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Mística, justiça e opção pelos pobres

Sumário

1 João XXIII e a Igreja dos pobres

2 A América Latina e a Igreja dos pobres

3 O Deus justo e misericordioso é o Deus dos pobres

4 Jesus e os pobres: a mística da opção pelos pobres

5 O desenvolvimento da opção pelos pobres no magistério do papa Francisco

6 Referências bibliográficas

1 João XXIII e a Igreja dos pobres

Pouco antes do início do Concílio Vaticano II, João XXIII pronunciou uma histórica mensagem radiofônica na qual afirmava: “Com relação aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e quer ser: a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres”. Era o dia 11 de setembro de 1962 e, deste modo, fazia irrupção na Igreja no século XX o tema da Igreja dos pobres.

Desde o fim da Segunda Grande Guerra o mundo passava por um acelerado processo de decolonização que fez emergir um novo sujeito e ator internacional: o Terceiro Mundo. A pobreza no mundo no século XX tomava uma nova forma. Se antes a pobreza era relativamente distribuída por todos os continentes, agora se configura uma nova realidade, onde a região Norte do planeta atinge um alto grau de desenvolvimento e o Sul passa a concentrar altos níveis de desigualdade e escassez, frente ao Norte desenvolvido. Uma parte do mundo encontra-se também ligada à experiência do Coletivismo Marxista. Nos anos 1950, o geógrafo francês Alfredo Sauvy cunhará uma expressão-conceito que se tornará de uso comum. Frente ao Norte desenvolvido, Primeiro Mundo, e aos países socialistas, Segundo Mundo, os países pobres do Sul constituem um Terceiro Mundo, subdesenvolvido.

A Conferência de Bandung, em abril de 1955, reuniu 29 países da Ásia, do Oriente Médio e da África Subsaariana, marcando o início de uma coalizão dos países do Terceiro Mundo e a afirmação de novas lideranças terceiro mundistas, como Nasser, do Egito, Sukarmato, da Indonésia, Chu Em-Lai, da China, Kwame Nkrumah, de Gana, Ahmed Sékou Touré, da Guiné, Patrice Lumumba, do ex-Congo Belga, Hailé Selassié, da Etiópia. A esta reunião seguiu-se outra, em 1961 em Belgrado, onde participaram também países latino-americanos. Os compromissos assumidos em Belgrado, no contexto decolonial e de afirmação do pensamento e agir terceiro-mundista, foram: oposição sistemática ao imperialismo e ao colonialismo, participação conjunta, como bloco, em assuntos econômicos e de política internacional, construção de um mundo baseado na justiça e na paz e o não alinhamento a nenhum dos dois blocos da Guerra Fria. Neste período, surgem como expressão política de relevo tanto o pan-africanismo quanto o pan-arabismo e as experiências do socialismo árabe que, entre os anos 1950 e 1960 foram implementadas, de diferentes modos, no Egito, Síria, Argélia, Iraque, Líbia e Iêmen do Sul. O socialismo árabe, não relacionado diretamente ao marxismo, mantinha referência ao Islã, sem ter cunho religioso teocrático, dando lugar à constituição de estados laicos, socialistas, na região. Na América Latina, a Revolução Cubana abre caminho para uma série de processos e lutas revolucionárias no Continente, ao mesmo tempo que outras forças progressistas afirmavam a necessidade da superação da situação de dependência econômica e cultural do Primeiro Mundo, assim como a necessidade de se estabelecerem reformas profundas que levassem à superação da imensa desigualdade econômica e social, combatendo a exploração das massas pobres e a exclusão de enorme parcela da população do acesso à educação, saúde e bem-estar.

Foi diante deste quadro que se colocou, para a Igreja, a necessidade de se fazer presente junto aos processos de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Não poderia repetir a Igreja o imobilismo que a fez afastar-se da massa trabalhadora europeia no decorrer do século XIX. Neste novo mundo que surgia, dos processos e lutas decoloniais, a Igreja deveria ser a Igreja dos pobres.

Em resposta à radio-mensagem do papa, nas vésperas do Concílio, em outubro de 1962 reuniu-se no Colégio Belga, em Roma, um grupo informal que será posteriormente chamado de Igreja dos pobres. A primeira reunião ocorre em 26 de outubro, sob a liderança do arcebispo melquita de Akka-Nazaré, D. Georges Hakim (que havia solicitado a Pe. P. Gauthier escrever um primeiro texto convocatório), e do bispo de Tornei (Bélgica), D. Himmer. Na ocasião, doze bispos se reuniram sob a presidência do cardeal Gerlier de Lion (França). Entre estes bispos encontravam-se dois latino-americanos de grande expressão: o brasileiro D. Hélder Câmara e o chileno Manuel Larraín. Já na segunda reunião, sob a presidência do patriarca melquita de Jerusalém, D. Máximo IV, o grupo contava com 50 bispos participantes. Reunindo bispos de diferentes regiões, o Grupo Igreja dos pobres, possuía um amplo leque de visões sobre a questão. Estas diferentes perspectivas abrangiam tanto uma posição mais pastoral, no sentido de estabelecer como prioridade uma pastoral operária orgânica, quanto uma visão mais emotiva e outra mais doutrinal e terceiro mundista. Nessa última perspectiva, a pobreza era vista como sendo fruto de uma injustiça e a Igreja deveria se comprometer com os processos de libertação, acompanhando os pobres e suas lutas. A Igreja deveria se fazer pobre com os pobres e se identificar com o Cristo pobre.

O grupo não obteve sucesso na tentativa de tornar a questão dos pobres um eixo do Concílio. Conseguiu, entretanto, introduzir um importante parágrafo na Constituição Dogmática Lumen Gentium:

Mas, assim como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação. Cristo Jesus “que era de condição divina… despojou-se de si próprio tomando a condição de escravo” (Fl 2,6-7) e por nós, “sendo rico, fez-se pobre” (2 Cor 8,9): assim também a Igreja, embora necessite dos meios humanos para o prosseguimento da sua missão, não foi constituída para alcançar a glória terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegação, também com o seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai “a evangelizar os pobres… a sarar os contritos de coração” (Lc 4,18), “a procurar e salvar o que perecera” (Lc 19,10). De igual modo, a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo. (LG n.8)

 Ao final do Concílio, cerca de 40 bispos participantes deste movimento assinaram, na Catacumba de Santa Domitila, um importante documento que se tornou conhecido como o Pacto das Catacumbas, no qual se comprometiam a promover um modelo de Igreja pobre com os pobres. Entre os compromissos assumidos, incluía-se a renúncia a títulos que expressem grandeza ou poder, o uso de vestes suntuosas, bem como o uso de carros e residências que não sejam populares, e comprometiam-se também a dedicar um tempo privilegiado para o cuidado dos pobres e dos menos favorecidos.

O papa Paulo VI, influenciado pelas posições do Grupo Igreja dos pobres fez dois gestos importantes: renunciou ao uso da tiara papal, que ofertou para os pobres da África, e consignou a cada um dos bispos conciliares um anel simples que deveriam usar como anel episcopal. Após o Concílio, o papa promulgou, em março de 1967, a Encíclica Populorum Progressio, recolhendo parte dos temas desenvolvidos pelos bispos do movimento Igreja dos pobres. Inspirados pela Encíclica e liderados por D. Hélder Câmara, em agosto do mesmo ano, dezessete bispos de diferentes países e continentes lançam o Manifesto dos Bispos do Terceiro Mundo. O Manifesto, com tons fortes, defende a igualdade de classes sociais e reconhece a necessidade histórica dos processos revolucionários populares libertadores, que devem contar com a vizinhança da Igreja.

2 A América Latina e a Igreja dos pobres

Após o Concílio, respondendo a uma solicitação dos bispos D. Hélder Câmara e D. Manuel Larraín, Paulo VI convocou uma nova Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, com o objetivo de aplicar o Concílio à realidade do continente. A reunião se deu em 1968 na cidade de Medellín, Colômbia. Nesta reunião ocorre não só a recepção latino-americana do Concílio, mas também do Movimento Igreja pobre e dos pobres, em uma perspectiva terceiro-mundista e na linha do Pacto das Catacumbas, cujo texto foi praticamente acolhido no Documento 14 das Conclusões Gerais de Medellín. Ali a questão do pobre não aparece como um tema, mas como uma perspectiva, um horizonte estruturador da Igreja toda e de toda a vida cristã. No imediato pós-Medellín, as experiências de uma verdadeira eclesiogênese levada adiante pela constituição das Comunidades Eclesiais de Base e o desenvolvimento de uma pastoral popular articulada com os movimentos de organização e luta popular levaram à criação da Teologia da Libertação e à formulação teológica daquilo que se constituirá na marca decisiva da Igreja latino-americana: a opção pelos pobres. A expressão “opção pelos pobres” não se encontra ainda em Medellín. Ela se afirma a partir de 1972 e contém em si dois pontos centrais. O primeiro é o imperativo de se mudar de lugar social, isto é, de assumir o olhar do pobre, “ver o mundo com os olhos dos pobres”. Isto exige a convivência com os pobres e a criação de fortes laços empáticos, assim como exige que se dê voz aos pobres, colocando-se em posição de escuta. Não só permitir que a voz dos pobres se faça sentir, mas também amplificá-la, privilegiar o lugar de fala dos pobres e das vítimas. Não pretender ser a voz dos que não têm voz, mas sim dar voz aos que sofrem a opressão e são continuamente silenciados, e assumir suas perspectivas. O segundo imperativo, estreitamente ligado ao primeiro, é o de reconhecer a necessária centralidade das vítimas como sujeitos sociais e eclesiais. Trata-se de apoiar toda ação que possa fazer emergir os pobres e as vítimas como sujeitos das transformações sociais, econômicas e ambientais, que levem à superação das diversas formas de opressão e de destruição da obra da criação. Deste modo, os pobres devem ser reconhecidos como portadores de uma situação evangélica privilegiada, assumindo um novo protagonismo na Igreja, tornando-se sujeitos da evangelização e de transformação da Igreja.

Ao longo da história recente da Igreja na América Latina e no Caribe, a opção pelos pobres foi reafirmada initerruptamente nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).

3 O Deus justo e misericordioso é o Deus dos pobres

Iahweh vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno; o que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Portanto, amarás o estrangeiro, porque fostes estrangeiro na terra do Egito (Dt 10, 17-19).

Israel conhece o nome de Deus em meio ao evento da libertação do cativeiro do Egito. (Ex, 3,10; 6,2-6). O Deus que ouve os clamores de seu povo e o liberta é o mesmo Deus dos patriarcas Dt 7,7-8), o Deus da Aliança, o Deus Criador (Gen 1), o único e verdadeiro Deus. Senhor dos senhores, todo poderoso, este Deus não faz acepção de pessoas, mas toma incondicionalmente a defesa dos pobres, normalmente representados nas Escrituras hebraicas pelas figuras do órfão, da viúva e do estrangeiro. O conceito de justiça das Escrituras não é o mesmo do direito greco-romano. Ser justo não é ser imparcial, mas sim ser fiel ao plano original da criação, opondo-se a toda forma de opressão e dominação que a desfiguram e restabelecer a ordem originária, protegendo e defendendo todas as vítimas. Quando se instaura a monarquia em Israel, a figura do rei ideal, expressa nos Salmos, é a de um rei que deve ser uma imagem de Iahweh, um instrumento de sua justiça, sendo um defensor e libertador dos pobres, dos indigentes e desvalidos:

“Ó Deus, concede ao rei teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei; que ele governe teu povo com justiça e teus pobres conforme o direito (…) com justiça ele julgue os pobres do povo, salve os filhos dos indigentes e esmague os opressores” (Sl 72,1-4).

A superioridade do rei de Israel sobre os outros reis e nações se deve a este exercício de justiça, seu poder se ancora em ser justo como Iahweh, um instrumento de sua justiça “pois ele liberta o indigente que clama e o pobre que não tem protetor; tem compaixão do fraco e do indigente e salva a vida dos indigentes” (Sl 72,9-13). Os profetas alertam: os reis serão julgados segundo tenham sido, ou não, como Iahweh, um defensor dos pobres, das viúvas e do estrangeiro (Jr 22,1-5). Ao se afastarem da justiça, trazem a ruína sobre sua casa e seu povo, mas Iahweh não abandona a Aliança e assim os profetas também anunciam o rei justo que virá (Is 11,1-9).

Os evangelhos revelam uma profunda continuidade com esta perspectiva fundamental. Na Palestina da época de Jesus, as condições de vida eram bastante modestas. Apenas uma pequena parte da população gozava de condições abastadas, e de um modo geral os habitantes da região viviam da pequena agricultura, da criação de pequenos animais, da pesca, do pequeno artesanato, ou trabalhavam empregando-se como assalariados diaristas nos serviços que encontravam a cada dia. Muitos viviam em situação de exclusão econômica e social e, devido às interpretações que surgiram no tardo judaísmo, eram vistos como pecadores, como se a pobreza, ou as graves doenças, fossem um castigo pelos seus pecados. Outros, por praticarem atividades tidas como impuras, eram também socialmente excluídos, como os publicanos. Por isto, nos sinóticos, os pobres da época de Jesus são agora resumidos nas categorias de “publicanos e pecadores”, que substituem a trilogia veterotestamentária dos órfãos, viúvas e estrangeiros. O capítulo 15 do Evangelho de São Lucas inicia-se com uma acusação feita a Jesus por fariseus e escribas, diante do fato de que “todos os publicanos e pecadores estavam se aproximando para ouvi-lo”:  “Esse homem recebe os pecadores e come com eles” – devendo aqui ser recordado que, no contexto semita, “comer com eles” significava estabelecer laços de proximidade e comunhão de vida. Jesus responde com as três parábolas da Graça: a parábola da ovelha perdida (v. 4-7), da dracma perdida (v. 8-10) e do filho pródigo (v. 11-32). Jesus, ele mesmo pobre, nascido em uma manjedoura em Belém, refugiado no Egito para sobreviver quando criança, que viveu em uma família pobre em uma cidade periférica, caminha agora com os pobres, fala para eles, convive com eles e entre eles, pois Deus é assim. Deus é como o pastor que chega a abandonar as ovelhas que estão juntas para buscar a ovelha que se perdeu e está vulnerável; Deus é como a mulher que, mesmo tendo nove dracmas, não descansa enquanto não encontra a única dracma perdida; e, por fim, Deus é como o pai da terceira parábola. Um pai tinha dois filhos. Ao mais velho cabia herdar a casa e os negócios do pai. O mais novo, cumprindo seu papel, pede a sua parte na herança paterna e sai de casa para fundar, conforme era esperado na sociedade hebraica e semita em geral, sua própria casa e fazer seus negócios. Porém, o filho não cumpre com a obrigação de honrar a herança recebida e a dissipa em uma vida devassa. Fica na miséria, deveria encontrar-se em país estrangeiro pois encontra trabalho apenas como cuidador de porcos, o que era particularmente abominável para um judeu, impedido por interdito religioso de comer tal carne. Caindo em si, resolve voltar à casa paterna, buscando trabalho, sabendo não haver nesta casa mais nenhum direito, já que havia dela se emancipado. O pai, ao vê-lo ao longe, se alegra, enche-se de compaixão e o recebe como filho, restabelecendo sua condição de antes da emancipação, abraçando-o, beijando-o, dando-lhe a melhor túnica, o anel e as sandálias, determinando aos empregados para organizarem uma refeição com o melhor novilho, em que comeriam e beberiam com ele, festejando. Explica sua alegria e sua ação: “pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido (apolōlōs / ἀπολωλὼς) e foi reencontrado (hĕurĕtē / εὑρέθη).  Nessa parábola, ao se usar os mesmos verbos (apŏllumi / ἀπόλλυμι e hĕuriscō / εὑρίσκω)  das duas parábolas anteriores, temos uma clara indicação de que o pai havia buscado ativamente o filho que tinha saído de casa  (sentido de hĕuriscō / εὑρίσκω), como o filho tinha dissipado todos os seus bens, tornando-se praticamente um mendigo, e não tinha feitos negócios, estabelecido uma nova casa, e dele o pai não tinha notícias, julgando-o morto. Ao reencontrá-lo, encheu-se de compaixão, pois ao final o filho estava vivo e ele poderia agora dele cuidar. O filho primogênito, que havia seguido em tudo o pai, sendo zeloso no cumprimento da lei e dos preceitos paternos, permanecendo fiel ao pai, é incapaz agora de segui-lo na mesma alegria, de encher-se também de compaixão, e torna-se, então, infiel no seguimento do amor. Ele recusa-se a participar da festa, exclui-se do banquete e da celebração. O comportamento de Jesus em relação aos pobres se funda na essência de Deus mesmo. Em Deus, justiça e misericórdia são duas faces de uma mesma moeda. Deus se coloca incondicionalmente do lado dos pobres, pois a situação da pobreza, em si mesma, constitui uma injustiça, fere a criação e o desígnio amoroso de Deus. A situação dos pobres clama aos céus e tem como resposta a misericórdia, o amor de Deus, que se coloca ao seu lado, fazendo justiça.

 4 Jesus e os pobres: a mística da opção pelos pobres

No capítulo 25 do Evangelho de Mateus, encontramos a parábola do juízo final (v. 31ss). Nessa parábola, colocam-se os critérios fundamentais pelos quais seremos julgados, tendo em vista nossa salvação ou condenação eterna. Os critérios são claros: são acolhidos por Deus aqueles que deram de comer aos famintos, deram de beber aos que tinham sede, vestiram os que estavam nus, acolheram os estrangeiros, visitaram os doentes e prisioneiros. E foram condenados os que não se solidarizaram com os pobres. Se os critérios são de algum modo desconcertantes, pois entre eles não se encontram práticas rituais religiosas, cumprimento devocionais e respeito ou desrespeito a interditos, existe um ponto ainda mais surpreendente: a identificação entre Jesus e os pobres. O Filho do Homem, no juízo final, afirma que uns foram condenados e outros foram salvos por terem, ou não, dado a Ele de comer, de beber, o terem vestido e visitado quando estava doente ou prisioneiro. Tanto os que foram salvos quanto os que foram condenados se surpreendem. Afirmam que nunca o haviam encontrado. Recebem a resposta: “Em verdade vos digo: cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (v. 40). Do mesmo modo: “Em verdade vos digo: todas as vezes que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (v. 45) E conclui: “E irão estes para o castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna” (v. 46).

Em um discurso magistral pronunciado no Líbano, em 12 de abril de 1964 (LERCARO, 2014, p.121-149), o cardeal Lercaro, comentando Mateus 25,31ss, sublinha o fato de que Cristo não afirma ali, “que aquilo que fizestes a estes pequeninos é como se a mim tivessem feito”, mas sim, que “cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”. São palavras próximas às da instituição da Eucaristia: “Isto é o meu Corpo”. Aqui existe uma identificação entre Cristo e os pobres que possui profundo significado teológico e místico. Os pobres são, ao seu modo, presença de Cristo entre nós, são sacramentos de Cristo. Revelam o rosto de Deus. Deus não assumiu uma condição humana qualquer, uma vida em abstrato. Assumiu a concretude de uma vida pobre, nasceu como pobre, viveu como pobre, foi perseguido, preso e condenado como pobre. Foi sepultado na cova de um amigo pois não tinha sepultura própria. E isto não é indiferente na economia da salvação, possuindo um profundo significado. Existe uma identificação entre Deus e os pobres que se expressa em toda Escritura hebraica e culmina na própria encarnação do Verbo. Em Jesus, pobre entre os pobres, se concretiza o processo kenótico que nos salva. O significado místico salvífico desta identificação revelada em Mateus 25 é tão profundo que podemos afirmar que nossa salvação está indissociavelmente ligada à relação que temos com os pobres. No final dos tempos seremos julgados pelo Cristo pobre, que carregou em si as injustiças do mundo e que, tendo experimentado em sua vida e morte a extrema condição de vítima, será nosso único juiz. Para o cardeal Lercaro a identificação entre Cristo e os pobres coloca claramente um imperativo para a Igreja:

e ainda nos devemos indagar sobre a extensão eclesiológica destas duas características de Jesus, Messias dos Pobres e Messias Pobre: a Igreja enquanto depositária da Missão Messiânica de Jesus, a Igreja prolongamento do Mistério da Kenosis do Verbo, não pode não ser, antes de tudo e privilegiadamente, no sentido agora claro, a Igreja dos Pobres, enviada para a Salvação dos Pobres; e de outra parte não pode não ser também Igreja que, como Cristo, não pode salvar se não aquilo que assume, isto é, não pode salvar antes de tudo os pobres, se não assume a pobreza. (LERCARO, 2014, p.149)

 Podemos dizer que os pobres possuem um lugar singular na economia e no mistério da salvação: constituem uma mediação necessária e inevitável para o encontro com Cristo e para nossa salvação, não por serem puros ou sem pecado, mas por sua situação de vítimas com quem Deus se identifica.

5 O desenvolvimento da opção pelos pobres no magistério do papa Francisco

O papa João Paulo II quis recordar e celebrar a Encíclica de Paulo VI, Populorum Progressio, promulgando no vigésimo aniversário dessa Encíclica a sua segunda encíclica social, Sollicitudo Rei Socialis. Nela, pela primeira vez em uma encíclica social, é recepcionada a expressão e o conceito latino-americano da opção pelos pobres (SRS n.42). Em 1991, o papa João Paulo II retoma este conceito em sua terceira encíclica social, a Centesimus Annus (CA n.11; 57). A opção pelos pobres ganhou, deste modo, cidadania no Magistério Pontifício. O pontífice reconheceu nestas encíclicas que “o amor da Igreja pelos pobres (…) é decisivo e pertence à sua constante tradição”, o que significou um grande avanço neste momento, frente a algumas posições conservadoras que negavam o privilégio dos pobres (CA n.57). Esta realidade foi reafirmada pelo papa Bento XVI quando, em 13 de maio de 2007, pronunciou as seguintes palavras em seu discurso inaugural da V Conferencia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, ocorrida em Aparecida: “Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)”.

A eleição do papa Francisco fez com que a questão da Igreja dos pobres irrompesse com novo vigor no Magistério Supremo da Igreja. Francisco reafirma a opção pelos pobres e a temática da Igreja pobre e para os pobres em seu sentido originário, tanto do Grupo Igreja dos pobres do Concílio Vaticano II, quanto latino-americano. Francisco, logo no início de seu pontificado, no discurso pronunciado no dia 16 de março durante o encontro que manteve com os representantes dos meios de comunicação social, afirmou, ao explicar a adoção do nome Francisco: “como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!”. Expressão depois retomada outras vezes, e explicitada na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: “Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG n.198). Nesse mesmo documento, o pontífice afirma:

Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! (EG n.48)

 O chamado para ser instrumento de Deus “a serviço da libertação e promoção dos pobres” é dirigido a todos, sem exclusão, e a falta de solidariedade concreta com os pobres influi diretamente na nossa relação com Deus (EG n.187). Afirma ainda o papa:

Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. (EG n.188)

A questão dos pobres torna-se central em seu pontificado. O papa Francisco adota um estilo simples de vida, em continuidade com o modo como vivia como arcebispo de Buenos Aires, que nos torna sempre presente seja o Pacto das Catacumbas, seja o Documento 14 das Conclusões de Medellín.

