o vínculo. Assim se passa facilmente de “tudo” a “nada”. É a solução de “foro externo”, que hoje conhece limites cada vez maiores, tornando-se motivo de marcantes ficções e mistificações. Uma nova via, que de algum modo a AL inaugura, retomando uma lógica mais antiga, é a do “foro interno”, onde se pode descobrir que o vínculo, na consciência dos sujeitos, pode ter uma história e até malograr. O grande tema que entra na doutrina do matrimônio católico, graças à AL, com algum precedente na FC, é “a história do vínculo matrimonial”. A solução doutrinal e disciplinar hoje requer novas categorias jurídicas, que devem ser construídas e/ou reconhecidas. Há uma “lex condenda” (uma lei a ser criada) que espera contribuições não acessórias ao perfil teológico do sacramento.

4.4 Lei objetiva e processo pastoral

A recuperação de uma “dimensão escatológica” do matrimônio sacramental impõe, portanto, uma certa distância entre “instituição jurídica” e “vocação sacramental”. Isso foi muito difícil na Europa marcada pelo Decreto Tametsi, que originou indiretamente o que os Códigos de 1917 e de 1983 assumiram posteriormente como regra: ou seja, a identificação de todo matrimônio entre batizados como “sacramento”. Essa identificação determina uma espécie de “zeramento vocacional” do sacramento. E aqui entra o novo paradigma teológico da Amoris Laetitia. Não modifica a doutrina, mas lhe garante uma hermenêutica mais antiga e mais nova do que a da modernidade tardia. Ao recuperar uma antiga distinção entre esferas que possuem uma certa autonomia, pode superar a ideia (idealizada) de identificar o bem com a lei objetiva. Há “bens possíveis” que a natureza e a cultura realizam, na diferença e na analogia com relação ao ideal eclesial. Esses bens não só podem, mas devem ser reconhecíveis e reconhecidos.

4.5 As formas de vida e os cinco continentes do catolicismo

Uma reconsideração teológica do matrimônio, em uma relação estrutural com a família, exige uma nova correlação de mundos e experiências, que já não podem ser interpretados como “sistemas jurídicos paralelos”. O resíduo de “poder temporal” que subsiste no “direito matrimonial canônico” ainda impede de reconhecer o “bem possível” da esfera natural e da esfera civil. Um grande repensar teológico reinterpreta a dimensão jurídica à luz da escatologia. A tudo isto deve se acrescentar a grande mudança introduzida na doutrina do matrimônio, após o Concílio Vaticano II, pela descoberta de culturas – também matrimoniais – de cinco continentes diferentes, que entram como sujeitos na doutrina e disciplina eclesial. O testemunho eclesial, mediado por experiências naturais e por histórias civis muito diversas – entre África, Oceania, Ásia, América e Europa – aporta à doutrina do matrimônio uma nova riqueza e uma grande diversificação de perspectivas, embora em continuidade com a tradição. Somente um papa “latino-americano” poderia levar à plena evidência essa novidade estrutural.

5 O bem da relação sexual e o “fenômeno amor”

Se recapitularmos o percurso geral realizado até aqui, podemos observar uma série de dados relevantes e lê-los em uma perspectiva sapiencial. As relações pessoais, as comunidades de vida e as alianças esponsais foram interpretadas durante séculos com a categoria de “bem”, precisamente porque desde o começo houve a tentação de lê-las como um “mal”. Como vimos, a primeira grande síntese sobre o matrimônio, escrita por Santo Agostinho, intitulava-se De bono coniugali (Sobre o bem conjugal). Se superarmos a ideia de que o matrimônio é um mal – essa foi a tentação de uma parte do cristianismo antigo que permaneceu oculta até L. Tolstoi e mesmo depois – e se assim também pudermos superar a ideia de que o único “cônjuge” de cada homem ou mulher só pode ser Cristo e que, portanto, todo “outro” matrimônio é ilícito ou pecaminoso, entramos na consideração do matrimônio como um “bem”, ou seja, na teoria dos “bens do matrimônio”. Agostinho ofereceu uma apresentação sintética que fez escola por muitos séculos: os três bens do matrimônio são os filhos, a fidelidade e o sacramento (isto é, a indissolubilidade). O primado da geração é claríssimo para Agostinho, pois é a verdadeira justificativa central da vida matrimonial. Se alguém for incapaz de continência, a orientação do ato sexual à geração torna-o lícito. Mas não só a “geração” é um bem do matrimônio; também a “fidelidade” e o “vínculo para sempre”. Já para Agostinho, ser fiel e vincular-se para sempre tem sua dignidade própria, mesmo que não haja geração.