Na Encíclica Laudato Sí, o papa Francisco dá uma nova contribuição à Doutrina Social da Igreja unindo a questão social à ecológica, afirmando de modo claro que hoje não vivemos duas crises, uma social e outra ambiental, mas uma única crise, socioambiental, de vastas proporções e terríveis consequências, que tem sua origem em uma economia que mata, exclui e destrói a mãe Terra (FRANCISCO, 2015, n.3,1).  O papa Francisco elevou ao nível de Magistério Universal o Magistério Episcopal Latino-Americano que, de Medellín a Aparecida, afirmou enfaticamente a centralidade evangélica dos pobres, o papel que devem possuir de sujeitos ativos na sociedade e na Igreja e fez da opção pelos pobres um critério fundamental para o ser e o agir dos cristãos e da Igreja, em continuidade com as escrituras, a patrística e uma rica e firme tradição da Igreja.

Paulo Fernando Carneiro de Andrade, PUC Rio – texto original português.

 Referências bibliográficas

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BARBÉ, D.; RETUMBA, E. Retrato de Uma Comunidade de Base. Petrópolis: Vozes, 1970.

FRANCISCO. Discurso do Santo Padre ao II Encontro mundial com os Movimentos Populares.http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html

_____. Evangelii gaudium. A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

_____. Laudato si’. Louvado sejas. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

GAUTHIER, P. La Chiesa dei Poveri e Il Concilio. Florença: Vallecchi, 1965.

LERCARO, G. Per la Forza dello Spirito. Discorsi Conciliari. Nuova edizione a cura di Saretta Marotta. Bolonha: EDB, 2014, p.121-149.

LOIS, J. Teologia de la Opción por los Pobres, Liberación. Madri: Fundamentos, 1986.

OLIVEIRA, P. Ribeiro de. Opção pelos pobres no Século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011.

PAULO VI. Lumem Gentium. Documetnos do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1992.

PIXLEY, J.; BOFF, CLODOVIS. Opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1986.

Mística e Espiritualidade – Espiritualidades na história do cristianismo  

 Sumário

Introdução

1 As grandes correntes da espiritualidade cristã

1.1 As espiritualidades no cristianismo antigo e medieval

1.2 As espiritualidades da missão na modernidade

1.3 As espiritualidades de comunhão na Igreja contemporânea

Conclusão

Referências bibliográficas

Introdução

Antes de percorrer as diferentes etapas e expressões da espiritualidade cristã ao longo da história, é importante se ater, primeiramente, ao que é a espiritualidade cristã.

A espiritualidade cristã é uma dinâmica vital que nos coloca em sintonia com a ação de Deus e nos faz trabalhar de acordo com o Espírito de Deus revelado na pessoa de Jesus. Portanto, a espiritualidade cristã não é algo abstrato, elevado, desencarnado. A espiritualidade é um estilo de vida que pode ser visto e verificado em obras muito concretas.

Por outro lado, as diferentes espiritualidades são manifestações do Espírito de Deus, que está sempre curando as feridas do corpo de Cristo. Os carismas e manifestações das espiritualidades são dons de Deus para edificar o corpo de Cristo, que é a Igreja. As espiritualidades, no plural, têm a missão de construir a comunhão, e a comunhão se realiza em torno das feridas. Em cada época da história, surgiram expressões da espiritualidade cristã, e todas elas têm sido respostas aos desafios de cada momento e às necessidades do corpo do Senhor ressuscitado na história.

Não é difícil entender a ação do Espírito Santo como aquela que torna possível o sair de si (ex-tasis) e o permanecer unido. O Espírito Santo torna possível que o Pai e o Filho se comuniquem e se abram, não só dentro da comunidade divina, mas frente ao homem, ao mundo e ao tempo (MOLTMANN, 1978, p.79). Deus, uno e trino, comunidade de amor, vive o mistério da interação entre as pessoas  que se necessitam em sua diferença e não se anulam em uma uniformidade nem em uma individualidade estéril. Santo Agostinho quis expressar essa função do Espírito Santo dentro da comunidade divina como o Amor. Ao falar da Trindade, afirma: “Aqui temos três coisas: o Amante, o Amado e o Amor” (AGOSTINHO, 1948, p.529-535 apud FORTE, 1996, p.36); um Pai Amante, um Filho Amado e o vínculo que os mantêm unidos, o Espírito do Amor.

A missão do Espírito, como também a missão do Filho, consiste na glorificação de Deus e na libertação do mundo. Deus é glorificado na libertação e redenção de toda a criação; Ele não quer ser glorificado sem que sua criação e a humanidade sejam liberadas ao mesmo tempo (MOLTMANN, 1978, p. 79). Deste modo, esta participação na vida de Deus a que nos referimos e o processo de comunhão que ela implica são função específica do Espírito.

Partindo dessa primeira definição da espiritualidade a partir da compreensão do mistério trinitário, apresentaremos uma aproximação trinitária às diversas formas de participação dos cristãos na vida de Deus, que é o que denominamos espiritualidade. Esta participação torna as pessoas capazes de entrar na dinâmica vital própria de Deus.

1 As grandes correntes da espiritualidade cristã

As grandes correntes da espiritualidade cristã são expressões da ação de Deus no meio de seu povo, para responder aos desafios próprios de cada momento histórico. Os carismas são presentes de Deus para a construção da comunhão. Nunca são propriedades exclusivas de pessoas ou grupos particulares. Por isso, é fundamental conhecer a história específica em que cada carisma é dado à Igreja, para saber a quais necessidades da comunidade respondeu e qual pode ser seu alcance.

A aproximação que queremos oferecer à história da espiritualidade cristã destaca três grandes dinâmicas que descobrimos na história da Igreja, cada uma delas com uma ênfase particular, mas não exclusiva nem excludente, na relação com Deus: através da oração (o Pai), na realização da missão (o Filho) e na construção da comunhão (o Espírito Santo).

Uma primeira dinâmica, que acentua a busca de Deus na oração, na solidão, no encontro íntimo e pessoal, pode ser vista de modo mais claro, mas não exclusivo, nas origens da espiritualidade cristã e nas escolas da Igreja Antiga e Medieval. Uma segunda dinâmica espiritual, que procura Deus sobretudo na missão e no serviço aos mais fracos e mais necessitados de nossa sociedade, é mais típica das expressões da espiritualidade moderna. E, finalmente, uma dinâmica que procura Deus sobretudo na construção da comunhão com os outros seres humanos e com toda a criação, mais característica do período pós-Concílio Vaticano II.

Assim, estas três expressões da espiritualidade cristã não podem ser entendidas a partir da exclusão mútua, especialmente quando correspondem à dinâmica existente entre as pessoas divinas e à forma como nós podemos participar da vida de Deus. A partir dessa tripla compreensão das expressões da espiritualidade cristã, vamos propor um caminho pela história da espiritualidade cristã.

1.1 As espiritualidades no cristianismo antigo e medieval

A primeira expressão da vida espiritual cristã tem uma relação muito estreita com a pregação dos apóstolos e o que poderíamos chamar de espiritualidade evangélica ou apostólica, que foi se desenvolvendo em meio às perseguições da segunda metade do primeiro século. O fruto dessa experiência espiritual e da vida cristã dessas comunidades primitivas foram os escritos do Novo Testamento. Esse primeiro desenvolvimento da  espiritualidade cristã propunha as interpretações iniciais do que significa seguir o Senhor e as implicações para a vida das comunidades.

Mais tarde, no segundo e terceiro séculos, os padres apostólicos e apologistas tinham a tarefa de explicar a fé cristã e a forma como o evangelho deveria ser incorporado às culturas grega e romana, no meio das quais o cristianismo nasceu. Essa época também foi marcada pelas perseguições e pelo martírio. Além disso, deve-se ter em mente que se tratava de uma proposta de vida de fé que estava lentamente abrindo caminho em meio a comunidades simples no contexto do mundo mediterrâneo. No entanto, o crescimento contínuo do cristianismo nesses anos deveu-se, sem a menor dúvida, às radicais exigências que supunha o seguimento. Esta realidade paradoxal foi reconhecida no ditado popular que afirma: “Sangue dos mártires, semente de cristãos”.

Depois dos longos anos de perseguição e martírio, sobretudo após o Edito de Milão (313), promulgado pelo Imperador Constantino, e a consequente integração progressiva dos cristãos nas estruturas do Império romano, muitos cristãos buscaram, na solidão dos desertos, novas formas de viver a fé de acordo com as exigências evangélicas. Primeiro de modo individual, com uma vida eremítica, e mais tarde com uma vida em comum. Os Pais e as Mães do Deserto acompanharam o caminho de muitos crentes e reuniram suas práticas em regras que estabeleciam condições e modos de encontrar com Deus na oração e na vida comum.

Pode-se dizer que a era constantiniana não é simplesmente um tempo determinado da história, mas também um modo de ser Igreja no mundo; se desenvolveu uma forma de ser Igreja que se confundia com o poder do Estado; cristão passou a ser sobrenome para a economia, a cultura, a política, a filosofia e para a sociedade.

Depois de 313 se iniciam as conversões em massa; das pessoas, especialmente das altas classes econômicas e intelectuais, e das famílias de relevância política; foi um tempo de heresias; o espírito mundano foi abrindo espaço na Igreja, tanto entre os fiéis como no meio da hierarquia.

“A partir do século IV em diante, abre-se espaço para um tremendo contraste em relação à etapa anterior da Igreja: durante as perseguições, se batizavam somente os convertidos; a partir de agora a Igreja terá de converter os batizados” (GOMEZ, 1987, p.168).

Vale a pena recordar, aqui, um texto de Hilário de Poitiers (c. 315-367), escrito na época do imperador Constâncio, filho de Constantino, que indica a armadilha que o Império colocou para a vida cristã:

Oh Deus todo poderoso, quem me dera que o Senhor tivesse me concedido viver nos tempos de Nero ou de Décio…! Pela misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho, eu não teria medo dos tormentos, sabendo que Isaías havia sido mutilado… Eu teria me considerado feliz ao lutar contra seus inimigos declarados, já que em tais casos não haveria dúvida sobre aqueles que incitaram a renegar… Mas agora temos que combater um perseguidor insidioso, contra um inimigo enganador, contra o anticristo Constâncio. Este nos apunhala pelas costas, mas nos acaricia o ventre. Não confisca nossos bens, dando-nos assim a vida, mas nos enriquece para a morte. Não nos joga na cadeia, mas nos honra em seu palácio para sermos escravizados. Não rasga nossa carne, mas destrói nossa alma com seu ouro. Não nos ameaça publicamente com a fogueira, mas nos prepara sutilmente para o fogo do inferno. Não luta, pois tem medo de ser vencido. Ao contrário, bajula para poder reinar. Confessa Cristo para negá-lo. Ele trabalha a unidade para sabotar a paz. Reprime as heresias para destruir os cristãos. Honra os sacerdotes para que não haja bispos. Ele constrói igrejas para demolir a fé. Em todos os lugares ele carrega o seu nome nos lábios e em seus discursos, mas ele faz absolutamente tudo o que pode para que ninguém acredite que Você é Deus. (…)  Seu gênio supera o do diabo, com um triunfo novo e inédito: consegue ser perseguidor sem fazer mártires. (DE POITIERS, PL 10, p. 580-581, apud GÓMEZ, 1987, p. 170)

Neste contexto, acontece o movimento de fuga mundi, que levou milhares de cristãos aos desertos. Este modo de vida foi sistematizado a partir da Vita Antonii (c. 360), escrita por Santo Atanásio e, em seguida, por figuras como Santo Agostinho (354-430), Cassiano (c. 360-435), o pseudo Dionísio (séculos V e VI) e São Gregório Magno (540-604). Mas talvez a síntese mais completa da proposta monástica seja a de São Bento (480-547), autor de uma regra para os seus monges, que se espalhou por toda a Europa como um modo de vida e como um caminho espiritual que tem o único propósito da busca de Deus (SÃO BENTO, 2006).

O momento exato que indica a passagem da Antiguidade para a Idade Média é uma discussão que não foi definitivamente resolvida, comumente entendida como um processo que ocorreu desde a segunda metade do século V e o início do VI, particularmente a partir da queda do último imperador romano do Ocidente, Rômulo Augusto, deposto pelos alemães no ano 476. Esta transição política da Europa, que seguiu à queda do Império Romano no Ocidente, foi acompanhada por processos culturais, sociais e religiosos que foram interpretados como o início da Idade Média.

As expressões da espiritualidade cristã nesse período foram uma continuidade do caminho da vida monástica. Manteve-se a tradição segundo a qual homens e mulheres buscavam um encontro cada vez mais profundo com Deus através da convivência, do trabalho, da vida austera e, acima de tudo, da oração em comum. Consequentemente, ao longo deste período, que para alguns se estende até o século XV, houve muitos destaques na espiritualidade cristã, mas vale a pena mencionar os processos missionários na Irlanda (séc. V) e Inglaterra (séc. VI), e os movimentos de renovação do monacato, como o que aconteceu em Cluny (século X).

Mais tarde, aparecem a figura de Bernardo de Claraval (1091-1153) e a reforma cisterciense, que buscava um novo rigor na vivência da Regra de São Bento, dando mais força à segregação do mundo, à solidão, ao silêncio, à austeridade na vida pessoal e comunitária e ao trabalho simples. Um século depois (XII), veio a fundação da Cartuxa e um renascimento do eremitismo na Europa, insistindo mais na oração e ascese pessoais e na pobreza.

Ainda que em termos históricos não se tenha concluído o ciclo da Baixa Idade Média, há um fenômeno que faz pensar em uma nova etapa do caminho espiritual cristão. Até aqui, o destaque, ainda que não de modo exclusivo, esteve orientado à busca de Deus através da oração e de outras práticas ascéticas e espirituais, incluindo a vida em comum. A partir do século XII, com o surgimento dos cônegos regulares e, logo depois, com a criação das ordens mendicantes, no século XIII, aparece um elemento que vai ocupar o centro da espiritualidade cristã: a missão.

1.2 As espiritualidades da missão na modernidade

A reforma gregoriana iniciada na passagem do milênio produziu, entre outras coisas, um processo de renovação da vida do clero e da vida monástica, que já destacamos. Esse processo teve como efeito uma transformação na vida da Igreja e dos cânones regulares que conjugaram, de forma inédita, a vida monástica e o ministério clerical, buscando a presença de uma fé mais aberta no mundo. Junto a essa novidade no caminho espiritual cristão está o nascimento das ordens mendicantes, que são um desenvolvimento desta dinâmica espiritual que busca sair da clausura do monastério para viver em meio à sociedade, atendendo suas necessidades mais urgentes. As ordens mendicantes têm como características uma vida de pobreza pessoal e comunitária, uma atividade apostólica ou missionária, uma vida fraterna menos estruturada e uma maior mobilidade, o que contrasta com a estabilidade da vida monástica.

As escolas franciscana, dominicana e carmelita são as mais conhecidas e representam uma novidade que modifica a dinâmica espiritual cristã. Não se pode perder de vista que o nascimento dessas ordens religiosas ocorreu sem que as formas de vida monástica e as espiritualidades que as alimentavam deixassem de existir. As novas formas de vida e de busca de Deus, agora mais centradas na missão, abrem caminho em meio a um mundo que também foi se modificando, em direção a uma sociedade menos rural e mais centrada nas aldeias que foram surgindo.

Nessa fase da história surgiram também as ordens militares, os Cavaleiros de Malta, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, a Ordem dos Templários e dos Cavaleiros do Santo Sepulcro. Da mesma forma, surgiram ordens hospitalares, como a da Santíssima Trindade e a dos Mercedários. Todas elas, com a intenção de responder às necessidades de sua época, para as quais não havia resposta dentro da Igreja a partir da perspectiva da espiritualidade.

A dinâmica de transformação social, política, econômica e cultural deste período propiciou uma maior comunicação entre as pessoas, criando propagação maior das devoções populares e das associações de crentes, em torno de projetos comuns, ordens terceiras, irmandades, grêmios, associações e movimentos espirituais com maior autonomia frente às grandes instituições eclesiásticas. Os leigos se tornaram independentes dos mosteiros, paróquias e conventos e buscaram novas fontes de alimento espiritual. Nesse tempo, movimentos como os begardos, as beguinas, os Irmãos do Espírito Livre e outras formas de vida espiritual floresceram sob a proteção dos religiosos das novas ordens mendicantes. Pelo seu espírito independente e seu afastamento de fontes clássicas da vida espiritual, alguns destes movimentos se tornaram suspeitos de heresia e foram condenados pela Igreja.

Deve-se notar, nesse período, a contribuição da escola renano-flamenga, com figuras como os dominicanos Eckhart (c. 1260-1327), Taulero (c. 1300-1361) e Suso (c. 1295-1365), que viveram e sistematizaram experiências espirituais muito profundas que serviram de guia para a busca de um povo simples. Essa escola, unida à figura de João de Ruysbroek (1293-1382), deu origem ao que se conhece como a Devotio Moderna, que é “uma reinterpretação de toda a vida cristã no meio desse contexto de rupturas com tudo o que havia constituído a estrutura da cristandade medieval” (GÓMEZ, 1987, p.28-29). Essa corrente renovadora da espiritualidade propunha ênfase maior na prática das virtudes, chegando a apresentar uma ruptura entre a vida de piedade e a teologia. O caminho em direção a Deus não era a reflexão teórica, mas a vida de penitência e caridade prática.

Podemos destacar como características da Devotio Moderna a grande importância que é dada à interioridade, que faz com que se desenvolva uma piedade mais privada e subjetiva e se rechace o sacramental e o litúrgico; a solidão, o silêncio e o desprezo do mundo são mais importantes. Frente a uma tendência mais racional e especulativa, a Devotio Moderna desenvolve o aspecto afetivo e dá mais relevância ao que vem do “coração”. Ao buscar a proximidade com Deus, leva-se em consideração a vontade, o coração e a devoção, e menos a reflexão e a razão. Neste sentido, a ascese é fundamental; valoriza-se mais o esforço da vontade do que a ação direta da graça, que faz com que a Devotio Moderna desenvolva um moralismo prático. Por outro lado, concentram-se na meditação das virtudes e exemplos de Jesus, tal como se encontram em uma leitura simples (e sensível) dos Evangelhos. Daí a importância e centralidade da “imitação de Cristo” como um modelo da vida do crente.

Seguindo os passos desta proposta de espiritualidade popular, espalhada por toda a Europa, acontece na Espanha um período de grandes reformas, lideradas inicialmente por membros das ordens mendicantes, mas dando lugar, mais tarde, a grandes figuras como Inácio de Loyola (1491-1556), Juan de Ávila (1499-1569), Teresa de Jesus (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591). Este período significou um fortalecimento da experiência espiritual a partir de uma perspectiva eclesial e missionária em um contexto europeu que vivia o rompimento da Reforma protestante.

No século XVII, o dinamismo da espiritualidade cristã esteve centrado na França, onde floresceram propostas como a de Francisco Sales (1567-1662), conhecida como o “humanismo devoto”, ou a do cardeal Bérulle (1575-1629) e alguns de seus seguidores –  João Jacobo Olier (1608-1657), João Eudes (1601-1680) e Vicente de Paula –, reconhecidos também como representantes da “Escola francesa”.

Um capítulo à parte poderia ser escrito com o desenvolvimento, durante os séculos XVI e XVII, da espiritualidade da Reforma protestante, que tinha sua própria dinâmica sob a liderança de Martinho Lutero, João Calvino e da escola Anglicana, para mencionar apenas os autores mais proeminentes.

Os séculos XVIII e XIX permitiram o nascimento de uma espiritualidade iluminista, desenvolvida no ritmo das transformações desses séculos. Surgiram escolas espirituais que responderam às necessidades da juventude, como a de João Bosco (1815-1888); da pastoral paroquial, com figuras como João Maria Vianney (1786-1859) e Antonio Maria Claret (1807-1870); de fortalecimento dos leigos com uma proposta de contemplação ativa, como a de Charles de Foucauld (1858-1916); e de um sentido cósmico de salvação, como proposto por Teilhard de Chardin (1881-1955).

Poderíamos sintetizar a dinâmica da espiritualidade cristã desde o final da Idade Média até o fim da era Moderna como uma infinidade de buscas para realizar a missão de Cristo no mundo. A busca por Deus através da oração continuou sendo base de todas as propostas, mas a missão de Cristo no meio do mundo tornou-se o centro das buscas espirituais.

É impossível apontar datas exatas ou momentos específicos de mudanças históricas, nem é possível dividir os momentos na história da espiritualidade cristã com precisão. Mas, com o Concílio Ecumênico Vaticano II, vemos o nascimento de uma nova etapa no desenvolvimento da espiritualidade cristã, que tentaremos caracterizar para encerrar a síntese proposta neste texto.

1.3 As espiritualidades de comunhão na Igreja contemporânea

O Vaticano II centrou seu trabalho na recuperação das fontes originais da fé e, portanto, também da espiritualidade. Essas fontes, Palavra de Deus (Dei Verbum), a Igreja (Lumen Gentium), a liturgia (Sacrosanctum Concilium) e a história (Gaudium et Spes), foram definitivas na configuração de uma proposta nova no âmbito espiritual. Poderíamos dizer que o termo que melhor caracteriza esse momento vivido pela espiritualidade cristã, muito coerente com a dinâmica trinitária que queríamos seguir nesta escrita, é “comunhão”, um termo amplamente utilizado no Novo Testamento como expressão própria das primeiras comunidades cristãs. Nos documentos do Concílio Vaticano II, a palavra “comunhão” aparece 112 vezes e o termo “comunidade”, 183 vezes.

Comunhão e comunidade se destacam, pois, como conceitos-chave nos ensinamentos do Concílio, termos que não se referem a um problema de estrutura da Igreja, nem a uma questão administrativa, ainda que isso não seja descartado. O que o Concílio quer salientar é a natureza da Igreja, ou, como diz o próprio Concílio, o mysterium da Igreja. Muda a ênfase de uma eclesiologia mais preocupada com as formas externas da organização eclesial para uma concepção mais voltada para seu interior, para a sua constituição fundamental.

Esta característica da eclesiologia conciliar, que determina uma nova forma de compreender e viver a espiritualidade, convida a orientar o olhar em três direções: a comunhão com Deus, a comunhão na Igreja e a comunhão com toda a criação. Por esta razão, as novas expressões de espiritualidade buscam a participação na vida de Deus, condição que possibilita a fraternidade entre os homens e com a criação.

Talvez este aspecto eclesiológico de comunhão seja o que mais se desenvolveu, tanto nos estudos teológicos do pós-Concílio, como nas propostas espirituais desse tempo. Um espírito de corresponsabilidade foi gerado em todos os níveis da vida da Igreja: conselhos paroquiais e diocesanos; sínodos diocesanos e de bispos; conferências episcopais, conferências de superiores e religiosos; associações, movimentos e organizações de leigos que buscam um objetivo comum. Essas estruturas facilitaram a participação de todos os grupos e ministérios da Igreja na tentativa de criar laços verdadeiros de comunhão e participação. São estruturas colegiais em que se buscou uma autêntica participação dos leigos, que tinham atividade e iniciativa bastante limitadas nos modelos eclesiais anteriores.

A participação e a corresponsabilidade tornaram-se a forma mais clara de expressar a prioridade da comunidade no novo modelo eclesial que se desenvolveu a partir do Vaticano II. Tomando as palavras de Jean Marie Tillard, poderíamos dizer que nada escapa ao abraço comunitário, no qual somos introduzidos através do batismo e que tem seu ápice na eucaristia. A partir do Concílio, a comunidade, tanto como expressão como por seu conteúdo, tornou-se um elemento central da teologia e da prática da Igreja, reavivando, assim, a consciência de todo o povo de Deus como sujeito. Isso significou, como já sugerimos, uma transformação na forma de compreender a unidade da Igreja, mais preocupada com a comunidade trinitária, em que as diferenças não são eliminadas, mas entendidas como complementos necessários.

Uma expressão se sobressai, nessa terceira etapa do desenvolvimento da espiritualidade cristã contemporânea, o movimento pentecostal, que invade as igrejas cristãs com grande força e muitos elementos em comum. Este movimento  enfatiza a ação do Espírito Santo na vida do povo e das comunidades, convidando a desenvolver os carismas particulares, que devem atuar na edificação do corpo do Senhor. As curas, os exorcismos, os milagres que produzem a força libertadora do Espírito e a expressão alegre da celebração litúrgica são característicos deste movimento, que se desenvolve de modo mais perceptível nos continentes mais empobrecidos como a África, a Ásia e a América Latina.

A dinâmica espiritual dessa fase final do nosso percurso salienta a busca da comunhão com Deus, com os irmãos e com a criação. Não se trata apenas de buscar Deus, mas de participar com Ele em sua vida… não é apenas uma questão de realizar muitas ações de caridade, de continuar a missão do Filho, mas comungar com Ele em sua ação. Não é mais apenas entrar em comunhão com Deus e com os outros, mas descobrir a importância de entrar em comunhão também com a criação, tornando-nos responsáveis pelo nosso ambiente. A partir dessa perspectiva, abrem-se propostas espirituais que têm um sentido mais ecumênico, mais aberto ao diálogo com outras religiões e outras culturas, com destaque especial para os mais vulneráveis da sociedade, os mais pobres, os marginalizados e rejeitados de nossa sociedade, tornando-nos atentos ao surgimento de novas subjetividades que se convertem em chamadas de Deus para construir a comunhão.

Conclusão

Na intenção de reconstruir a história da espiritualidade cristã, objetivou-se seguir a dinâmica que se vive no interior da Trindade, entre o Deus-Pai Criador, que está sempre deixando-se buscar pelo ser humano, o Deus-Filho, que se revela na história através de sua missão, e o Deus-Espírito Santo, que constrói permanentemente a comunhão com Deus, com os outros e com a criação.

Estamos convencidos que esta dinâmica de Deus pode ajudar a entender a história da espiritualidade cristã, mas não pode encerrá-la de modo definitivo. O Deus que nos busca e que se deixa buscar esteve e estará sempre presente ao longo da história que tentamos reunir. O Deus que convida a compartilhar sua missão, especialmente atendendo de modo preferencial os membros mais feridos do corpo de Cristo, sempre necessitará de nosso apoio para continuar essa tarefa imensa de curar os mais fracos e dar vida aos que necessitam. O Deus que constrói sempre a comunidade e que nos faz seus instrumentos para realizar a comunhão no meio do mundo, com Ele mesmo, com os outros e com toda a criação, sempre estará trabalhando em nós e conosco nesta obra.

Herman Rodriguez Ozorio, SJ. Pontifícia Universidade Javeriana. Texto original em castelhano.

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Cartas católicas ou gerais

Sumário

Introdução

1 Carta de Tiago

1.1 Origem e destinatários

1.2 Conteúdo

1.3 Destaques

2 Primeira Carta de Pedro

2.1 Origem e destinatários

2.2 Conteúdo

2.3 Destaques

3 Segunda Carta de Pedro

3.1 Origem e destinatários

3.2 Conteúdo

3.3 Destaques

4 Primeira Carta de João

4.1 Origem e destinatários

4.2 Conteúdo

4.3 Destaques

5 Segunda Carta de João

6 Terceira Carta de João

7 Carta de Judas

7.1 Origem e destinatários

7.2 Conteúdo

7.3 Destaques

Conclusão

Referências bibliográficas

Introdução[1]                                                                       

Os escritos comumente chamados “Cartas Católicas” devem seu nome ao vocábulo grego katholikós, que significa “universal, geral, para todos”, pois na forma recebida no cânon não se destinam a uma comunidade em particular. As igrejas oriundas da Reforma Protestante preferem chamá-las de “Gerais” – ou também “Universais”, mas este termo é pouco adequado, pois não se dirigem ao mundo universal e sim a ambientes concretos, cuja situação sócio-histórica tem relevância para a interpretação. Por serem escritas em diversos momentos do primeiro século cristão, para ambientes diversificados, elas revelam uma variedade de questões que sensibilizavam as primeiras comunidades e que, muitas vezes, são relevantes ainda hoje. Mostram que, desde suas origens, a teologia cristã se concebe como diálogo aberto e plural.

Quando, no decorrer do segundo século, os primeiros escritos cristãos foram progressivamente acolhidos no cânon do Novo Testamento, essas cartas foram atribuídas aos apóstolos Tiago, Pedro, João e Judas (Tadeu). Como é o caso de outros escritos bíblicos, a “autoria” significa antes a autoridade às quais são atribuídas do que a autoria técnica. Em quase todas elas encontram-se reflexos do judeu-cristianismo, um cristianismo que não esqueceu a tradição de Israel, mas a integrou na adesão a Jesus de Nazaré como Cristo-Messias e Salvador – à diferença dos “judaizantes”, que admitiam Jesus como profeta ou taumaturgo, porém situavam a salvação na observância da Lei de Moisés.

1 Carta de Tiago

1.1 Origem e destinatários

Embora os exegetas em geral não considerem como autor efetivo aquele a quem o escrito é atribuído pela tradição, convém esclarecer quem foi o Tiago a quem a carta é atribuída, porque pode ser um indício de seu ambiente, um judeu cristianismo de língua grega tendo conservado os laços com a comunidade mãe de Jerusalém (KOESTER, 2005, t.II, p.172-173). A atribuição a Tiago remete, de fato, ao líder da primeira comunidade cristã em Jerusalém (At 1,13; 12,17; 15,13; 21,18; 1Cor 15,7; Gl 1,19; 2,9.12), contado entre os “irmãos do Senhor” (termo de significado amplo, usado em Mt 12,46-49; 13,55; 28,10; Mc 3,31-35; Lc 8,19-21; Jo 2,12; 7,3-20; At 1,14; 1Cor 9,5; cf. Jo 20,17). Em Mc 6,3, ele é mencionado como primeiro dos irmãos de Jesus, filhos de certa Maria (Maria de Tiago, mencionada como a “outra Maria” em Mt 27,56.61; 28,1). Em Gl 1,19, Paulo o chama explicitamente “o irmão do Senhor”. Na lista dos apóstolos, ele aparece como “Tiago (filho) de Alfeu” (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15; At 1,13). Na forma lucana da lista (Lc 6,15; At 1,13), ele está na vizinhança de “Judas de Tiago”, que seria o Tadeu de Mt 10,3‖Mc 3,18. Por isso ele foi identificado com o Tiago mencionado como “irmão” de Jesus, ao lado de Judas e Simão, em Mc 6,3. Porém, nem todos os estudiosos aceitam a identificação do “Tiago Menor” de Mc 15,40 com o “Tiago de Alfeu” de Mt 10,3‖Mc 3,18 (questão sucintamente tratada em KÜMMEL,1982). De toda maneira, a insistência de Mc 15,40.47; 16,1 em mencionar, como testemunha da cruz e do sepulcro vazio, “Maria (mãe) de Tiago, o Menor” – a “outra Maria” de Mt 27,61; 28,1 – parece apontar para o lugar de destaque que esse Tiago ia exercer na comunidade Jerusalém. Ele deve certamente ser distinguido de Tiago Maior, filho de Zebedeu, irmão de João (os Boanerges de Mc 3,17), que morreu em 44 dC por ordem de Herodes Agripa (At 12,2), enquanto Tiago, o chefe da comunidade de Jerusalém, morreu em 66 dC, segundo informação do historiador judeu Flávio Josefo (1992, p. 465).

Podemos supor que a carta surgiu no ambiente de Jerusalém ou do judaísmo palestino, que mantinha contato com as comunidades da Síria (Damasco, Antioquia). Ao examinar a fundo, percebe-se uma proximidade forte com a mais antiga tradição a respeito de Jesus. A Carta de Tiago lembra o Sermão da Montanha (Mt 5–7) ou da Planície (Lc 6,20-49), a ponto de se pensar que o autor tenha conhecido a coleção de sentenças de Jesus usada por Mateus e Lucas, a Logienquelle ou “Fonte Q” (cf. VOUGA, 1995, p.18; sobre Q: KLOPPENBORG, 2005). Todavia, essa semelhança pode também ser explicada pela memória viva, pelos contatos dos pregadores e pela tradição oral, principal canal de transmissão naquele tempo. Visto o conteúdo genuinamente “jesuano” e a forma profético-sapiencial judaica, a carta parece datar da segunda geração cristã, antes da destruição de Jerusalém (70 dC), à qual ela não faz alusão. Contudo, há quem o situe bem mais tarde, por causa da evoluída forma literária (VOUGA, 1995, p.19). A carta cita o Antigo Testamento segundo a tradução grega (a Septuaginta) e é escrita em grego koiné fluente, língua corriqueira dos judeus na “diáspora dos gregos” (Jo 7,35) e também em Jerusalém, como atestam o letreiro da cruz (Jo 19,20) e a “sinagoga dos libertos”, à qual pertenciam Estêvão e os diáconos, todos portadores de nomes gregos (At 6,9).

Uma objeção que se faz à origem apostólica da carta é que ela não contém quase nada de especificamente cristão. Essa objeção provém do preconceito que contrapõe o judaico ao cristão. Não é essa a mentalidade, por exemplo, da Primeira Carta de João, que apresenta ao leitor o “mandamento antigo”, o qual, porém, é “um mandamento novo, que é verdadeiro nele (Cristo) e em vós” (1Jo 2,7-8).  Ou seja, o cristianismo não é o contrário do judaísmo, mas a sua plenificação (possível sentido de Rm 10,4) – e é assim que se deve entender a relação entre a antiga e a nova Aliança, conforme Jr 31,31-34. Tiago representa a tradição da sabedoria judaica, a qual agora se torna cristã, não por um novo conteúdo, mas por um novo espírito e uma nova prática, “em Cristo” (Tg 2,1).

1.2 Conteúdo

Não é uma carta formal, nem termina com uma fórmula de encerramento. A estrutura lembra o livro dos Provérbios: uma coleção de exortações (cap. 1), que nos cap. 2–5 são retomadas e aprofundadas, incluindo talvez alguns trechos homiléticos.

1,1-27 Saudação e temas (exortação à constância na provação, oração, ouvir e praticar)

2,1–5,6 Desenvolvimentos:

  • amor fraterno, sem discriminação 2,1-13
  • a fé sem as ações é morta 2,14-26
  • o poder da língua 3,1-12
  • a rivalidade (vs. a sabedoria do alto) 3,13-18
  • a cobiça e a maledicência 4,1-12
  • a autossuficiência e a riqueza 4,13–5,6
  • 5,7-20 Exortações finais (5,7-11 retomando o começo: a constância; 5,12-20 juramento, oração, correção fraterna), sem fórmula de encerramento ou saudação.

1.3 Destaques

– Fé e obras. Quis-se ver neste texto uma polêmica entre Tiago e Paulo em torno da questão das “obras”. Tg 2,14-26 ensina que a fé sem as obras é morta. “Como é morto o corpo sem o espírito, assim também a fé, sem as obras, é morta” (2,26).  Nesta comparação, Tiago associa as obras ao espírito, mas a fé, sem as obras, ao cadáver. Isso é contrário à antropologia grega (que opõe o espírito/a alma ao que é material), mas corresponde perfeitamente à mentalidade bíblica, para o qual o espírito serve para animar o corpo: as obras revelam o dinamismo conferido pelo espírito divino à pessoa ou à comunidade, como na visão de Ezequiel 37. Porém, sem o dinamismo das obras inspiradas e dinamizadas por Deus (o “fruto/produto do Espírito”, Gl 5,22), a fé que a comunidade confessa torna-se um cadáver. Ora, em aparente oposição a Tiago, lemos em Paulo que ninguém é justificado pelas obras, mas sim pela fé (Rm 3,20.28; Gl 2,16 etc.). Paulo, porém, não fala, nesses textos, das obras inspiradas por Deus, mas do esforço autossuficiente por observar as obrigações da lei de Moisés (em sua interpretação estreita), principalmente a circuncisão (não mencionada em Tg), como expressão do humano gloriar-se (káukhesis). De fato, os mesmos judaizantes que, vindos do ambiente de Tiago (Gl 2,12), convenceram Pedro a não ter comunhão de mesa com os gentios, instigavam os gálatas pagãos a assumirem o prestigioso status dos judeus, mediante a circuncisão e a observância dos rituais judaicos. Para Paulo, isso são obras da “carne”, isto é, da autossuficiência humana, não do espírito da liberdade. Tais obras não tornam ninguém justo diante de Deus. Mas quem pela fé se entrega a Jesus, morto por amor na cruz, e assume as consequências práticas disso, é declarado justo por Deus e seguirá a “lei do Espírito da vida, em Cristo” (Rm 8,2); e produzirá, segundo a lei única do amor, o fruto que vem do Espírito (Gl 5, 14.22-23). Também Paulo ensina que é justificado quem põe a lei em prática (Rm 2,13) e que “a fé atua pelo amor” (Gl 5,6).

No fundo, esses textos de Paulo ensinam a mesma coisa que Tg 2,26. Não é preciso supor um contato entre Paulo e o autor da carta de Tiago. Escrevem em contextos diferentes. Temos aqui um exemplo interessante de “hermenêutica plural”, porém, não contraditória. Ambos, à maneira dos rabinos, buscam um sentido (derashmidrash) a partir de um importante texto da Torá, Gênesis 15,6: “Abraão creu no Senhor e isso lhe foi creditado como justiça”. Paulo interpreta que Abraão foi justificado pela fé, sem as obras da Lei (Rm 4,3.9.22; Gl 3,6). Tiago diz que Abraão foi justificado porque pôs a fé à obra, a ponto de querer oferecer seu filho, se tal fosse a vontade de Deus (como acreditava a arcaica religião cananeia). A interpretação de Paulo não exclui a de Tiago, ambas se completam. Paulo nega a força salvífica das prescrições cultuais da Lei mosaica, principalmente a circuncisão (almejada pelos gálatas pagãos para se equipararem aos judeus), enquanto Tiago realça a prática ética que comprova a obediência à palavra de Deus, a verdadeira religiosidade (Tg 1,27), como já fora dito pelos sábios do Antigo Testamento (Sr 35,1-2[1-4]).

– A “lei régia” (2,8), que consiste na primazia do amor fraterno, é também a “lei da liberdade” (2,12). Essas expressões refletem a expectativa do Reino de Deus e da libertação de Israel, já reinterpretadas em sentido cristão, dando a entender que esse Reino já está em função.

– A paciência, constância ou firmeza permanente (1,2-18; 5,7-11). Em imagens sugestivas, tomadas da vida dos santos e dos profetas, da natureza e da vida agrícola, a carta ensina a constância na espera da nova vinda do Senhor. De fato, já havia passado muito tempo desde a ressurreição de Jesus, e a espera de sua volta começava a pesar. Tiago ensina a estar sempre pronto para o juízo de Deus.

– A sabedoria como dom de Deus está presente na carta inteira. Em 3,15.17, a “sabedoria do alto” é contraposta à perigosa e, muitas vezes, venenosa oratória humana. A carta reage contra a tendência, existente na “sinagoga cristã”, de todos quererem ser mestres. Desde o início ensina a necessidade de pedir a sabedoria (1,5), expondo em seguida seu valor (3,13-18; cf. 1,17). Trata-se da sabedoria prática, ensinada também no Antigo Testamento (Jó, Pr, Ecl, Sr, Sb), mas agora posta sob a luz de Cristo.

– A riqueza, que torna presunçoso e, muitas vezes, é fruto de injustiça (4,13–5,6). Por trás dessas admoestações e censuras percebemos a estrutura sociológica da(s) comunidade(s) às quais a carta é dirigida, comunidades da diáspora, onde se misturam, dentro da população de origem judaica, comerciantes que viajam de cidade em cidade, proprietários que devem ser instados a pagar o devido salário, e pobres (os que “não tiveram sorte”).

– Ao falar do cuidado dos enfermos, o texto realça a importância da oração eclesial, da mútua confissão dos pecados e da correção fraterna (5,13-20). Aqui aparece o valor terapêutico da oração e da confissão, o abrir-se diante de Deus na presença de irmãos e irmãs, para receber a segurança do perdão e a paz da alma, e até a saúde do corpo (v.15). Estão aí as raízes do Sacramento dos Enfermos da Igreja Católica.

2 Primeira Carta de Pedro

2.1 Origem e destinatários

A 1ª Carta de Pedro é dirigida a um ambiente geográfico bem circunscrito: a região norte da Ásia Menor, hoje Turquia (1,1: Ponto, Galácia, Capadócia, Província Ásia e Bitínia, regiões povoadas com os “bárbaros” locais, com os gregos da classe dominante e com os “colonos” do Império Romano; além de outros povos – judeus, sírios…). A carta se respalda na autoridade de Pedro, “apóstolo de Jesus Cristo” (1,1) e chefe da igreja de Roma, talvez já martirizado. Na última parte, transparece a relação problemática com as autoridades civis; de modo significativo, o autor assina a carta como se estivesse em Babilônia (5,13), codinome de Roma (cf. Ap 17–18) e símbolo do desterro do povo de Deus (o exílio babilônico).

A figura do novo povo de Deus no desterro permeia o texto inteiro. Não é apenas uma lembrança do Antigo Testamento ou uma referência à verdadeira pátria no céu (como em Hb 11,14-16).  Os cristãos, em boa parte oriundos do judaísmo, parecem ser considerados cidadãos de segunda categoria, estrangeiros residentes (e nem sequer como os outros judeus, dos quais eles vão se distanciando). Há também fiéis que vêm do paganismo (cf. a alusão em 4,3), porém conhecedores da memória e dos símbolos de Israel. A esse auditório, a carta apresenta a comunidade cristã como um lar para os que não têm casa na sociedade (ELLIOTT, 1985). Eles constituem a verdadeira casa e povo de Deus, desde que vivam a dignidade do batismo e se sustentem mutuamente pelo amor fraterno, firmes na fé e na esperança.

Para “responder a quem pergunta pela razão de sua esperança” (1Pd 3,15), os fiéis devem mostrar ao mundo a diferença cristã, que consiste em esperar a salvação no nome de Cristo (com tudo o que esse nome implica). Não baseiam sua esperança no poder do Império ou no bem-estar que a vida no mundo mediterrâneo lhes poderia oferecer. Dar as razões da esperança em Cristo não consiste em apologética verbal ou teórica, mas na mansidão e na recusa da violência, atitude que os torna semelhantes a Cristo, o Servo Sofredor, o justo que sofre pelos injustos, pois é melhor sofrer praticando o bem do que fazendo o que é mau (3,16-18). A verdadeira apologética não provém dos argumentos teológicos, mas do exemplo da vida.

2.2 Conteúdo

O núcleo da carta é essencialmente cristocêntrico: o testemunho cristão pela configuração da vida com o Cristo Servo. A carta evoca inicialmente a dignidade cristã, recebida no Batismo (pedras vivas, com Cristo como pedra angular: 1,13–2,10), para depois aplicar isso às diversas situações da vida (2,11–4,12). Enfim, seguem-se considerações diversas para a vida em meio ao conflito com a sociedade (4,13­–5,11).

  • 1,1-12 Saudação e ação de graças
  • 1,13–2,10 O santo estilo de vida como povo e casa de Deus
  • 2,11–4,12 A existência cristã exemplar no mundo
  • 4,13­–5,11 No meio do conflito com a sociedade
  • 5,12-14 Saudação final

2.3 Destaques

– Estrangeiros no mundo. A carta aplica aos leitores os termos que lembram, ao mesmo tempo, os israelitas do Antigo Testamento enquanto migrantes ou estrangeiros (no Egito e na Babilônia) e os “estrangeiros residentes” (com deveres, mas sem direitos) nas cidades do Império Romano. Esta parece ter sido a realidade sociológica desses cristãos e também sua experiência como fiéis em face de um mundo estranho ao projeto de Jesus.

– A comunidade eclesial é povo de Deus e casa de Deus, feita com pedras vivas edificadas sobre a pedra angular que é Cristo (2,1-10). Para que essas pedras sejam realmente vivas e a casa realmente casa (família), é preciso praticar a fraternidade no dia a dia.

– Essa existência de “estrangeiros residentes” no mundo caracteriza-se pela dignidade e a amabilidade na sociedade e na família. As “tábuas domésticas”, em 2,13–3,7, ensinam a moral pública e familiar. Aconselha-se a lealdade para com as autoridades humanas (se forem legítimas), mas sem divinização. Respeito para todos, com inclusão do Imperador, mas para os irmãos, amor, e para Deus, temor (2,17). Ao Imperador se deve honra como a todos os demais, não adoração. As mulheres são, como de costume, convidadas a subordinar-se à autoridade do marido, mas os maridos têm também deveres de respeito e carinho para com as mulheres (3,1-7). Virtudes semelhantes devem reinar na comunidade dos fiéis, concebida como uma família (3,8-12). Isso parece “burguês”, mas o espírito e as motivações apontam mais para uma “estratégia evangelizadora”: dar um exemplo aos gentios (3,12), conquistar o marido para a fé (3,1-2), dar as razões de nossa esperança a quem pergunta (3,15); enfim, imitar Cristo, pois nisso consiste a novidade cristã (2,21-25; 3,18).

– A perspectiva do fim (4,7) dá força para suportar essa vida “estranha”. Também hoje devemos marcar a diferença cristã, pois não podemos concordar com tudo o que se impõe no mundo. Para isso, é bom sabermos que nossa realização não depende de nosso sucesso neste mundo.

3 Segunda Carta de Pedro

3.1 Origem e destinatários

Este escrito (2Pd) se apresenta como “a segunda carta que vos escrevo” (3,1). É o testamento pastoral de Pedro (o que 2Tm é para Paulo). Com a intenção de corroborar a fé na vinda de Cristo, cita o testemunho ocular de Pedro. Os destinatários não são definidos. Preocupado com a reta doutrina e a interpretação das Escrituras, inclusive das cartas de Paulo, o texto mostra que, naquele momento, não só o Antigo Testamento, mas também as mais antigas partes do Novo já eram consideradas Escritura Sagrada. Muitos consideram a carta bem posterior à Primeira Carta de Pedro; pode ser situada por volta do ano 100 dC. Seria, pois, o último escrito da Bíblia cristã.

3.2 Conteúdo

  • 1,1-2 Saudação
  • 1,3-21 A verdade a nós transmitida
  • 2,1-22 Os falsos mestres
  • 3,1-16 Desânimo e vigilância: Deus não tarda
  • 3,17-18 Exortação final

Depois de recordar aos destinatários a fidelidade (1,12), a carta mostra que a tradição que Pedro representa é garantida (1,16-18: ele foi testemunha ocular da glória de Cristo, quando da Transfiguração, cf. Mc 9,2-10 e par.). Respaldado por essa autoridade, o autor exige confiança nas palavras dos profetas, que se cumpriram em Cristo, pois a profecia é inspirada por Deus (1,21). Ora, há quem não respeite as profecias. Usando trechos da Carta de Judas (expurgados de alguns elementos apócrifos), o cap. 2 denuncia os falsos profetas que se introduziram na comunidade. Depois, traz à memória as profecias e as palavras do Senhor a respeito de sua nova vinda. Esta é a questão central desta carta, escrita no fim do primeiro ou no início do segundo século dC. Há quem desmoralize a comunidade, ensinando que Jesus não voltará. A resposta de Pedro é: diante de Deus, mil anos são como um dia (3,8). A palavra de Jesus não engana: seu dia vem como um ladrão (3,10; cf. Mt 24,43-44). Também Paulo escreveu isso (3,16, cf. 1Ts 5,2; 1Cor 15 etc.). Os falsos mestres, porém, deturpam os escritos de Paulo como deturpam as antigas Escrituras (3,15-16). Estas frases mostram que, para este autor, representante da Igreja de Roma, Paulo já está sendo reconhecido como autoridade.