5.1 Os bens do matrimônio são três, aliás quatro

Durante séculos essa representação do matrimônio, justificado pela geração, permaneceu central. Pelo menos até o código de 1917 – e assim oficialmente até 1983 – a definição do vínculo matrimonial como ius in corpus (direito ao corpo) de cada um dos cônjuges sobre o outro mostra a centralidade do ato de união sexual como justificativa teológica do matrimônio. Deve-se acrescentar que, sempre a partir de Agostinho, a distinção entre “bens em si” e “bens para outrem” colocou o matrimônio “em função” ou da geração ou da amizade social.

Mas, com a modernidade tardia, outro modo de entender a relação entre homem e mulher foi ganhando força. Agora no matrimônio cada sujeito, além de gerar os filhos, encontrava no bem do outro e no bem próprio em relação ao outro um valor decisivo. A consideração do próprio prazer da carne perdeu o caráter de libido a ser refreada e de intemperança a ser combatida, para assumir o de expressão e experiência de amor – ao ponto de levar a própria Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, a falar do matrimônio como “comunidade de vida e de amor” e assim acrescentar aos clássicos tria bona (três bens), de que Agostinho tinha falado, um quarto bem, o bonum coniugum, o bem dos cônjuges. Nesse horizonte, obviamente, muitas coisas estavam destinadas a mudar.

5.2 A geração perde a exclusividade

A personalização do matrimônio e da família não é indolor, nem mesmo para a teologia. A centralidade da geração começava a ser contestada e falava-se, oficialmente, pelo menos a partir da Humanae Vitae, de “procriação responsável” ou de “paternidade e maternidade responsável”. Um certo “controle” da geração tornou-se possível e razoável, em consonância com a nova relevância do bem do casal. Do ponto de vista de um pensamento sistemático, esse novo posicionamento alterava profundamente o sistema latino, que Agostinho tinha inaugurado com sua autoridade e cuja síntese tinha atravessado com grande força mais de um milênio e meio de história.

No entanto, não é comum tirar as consequências sistemáticas necessárias desta grande transformação: ou seja, é difícil admitir que, se a geração é absolutamente central, é evidente que a relação entre homem e mulher só pode ser “ordenada” se o ius in corpus (direito ao corpo) for exercido dentro do matrimônio. Se, portanto, o sexo se justifica pela geração, é evidente que apenas o matrimônio é o lugar do exercício do sexo. Se, porém, a relação entre homem e mulher tem, em si, um valor de “bem”, o exercício da sexualidade adquire certa autonomia, não só da geração, mas também do matrimônio. Torna-se um “bem” sem necessariamente ter que estar ligado à geração. A relação entre união e geração muda e pede novas mediações, mais flexíveis e menos rígidas.

5.3 Do uso do sexo à experiência da sexualidade

Esse desenvolvimento não impede de modo algum que ainda hoje se reconheça no matrimônio a unidade complexa desses quatro bens (geração, bem dos cônjuges, fidelidade e indissolubilidade), mas não exclui que possam existir formas de vida, uniões (heterossexuais ou também homossexuais) em que existam só alguns desses bens. Que permanecem bens, mesmo que não estejam no horizonte da geração. Geram amizade social, fidelidade, paz, mesmo que não gerem filhos.

A primeira pergunta que devemos fazer é, então: será que um homem e uma mulher podem viver a fidelidade, a indissolubilidade e o cuidado mútuo sem gerar? Isso não é de forma alguma impossível, aliás é real e pode até assumir a forma de matrimônio, mesmo sacramental, contanto que a “ausência de geração” não seja vivida e apresentada como uma escolha explícita. Assim tem sido desde a época de Agostinho. O “não poder gerar” não impede o sacramento. Mas mesmo no caso em que a não geração fosse explicitamente desejada e, portanto, o sacramento fosse excluído, o que nos impediria hoje de abençoar, na união não sacramental, os bens que existem, ao invés de amaldiçoar pelo bem que não existe?