3.3 Destaques

– A questão da Parusia. A comunidade parece cansada de esperar. Desde a morte e ressurreição de Jesus, durante setenta anos, os cristãos se firmaram na esperança da volta do Senhor (cf. ainda 1Pd 4,9). Agora, porém, alguns começam a se cansar e a ironizar. A reação de 2Pd consiste em apelar à memória, lembrando as profecias que anunciaram o Messias e o Juízo, e recordando o testemunho ocular do apóstolo Pedro e os escritos de Paulo. Até hoje, esta questão continua objeto de uma hermenêutica aberta. Jesus não voltou no prazo e no modo que imaginavam. Entretanto, muitos textos no Novo Testamento, sobretudo da linha joanina, mostram que Jesus já está presente no meio de nós e que, na fé e na caridade, já vivemos a vida eterna.

– Ortodoxia e magistério. Esta carta, provavelmente o último escrito do Novo Testamento (e da Bíblia inteira), mostra a incipiente sistematização da doutrina, bem como o recurso à autoridade dos profetas e dos apóstolos para garantir sua conservação fiel. Fala para todas as igrejas, sem destinatário específico. Corresponde a uma necessidade nova para a Igreja, que está entrando na quarta geração de fiéis. A “Igreja primitiva” chegou ao fim.

4 Primeira Carta de João

4.1 Origem e destinatários

A Primeira Carta de João (1Jo) não tem forma de carta: faltam-lhe endereço e assinatura. Parece uma homilia ou meditação, divulgada por escrito. Com boas razões, é tradicionalmente atribuída ao autor do Quarto Evangelho. O estilo e o pensamento são altamente semelhantes. Se foi escrita antes, durante ou depois da elaboração do evangelho não se sabe, mas muitas vezes a carta esclarece em alguns pontos o evangelho, e vice-versa.

Não sabemos a que comunidade a carta foi dirigida, mas o conteúdo sugere uma situação semelhante à das sete igrejas do Apocalipse (Ap 2–3). A insistência no conhecimento e no discernimento (com frequente uso dos verbos “saber” e “conhecer”), a afirmação da existência “em carne” de Cristo e a polêmica contra os que se consideram sem pecado corroboram a hipótese de que o autor reage a tendências gnosticizantes (KOESTER, 2005. Ver sobre a gnose, o gnosticismo e as tendências gnosticizantes no t.1, p.384-90).

Os fiéis se perguntam se estão em comunhão com Cristo e com Deus e, portanto, seguros para o Juízo. O autor responde: o verdadeiro conhecimento de Cristo é a comunhão com ele e com Deus, que se verifica na fé e no amor fraterno. Fé significa crer (no sentido de confiar) que Jesus – aquele mesmo que viveu “em carne entre nós” (1Jo 4,2) – veio da parte do Pai; e também, guardar sua palavra, amando os irmãos e repartindo com eles os bens deste mundo (3,16-17). Isso se chama: andar na luz. Quem faz isso está seguro.

A carta contém expressões arrojadas: Deus é amor (4,8.16), no amor não há temor (4,18)… Ao mesmo tempo, é lúcida: desmascara a conversa fiada dos pretensos impecáveis (1,6.8), ensina a distinguir os “espíritos”, ou seja, as inspirações dos que tomam a palavra na comunidade (4,1-2) e corrobora os leitores na fé e na prática, mostrando que eles têm, por Jesus e em Jesus, o verdadeiro conhecimento de Deus (4,11-12 etc.).

Os adversários mencionados na carta dizem ter o conhecimento de Deus e de Jesus Cristo, mas eles não amam seus irmãos. Isso, segundo o autor, é negar Jesus que veio “em carne” e deu sua vida por nós. Ao conhecimento gnóstico, que concebia Jesus como o Logos (Razão) de Deus, não verdadeiramente humano, a carta opõe o verdadeiro conhecimento de Deus e de Cristo, insistindo na vinda “em carne” de Jesus (4,2) e no amor em ações e de verdade (3,18).

4.2 Conteúdo

A meditação avança em forma de espiral, voltando sempre aos mesmos temas, com novas variações. Podemos realçar os principais acentos:

Abertura: 1,1-4: a Palavra da Vida.

  1. 1,5–2,28: a partir do tema da LUZ, o texto aponta os critérios para saber se temos comunhão com Deus: a participação na luz de Deus, livres do pecado, no amor e na fé. O amor é aqui apresentado sob seu aspecto de “preceito antigo, porém novo em Cristo e em nós” (2,3-11).
  2. 2,29–4,6: aquele que crê em Cristo e pratica a JUSTIÇA e o amor-caridade, é filho de Deus e conseguirá preservar sua fé e seu amor pelo “discernimento dos espíritos”. O amor é aqui meditado à luz de Cristo (3,11-24).

III. 4,7–5,12: o critério principal de nossa certeza é o AMOR: Deus é amor (4,8.16). Cremos neste amor, que é o de Cristo, e esta fé vence o “mundo”, que é o sistema oposto a Cristo (5,1-12).

Conclusão: 5,13: a intenção do escrito (5,14-21 é uma nota explicativa de alguns tópicos).

4.3 Destaques

– A cristologia. Desde as primeiras linhas, a carta projeta a imagem do Cristo Palavra da Vida, que é o Jesus de carne e osso “que nossas mãos apalparam” (1,1-3). Não devemos ler a carta a partir de conceitos gerais ou de um discurso abstrato em torno do amor. O modelo é Jesus Cristo na sua existência histórica (“carne”).

– A veracidade da Encarnação. Os “docetistas” (do grego dokein, “parecer”) não aceitavam que Jesus nos tenha salvo e liberto por sua “carne”, sua existência humana mortal, coroada com glória na ressurreição. Consideravam a humanidade de Jesus como mera aparência. Jesus, o “Logos” (Palavra de Deus), seria um espírito puro, que se disfarçou em aparência humana para trazer sua “revelação” e depois voltar à órbita celeste. Chegaram a dizer que quem morreu na cruz foi Simão de Cirene! A carta de João, bem como seu evangelho, identifica a glória de Jesus com a cruz. A glória não se dá fora da “carne” frágil e mortal, mas na carne. É na carne que Cristo nos salvou.

– A escatologia. “É a última hora” (1Jo 2,18). O definitivo já começou, embora ainda não se tenha manifestado completamente: “Desde agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que seremos” (1Jo 3,2). O decisivo já está presente e projeta sua luz sobre o nosso agir.

– A eclesiologia. Nesta carta não se usa o termo “igreja”, nem se fala em hierarquia, organização etc. O que importa é a comunhão, que se verifica na mística (união com Deus) e na prática (amor ao irmão). Essa presença da obra de Deus e de Jesus Cristo no meio de nós é confirmada de num modo que se pode chamar sacramental, pelo testemunho do sangue, da água e do Espírito (1Jo 5,7).

– O conceito do cristão como filho de Deus, gerado e nascido de Deus. Na medida em que, desde já, é filho de Deus (3,1), o cristão ama os outros filhos de Deus (5,1), e o pecado já não toma conta dele.

– O discernimento cristão. Exprimindo, repetidamente, critérios para nossa vida e salvação em Cristo (“nisto sabemos/conhecemos”, 2,5; 3,1.24; 4,10.13, e.o.), a carta ensina uma vida cristã consciente (cf. o “discernimento dos espíritos”, 4,2).

– A vida cristã como atitude permanente e opção fundamental. 1Jo não ensina regras particulares. Ensina a guardar os mandamentos (o amor fraterno, sem entrar em detalhes, 2,3-11) e a discernir a atitude cristã fundamental, o “permanecer em Cristo”, isto é, em seu ensinamento, em sua comunidade e em sua prática de vida (cf. Jo 15,1-17).

5 Segunda Carta de João

A Segunda Carta de João (2Jo) é um bilhete de amizade da parte do “Ancião” (ou Presbítero), dirigido a outra comunidade, que ele quer bem e chama de “Senhora Eleita” (título que se refere à eleição do povo de Deus). O Ancião se mostra preocupado com os falsos mestres que se apresentam à comunidade com um discurso que não promove a comunhão fraterna, nem a prática da justiça. Isso foi denunciado também na Primeira Carta de João, da qual a Segunda parece ser um resumo.

6 Terceira Carta de João

Na Terceira Carta de João (3Jo), o “Ancião” (o mesmo de 2Jo) escreve a uma pessoa influente da comunidade, Gaio, para que continue a oferecer hospitalidade aos missionários itinerantes, aos quais um certo Diótrefes põe obstáculos, impondo-se, inclusive, aos demais fiéis. No fim, o autor louva a atitude de Demétrio, possivelmente um desses missionários itinerantes. Como a segunda, também esta terceira carta se destaca pelo tom carinhoso com que se dirige aos fiéis “na verdade” – termo usado em diversos sentidos. Como a carta de Paulo a Filêmon, 3Jo é um valioso testemunho das relações pessoais entre os primeiros cristãos.

7 Carta de Judas

7.1 Origem e destinatários

A Carta de Judas (Jd) deve ser situada perto da Carta de Tiago, como mostra o sobrescrito: “irmão de Tiago” (Tiago Menor, veja Mc 6,3par e a exposição sobre Tiago feita anteriormente). Trata-se de “Judas, não o Iscariote” (Jo 14,11). Na lista dos apóstolos segundo Lucas (Lc 6,16 e At 1,13), aparece com o nome de “Judas [irmão?] de Tiago”, no lugar onde os outros evangelistas trazem o nome de Tadeu (Mc 3,18 e Mt 10,3-4) – daí ser chamado de Judas Tadeu.

A carta se destina aos “eleitos, amados em Deus e guardados para Jesus Cristo” em geral (1,1) e contém veemente crítica aos “ímpios” que se introduziram sorrateiramente na comunidade e a desmoralizam. Judas usa de toda a força retórica para desmoralizá-los, por sua vez.

7.2 Conteúdo

  • 1-2 Saudação
  • 3-4 Objetivo: combater os “intrusos”
  • 5-16 Os três castigos clássicos do Antigo Testamento (v. 5-7) devem ser aplicados a eles (v. 8-16)
  • 17-23 Exortação à comunidade
  • 24-25 Um “bendito” para terminar

7.3 Destaques

– A doutrina dos intrusos mencionados no v. 4 não nos é conhecida com exatidão. Eles dividiam e desmoralizavam a comunidade, além de se entregarem à imoralidade. A própria palavra “heresia” significa divisão. Não são tanto as ideias que causam heresia, mas o comportamento prático que divide a comunidade.

– O uso de escritos apócrifos na argumentação da carta. Estes escritos, muito populares no 1º século, tratam de assuntos bíblicos, sem pertencerem à Sagrada Escritura lida na sinagoga. Jd 6 e 12-16 aludem ao livro de Henoc, Jd 6-7 aos Testamentos dos Doze Patriarcas e Jd 9 à assunção de Moisés. Jd trata assim a religiosidade extrabíblica divulgada entre os judeu-helenistas com naturalidade e respeito, sem por isso canonizá-la.

– O autor compartilha a imaginação geral daquele tempo acerca da proximidade do Fim, e vê nos conflitos surgidos nas comunidades o sinal dos últimos tempos (v. 17-23). Apesar da severidade e dos termos violentos, transparece uma atitude pastoral prudente: quem é fraco deve ser tratado com compaixão, mas quem é orgulhoso, nem sequer se toque na roupa! (v. 22-23).

 Conclusão

As “Cartas Católicas” oferecem uma amostra da “unidade na diversidade” no âmbito das primeiras igrejas cristãs e são também hoje um exemplo da verdadeira catolicidade, unidade sem uniformização. Seu âmbito abrange igrejas desde Jerusalém e a Síria (Tiago) até Roma (1-2Pedro), passando pelo mundo da Ásia Menor (as cartas joaninas). Neste sentido, vêm completar a percepção que se colhe das cartas de Paulo e dos Atos dos Apóstolos. Para completar o panorama, cabe acrescentar a Carta aos Hebreus como amostra do aprofundamento da fé cristã no ambiente judeu-alexandrino culto.

A verdadeira catolicidade não é uniformidade, mas diversidade teológica e eclesiológica em torno do único Salvador Jesus Cristo e de seu único mandamento do amor a Deus encarnado no amor fraterno.

Johan Konings, SJ,  FAJE, Brasil – original português.

9 Referências bibliográficas

A CARTA de Tiago: leitura sociolinguística. São Paulo: Paulinas, 1991.

BROWN, Raymond. The Epistles of John. Garden City: Doubleday, 1982.

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VOUGA, François. A Carta de Tiago. São Paulo: Loyola, 1996.

[1] Este texto contém alguns trechos, com modificações, das introduções publicadas pelo mesmo autor na Bíblia Sagrada – Tradução Oficial, da CNBB (Brasília: Ed. CNBB, 2018).

O livro do profeta Sofonias

Sumário

1 O profeta e seu tempo – época da redação do livro

2 Estrutura

3 Principais pontos de teologia

3.1 Acusações e possibilidade de salvação

3.2 O “dia do Senhor”

3.3 A renovação de Sião-Jerusalém

4 Lendo o texto hoje

Referências Bibliográficas

1 O profeta e seu tempo – época de redação do livro

O profeta é apresentado, no início do livro (f 1,1), de forma incomum, com uma genealogia que ascende até a quarta geração. Não se pode saber com segurança se o nome Ezequias presente na genealogia se refere ao monarca que governou Judá (do final do século VIII até os primeiros anos do século VII aC). Por outro lado, o nome “Cusi”, também aí mencionado, poderia ser entendido como pessoal ou gentílico, nesse caso em relação com a Etiópia (“Cush”), que é referida em Sf 2,12. Não se pode sustentar que indique a tribo de Cusan (Nm 12,1; Ab 3,7), assim como não há argumentos para identificar o profeta com o sacerdote homônimo citado no livro de Jeremias (Jr 21,1; 29,25.29; 52,24).

O título do livro situa a época de anúncio do profeta no tempo do reinado de Josias (640-609 aC), que promoveu uma grande reforma religiosa, com a finalidade de purificar o culto e incrementar a observância da Lei (2Rs 22,1-23,27). Como este rei não é jamais mencionado no livro e o profeta critica o culto idolátrico (Sf 1,4-6), tão combatido pelo monarca, levanta-se a pergunta se seu ministério se desenvolveu antes da reforma religiosa, iniciada em 622, ou seja, durante a minoridade de Josias (2Rs 22,1). Argumento a favor desta datação estaria a previsão da queda próxima de Nínive, capital da Assíria (Sf 3,13-15), o que suporia o período da segunda metade do século VII, quando esse grande império começou a dar sinais de decadência. Nínive sucumbirá ao poder babilônico, finalmente, em 612 aC. Por outro lado, a alusão a problemas cultuais (Sf 1,2-6; 3,4) poderia fazer pensar num período mais tardio, mesmo após a reforma, quando se verificou que esta não dera todos os resultados desejados. Em outras palavras, não há como determinar com segurança a época exata da atividade do profeta, sendo claro somente que ocorreu no tempo de Josias e não após. De fato, a localização da profecia no tempo do rei Joaquim (609-598), em virtude da referência à destruição descrita em Sf 1,8-13; 2,1-2 (entendida como provocada pelos babilônios), não deixa de ser problemática, uma vez que, no livro, Babilônia não é mencionada (nem suposta), mas sim a Assíria.

O escrito completo, com seus três capítulos, dá a entender que algumas palavras foram acrescentadas em tempos mais tardios, particularmente o oráculo final (Sf 3,14-20).

2 Estrutura

O livro apresenta três partes principais. Após o título, um conjunto de oráculos anuncia a punição para a terra e para Judá/Jerusalém (Sf 1,2-2,3). O texto se abre com grave ameaça cósmica (Sf 1,2-3), seguida por oráculos de juízo e acusações detalhadas contra o povo eleito (Sf 1,4-2,3), que giram em torno do anúncio do “dia do Senhor” (Sf 1,7-9.14-18). As faltas apontadas incluem os desmandos e injustiças praticados pelas classes dirigentes (Sf. 1,8-9), questões de comércio (Sf 1,10-11), a riqueza folgazã (Sf 1,12-13). O “dia do Senhor”, que virá em breve (Sf 1,7.14-18), porá fim aos desregramentos da sociedade israelita e atingirá “todos os habitantes da terra” (Sf 1,18). Uma exortação à justiça lança a possibilidade de escapar das desgraças vaticinadas (2,3).

A segunda grande parte do livro desenvolve o tema do juízo para os povos e para Jerusalém (Sf 2,4-3,8). Com as cinco nações criticadas, atinge-se os quatro pontos cardeais: Filisteia (oeste; Sf 2,4-7), Moab e Amon (leste; Sf 2,8-11), Cush (sul; Sf 2,12) e Assíria (norte; Sf 2,13-15). A Assíria, por ser colocada em último lugar, recebe destaque. Em Sf 2,11, menciona-se ainda os povos longínquos em geral (as “ilhas das nações”). O oráculo contra Judá, que segue (Sf 3,1-7), rompe a temática do juízo para os estrangeiros, retornando à culpabilidade do povo eleito. Colocado nesse contexto, pode indicar que o anúncio de punição das nações, que deveria servir de exemplo para Judá, não obteve seu efeito (Sf 3,2). Termina-se esta parte com o juízo para “toda a terra” (Sf 3,8).

A terceira grande parte do escrito desenvolve a conversão dos povos (Sf 3,9-10) e a renovação de Judá, com o grande regozijo que então terá lugar (Sf 3,11-20). Os povos serão reunidos e participarão da adoração ao Senhor. A sociedade judaica será purificada e o povo será composto por gente “pobre e humilde” (Sf 3,11-13). O Senhor será seu rei (Sf 3,14-18) e todos os deportados retornarão à sua terra (Sf 3,19-20).

Em síntese, assim se apresenta o livro:

Título: 1,1

1ª parte: Juízo para Judá/Jerusalém: 1,2-2,3

  • toda a terra sofrerá: 1,2-3
  • a punição de Judá por suas faltas: 1,4-6
  • anúncio do “dia do Senhor”: 1,7-9
  • a punição para Jerusalém: 1,10-13
  • reiteração do anúncio do “dia do Senhor”: 1,14-18
  • possibilidade de salvação: 2,1-3

2ª parte: Juízo para os povos e para Jerusalém

  • Contra a Filisteia: 2,4-7
  • Contra Moab e Edom, incluindo as “ilhas”: 2,8-11
  • Contra Cush: 2,12
  • Contra a Assíria: 2,13-15
  • Contra Jerusalém: 3,1-5
  • Ameaça final: 3,6-8

3ª parte: Oráculos salvíficos: 3,9-20

  • Os povos se converterão: 3,9-10
  • Judá será renovado: 3,11-13
  • O júbilo de Sião-Jerusalém: 3,14-20

3 Pontos de teologia

3.1 Acusações e possibilidade de salvação

Sofonias aponta os desvios do povo – a injustiça, a idolatria (Sf 1,4-6.10-12; 3,1-2.7) –, mas dirige-se especialmente às classes dirigentes e aos que confiam em suas riquezas (Sf 1,8-9.13.18; 3,3-4) e em seu poder, que estaria acima da ação de Deus (Sf 1,12). A todos anuncia o juízo, que, porém, poderá ser sustado pela conversão, que consiste em procurar o Senhor no temor, no direito e na justiça (Sf 2,3). Essas são as características do povo que o Senhor deseja, daqueles que poderão escapar do “dia do Senhor” e constituir, assim, a comunidade renovada, o povo “humilde e pobre” (Sf 3,12).

3.2. O “dia do Senhor”

O principal ponto de teologia do livro gira em torno do anúncio do “dia do Senhor”, que trará a mais grave punição tanto para Jerusalém como para os pagãos (Sf 1,14-18). O juízo se dirige especialmente contra os líderes de Judá e Jerusalém, mas também a todos os que se entregam à idolatria e não procuram o Senhor (Sf 1,4-6; Am 5,14-16). A iminência desse “dia” é posta em relevo e serve como indicação da certeza de que ocorrerá (Sf 1,7.14).

Descrito como uma teofania (Sf 1,16; Ex 19,16; 20,18), será um tempo desastroso e de grande angústia (Sf 1,15-16). Um dia em que os convidados para o sacrifício se transformarão em vítimas sacrificais (Sf 1,7.17). Nesse dia, de nada valerão as riquezas e o prestígio (Sf 1,8-9.18). Os oráculos contra os povos (cf. Sf 2,4-15) podem ilustrar o que ocorrerá com Judá no “dia” anunciado. Os fiéis, porém, podem ter a esperança de serem protegidos da destruição (Sf 2,3).

O “dia do Senhor” tem, assim, sentido de purificação, enquanto elimina o mal, propiciando a existência de uma comunidade fiel.

3.3 A renovação de Sião-Jerusalém

O livro termina com uma grande promessa de salvação. Jerusalém será purificada dos ímpios e será constituída somente pelos “humildes e pobres”, aqueles que se mantiveram fiéis e não se associaram aos desmandos de sua época (Sf 3,12; 2,3). O juízo divino eliminará o orgulho, a riqueza dominadora, a injustiça. Deus expurgará Judá e Jerusalém dos iníquos, de modo que os justos poderão viver em paz (Sf 3,11.13).

Sião-Jerusalém corresponderá, assim, totalmente, ao plano de Deus. O novo tempo é caracterizado pelo júbilo e pela alegria, que tem sua motivação no afastamento do juízo e de todas as ameaças (Sf 3,15.18-19), mas é motivado sobretudo pela presença do Senhor no meio de Israel (Sf 3,17; 3,5). Deus será o seu rei, guiará o seu povo (Sf 3,15.20); Jerusalém será lugar privilegiado de sua presença (Sf 3,11). À exortação à grande alegria que o povo terá (Sf 3,14) corresponde a alegria do mesmo Senhor pela felicidade de Sião (Sf 3,17).

À nova comunidade se reunião os estrangeiros que se converterem ao Senhor. Sua participação também na adoração e no culto javista significa uma perspectiva universalista de grande alcance (Sf 3,8-11; Is 56,6-7; 66,18-23). O destino de Judá e das nações entrelaçam-se, portanto, na visão do livro.

4 Lendo o texto hoje

A confiança nas riquezas e no próprio poder desafia a soberania de Deus e quebra a ordem de direito e justiça da sociedade humana. O juízo de Deus sobre o mal no “Dia do Senhor” já ocorreu na morte e ressurreição de seu Filho e exige a conversão em todos os níveis. Daí surge uma comunidade renovada, um povo “humilde e pobre” (Sf 3,12), na qual começa a se realizar o Reino de Deus.

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

Referências bibliográficas

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RÖMER, T.; MACCHI, J-D; NIHAN, C. (orgs.) Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2010.

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SCHMID, K. História da Literatura do Antigo Testamento. Uma introdução. São Paulo: Loyola, 2013.

O livro do profeta Oseias

Sumário

1 O profeta

2 Época da atividade profética e da redação do livro

3 A linguagem do livro

4 Estrutura do livro

5 Principais pontos de teologia

5.1 A imagem de Deus

5.2 O pecado do povo e o juízo de Deus

5.3 A crítica ao culto e à monarquia

5.4 Possibilidade de salvação

6 Lendo o texto hoje

Referências bibliográficas

1 O profeta

O nome “Oseias” é forma abrevida de Yehôšua‘, Yhwh é salvador, ou Hôša‘yah, Yhwh traz a salvação. Sendo em Nm 10,24; 13,8 e 1Cr 27,20 associado à tribo de Efraim, pode-se suspeitar ter o profeta Oseias pertencido a esta tribo do Reino do Norte.

Os dados biográficos são escassos. A fonte para conhecimento da vida do profeta se reduz a alguns versículos dos c. 1-3 do livro que leva o seu nome. A partir desses textos, sabemos o nome de seu pai, Beeri, e de sua esposa, Gomer, filha de Diblayîm (Os 1,3). Segundo o texto do livro, teve três filhos (Os 1,2-9). De sua vida durante o ministério profético, conhecemos apenas os dados, envoltos em imprecisões, a respeito de seu matrimônio e das vicissitudes que o cercaram.

A questão da mulher e dos filhos de Oseias é discutida. Com efeito, o livro apresenta duas narrativas sobre o tema, que não podem com facilidade ser harmonizadas. Na primeira, Os 1,2-9, um relato em terceira pessoa, o profeta recebe a ordem de casar-se com uma “mulher de prostituição”; na segunda, Os 3,1-5, um relato autobiográfico, o profeta recebe a ordem de “amar novamente uma mulher que é amada por outro e comete adultério”. Além disso, discute-se a realidade do matrimônio e a situação da mulher.

As diversas hipóteses acerca da questão do matrimônio de Oseias podem ser agrupadas pelo modo como é considerada a forma dos relatos (alegórica ou real) e a relação entre eles. A concepção alegórica do matrimônio de Oseias (como simples símbolo e não realidade) entrou na história da interpretação pelo caráter insólito da ordem de Deus ao profeta, de que ele despose uma meretriz (Os 1,2). A maior parte dos estudiosos, contudo, considera que se trata de um fato real, mesmo que denso de sentido simbólico.

Para os autores que consideram somente o sentido alegórico, os relatos seriam apenas a roupagem literária de uma mensagem de ameaça (c. 1) que entrevê uma salvação futura (c. 3). Entre os que consideram os relatos como acontecimentos reais, há diferentes interpretações acerca do que teria realmente ocorrido:

  • Em relação ao relato do c. 1, três posições se apresentam: o fato real corresponderia ao texto atual expurgado dos elementos censuráveis, ou seja, Oseias teria tido um matrimônio normal e íntegro; ou diria respeito a um casamento com uma mulher fiel, que se teria prostituído somente após o matrimônio; ou ainda ao matrimônio real com uma meretriz.
  • Quanto ao relato do c. 3, este é visto como um fato real paralelo ao c. 1, narrado, porém, pelo próprio profeta; ou como continuação da narração do c. 1. Nesse último caso, cada uma das narrações indicaria uma fase de um mesmo matrimônio, seja uma mulher que, tornando-se infiel ao casamento, teria ficado em mãos estranhas, por fuga ou expulsão, sendo depois resgatada por Oseias, seja uma mulher desposada com Oseias e que se teria submetido aos ritos dos santuários israelitas influenciados pelo culto cananeu, seja ainda como um segundo matrimônio com a mesma mulher, Gomer, ou com duas mulheres diferentes.

A partir do horizonte teológico do livro e do sentido da alegoria matrimonial (o profeta como representante de Deus e a mulher, do povo de Israel), deve-se pensar que se trata de uma única mulher (pois é um só o povo de Israel).

Parece certo que Oseias era oriundo do Reino do Norte e exerceu neste território sua missão. Pois não só seu anúncio se dirige preponderantemente a Efraim e demonstra um conhecimento minucioso da situação política, social e religiosa do Reino do Norte (ver, por exemplo, Os 5,1.3.8-14; 7,1.8-11; 8,5; 9,15-16), como também sua linguagem apresenta particularidades daquilo que seria um dialeto israelítico. Além disso, Oseias nunca menciona Jerusalém ou qualquer outra cidade de Judá. Ao contrário, cita frequentemente a cidade real de Samaria e os centros de culto de Betel e Guilgal (Os 4,15; 5,8; 7,1; 8,5-6; 9,15; 10,5; 12,2.5; 14,1).

Acerca do ambiente social e cultural imediato em que viveu o profeta, em razão de sua linguagem elevada, seu conhecimento do passado e clareza ao julgar a história, bem como seu conhecimento do mundo que o rodeia, ele poderia ser situado na classe dos eruditos de Israel. Nada de certo, porém, se pode afirmar quanto a isso.

2 Época da atividade profética e da redação do livro

O livro deixa perceber possíveis alusões à época histórica de atuação do profeta. O título nomeia os reis de Judá (Ozias: 781-740; Joatão: 740-736; Ezequias: 716-687) e de Israel (Jeroboão II: 783-743), localizando a atividade do profeta no século VIII. Alguns textos deixam entrever uma época de prosperidade e bem-estar (Os 2,4-5; 10,1-2.13-15), que se coadunaria com o reinado de Jeroboão II. Outros dados apontam para a segunda metade do século VIII: as numerosas alusões a distúrbios na sucessão monárquica (Os 6,7-7,2; 8,4; 7,3-7), que ocorreram, de fato, após a morte de Jeroboão II; o pagamento de tributos (Os 8,9-10; 10,6), que supõe o tempo do rei Menaém (743-738) ou do rei Oseias  (732-724); e a política externa de busca de alianças (Os 7,8-16; 9,3.6; 8,8-10; 12,2), que teve lugar na época do rei Oseias. Em 13,10, se entrevê a falta de um rei, e, em 14,1, a queda da capital, Samaria, nas mãos dos assírios, o que ocorreu em torno dos anos 722/721.

Em síntese, o período da profecia de Oseias abrange, de um lado, um tempo de prosperidade (o reinado de Jeroboão II); de outro, conhece um tempo de instabilidade na monarquia, que poderia ser identificado com o período posterior a Jeroboão II, sem que se possa indicar com precisão se ele conheceu ou não a queda da Samaria.

Muito do conteúdo do livro se enquadra dentro da época acima apontada, de modo que sua redação pode-se ter iniciado já na época do profeta ou pouco distante dela. Há, no entanto, certas passagens que demonstram ter sido o livro relido e atualizado em Judá. Com a queda da Samaria, de fato, tradições e escritos já existentes no Reino do Norte foram levados para o Reino do Sul (Judá), sendo lá retrabalhados até sua redação final. Aqui se reconhecem particularmente algumas que mencionam Judá (Os 1,1.7; 4,15; 5,5; 6,11; 8,14; 12,3), além de outros textos que não se enquadram bem seja no pensamento seja no estilo do livro, ou que apresentam perspectivas que supõem um tempo posterior (Os 2,18-25; 3,5; 4,16-19; 11,10-11; 13,1-9; 14,2-9.10). A época de finalização deste processo é controvertida e vai desde os anos próximos à queda do Reino do Sul (época de Josias, com seu florescimento) até o tempo exílico ou pós-exílico.

3 A linguagem do livro

O livro é o único escrito profético oriundo do Reino do Norte e, provavelmente por peculiaridades da linguagem desta região, com diferenças frente ao hebraico dos escritos do sul, apresenta por vezes questões que dificultam sua compreensão gramatical e sintática.

O estilo é elevado, com utilização de diversos recursos linguísticos (jogos de palavras: Os 4,14b; 8,7b; 5,15-16; 9,16; 11,3) e ainda dois casos de rimas, tão raros no hebraico bíblico (Os 2,7; 8,7b).

A mensagem é expressa com intensidade e veemência, com predominância do uso do “Eu” de Yhwh e abundante emprego de imagens que não só enriquecem o texto por sua beleza e força expressiva (Os 14,6-8), mas também servem a demonstrar, seja a situação de Israel seja a profundidade da força e santidade de Deus. A metáfora que mais caracteriza o livro é a do matrimônio entre Yhwh e Israel (Os 1,2; 2,4-17; 3,15). O povo aparece como meretriz (Os 4,11-14; 5,3-4; 9,1-6), pomba tola (Os 7,11-12), mas também como filho amado (Os 11,1) e excelentes plantas (Os 14,7-8). Deus, em contraposição, é médico (Os 5,12-14; 11,3; ainda: Os 7,1-2; 14,5), pus e traça (Os 5,12), leão, pantera, urso (Os 5,14; 13,7-8), mas também orvalho e árvore verdejante (Os 14,6.9), pastor (Os 13,6) e pai (Os 11,1).

4 Estrutura do livro

Considerando a repetição do termo “processo” (rîb) em Os 2,4; 4,1 e 12,3, ao lado de palavras de salvação que ocorrem nos três primeiros capítulos e ainda em Os 11,10-11 e 14,2-9, alguns estudiosos dividem o livro em três partes, respectivamente: capítulos 1-3; 4-11 e 12-14. No entanto, a finalização promissora em 11,10-11 refere-se propriamente aos versículos anteriores (Os 11,1-9), enquanto que a de Os 14,2-9 retoma temas e terminologia de todo o livro. Por isso, embora em Os 12,3 também se anuncie um processo (rîb) contra Israel, este anúncio não é um indicador unívoco para distinguir os capítulos 12 a 14 dos que os precedem. Além disso, os capítulos 4 a 14 podem ser considerados um bloco na medida em que o chamado inicial a ouvir (Os 4,1), que proclama o processo entre Deus e os “habitantes da terra”, chega a sua grande conclusão somente no oráculo final (Os 14,2-9). Em outras palavras, o livro encontra-se organizado em duas partes: capítulos 1-3 e 4-14.

Esta distinção é confirmada pela temática. Enquanto os três primeiros capítulos são fortemente marcados pela metáfora matrimonial, nos restantes, embora possam ser entrevistos alguns ecos desta metáfora, ela já não retorna com a mesma força. Nos três capítulos iniciais há uma alternância entre palavras de juízo e de salvação, que já de início está a indicar ao leitor a linha mestra de interpretação da totalidade da profecia de Oseias: a condenação não é a última palavra de Deus; o Senhor está pronto a perdoar e prepara para o povo um futuro favorável.

No segundo grande bloco do livro, podem ser distinguidas algumas seções, sobretudo pelo tema que é abordado. O primeiro tema diz respeito às faltas cultuais e à responsabilidade dos sacerdotes, com duas seções paralelas entre si (Os 4,4-19 e 5,1-7). A partir de 5,8 há duas subseções que tratam da fraqueza da monarquia na condução da nação, apresentando este tema em forma paralela (Os 5,8-7,16 e 8,1-14), finalizadas pela síntese de Os 9,1-9, que aponta questões cultuais e aspectos políticos. Têm lugar, a seguir, palavras que aludem a fatos passados da história de Israel, para, a partir deles, mostrar aonde pode levar a conduta do povo, de seus sacerdotes e governantes. Em toda essa parte, desde Os 4,1, há somente acusações e ameaças, com uma breve pausa no capítulo 11 (Os 11,10-11). O livro, no entanto, termina com uma grandiosa perspectiva de futuro (Os 14,2-9), que transforma as palavras de condenação anteriores em fase provisória do agir divino com vistas a fazer Israel retornar à fidelidade ao seu Deus e, com isso, aos seus bens salvíficos.

A sentença sapiencial final (Os 14,10: “quem é sábio, que compreenda estas coisas…”) faz o leitor pensar sobre tudo o que foi anunciado, refletindo sobre os caminhos de Deus para com seu povo e, finalmente, sobre quem é este Deus que com tanto amor se debruça sobre Israel e, apesar da infidelidade do povo, busca sempre de novo abrir-lhe a porta da salvação.

5 Principais pontos de teologia

5.1 A imagem de Deus

O ponto central da teologia do livro reside na imagem de Deus que ele apresenta. Ela pode ser mais bem compreendida a partir do panorama religioso da época do profeta, no qual ao lado, talvez, propriamente de um culto referido a baal, é praticado um culto israelita seja misturado a elementos cananeus (sincretismo: Os 4,17) seja celebrado sem comunhão com Deus (Os 5,6; 8,5; 10,5).

Oseias conhece o nome próprio do Deus de Israel, Yhwh (Os 12,10), mas chama-o também “Deus”, ’Elōhîm, sobretudo ligado a um sufixo possessivo: “teu Deus” (Os 4,6; 9,1; 12,7.10; 13,4; 14,2), “vosso Deus” (Os 3,5; 4,12; 5,4; 7,10; 14,1), “nosso Deus” (Os 14,4). Esta maneira de falar estabelece uma estreita relação entre Yhwh e o povo de Israel. Em algumas passagens, a designação de Deus como ’El está ligada à ênfase em sua santidade e poder (Os 11,9; 2,1; 8,6). No final do livro, apresenta-se a prerrogativa de Yhwh como único Deus de Israel (Os 13,4; 14,4).

As fortes imagens utilizadas pelo profeta (Os 5,12.14; 13,7.8) servem muitas vezes para veicular a ideia de santidade, exclusividade e poder do Senhor. Mas é sobretudo a imagem matrimonial utilizada nos capítulos iniciais do livro (c. 1-3) e que deixa ainda traços nos capítulos sucessivos (Os 4,12-16; 5,3-4; 6,10; 9,1 etc.) que distingue a apresentação de Deus com a característica do amor e da fidelidade. Yhwh é como um esposo fiel traído e esquecido pela esposa (Israel) (Os 2,15). Mas é também o pai negligenciado, que se inclinara para o filho e dele cuidara com todo amor (Os 11,1-4).

Por isso, Ele, que é o Deus de Israel (ver os possessivos no nome de Deus), ameaça quebrar a relação com seu povo.  O texto de Os 1,9 expressa esta ideia de maneira profunda ao explicar o nome dado ao terceiro filho (“Não [sois] meu povo”): “porque vós não sois meu povo e Eu não sou para vós”. Com a formulação “Eu não sou”, nega-se o nome divino (“Eu sou”) revelado em Ex 3,14 e, com isso, a fundamental relação salvífica de Deus para com Israel, retirando-o da escravidão do Egito, dando-lhe a Lei (aliança) e introduzindo-o em sua terra.

5.2 O pecado do povo e o juízo de Deus

A partir desta imagem de Deus, o pecado de Israel é tematizado, como em nenhum outro profeta, diretamente a partir da relação de amor. O pecado não é para Oseias somente transgressão dos mandamentos (também o é: Os 4,1-2). O profeta vai mais longe, decifrando as raízes do agir pecaminoso e, com isso, chegando então à concepção de pecado como uma ruptura do amor (Os 2,7). É a partir daí que se entende o tom de lamentação presente em diversos momentos do livro: por ver seu amor traído, Yhwh se lamenta por aquela que ele ama e que desejaria que lhe fosse fiel (Os 2,10; 13,5-6), recorda seu agir cheio de ternura para com o filho que, todavia, o abandona (Os 11,3-4). Ligada à metáfora nupcial, a pecaminosidade de Israel é caracterizada como “prostituição” (Os 2,4; 5,4). Israel traiu seu esposo, andou atrás de “amantes” (os baals; Os 2,7.9; 3,1; 4,18), afastando-se de Deus (Os 1,2; 7,13).

Nesse contexto, o pecado é também tematizado como “esquecimento” de Deus (Os 2,15; 8,14; 13,6), ou seja, por uma desatenção e negligência frente a um amor fortemente manifestado. É algo que fere, portanto, a íntima relação de amor. Atinge alguém concreto: é “contra Mim” (Os 7,13-15; 14,1; 2,15).

Neste contexto, é ponto central na teologia do profeta o conceito de conhecimento de Deus. Trata-se não só de um conhecimento intelectual da vontade de Deus, de seus preceitos, mas inclui a íntima comunhão de vida, a confiança total. Principais acusados são os sacerdotes, que negligenciam sua tarefa de instruir o povo, conduzindo-o na relação com Deus. Oseias os acusa de rejeitarem o “conhecimento”, o que trará consequências negativas também para o povo (Os 4,6). Deixam de instruir o povo no conhecimento da vontade divina, que, por isso, não recebe os elementos necessários para viver a fé e a comunhão com Deus. A partir daí, o livro pode afirmar, num veredito global, que “não há conhecimento de Deus no país” (Os 4,1). Tal ausência se reflete numa vida em que predominam os delitos de toda espécie (Os 4,2).

Diante da busca de aproximação de Deus com a oferta de sacrifícios (Os 5,6; 8,13), o profeta anuncia o grande princípio: de nada valem os sacrifícios se não há real comunhão com Deus. O Senhor deseja o “conhecimento” mais do que gestos sacrificiais que se reduzam a atos exteriores (Os 6,6).

Junto com o “conhecimento”, falta ao povo também o “amor”, expresso em Oseias, por seis vezes, com o termo ḥesed (Os 2,21; 4,1; 6,4.6; 10,12; 12,7). Trata-se do amor em seu caráter espontâneo, que surge não a partir de uma exigência que alguém pudesse fazer, mas somente a partir da decisão daquele que ama e não daquele que recebe amor. Mesmo no caso de haver expectativa de um comportamento conforme o ḥesed, este não é derivado de uma relação de dever. O conceito de ḥesed está ligado também à ideia de superlativo, de algo que ultrapassa todas as medidas. É um comportamento para além das medidas esperadas ou exigidas: uma relação de bondade magnânima, que ultrapassa a simples obrigação e as medidas impostas por uma relação de dever. Como tal, pode referir-se tanto ao amor de Deus para com Israel e de Israel para com Deus como à relação dos membros do povo entre si. As duas dimensões caminham juntas: o pecado é a um tempo contra Deus e contra os irmãos (4,1-2).

Nesse sentido, o pecado de Israel, em Oseias, não se reduz a atos isolados. É uma realidade globalizante. Ao pecar, Israel identifica-se com o seu pecado, assimila-se a ele (Os 9,10), torna-se ele mesmo diferente do que era antes. Mais do que marcado pelo pecado, o povo é caracterizado pela dureza do coração, pela qual Israel rejeita admitir seu pecado e não reconhece sua culpa (Os 12,9). Com isso, sua índole pecaminosa se constitui numa força interior que impele sempre mais ao pecado. Torna-se um “espírito de prostituição” (Os 5,4). É, dessa maneira, uma força que prende Israel, uma teia que o emaranha (Os 11,7). Por isso, para o profeta, o povo, por si só, tornou-se incapaz de retornar a Deus, de se converter (Os 7,10; 10,2).

O profeta põe em relevo, nesse contexto, a índole pecadora de Israel já desde o início de sua história. Para isso serve a rememoração de eventos das tradições históricas que ocorrem a partir do capítulo 9 (Os 9,10.15; 10,9; 11,1-4; 12,3-5.13). Demonstrando que desde sempre Israel é culpado, o livro enfatiza ainda mais como o povo, mesmo em épocas posteriores, tende ao pecado. E, por outro lado, evidenciando que o amor de Deus está presente desde que o povo está no Egito (Os 11,1), também no tempo do deserto (Os 13,4-6), bem como no seu estabelecimento nele (Os 9,10), sublinha a falta de correspondência de Israel para com o seu Deus. Justifica, desse modo, a punição tantas vezes anunciada no livro.

Na base do amor divino, pode-se melhor compreender a mensagem de condenação que perpassa o livro. O juízo de Deus é o reverso do seu amor traído e expressa assim sua justa ira. Como esposo que poderia dar carta de divórcio à sua esposa infiel, Deus tem o direito de pôr fim à sua relação salvífica para com Israel. Deus ameaça o povo (Os 2,11; 9,12.16; 12,15) e chega a dizer, como que numa palavra final: “não os amarei mais” (Os 9,15). Com isso, prepara-se o fim da nação, representado pela invasão assíria, que aniquilará o país e deportará seus habitantes (Os 9,17; 13,15–14,1).

5.3 A crítica ao culto e à monarquia

As faltas que estão no centro da condenação feita por Oseias pertencem, em primeiro lugar, ao âmbito cultual. Ao menos dois aspectos são considerados: o recurso à religião cananeia, com seus baals e cultos de fertilidade (Os 2,4-15; 4,10-11.13-14; 9,1.11.14 etc.), em si mesma ou unindo-a a elementos da fé javista, numa espécie de sincretismo; e o culto a Yhwh, porém celebrado por motivo interesseiro e sem duas condições fundamentais: amor e conhecimento (Os 6,6). Nesse contexto, a crítica se dirige fortemente contra os sacerdotes: por negligenciarem o ensino da fé javista e abrirem, assim, caminho para a difusão da religião cananeia (Os 4,6.12); por se aproveitarem do culto para proveito próprio (Os 4,8; 8,13); enfim, como parte das classes dirigentes, por utilizarem a religião como meio para conseguir vantagens (Os 8,4.10).

Grande relevo ganha, no livro, também a crítica política. A monarquia é duramente acusada, seja por suas decisões em âmbito interno, na condução mesma do povo (Os 10,3.15; 13,10-11), seja, sobretudo, pela política de aliança com as potências estrangeiras (Os 5,8-14; 7,11-12; 8,8-9; 12,1-2). Esta última, feita sem considerar Yhwh e sua vontade, na prática se torna consequência da negligência para com a religião.

Do pecado no âmbito da justiça social, Oseias fala somente em poucos textos (Os 4,1-2; a fraude no comércio: Os 12,8). A ênfase que seu contemporâneo, Amós, dá a este âmbito pode ter influenciado os redatores do livro de Oseias a sublinharem outros aspectos não tão enfatizados em Amós. Nesse sentido, os dois livros proféticos em conjunto auxiliam a se ter uma visão mais completa da sociedade e seus problemas, bem como da religião de meados do século VIII até a queda do Reino.

5.4 Possibilidade de salvação

Sobre este panorama, Deus poderia, ainda uma vez, ter misericórdia deste povo?

O livro mostra como o povo é incapaz, por si só, de retornar a Deus. O texto de Os 6,1-3 descreve uma possível volta do povo a Deus, mas com atitudes em que a confiança no auxílio divino não é acompanhada por uma real contrição. Não há nestes versículos, de fato, nenhuma menção de arrependimento da culpa; espera-se tão somente que Deus, como que automaticamente, venha em socorro de Israel. Deus reconhece que o povo tem certo “amor”, mas este é fugaz, não preenchendo, portanto, as exigências divinas (Os 6,4). Também em Os 10,12-13 mostra-se que o povo não sabe responder às exigências divinas.

Com isso, a restauração da relação quebrada só se pode dar na base do próprio Deus, que, com seu amor fiel, abre ainda uma oportunidade (Os 11,8-9). É no mais profundo de si mesmo (“coração”, “entranhas”: Os 11,8) e em virtude de sua própria santidade (Os 11,9), que Deus não deixa que ocorra a Israel a destruição total (Os 11,6). A punição ocorre, pois, ao mencionar o retorno do estrangeiro, Os 11,10-11 mostra que houve, com efeito, o desterro. Mas guarda-se ainda uma esperança de restauração.