Aqui se encontra um ponto delicadíssimo da tradição moral recente: se o “mal menor” ou “bem possível” pode ser considerado uma “desordem” e, portanto, um pecado, ou, ao invés, uma “outra ordem”, um “bem menor”.

5.4 Um único bem pode ser abençoado?

Lembremos que, em 2010, houve uma polêmica em torno de algumas declarações de Bento XVI a respeito do uso de preservativo por um “prostituto”, o que em certas circunstâncias poderia ser considerado um “ato moral”. O mesmo exemplo pode ser aplicado não no que toca o juízo moral, mas no que concerne ao discernimento pastoral. Tomemos o caso extremo em que, na vida de um “prostituto” ou de uma “prostituta”, sejam expressamente desejadas – diríamos por profissão – a ausência de geração e a óbvia ausência de fidelidade, mas se viva uma relação estável, heterossexual ou homossexual, na qual um cuida do outro e deseja o bem do outro. Essa “comunidade de vida e de amor”, percebida não como ocasional, mas como tendo uma estabilidade adquirida, fora de qualquer perspectiva sacramental, por que não poderia ser reconhecida e abençoada? E, se assim fosse, não poderia ser a fortiori válido também para a vida descomprometida de um homem e uma mulher, ou de dois homens, ou de duas mulheres, que vivem a sua infertilidade natural forçada ou voluntária, mas que são fecundos na relação pessoal, social, cultural e eclesial? Se faltassem três dos quatro bens que compõem a relação matrimonial, mas o subsistente fosse realmente um bem, uma forma de “viver para o outro” e de “abnegação”, ainda que em meio à possível ausência dos outros três, não seria a Igreja o lugar ideal para um reconhecimento profético, antes que o tribunal severo de um julgamento de exclusão?

5.5 O centro e a periferia: as diferentes linguagens da Igreja

Concluindo, perguntamo-nos qual deve ser a consciência dos ministros da Igreja diante do fenômeno da união e da geração. Deveria ser a de consciência de funcionários de uma instituição que carrega, importa e impõe o centro em todas as periferias? Ou de homens de Deus que conduzem ao centro toda periferia por remota e isolada que seja? A Igreja não estabelece nem impõe o bem: antes de mais nada, ela o reconhece e acolhe. Por conseguinte, a questão decisiva não é qual é o poder da Igreja sobre a bênção, mas sim qual é a autoridade que o bem real e o bem possível exercem sobre a Igreja mesma. A primeira pergunta surge de uma Igreja “fechada em seu centro”; a segunda surge espontaneamente de uma Igreja verdadeiramente em saída universal, convicta de ter um centro eucarístico, mas também um corpo sacramental e, finalmente, uma periferia e um “fora de si” a ser estimulado no louvor, na ação de graças e na bênção. Uma igreja que sabe poder e dever falar com linguagens diferentes no seu centro, no seu corpo alargado e nas margens mais extremas de sua periferia. Quanta semelhança com seu Esposo e Senhor poderia reencontrar em si mesma uma Igreja que estivesse acostumada a comer com as prostitutas e os publicanos, que soubesse deter-se para conversar com mulheres de muitos maridos, que não perdesse a ocasião para se entreter com cegos de nascença e com pobres doentes, nos quais seria sempre capaz de descobrir – sem grande surpresa e com abertura magnânima – o rosto cheio de esperança das “primícias do Reino”. Por isso, as distinções entre matrimônio, união civil e união natural servem justamente para reconhecer, em cada realidade, o máximo de bem possível por parte de uma Igreja que se reconhece não só como mestra, mas sobretudo como mãe.

Andrea Grillo. Pontifício Ateneo Santo Anselmo (Roma); Abadia de Santa Justina (Pádua). Texto original em italiano. Tradução Paolo Brivio; revisor Francisco Taborda. Submetido: 03/03/2021. Aprovado: 06/06/2021. Publicado: 30/12/2021.

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