Esta, no entanto, deve incluir também a reestruturação mental e espiritual do povo. Yhwh deve preparar Israel, curar a dureza do coração, que o impede de ver os próprios desvios e, portanto, de converter-se (Os 14,5). Somente assim o povo terá condições de responder adequadamente ao convite: “volta, Israel, ao Senhor teu Deus” (Os 14,2).

A meta da conversão é descrita, no capítulo 2, dentro da analogia matrimonial, como a celebração de novas núpcias com Deus. Israel será conduzido a um encontro pessoal com Deus, que lhe “falará ao coração”, abrindo-o para uma relação renovada. Então a “esposa” responderá ao seu esposo como nos tempos do primeiro amor, quando, no caminho para a terra prometida, ainda não se entregara aos cultos cananeus (Os 2,16-17.19). O Senhor renova na profundidade a esposa infiel. Deus lhe oferece, como presentes do casamento, os dons necessários para que ela viva “para sempre” em amor e fidelidade (justiça e direito, amor e ternura, fidelidade: Os 2,21-22). A partir daí, ela poderá chegar a corresponder totalmente ao seu amor. Deus lhe manifestará misericórdia e retomará a aliança com Israel (Os 2,25). Neste ideal de comunhão, a se realizar no futuro, estarão presentes os elementos fundamentais da vida que faltam ao povo (amor, fidelidade, conhecimento de Deus: Os 4,2), de modo que o futuro é idealizado como a situação de total realização de todas as maiores expectativas de Israel.

Com tais perspectivas de salvação, a punição divina anunciada no livro adquire outro valor: torna-se instrumento através do qual Deus quer purificar seu povo. Recebe, assim, a função de punição pedagógica (Os 3,3-5; 2,16-17; 5,14-15).

6 Lendo o texto hoje

O ensinamento de Oseias sobre o culto relembra a exclusividade do verdadeiro Deus e exige a purificação de todos os seus elementos ilegítimos e de toda forma de idolatria e sincretismo. O culto não pode se reduzir a atos externos, mas deve ser expressão da atitude interior de abertura a Deus, que inclui a comunhão com o seu povo, a observância do amor mútuo e exclui toda forma de exploração.

Sua crítica à monarquia leva a refletir sobre os critérios para que a política seja conduzida ainda hoje: não praticada em proveito próprio e, portanto, facilmente corrupta e corruptora. A base inalienável é o respeito à vontade divina.

Em tudo isso, permanece o chamado a retornar ao Senhor, numa conversão que, se conta sempre com a benevolência divina, implica atitudes concretas de mudança de rumo (cf. Mt 9,13).

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

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O livro do profeta Isaías

Sumário

1 O livro como um todo

2 Isaías profeta

3 O Primeiro Isaías (c. 1-39)

3.1 Composição do I Is

3.2. Principais pontos de teologia

4 O Segundo Isaías (c. 40-55)

4.1 Autoria e datação

4.2 Organização

Excurso: os textos do Servo sofredor

4.3 Principais pontos de teologia

5 O terceiro Isaías (c. 56-66)

5.1 Natureza do III Is

5.2 Época de composição

5.3 O profeta

5.4 Organização do conteúdo

5.5 Principais pontos de teologia

6 Formação do livro de Isaías em seu conjunto

7 Lendo o texto hoje

Referências bibliográficas

1 O livro como um todo

Já no século XI, houve a percepção de que o livro de Isaías era composto de partes distintas. No final do século XVIII, Eichhorn (1783) e Döderlein (1789) enfatizaram a distinção dos c. 40 – 66. Os estudos de Duhm (1892), no entanto, apresentaram argumentos para se distinguir três grandes partes (c. 1-39, c. 40-55 e c. 56-66), atribuídas respectivamente à época do profeta (século VIII aC), ao período do exílio babilônico e à época pós-exílica. A partir de então, generalizou-se o modo de referir-se a elas, respectivamente como Proto (ou Primeiro) Isaías (I Is), Dêutero (ou Segundo) Isaías (II Is) e Trito (ou Terceiro) Isaías (III Is). Tal distinção é seguida atualmente pela maior parte dos estudiosos; alguns, todavia, entendem a segunda e terceira partes como uma unidade, tratando em conjunto, por conseguinte, os capítulos 40 a 66.

Os motivos para a distinção das três partes são de ordem histórica, literária e teológica:

a. Os elementos históricos referem-se ao contexto histórico pressuposto ou explícito. O Primeiro Isaías reflete, em boa parte, a época do século VIII; o Segundo supõe o povo no exílio babilônico e menciona Ciro (Is 44,28; 45,1), rei persa, que começou a aparecer no cenário internacional por volta de 550 aC; o Terceiro supõe o fim do exílio babilônico e refere-se à comunidade pós-exílica.

b. Os elementos literários dizem respeito aos temas abordados, ao vocabulário utilizado e ao estilo. No I Is prevalece o tema do juízo; no II Is, o anúncio de salvação; o III Is apresenta ambos os temas, mas com acentos próprios. A presença de vocabulário, motivos e esquemas literários diversos corroboram a divisão em três partes. Assim, no I Is é forte a presença do tema da santidade de Deus e da fé, com o respectivo vocabulário; o termo “consolar” caracteriza a mensagem do II Is; no III Is ocorre a metáfora de “pai” para Deus.

c. Os elementos teológicos referem-se a diferenças nas temáticas e na ênfase a elas dada. Por exemplo, é próprio do II Is a ideia da unicidade de Deus, posto em contraposição aos ídolos; práticas penitenciais são citadas no III Is, que ressalta também o valor do sábado e da obediência à aliança; já o I Is traz, em algumas passagens, referência ao filho de Davi, rei em Jerusalém.

Embora as três partes sejam distintas, há entre elas também relações. Redigido por último, o III Is é responsável não somente pela terceira parte do escrito, mas pela elaboração final de todo o conjunto, de modo que o livro, apesar das três partes, possui unidade. Com efeito, até algumas décadas atrás, normalmente essas três grandes seções eram consideradas três unidades fechadas e independentes. Atualmente, porém, se impõe sempre mais a pergunta acerca da unidade final do livro, fruto de uma redação globalizante. Todo o material, elaborado num largo espaço de tempo, que compreende vários séculos, foi colocado sob a égide de Isaías, profeta do século VIII, possivelmente porque os redatores concebiam-se como continuadores da mensagem do grande mestre.

2 Isaías profeta

O texto de Is 6,1 coloca o início da missão do profeta no último ano do rei Ozias (Azarias: 781-740), em cerca de 740. O título do livro (Is 1,1) menciona que o profeta atuou também sob outros reis: Joatão (740-736), Acaz (736-716) e Ezequias (716-687). Seu ministério profético se desenvolveu no Reino do Sul, Judá, particularmente em Jerusalém.

A partir dos textos do livro, podem ser distinguidos quatro períodos na atividade do profeta:

  • da vocação à guerra siro-efraimita (740-734), durante o reinado de Joatão (740-734). Trata-se de uma época em que, no plano internacional, a Assíria domina em grande parte a região, submetendo já então o Reino do Norte (Israel) a tributo; o Reino de Judá, contudo, não sofre a ingerência de nenhum poder estrangeiro e, por isso, passa por um período de florescimento econômico. Nessa situação, na mensagem do profeta Isaías predomina a preocupação com questões internas de Judá, sua situação social e religiosa (por exemplo: parte dos capítulos 1 a 5; Is 9,7-20; 10,1-4): a corrupção das classes dirigentes (governantes, juízes, donos de terras), o culto sem correspondência com a vida (Is 1,10-20), o luxo e o orgulho dos poderosos, com o consequente esquecimento de Deus (Is 3,16-24). Relativos a essa época são diversos anúncios de punição (Is 2,6-22; 3,1-9; 5,26-29), com chamados à conversão (Is 1,16-17; 9,12).
  • na época da guerra siro-efraimita (734-732), durante o reinado de Acaz (734-727). Os textos giram em torno desta situação (c. 7-8), em que o Reino do Norte (Israel) se uniu a Aram e investiu contra Judá, com a finalidade de pressioná-lo a fazer parte de uma coalizão antiassíria. O rei de Judá, Acaz, apela aos assírios e assim se livra dessa ameaça; passa então, porém, a ser vassalo da Assíria. Após a guerra, provavelmente, o profeta se retira (Is 8,16-18).
  • época da minoridade de Ezequias (727-715). Desse período é o oráculo contra a Filisteia, que convida Judá a uma coalizão antiassíria (Is 14,28-32), e o oráculo contra Samaria, que se rebela contra a Assíria (Is 28,1-4). Alguns autores datam dessa época outros oráculos contra nações (Is 14,24-27; 15-16; 21,11-12.13-17).
  • época da maioridade de Ezequias (714-698) (Is 39; 18,1-6), quando este rei assume plenamente o poder. Nessa fase do ministério do profeta, podem ser distinguidas duas etapas: após a primeira revolta contra a Assíria (713-711) e por ocasião da segunda revolta contra a Assíria (705-701) (c. 28 -31).

Em esquema:

Da vocação à investida siro-efraimita
Época da investida siro-efraimita
Época da minoridade de Ezequias
Época da maioridade de Ezequias (após714)
(Is 39; 18,1-6)
Is 1-5*
9,7-20; 10,1-4
c. 7-8
Is 14,28-32; 28,1-4
Is 14,24-27; c. 15-16; 21,11-17
após a 1ª revolta antiassíria
por ocasião da 2ª revolta antiassíria

c. 28-31
740-734
734-732
727-715
713-711
705-701

Alguns dados biográficos do profeta são fornecidos pelo livro. O interesse de Isaías pela monarquia davídica e pela cidade santa, além de seu conhecimento detalhado da cidade (1,10-11; 7,3; 22,9; 29,7), falam em favor de que fosse oriundo do Reino de Judá e habitasse em Jerusalém. Casado, teve ao menos dois filhos, aos quais deu nomes simbólicos (Is 7,3; 8,3). Talvez pertencesse à aristocracia, pois parece ter fácil acesso à corte (Is 7,3); interessa-se, porém, pelas classes mais pobres (Is 1,17; 3,12-15). Os textos que referem suas palavras apresentam um estilo elevado, com numerosas imagens, rico em antíteses e assonâncias (Is 1,25; 5,25-26; 18,3; 28,2; 29,6), de modo que se pode supor que o profeta possuísse alto nível cultural, que teria influenciado também os redatores do livro.

3 O Primeiro Isaías (c. 1-39)

3.1 Composição do I Is

Embora o I Is esteja ancorado na época do profeta (segunda metade do século VIII aC), nem todo o material que hoje se encontra nos c. 1-39 é desse período. Antes, numerosos textos supõem épocas posteriores, do tempo exílico e pós-exílico (Is 2,1-5; c. 12; c. 24-27; 34-35 etc.).

Considerado, porém, o conteúdo com o qual o livro chegou à sua formulação definitiva, podem ser distinguidos nele diversos blocos:

  • 1-12 e 28-33: duas coleções compostas sobretudo por material proveniente de Isaías profeta, com temas variados.

Os capítulos 1 a 12 trazem oráculos sobre Judá e Jerusalém: ameaças (por exemplo Is 1,2-24; 2,6-4,1;5,1-30) e promessas de restauração (por exemplo Is 2,1-5; 4,2-6; 10,20-23; 11,1-16). A seção 6,1 – 9,6, pela menção ao profeta, é chamada de “memorial de Isaías”. O texto de 12,1-6 fecha toda a seção com um canto de ação de graças pela salvação.

Os capítulos 28 a 33 são formados sobretudo por palavras de punição, nas quais é característica a repetição de “ai” (Is 28,1; 29,1.15; 30,1; 31,1; 33,1). Em Is 30,27-31,9 há ameaças à Assíria, contraparte da salvação para Judá (Is 30,27-33; 31,4-9) e uma advertência a Judá, que busca apoio no Egito (Is 31,1-3).

  • 13-23: diversos oráculos contra as nações, incluindo um oráculo contra Jerusalém (c. 22). As nações mencionadas são: Babilônia, Assíria, Filisteia, Moab, Damasco, Israel, Cush, Egito, Duma, Edom, Arábia, Tiro e Sidônia.
  • 24-27: apresentam temática e linguagem características, diferentes daquelas típicas do profeta do século VIII. À diferença dos oráculos contra as nações, a perspectiva destes capítulos não é mais a de povos concretos. No primeiro momento, as palavras têm uma moldura universal (Is 24,1.3.4.5.6.17.18.19.20), para em seguida falar-se da montanha de Sião e de Jerusalém (Is 24,23; 27,13). Por sua dimensão escatológica, estes capítulos são chamados de grande escatologia (ou apocalipse) de Isaías.
  • 34-35: os dois capítulos formam um díptico. O capítulo 34 descreve a desgraça para Edom, que serve de panorama para a descrição da salvação para Jerusalém (c. 35). Em vista da nota escatológica que esses capítulos apresentam, são chamados de pequena escatologia (ou apocalipse) – em comparação com a “grande escatologia” dos c. 24-27.
  • 36-39: escritos em prosa, retomam o texto de 2Rs 18,13-20,19. Relatam acontecimentos do reinado de Ezequias, no tempo do assédio de Senaquerib a Jerusalém (701). É exaltada a figura de Ezequias, em contraposição à falta de fé do rei Acaz (c. 7). Isaías aparece em cena (Is 37,2.5.6.21; 38,1.4.21; 39,3.5.8). O relato termina com o profeta anunciando o exílio babilônico (Is 39,6-7) para o tempo posterior a Ezequias, fazendo assim o gancho com a segunda grande parte do livro (c. 40-55). A promessa de paz para o tempo de Ezequias (Is 39,8) prepara, de outro lado, o anúncio, presente no II Is, de que Judá voltará do exílio babilônico; serve, assim, como esperança e consolo para os exilados (Is 40,1-2).

Em esquema:

1-12
13-23
24-27
28-33
34-35
36-39
Coleção enraizada no profeta
Oráculos contra as nações
Grande escatologia
Coleção enraizada no profeta
Pequena escatologia
Narração semelhante a 2Rs 18,13-20,19

3.2 Principais pontos de teologia

a) Acusação de injustiça

O c. 1 abre o livro com duas acusações (vv. 1-9.10-20). Sobretudo a segunda resume bem o núcleo do anúncio profético em relação ao tema da injustiça. As acusações aparecem, no livro, ainda em numerosas passagens, particularmente nos “ais”. O texto de Is 5,8-24 detalha os aspectos da situação de injustiça. Há um setenário de acusações: Is 5,8-10. 11-12. 18-19. 20. 21. 22-24 e 10,1-4.

b) A santidade de Deus

O tema da santidade de Deus é fundamental na mensagem do profeta por estar relacionado à experiência de sua vocação e seu envio em missão (Is 6,1-13). Aparece particularmente na denominação frequente de Deus como “o Santo de Israel” (Is 5,19.24; 10,20; 17,7; 29,19; 30,15; 31,1; 37,27). Com esse tema, o livro põe o acento na transcendência de Deus.

c) A fé; Isaías e a política

A fé opõe-se, em Isaías, à atitude de orgulho (Is 2,11-17) e à autossegurança (Is 1,10-15). Implica colocar sua confiança somente em Deus. Consiste na entrega à vontade divina e ao plano de Deus (Is 30,15). É fonte de segurança (Is 30,15-18) e se opõe a confiar exclusivamente nos próprios recursos, deixando de recorrer a Deus (Is 30,1-5; 31,1-3). Com isso, toca-se o tema da visão política do profeta: ele condena a política que, segura de seus próprios meios, age sem consulta à vontade divina. Texto particularmente importante é 7,10-17, que tem seu ponto central no v. 9: “se não crerdes, não permanecereis firmes”.

d) Teologia de Sião-Jerusalém

O profeta abomina os pecados de Jerusalém (Is 1,21-26; 2,6-17; 3,16-24; 22,1-14; 29,1-10). No cântico da vinha (Is 5,1-7) resume-se de forma mais completa a gravidade das opções de Jerusalém contra o Senhor. No entanto, o livro mostra também que Jerusalém é a cidade eleita por Deus, é morada de Deus (Is 8,18; 14,32). Por isso, Deus a transformará e sustentará (Is 1,25-26; 28,16-17). Ela será o centro dos povos, de onde surgirá a salvação para todos (Is 2,1-5).

e) Expectativa messiânica

Espera-se o “messias”, um novo Davi, que restabelecerá a o direito e a justiça, trará a paz e, assim, a prosperidade para o povo de Deus, iniciando uma nova época (Is 9,1-6; 11,1-11).

O termo hebraico “messias” significa ungido. No Antigo Testamento, eram ungidos particularmente reis e sacerdotes. A unção de sacerdotes os investia na função (Ex 28,41; 29,7 et passim). Mas é sobretudo o rei que o Antigo Testamento liga à ideia de messias.

O rei é ungido no momento de sua coroação (Jz 9,8; 1Sm 9-10; 2Sm 2,4; 5,3; 1Rs 1,39; 2Rs 11,12; 23,30). Recebe, então, a força de Deus (1Sm 9,16; 10,1.10; 16,13), é o “ungido do Senhor” (2Sm 19,22), torna-se representante seu, intermediário entre Deus e o povo. Assim, todo rei é por definição “messias”.

Sobre a base da promessa de Natan (2Sm 7,12-16), o povo de Israel desenvolveu a esperança de que sempre haveria um rei no trono de Davi (Sl 132,17). Quando os babilônios invadiram Judá e o rei davídico foi deportado para Babilônia, cessou a dinastia davídica em Jerusalém. No retorno do exílio, procurou-se restabelecê-la através da figura de Zorobabel (Ag 2,23), porém sem sucesso, de modo que, a partir da conquista de Jerusalém pelos babilônios, não houve mais um rei judeu em Jerusalém. Dentro do contexto de inexistência de um descendente davídico, cresceu, então, a esperança de um messias rei e esta foi projetada para o futuro: desenvolveu-se a expectativa por uma figura idealizada do messias, enviado por Deus nos tempos escatológicos.

4 O Segundo Isaías (c. 40-55)

4.1 Autoria e datação

O autor é desconhecido. Sua obra se refere à época do exílio babilônico já avançado, podendo chegar até a tempos posteriores à queda de Babilônia. Discute-se se foi escrita para os exilados na Babilônia ou para os remanescentes de Judá. Os que defendem a primeira hipótese argumentam com textos que parecem demonstrar que o profeta conhece a situação dos exilados (Is 40,27; 41,10; 49,14) e a atuação de Ciro (Is 41,25; 44,28; 45,1). Outros veem em certos textos indícios de que o texto foi escrito para os que ficaram na terra (Is 40,2); nesse caso, sua função seria preparar os remanescentes para receberem os que retornariam do exílio.

Atualmente, há três tendências de identificação da autoria e localização do escrito:

  • O escrito é obra de um profeta anônimo, chamado, desde Duhm, de Dêutero-Isaías; teria sido redigido no tempo do exílio avançado.
  • O escrito é obra de um profeta anônimo e seus discípulos; teria sido redigido no tempo do exílio avançado: desde a ascensão de Ciro no plano internacional (553) até a tomada de Babilônia e o rei Dario (522).
  • O escrito é uma obra coletiva, de um grupo. As afinidades de algumas passagens com os Salmos dos filhos de Coré (Sl 42-49; 84-85; 87-88) e os salmos da realeza do Senhor (Sl 96-98), apontariam para uma relação entre os dois grupos de redatores. Isso levou à ideia de que seriam grupos de levitas, responsáveis pela liturgia do Templo. Não se excluiria, no entanto, que, dentre estes, tenha havido autores principais, seja no sentido de formular as teses teológicas mais importantes seja no de dar a forma literária final. Seria possível, também, que tivesse havido grupos distintos: um em Babilônia e outro em Jerusalém, que se reuniriam com a volta do desterro.

A datação tradicional do conjunto dos c. 40 – 55 foi colocada no tempo final do exílio babilônico. Nas últimas décadas do século XX, porém, surgiram reconstruções de sua história redacional, com muitas variações entre os autores. Certo consenso, todavia, existe em delimitar duas grandes fases de trabalho redacional:

  • o escrito teria tido origem em Babilônia, na época exílica, em uma ou mais redações, e compreenderia sobretudo os textos existentes nos capítulos 40 a 48;
  • este núcleo teria sido completado em Jerusalém, no tempo pós-exílico, após o retorno dos primeiros exilados (em torno de 530-520); seria fruto de diversas redações e compreenderia basicamente os capítulos 49 a 55.

4.2. Organização

Is 40,1-2 abre o escrito com o tema da consolação do povo, tema que difere fortemente do tom predominante nos c. 1-39; marca-se, assim, a distinção para com o Primeiro Isaías.

O final do c. 55, por outro lado, apresenta o tema da força da “palavra de Deus” (Is 55,10-11) e retoma o que já fora apresentado na introdução sobre o valor da Palavra (Is 40,7-8). Forma-se, com isso, uma moldura, que fecha o conjunto com a alusão ao mesmo tema com que este fora aberto.

Há diversas maneiras de se considerar a estrutura dos capítulos 40 a 55. Para além do prólogo (Is 40,1-11) e do epílogo (Is 55,6-13), os textos dos c. 40-48 enfatizam o poder criador de Deus, sua ação na história e sua contraposição aos ídolos. No final do c. 48 (Is 48,20), a ordem de sair de Babilônia introduz o tema do “novo êxodo”, que predomina até o final do escrito. Sob outra perspectiva, porém, observa-se que, nos c. 40-48, anuncia-se a libertação de Judá das terras babilônicas, enquanto que nos c. 49-55 fala-se da cidade de Jerusalém, que será renovada. Dessa forma, para além do prólogo e epílogo, o livro pode ser considerado em duas partes: 44,12-48,19 e 40,21-55,5 ou então 42,12-48,22 e 49,1-55,5.

Na estrutura do livro, uma questão especial diz respeito aos textos do “Servo sofredor do Senhor”. É discutido se eles são obra do autor do II Is ou se são poemas de origem distinta e que foram aproveitados e inseridos no livro, por vezes com adaptações.

Excurso: os textos do Servo sofredor

A palavra “servo” aparece 21 vezes no II Is, sendo que 14 vezes refere-se a Israel (Is 44,1.2.8.9.21; 45,4; 48,20 etc.) e 7 vezes a um personagem não identificado (com exceção de Is 49,3). Estas últimas encontram-se em textos que constituem os chamados textos (também denominados “cânticos”) do Servo sofredor. A partir de Duhm (1892), se fala em quatro textos, cuja delimitação varia entre os autores, mas que, considerando-se a temática, podem ser identificados como: 42,1-7; 49,1-7; 50,4-9a; 52,13-53,12.

Discute-se se outros textos do II Is se referem também a esse personagem desconhecido. Outra questão debatida é se os textos são independentes entre si ou se formam uma unidade. Há semelhanças para com o horizonte teológico do II Is, no que tange ao tema do Servo-Israel (o monoteísmo, a ação de Deus na história, a relação com os povos estrangeiros, dentre outros), mas também diferenças:

  • no II Is, Israel é pecador (Is 40,2; 42,24; 43,25-28; 44,21-22), enquanto que o Servo desconhecido é inocente (Is 53,4.5.9), obediente ( Is 50,4-6; 53,7) e expia os pecados dos outros (Is 53,10).
  • Israel tem missão passiva: através de sua libertação, os pagãos verão o poder do Senhor (Is 43,12; 44,8). O Servo tem uma missão ativa: ser “aliança do povo” (Is 42,6), luz para as nações, instrumento de propiciação.

Há relações entre os quatro textos usualmente identificados e por isso a visão de que eles formem um conjunto é a mais aceita entre os estudiosos. Difícil, contudo, é explicar por que eles se encontram separados no livro. Alguns pontos seguros no que concerne aos textos do Servo são:

  • os quatro textos são ordenados de modo simétrico, dois a dois:

49,1-6 e 50,4-9: fala o “eu” que é o Servo

42,1-7 e 52,13 – 53,12: fala um outro sobre o Servo (no c. 42 fala o Senhor; no c. 53, fala um “nós” de difícil identificação, mas dentro de uma moldura que põe Deus em discurso: 52,12-15 e 53,11b-12);

  • em 49,3 o Servo recebe o nome de Israel;
  • em 50,4-9 quem fala se identifica como “discípulo”;
  • há entre os quatro textos fortes elementos de ligação, sobretudo o fato do sofrimento do Servo, que se vai acentuando nos poemas (Is 42,4; 49,4; 50,5; 52,13).

4.3 Principais pontos de teologia

a) A consolação de Israel por Deus

O livro desenvolve com ênfase a ideia da consolação que Deus promete a seu povo. A terminologia gira em torno da raiz nḥm, que tem o sentido geral de consolar. No Antigo Testamento, é utilizada em contexto de dor (morte, aflição, angústia: Gn 37,35; Gn 50,21; 2Sm 10,2-3; Lm 2,13). Consolar significa, então, trazer um auxílio que tende a ser eficaz, que traz um resultado (Sl 23,4; 71,21; 86,17).

Quando se trata da consolação de Deus, esta restabelece a relação de comunhão com Ele (Is 12,1; 43,1-7). No contexto do II Is, a consolação significa propiciar ao povo no exílio que ele retorne à terra e aí reconstitua sua vida; significa trazer à comunidade judaica, exilados repatriados e remanescentes na terra, novos dias de prosperidade e paz.

b) O Deus Criador é o Deus Salvador, o único Deus para todos

O II Is desenvolve o tema da criação e do Deus criador. A criação é apresentada numa perspectiva histórico-salvífica, como o primeiro ato salvífico de Deus. Responde-se, assim, à situação de exílio, que parecia pôr em questão o poder de Deus. Dessa forma, o II Is dá esperança de retornar à terra: o Deus criador, todo-poderoso, trará seu povo de volta, realizando assim como que uma segunda criação (Is 40,12-31). Ele é o redentor de Israel (Is 41,14), aquele que o resgata da mão dos babilônios.

O tema do poder de Deus que se manifesta na criação desenvolve-se em dois outros aspectos. Primeiramente, se Deus é o criador de todo o cosmo e dos seres humanos, então ele é o Deus de todos: o Senhor é o único Deus não só para Israel, mas em absoluto, o único Deus verdadeiro. Tematiza-se assim, explicitamente, o monoteísmo. Em contraste com a concepção mais antiga que admitia outros deuses fora de Israel, embora para Israel o único fosse o Senhor (Sl 50,1; 82,1), agora existe somente um Deus, seja em Israel, seja em outras terras. Nesse contexto de afirmação do poder do Deus de Israel, o II Is desenvolve o tema da inutilidade dos deuses pagãos. Os outros deuses nada são e, por isso, tornam-se objeto de profunda crítica, por vezes em tom irônico (Is 40,19-20; 41,6-7.21-24; 44,6-20. 24-28; 46,5-6).

Em segundo lugar, a ideia do Deus único abre a perspectiva de universalidade da salvação (Is 40,5; 41,8-16; 42,10; 43,8-13; 52,7-10). Se todos foram criados por Deus, que é o único Deus existente, então todos são chamados à salvação. Mesmo os pagãos, se aceitarem o Deus de Israel, podem participar da sua bênção. Tal universalismo, contudo, tem sempre Israel como centro de convergência (Is 45,14.20-25).

c) Deus é o senhor da história

A partir da concepção da onipotência universal de Deus, desenvolve-se ainda o tema de seu domínio sobre toda a história. Os acontecimentos históricos (no caso, o exílio babilônico) não são superiores ao poder divino. Deus se serve dos fatos e das contingências históricas para levar a cumprimento seu plano. A ascensão de Ciro, com a conquista de Babilônia, é vista como providencial: Ciro é instrumento de Deus para a libertação de seu povo (Is 41,1-5.21-29; 44,24-28; 45,1-7. 9-13; 46,9-11; 48,12-15).

É neste contexto que a volta dos exilados é tematizada com um novo êxodo, mais glorioso do que o do Egito (Is 43,16-21; 48,20-21; 49,10; 51,9-10; 52,7-12).

Para os exilados, estas afirmações serviam como sustentação e motivo para a fé. A fé abarca e saber entrever, nos acontecimentos da história humana, a ação divina, que, para além dos fatos, dirige tudo para a consecução de seu plano, que diz respeito à salvação de seu povo.

5 O Terceiro Isaías (c. 56-66)

5.1 Natureza do III Is

O III Is é uma coleção de escritos heterogêneos, nos quais dificilmente se pode encontrar uma temática unificadora. O livro apresenta-se como uma coleção de peças, que, no entanto, receberam certa unidade ao serem colocadas no conjunto. Alguns autores veem uma ligação destes capítulos com o II Is, devido a semelhanças de linguagem e conteúdo em comum, mas a maioria distingue os c. 40 -55 e 56-66 como duas partes. As semelhanças para com o II Is se dão sobretudo nos c. 60-62. Com exceção desses, que formam um bloco, há, porém, muitas diferenças para com o II Is:

  • não mais se fala da esperança de retorno do exílio nem de Ciro;
  • fala-se do templo, que parece estar em reconstrução (Is 66,1) ou já reconstruído, faltando somente aspectos decorativos (Is 60,10; 58,12);
  • há uma preocupação com a observância do sábado (Is 58,13-14), com o modo correto de jejuar (Is 58,1-12) e de oferecer sacrifícios (Is 66,1-4), com o comportamento dos chefes (Is 56,10-11). Isto supõe uma época e um pensamento diferente daqueles do II Is.

5.2 Época de composição

Duas tendências marcam os estudos em relação à datação do III Is. Há quem o entenda como independente tanto do I como do II Is, tendo sido elaborado sob influência do II Is no pós-exílio imediato (entre 538 e 515), em Jerusalém. Outra vertente considera o III Is como proveniente do mesmo autor do II Is, de modo que ele seria um prolongamento dos c. 40-55 e teria sido redigido entre a primeira metade do século V e o início do século III. Uma variante dessa última visão considera que o III Is seria um pouco posterior ao II Is e se inspiraria, embora só parcialmente, neste. Os autores poderiam ser “discípulos” (em sentido amplo) do II Is.

Vários elementos falam em favor da época pós-exílica, sem que se possa precisar, contudo, o tempo exato. Em Is 63,7-64,11 reflete-se sobre a história de Israel e se passa, a seguir, a uma confissão dos pecados e ao pedido de que Deus tenha misericórdia do seu povo. Aqui o país ainda aparece destruído (Is 63,18; 64,9-10). Os capítulos 60 e 62 apresentam a Jerusalém gloriosa, mas esta é reservada ao futuro. A cidade atual aparece ainda destruída (Is 58,12; 60,10; 61,4), semelhante à descrição que ocorre no livro de Neemias (Ne 1,3; 2,13-15.17). Estes textos poderiam, portanto, ser anteriores a 445, época da primeira missão de Neemias.

Outros textos que se referem a situações que parecem ser anteriores à reforma de Esdras e Neemias são: Is 58,13-14 (observância do sábado); Is 58,1-12 (como jejuar); Is 66,1-4 (como oferecer sacrifícios); Is 56,10-11 (a conduta dos chefes do povo). Por fim, Is 57,1-13 fala contra a idolatria de modo semelhante ao dos profetas pré-exílicos; no entanto, não se pode excluir que em época pós-exílica tenha havido tais desvios.

5.3 O profeta

Não há nenhum dado que permita traçar a identidade do profeta que estaria por trás destes capítulos. Só em 61,1-2 fala-se dele, mas sem oferecer dados sobre sua pessoa; menciona-se sua missão, em estilo semelhante ao dos cantos do Servo (fala-se em 1ª pessoa e aparecem as características de sua missão; Is 49,1; 50,4). É alguém consagrado, destinado anunciar a salvação, descrita como um grande ano jubilar (Lv 25,10). Textos como Lv 26 e Dn 9,11.24 indicam que em época tardia desenvolveu-se a expectativa de um grande e definitivo jubileu, em que todos os pecados seriam redimidos e a paz e a prosperidade seriam definitivamente instauradas. Talvez esta mesma expectativa esteja por trás de Is 61,2, com a esperança de uma salvação ainda ligada a este mundo (mudanças materiais), mas também a de uma renovação da relação salvífica com Deus (Is 61,6a.8-9).

5.4 Organização do conteúdo

Há diferentes modos de compreender a organização do III Is.

Alguns autores distinguem, a partir de temas predominantes, duas grandes partes: até Is 63,6, aparecem as temáticas direito-justiça e salvação-justiça (Is 56,1; 58,2; 59,9.14; 60,1-63,6); a partir de Is 63,7, é frequente a metáfora e comparação pai-mãe (Is 63,16; 64,7; 66,13) para Deus, num contexto de prece de súplica (Is 63,16; 64,7), que se conclui com uma pergunta (Is 64,11), à qual Deus responde (Is 65,1-66,24).

O trecho final (Is 66,18-24) trata do tema dos povos estrangeiros, retomando a ideia da universalidade salvífica de 56,1-8, que abrira o conjunto. Além disso, a menção de “todos os povos” (Is 66,18) remete a Is 2,2, formando assim uma moldura para o livro de Isaías como um todo.

É possível também compreender a organização do III Is a partir de outras temáticas nele desenvolvidas:

  • 56-59: apresentam denúncias de infidelidade do povo ou de grupos; há esperanças de futuro. Os problemas são mais concretos;
  • 60-62: o tom é sobretudo de promessas e esperança. Aguarda-se a restauração do povo, iluminado pela glória do Senhor. Os deportados voltarão e Jerusalém terá um futuro maravilhoso;
  • 63-66: apresentam denúncias e esperanças, como os c. 56-59; porém, os pecados são aqui menos concretizados e a preocupação é sobretudo teológica.

5.4 Principais pontos de teologia

a) Deus é fiel

O ponto central da mensagem do III Is é a questão da demora no cumprimento das promessas divinas de restauração, que se entende a partir da difícil situação do povo no pós-exílio. Como as promessas do II Is não se realizaram plenamente nem pareciam realizáveis, mesmo após o retorno, e como se mostrava difícil a reconstrução do templo e de Jerusalém e o restabelecimento da normalidade da vida pública, surgem, nesta época, sentimentos de desilusão e desencorajamento (Is 58,3; 59,9.11; 63,15-19; 64,5-11). Estaria o Senhor sendo infiel a suas promessas (Is 59,1)? A resposta do profeta é o encorajamento motivado pela fidelidade de Deus na história: Deus fez uma aliança e permanecerá fiel à sua palavra (Is 59,21; 63,7-9; 66,5). É neste contexto que podem ser compreendidas as grandes expectativas de futuro referentes a Jerusalém (Is 60-62; 65,16-25; 66,10-14), esperanças que se baseiam na ação do Senhor (Is 60,1.19-22; 62,11-12). Deus é Pai (Is 63,8.16; 64,7) e, como já fez no passado, intervirá para libertar o seu povo (Is 63,9; 64,2-3).

b) A comunidade renovada

Deus criará uma nova comunidade, com centro em Jerusalém e no sacerdócio (Is 65,18-20; 66,6.10-14.20-21). A salvação é prometida aos pobres (Is 61,1), os que não confiam em si mesmos, mas sim unicamente em Deus (Is 57,14-19; 61,1-3; 65,13-16; 66,2.5).

c) Universalismo com centro em Jerusalém

A salvação é endereçada também aos estrangeiros, que terão Jerusalém como ponto de convergência. Tal perspectiva encontra-se em Is 56,3-7 e 66,18b-21, ou seja, na abertura e na conclusão do livro. Ser-lhes-á permitido participar do próprio culto (Is 56,6-7).

O universalismo do III Is inclui ainda categorias de pessoas. Ao povo eleito pertencerão também aqueles que antes tinham sido excluídos pela Lei (Dt 23,2-5), sob a condição de aceitarem e viverem a aliança (Is 56,3-5). Mesmo o sacerdócio não será mais exclusivamente ligado à tribo de Levi (Is 66,21). Não é claro se os estrangeiros que participarão do sacerdócio são os judeus da diáspora, que retornarão a Jerusalém (Is 66,20-21), ou se são propriamente não israelitas. Certo é que o aspecto essencial será o relacionamento pessoal com Deus, mesmo se são indicadas algumas prescrições exteriores (Is 56,2.6-7; 58,13-14). Ao mesmo tempo, há no livro textos que mencionam a submissão dos estrangeiros ao povo judeu (Is 60,10-16; 61,5), com reserva do sacerdócio a este último (Is 61,6).

d) O povo deve-se converter

A causa do não cumprimento das promessas do II Is reside nos pecados do povo: no âmbito moral-social (Is 58,3b-12; 59,3-15; 56,10-57,1) e religioso (Is 58,13-14; 57,3-13; 65,2-7; 66,3-4). Os próprios textos que falam da idolatria (Is 57,3-13; 65,2-5.11) mostram que a responsabilidade pelas dificuldades recai em Israel, não no Senhor. O livro desenvolve uma dura crítica aos pecados das autoridades e de certos grupos (Is 56,9-57,2), especialmente dos dirigentes (Is 56,10-11). Fala também contra a idolatria, que parece incluir sacrifícios humanos (Is 57,3-13; 65,1-7). Reprova igualmente os sacrifícios (Is 66,1-4) e as práticas litúrgicas (o jejum, o sábado e a justiça: Is 58) negligenciadas ou realizadas sem a correspondente ética.

Deus é transcendente (Is 57,15; 63,15), mas é pronto ao perdão. O profeta, por isso, convida o povo à conversão (Is 57,14) e à confissão das próprias culpas (Is 59,12-20; 63,7-64,11).

6  Formação do livro de Isaías em seu conjunto

Há numerosas repetições de termos, expressões, temáticas, que perpassam as três grandes partes do livro de Isaías e dão ao conjunto uma unidade, de modo que o livro enquanto tal se apresenta como um todo coerente. Sobressai aqui a designação de Deus como “o Santo (de Israel)” (35 vezes no livro como um todo), além da correspondência entre certas passagens (Is 5,1-7 apresenta muitas semelhanças com 27,2-6; 11,6a.7b.9 é retomado em 65,25).

A composição final do livro deve ter ocorrido antes do século III aC. De fato, o texto de Sir (Eclo) 48,22-25 (início do século II) refere-se ao livro tocando temas de suas três partes; além disso, a tradução grega da LXX (de meados do século II a meados do século I aC) conheceu o livro com todos os seus capítulos, na forma que temos hoje.

A mensagem do grande Isaías do século VIII deve ter marcado círculos de cultores das tradições proféticas, de modo que ao núcleo mais antigo do livro foram sendo paulatinamente acrescentados outros textos e remodeladas passagens mais antigas. Não é possível identificar com segurança os momentos redacionais, que devem ter ocorrido desde a época pré-exílica até o período persa, passando pelo período neobabilônico. Atualmente, aceita-se cada vez mais que a segunda e terceira partes do livro não foram redigidas independentemente da primeira parte (c. 1-39).

7 Lendo o texto hoje

O Deus santo exige direito e justiça em todas as realidades humanas: no agir individual, nas estruturas sociais, na prática política, no culto. Fundamental é a atitude de conversão, que implica fé e adequação do agir à ordem divina. Deus tem o domínio sobre a vida humana no plano pessoal, social, nacional e internacional, e, a seu tempo, realizará seu plano. Ele, o Deus único, é o senhor da história, capaz de reconduzir os deportados à sua terra, criando para eles nova esperança. E para formar uma comunidade humana renovada, sem excluir ninguém que se abra à sua ação. As expectativas do rei justo e sábio, instrumento da salvação divina, se cumpriram em Jesus Cristo, o Filho de Davi que inaugurou seu Reino entre nós (cf. Mc 11,10).

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

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O livro do profeta Habacuc

Sumário

1 O profeta e seu tempo – época da redação do livro

2 Teor do livro

3 Estrutura

4 Principais pontos de teologia

4.1 A questão do mal e a justiça de Deus

4.2 A fidelidade do justo

5 Lendo o texto hoje

Referências bibliográficas

1 O profeta e seu tempo – época de redação do livro

O livro identifica Habacuc como “profeta” (nābî’: Hab 1,1), título que, no período monárquico, era conferido frequentemente aos personagens proféticos que atuavam junto ao rei, como parte do corpo de funcionários da corte. Os traços cultuais do escrito posto sob sua autoridade – sobretudo a presença de lamentos e oráculos (Hab 1,2 – 2,5), a linguagem e as imagens utilizadas, aparentadas com o Saltério, bem como sua qualificação como “sentinela” (Hab 2,1; Ez 40,45-46) – fazem supor que se tratasse de um profeta que atuasse no culto.

A menção aos “caldeus” (Hab1,6), que vêm contra Judá, permite localizar o livro na época do império neobabilônico, que se estabeleceu na segunda metade do século VII aC e chegou ao seu maior esplendor no reinado de Nabucodonosor II (605-562 aC). Em sua época, os babilônios dominaram Judá, primeiramente deportando o rei Joiakin e uma parte da população mais bem colocada socialmente (cerca de 598 aC; 2Rs 24,1-17). Alguns anos mais tarde (cerca de 587/6), tomaram completamente o país, destruindo a cidade e o templo de Jerusalém, e levando cativos o rei Sedecias, os membros proeminentes da nação e muitos trabalhadores qualificados (2Rs 25,1-21). Num período tão turbulento, o profeta atua. Como o livro deixa transparecer a violência dos babilônios e seu domínio, mas não menciona a ruína de Jerusalém e do templo, pode ser localizado antes da segunda investida babilônica contra Judá, ou seja, em torno da primeira deportação (598 aC), alguns anos antes ou após.

O escrito apresenta tensões de estilo e vocabulário, sobretudo entre os capítulos iniciais e o capítulo final, o que faz supor um processo redacional que teria ao menos inserido o salmo do capítulo 3. No entanto, há grande consenso no sentido de que, mesmo tendo-se formado paulatinamente, chegou a uma forma final bem unificada, formando um conjunto com sentido unitário.

2  O teor do livro

A compreensão do livro depende da interpretação de suas palavras iniciais (Hab 1,2-4) e sua relação com o restante do escrito. Trata-se fundamentalmente de entender quem é o “ímpio” e o “justo” aí mencionados. A referência à Lei e ao direito faz pensar na sociedade judaica, de modo que o ímpio seria o rei Joaquim, pai de Joiakin, e seus apoiadores, que perverteriam a vontade de Deus com sua política (2Rs 23,36-37)[1]. Joaquim foi colocado no trono pelos egípcios, para o que destronaram e deportaram o rei Joacaz, que seria considerado no livro, então, “justo”.  No entanto, a partir de 1,6, com a menção da vinda dos caldeus e sua descrição (Hab 1,6-11), o ímpio citado em 1,4 seria mais bem identificado com os babilônios e o justo, com Israel. De fato, a crítica aos babilônios ocupa lugar proeminente no livro. O inconveniente de que dificilmente Judá poderia ser qualificado simplesmente como “justo” é relativizado na medida em que é comparado com Babilônia. Em relação a este povo, Judá poderia ser considerado como “mais justo” (Hab 1,13), já que os babilônios são idólatras (Hab 1,16).

Esse dado é confirmado por diversos indícios. A menção aos caldeus em Hab 1,6 dá início à descrição da sua maneira de agir, sem que haja nenhuma indicação de mudança do sujeito de referência até 1,17. De outra parte, a imagem do pescador e da rede que apanha peixes (Hab 1,14-17) pertence ao imaginário babilônico, que, no poema Enuma Elish, apresenta o deus Marduk aprisionando numa rede a deusa Tihamat. Além disso, o livro supõe um contexto internacional, pois se refere a outros povos (Hab 2,8.10.13.17), e sua apresentação como “proclamação” (hebraico mašša’: Hab 1,1), termo usado no título de oráculos contra as nações (Is 13,1; 15,1; 17,1; 19,1; Na 1,1; Zc 9,1), apoia a interpretação de que o livro seja sobretudo uma palavra contra um poder estrangeiro. Ou seja, o livro visa, em primeira instância, o poder babilônico.

Uma via média para a solução da identificação do ímpio e do justo em Hab 1,2-4 seria considerar somente esses versículos como atinentes a uma ameaça interna a Judá (Hab 1,2-4) e o livro, a partir de 1,6, à ameaça babilônica. Diante dos desmandos que têm lugar na sociedade judaica (Hab 1,2-4), Deus enviaria essa nação (Hab 1,5-6) para punição do povo eleito. O profeta refletiria sobre isso, dirigindo então perguntas ao Senhor.

3  Estrutura

O livro está organizado em duas partes, cada qual encabeçada por um título: oráculo e visão (Hab 1,1-2,20) e uma prece sálmica (Hab 3,1-19). As duas formam, pelo sentido, uma unidade.

A primeira parte apresenta lamentos do profeta e respostas de Deus (Hab 1,1-2,4), seguidos por cinco “ais” contra o opressor (Hab 2,5-20). A primeira palavra do profeta dirige-se a Deus; é um lamento pela situação existente em Judá (Hab 1,2-4). Deus lhe responde, indicando a vinda dos caldeus como punição para o povo pecador (Hab 1,5-6). Os babilônios são descritos como poderosos e violentos, capazes de tudo dominar, um povo que humilha outros (Hab 1,6-11). O profeta toma então a palavra, para compreender como é possível que Deus se sirva dessa nação idólatra para punir seu povo (Hab 1,12-17). Deus novamente lhe dirige a palavra, indicando o princípio a que o profeta se deve ater (Hab 2,1-4).

Os cinco “ais” que seguem são apresentados como uma “sátira” contra o agir soberbo de Babilônia (Hab 2,5-6). O primeiro aponta a ambição que leva os caldeus a investirem contra seus vizinhos (Hab 2,7-8) e é continuado pela crítica ao orgulho pelo esplendor de Babilônia, conseguido pelo depauperamento de outros povos (Hab 2,9-11). O motivo da cidade é desenvolvido no terceiro “ai” e culmina com a afirmação da glória do Senhor que se imporá a todas as nações (Hab 2,12-14). O quarto “ai” toca o tema do vinho e da embriaguez, que indica a humilhação imposta por Babilônia aos outros povos (Hab 2,15-17). O último “ai” representa o clímax ao tocar a idolatria dos babilônios (Hab 2,18-20). Os “ais” culminam na imagem da majestade de Deus que, de seu palácio, tudo domina (Hab 2,20).

Em esquema:

Título: 1,1

1ª subseção: lamentos e oráculos

1º lamento: o justo é oprimido pelo ímpio: 1,2-4

1ª resposta do Senhor: Deus enviou os caldeus: 1,5-11

2º lamento: a maldade dos caldeus: 1,12-17

2ª resposta do Senhor: o mal cairá; é preciso ser fiel: 2,1-4

2ª subseção: contra o opressor: cinco “ais”:

Introdução: 2,5-6

Primeiro “Ai”: 2,7-8: contra o domínio ambicioso de Babilônia

Segundo “Ai”: 2,9-11: a soberba e riqueza de Babilônia

Terceiro “Ai”: 2,12-14: a violência de Babilônia de nada lhe adiantará

Quarto “Ai”: 2,15-17: Babilônia, que humilhou, será humilhada

Quinto “Ai”: 2,18-20: a idolatria de Babilônia

Os “ais” desembocam na prece do profeta, que anuncia a vinda poderosa do Senhor para julgar (Hab 3,1-19) e formam a segunda parte do livro. Após um título, o salmista dirige-se a Deus, pedindo uma intervenção sua. Seguem-se duas descrições da vinda poderosa do Senhor, as quais se distinguem por se referirem a Deus indireta (em 3ª pessoa) ou diretamente (em 2ª pessoa). O motivo do lamento é retomado juntamente com uma súplica a Deus e, por fim, o salmo conclui com uma confissão de confiança no agir do Senhor e uma nota para sua execução.

Em síntese:

Título: 3,1

Introdução: pedido do salmista para que o Senhor demonstre seu poder: 3,2

Teofania: 3,3-15:

                 hino teofânico (que se refere a Deus em 3ª pessoa): 3,3-7

                 hino teofânico (que se refere a Deus em 2ª pessoa): 3,8-15

Prece e lamento: 3,16-17

Conclusão: confissão de confiança: 3,18-19a

Instrução ao mestre do coro: 3,19b

4 Principais pontos de teologia

4.1 A questão do mal e a justiça de Deus

A questão central abordada por Habacuc é a do mal no mundo. O livro se constitui uma reflexão sobre o agir de Deus na história humana, a permissão divina e sua providência: como pode Deus permitir que o mal prevaleça sobre o bem, o ímpio domine o justo? Em relação a Babilônia, a questão se põe da seguinte forma: os caldeus são suscitados por Deus (Hab 1,5-6) para punir os pecados de Judá; mas eles agem com grande violência e soberba (Hab 1,9-10). Como um povo tão pecador como os babilônios pode ser instrumento de Deus? Uma pergunta que o profeta dirige ao Senhor tematiza o problema com que ele se defronta: “Por que contemplas os que agem traiçoeiramente, silencias quando o ímpio devora um mais justo do que ele?” (Hab 1,13). Como pode Deus permitir isso, deixando que aconteça a injustiça sem intervir na história?

Ocorre com certa frequência no Antigo Testamento que nações estrangeiras sejam tomadas por Deus como instrumento de punição (Is 10,2-34; Jr 20,4-5). Elas, porém, são, por sua vez, punidas, e o motivo aduzido é que ultrapassaram sua missão e se aproveitaram do povo dominado (Is 10,7-8.12-19). Característico de Habacuc é ir além, questionando o porquê da própria permissão divina, uma vez que os povos estrangeiros também mereceriam ser punidos.

A resposta, o profeta a recebe em uma revelação: Babilônia será castigada. Ponto central, na resposta de Deus, é 2,4, ao mostrar que, embora possa tardar, sua ação acontecerá infalivelmente. Desse modo, o Senhor se mostrará como Ele realmente é: senhor de todos os impérios e de toda a história. Deus é senhor de todos os acontecimentos; ele tem a última palavra. Por isso, o povo pode esperar confiantemente nele, que não falhará. Os babilônios serão aniquilados e humilhados; o que fizeram, suportarão (Hab 2,6.8.10.16-17). Deus se manifestará poderosamente (Hab 3,3-6) e os aniquilará (Hab 3,16). Seu poder sobrepuja mesmo as nações que parecem invencíveis (Is 14,3-23). Explica-se, desse modo, tanto a proeminência de Babilônia no plano internacional (ela foi instrumento da punição divina) como sua queda (ela será julgada pelo Senhor).

4.2 A fidelidade do justo

Hab 2,4 enuncia um princípio que serve de orientação diante da questão colocada pelo livro e, ao mesmo tempo, coloca uma condição para a intervenção salvífica de Deus para com seu povo: “Eis que sucumbe quem não é reto, mas o justo, na sua fidelidade, viverá”. Duas atitudes são contrapostas: a soberba, a violência e a idolatria de “quem não é reto”, descritas em 1,6-11.15-17, e a fidelidade do justo. Esta consiste em manter-se firme na promessa de Deus, a qual, mesmo se tarda a se realizar, não falhará (Hab 2,3). A justiça divina ocorrerá a seu tempo; faz parte da fidelidade do justo não desanimar diante da demora de Deus, crer que ele agirá, e, assim, superar o momento de prova e incerteza: os babilônios, contra todas as evidências humanas, terão o seu fim.

O Salmo do final do livro (Hab 3) pede que Deus intervenha (Hab 3,2) e sintetiza a atitude do profeta em correspondência à exigência feita em Hab 2,4: “Estou tranquilo no dia de angústia que se levantará contra o povo que nos ataca” (Hab 3,16) – a certeza da intervenção divina, a confiança no cumprimento da palavra de Deus. Com isso, ele se mantém inabalável: “O Senhor, meu senhor, é minha força, torna meus pés como as gazelas e às alturas me conduz” (Hab 3,19).

O livro afirma, portanto, que acima de toda a prepotência está o poder de Deus. Os impérios mundiais não estão fora de seu controle. Deus é santo (Hab 1,12; 3,3) e se manifestará a seu tempo (Hab 3,4-15). Ele domina todos os povos e age com justiça. Por isso o profeta afirma: “Silêncio diante dele, toda terra!” (Hab 2,20).

5 Lendo o texto hoje

O livro de Habacuc oferece uma resposta fundamental à questão da aparente vantagem que o mal tem na história humana, sobretudo em relação à ordem e aos impérios mundiais. Deus é só aparentemente inerte. Ele não tolera a injustiça, tem os acontecimentos sob seu controle e agirá a seu tempo. A fé dá força para superar os obstáculos, na certeza de que Ele “derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes” (Lc 1,52). Assim, o Reino de Deus começa a se realizar e chegará à plenitude: “Ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11,15).

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original portuguès.

Referências bibliográficas

ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J.L. Profetas. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2002.

BAKER, D.W.; ALEXANDER, T.D.; STURZ, R.J. Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque e Sofonias: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2001.

BARRIOCANAL GOMEZ, J.L. Diccionario del profetismo bíblico. Burgos: Monte Carmelo, 2008.

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FITZMYER, J.A.; BROWN, R.E.; MURPHY, R.E. (orgs.). Novo comentário bíblico São Jerônimo. Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 2007.

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RÖMER, T.; MACCHI, J-D; NIHAN, C. (orgs). Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2010.

SCALABRINI, P.R. Livros proféticos. Petrópolis: Vozes, 2019.

SCHMID, K. História da Literatura do Antigo Testamento. Uma introdução. São Paulo: Loyola, 2013.

[1] Os dois reis se sucedem no trono de Jerusalém. Possuem nomes muito próximos, aqui diferenciados, a partir da grafia hebraica, pelas consoantes finais, respectivamente q-m e k-n.

O livro do profeta Ezequiel

Sumário

1 O profeta, sua época e local de atividade

2 O livro

3 Principais pontos de teologia

3.1 A imagem de Deus

3.2 A centralidade do culto

3.3 Teologia da história

3.4 O pecado dos povos estrangeiros

3.5 Responsabilidade pessoal

3.6 Novas perspectivas de futuro

4 Lendo o texto hoje

Referências Bibliográficas

1 O profeta, sua época e local de atividade

Segundo as palavras iniciais do livro (1,1-3), o ministério profético de Ezequiel teve lugar em Babilônia. Por não ser indicado um ponto de referência temporal, a colocação do início de sua atividade no 30º ano (v. 1) não permite datá-lo de forma absoluta. A citação do 5º ano do exílio de Joaquin no versículo seguinte, contudo, determina a data de sua vocação ao ministério profético no ano 593 aC. O rei Joaquin, de fato, foi levado cativo para Babilônia em 598, na época da primeira invasão de Judá pelo exército caldeu. Ezequiel, portanto, é testemunha da primeira investida de Nabucodonosor contra Jerusalém e, juntamente com parte da população, foi desterrado para Babilônia nessa época, sendo ali vocacionado para a missão profética.

Após esta introdução, o livro apresenta onze oráculos datados (8,1; 20,1; 24,1; 26,1; 29,1.17; 30,20; 31,1; 32,1; 33,21; 40,1). Sua disposição, nos diversos capítulos, não segue a ordem cronológica, e a data mais avançada ocorre em 29,17 (1º dia do 1º mês do 27º ano). Considerando a referência à deportação de Joaquin em 1,2, a data corresponderia ao ano 571. Delimita-se, com isso, a atividade profética registrada no livro: entre 593 e 571. Esse período de pouco mais de vinte anos contempla a maior catástrofe jamais acontecida a Judá: a tomada de Jerusalém pelos babilônios, a destruição da cidade e de amplas regiões do país, o incêndio do Templo – ocorridos em 587/6. Fica constituído, assim, o cenário para compreensão da mensagem do profeta. Antes da queda de Jerusalém, suas palavras visam precaver o povo da catástrofe: apontam os desmandos da sociedade, de modo a levar o povo e as classes dirigentes a rever seu comportamento e, desse modo, evitar o desastre. Após a captura do país, resta procurar manter a vida religiosa do povo, orientando-a; de outro lado, alimentar a esperança, anunciando a restauração do país e de suas instituições no futuro.

O texto de 1,3 dá a notícia de que Ezequiel era sacerdote. Esse dado concorda com o teor do livro, que tem na preocupação cultual um ponto central, e é corroborado também pelo amplo uso de termos de âmbito sacerdotal (puro, impuro, abominação, dentre outros). Tem-se testemunhada, dessa forma, a possibilidade de acumulação, em uma só pessoa, de funções religiosas diversas, no caso, a sacerdotal e a profética.

A profecia de Ezequiel é caracterizada por visões extraordinárias e ações simbólicas inusitadas, que chamam a atenção. Já a visão inaugural (1,4-28) apresenta elementos dificilmente conciliáveis sob o ponto de vista racional (1,9-12.15-17). Tem-se a impressão de uma visão como num sonho, no qual os dados não são completamente reais e se misturam sem uma lógica absoluta; um êxtase, em que a razão não pode controlar plenamente o que ocorre (2Cor 12,2-3). Também suas ações simbólicas são de forte impacto (3,22-27; 12,1-6; 24,16-19). A imagem do profeta que transparece é a de alguém profundamente tocado pelo divino, com experiências que ultrapassam a normalidade das coisas; alguém que vivencia de modo radical a mensagem que ele deve transmitir.

2 O livro

A introdução ao livro (1,1-3) já aponta para o fato que as palavras de Ezequiel foram submetidas a um trabalho redacional. Com efeito, no v. 1 fala o próprio profeta, em primeira pessoa, e indica-se uma data obscura (o 30º ano). Nos vv. 2-3 o redator fala sobre Ezequiel em terceira pessoa, confirmando certos dados, mas retirando a ambiguidade da datação do v. 1 e informando a situação do profeta como sacerdote. Em relação ao livro como um todo, no entanto, embora seja possível identificar acréscimos aos textos, atualmente se aceita que ele pode substancialmente ser referido ao Ezequiel do século VI, sem ser necessário recorrer a uma ficção.

O material está disposto em três partes claramente distintas: c. 1–24; c. 25–32; c. 33–40. Após os capítulos 1 a 3, que servem de introdução a todo o escrito, os capítulos 4 a 24 apresentam oráculos de juízo e ações simbólicas contra Judá e Jerusalém. Seguem-se oráculos contra nações estrangeiras (c. 25–32). O livro é finalizado por oráculos de salvação (c. 33–48).

A primeira seção da primeira grande parte (c. 1–3) relata a vocação do profeta em duas narrativas: a visão da glória de Deus (1,4-28, que continua em 3,12-15) e a visão do livro (2,1–3,11). Menciona-se ainda a função do profeta como sentinela de Israel (3,16-21), a suspensão momentânea de sua palavra e seu posterior retorno (3,22-27).

Os capítulos 4 e 5 expõem três ações simbólicas, que se referem ao início do assédio dos babilônios a Jerusalém, à duração do cerco e à sua conclusão. Seguem-se oráculos de juízo (c. 6 e 7), que se resumem no anúncio do “fim” de Judá (7,2).

Os capítulos 8 a 11 apresentam visões e anúncios: a visão dos pecados que se cometem no templo (c. 8), o anúncio da destruição do lugar sagrado (c. 9), a visão sobre a realização deste anúncio (c. 10); seguem-se uma nova visão e novo anúncio (c. 11), que culminam com a visão da glória do Senhor abandonando a cidade de Jerusalém (11,22-25). O capítulo 12 reporta uma ação simbólica que anuncia a ida do povo e seus dirigentes para o exílio.

Os capítulos 13 a 23 oferecem diversos oráculos antes da execução do juízo. Nessa seção contam-se três capítulos que desenvolvem, sob o ponto de vista teológico, a história de Israel (c. 16; 20; 23) e dois contra os guias do povo (c. 13: profetas; c. 17: os reis). São apresentadas três descrições do juízo (c. 15; 17; 19) e é anunciada a destruição de Jerusalém (c. 21–22), contra o que não há recurso (c. 14; 18).

A primeira parte do livro é concluída com novo anúncio da destruição de Jerusalém (c. 24).

A segunda parte do escrito é constituída por numerosos oráculos contra as nações (c. 25–32). São indiciadas: Amon, Moab, Edom, Filisteia, Tiro, Sidônia e Egito. Relevo especial é dado a Tiro (c. 26–28) e ao Egito (c. 29–32). A cidade de Tiro, rica pelo comércio marítimo, será destruída e seu rei será aniquilado. A cidade, de fato, foi tomada pelos babilônios em 587/6, mesmo ano da conquista de Jerusalém. O Egito cairá, será totalmente devastado; também o faraó, sob a imagem de leão e de crocodilo, será capturado. Com efeito, após a vitória sobre Tiro, Nabucodonosor parece ter tentado dominar o Egito.

A terceira grande parte começa indicando a missão do profeta após a queda de Jerusalém (c. 33). Os capítulos que seguem revertem em salvação alguns textos do início do livro. Respondendo aos capítulos 13 e 17, que reprovavam profetas e reis, o c. 34 afirma que Deus mesmo será o guia de seu povo. Em contraposição ao juízo para os montes de Israel (c. 6), anuncia-se o juízo contra os montes de Edom (c. 35). Em vez da história de pecado de Israel (c. 16), Deus promete uma história nova (c. 36). À morte do povo, descrita na primeira parte, sucederá sua ressurreição: o retorno à terra e a retomada da vida em paz (c. 37). A descrição do juízo definitivo de Deus sobre os inimigos de Israel – com a correspondente libertação do povo eleito – fecha esses oráculos salvíficos (c. 38–39).

O livro se conclui com uma longa descrição do futuro salvífico: o novo tempo e o novo Israel (c. 40–48). Nessa última seção são desenhados, em termos idealizados, o templo de Jerusalém, a disposição da cidade e a ocupação do território pelas tribos israelitas. A glória do Senhor, que se retirara do templo e da cidade (10,18-22; 11,22-25), retorna então (43,1-9) como fonte de vida para Israel (47,1-12).

3 Principais pontos de teologia

3.1 A imagem de Deus

O aspecto mais marcante do livro de Ezequiel é a imagem de Deus que ele apresenta. De modo peculiar, é colocada em primeiro plano a glória do Senhor. Esse ponto tem suas raízes na experiência fundante, expressa na visão inaugural (1,4-28), em que o profeta experimenta o contato com o divino sob a forma de algo muito além da realidade humana, só conhecido em parte (“o que parecia ser…”: 1,27), e que é identificado com o Senhor em sua majestade, em sua glória: “era o aspecto, a semelhança da glória do Senhor” (1,28). Diante dela, o profeta se prostra: “Ao vê-la, caí com o rosto em terra” (1,28).  Na visão da “glória”, o profeta experimenta a divindade mesma do Senhor. E tem acesso a um Deus a um tempo transcendente e próximo, que se comunica pessoalmente com ele, dirigindo-lhe sua palavra: “e ouvi a voz de alguém que falava comigo” (1,28).

A palavra do Senhor, o profeta a assume como sua, fazendo com que ela penetre em si e constitua sua vida: “Come o que tens diante de ti, come este livro e vai falar à casa de Israel” (3,1). Essa como que simbiose entre o profeta e a palavra que Deus lhe dirige, palavra ligada à transcendência divina, explica, em parte, as ações simbólicas incomuns que ele deve cumprir. Ezequiel não só transmite uma mensagem, mas a vivencia, em sua própria existência, como algo que ultrapassa a experiência humana.

A glória de Deus está presente não só na esfera celeste, mas também no mundo: habita o templo e a cidade de Jerusalém. Marca a santidade desses locais e lhe é sinal de proteção. Por ser incompatível com o pecado, os desmandos que se cometem no lugar sagrado (c. 8) acarretam o afastamento de Deus, e ele se retira do edifício do templo (10,18-22). Pelos pecados dos habitantes, deixa também da cidade (11,22-23). Explica-se dessa forma, teologicamente, a possibilidade de o templo e a cidade serem invadidos e tomados pelos babilônios: a glória de Deus, não os habitando mais, os deixa desprotegidos e, portanto, sujeitos à destruição. A garantia de defesa reside somente na presença de Deus e não nas manobras políticas das classes dirigentes.

Por outro lado, Ezequiel enfatiza que a glória do Senhor se manifestou já no passado, em todas as fases da história de Israel; agora, se manifestará no juízo que ocorrerá em breve e na salvação que Deus promete para o futuro. Esse aspecto é posto em relevo pela chamada “fórmula do reconhecimento”, muito utilizada no livro: “Então conhecereis/conhecerão que Eu sou o Senhor” (11,10; 12,16; 20,38.40.44; 29,6; 36,11; 37,6). Pelos atos divinos na história, Deus demonstrou sua força e seu domínio sobre Israel e os povos e ainda os demonstrará no futuro. A partir desta ação, o povo de Israel deverá chegar a reconhecer Deus como Deus: o “Eu sou o Senhor” retoma o nome próprio de Deus, revelado a Moisés (Ex 3,14: “Eu sou (quem) eu sou”).

3.2 A centralidade do culto

À centralidade da glória de Deus corresponde a centralidade do culto. Pois Deus manifesta sua glória particularmente no templo e na liturgia. Daí a importância dada, no livro, aos aspectos cultuais. Como o pecado acarreta o afastamento da glória de Deus e, consequentemente, o exílio babilônico, assim também os abusos no culto trarão consequências para a história.

A perspectiva cultual se reflete ainda na forma de se tematizar o pecado, concebido sobretudo como idolatria, prostituição e abominação (6,3-14; c. 16). O c. 8 desenvolve detalhadamente os pecados que têm lugar no recinto do templo: a presença de representações de animais e ídolos (8,9-10.13), o culto ao deus babilônio Tamuz (8,14-15), a veneração voltada para o sol (8,16-17). Esses atos são grandes “abominações”, termo muito utilizado em Ezequiel e que indica o que é absolutamente incompatível com o Senhor (Dt 22,5; 25,16), em todos os âmbitos, também no âmbito cultual (Ez 22,11; Dt 12,31; 23,19; 7,25-26).

Os desmandos de ordem social são também relacionados, no livro, à glória do Senhor e ao culto. Toda situação de injustiça, os crimes de diversos tipos (22,1-12), a transgressão dos mandamentos, são “abominação” (22,2 [3]), contrariam a glória de Deus e, com isso, aquilo que se celebra no culto.

3.3 Teologia da história

Em três longos capítulos, o livro descreve a história de Israel, em suas diversas etapas, de seus inícios até o tempo do profeta, abrindo-a a perspectivas futuras. O c. 23 traça a história dos dois reinos, Judá (Reino do Sul) e Israel (Reino do Norte), e demonstra que a culpa e os pecados de Judá ultrapassam os do Reino do Norte. Com isso, prepara-se a destruição do reino de Judá: como o Reino do Norte foi dominado e eliminado (pelos assírios), paira a mesma ameaça sobre o Reino do Sul (com os babilônios). O c. 16 retoma o simbolismo matrimonial desenvolvido pelo profeta Oseias (Os 1–3) e apresenta a infidelidade de Israel a seu Deus como a traição do amor e da fidelidade. No c. 20, as fases da história são minuciosamente individualizadas: Israel no Egito (20,5-9), no deserto (20,10-24), na terra da promessa (20,25-31). Em cada uma, o povo se mostra pecador e a infidelidade cresce. Desse modo, a história avança; porém, no sentido de um grande declínio, chegando a seu ponto mais baixo na época do profeta. Tal desenvolvimento acarretará a destruição do povo. Pois, em todos os momentos da história, em contraposição ao cuidado amoroso de Deus, Israel mostrou-se não só pecador, mas ainda totalmente avesso ao agir e à palavra do Senhor. Foi não somente infiel, mas “rebelde”, fixado em suas próprias atitudes, recusando-se a reconhecer sua culpa (2,2-3.6.8; 3,7; 20,8.21).

Diante desse quadro, não se vislumbra nenhuma perspectiva de salvação que surgisse da conversão do povo; a única possibilidade de salvação reside em Deus, que realiza o juízo como um novo êxodo: a libertação do desterro em Babilônia e o retorno à própria terra, passando pelo deserto em que será confrontado com o Senhor (20,34-36). Dessa forma, o povo chegará à fidelidade (20,37-38). Enfim Deus reinará sobre Israel (20,33). Deus julgará e salvará (16,60-63), restabelecendo a aliança e realizando, assim, a meta do êxodo do Egito, isto é, levar o povo à sua terra, para que viva em comunhão com Deus, em prosperidade e paz (16,39-44).

A única esperança para o povo eleito reside, portanto, em Deus; especificamente, na fidelidade de Deus a seu plano original de salvação, a seu desígnio de conduzir o povo para um grande futuro: “Então sabereis que Eu sou YHWH, quando Eu agir em consideração ao meu Nome e não de acordo com os vossos caminhos maus e as vossas ações perversas” (Ez 20,44).

3.4 O pecado dos povos estrangeiros

Característico de Ezequiel é tematizar o pecado das nações estrangeiras como “orgulho”, como tentativa de se igualar a Deus (28,1-2). É esse o motivo por que Deus rejeita as nações (28,6-10; 28,17; 31,2-9), de modo que serão dominadas por Babilônia (31,10-11; 32,11).

O juízo para as nações estrangeiras é sumarizado no c. 39, através da destruição de um personagem lendário, Gog (38,18-22; 39,1-5), paradigma daqueles que atentam contra o povo de Deus (38,17). Serão aniquilados Gog e seus exércitos, suas armas, sua terra e a de seus aliados (39,6.9-10). Com isso, se manifestará o poder de Deus para Israel e para as nações (39,16; 39,7.21-22), e Israel terá nova vida, em paz, na sua terra (39,25-28)

3.5 Responsabilidade pessoal

Assim como Jeremias, Ezequiel invalida a concepção segundo a qual os pecados dos antepassados podem ser punidos nas gerações subsequentes (Ex 34,7; Jr 32,18; Ez 18,19-20):

“Que vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’?” (Ez 18,2; Jr 31,29).

Tal mentalidade, baseada na ideia de solidariedade entre os membros do clã, mesmo através das gerações, levava a atribuir os males presentes a faltas dos antepassados e, com isso, inviabilizava a tomada de consciência da própria culpa. Ezequiel chama à responsabilidade individual: cada um deve responder por seus atos. A sorte dos homens não depende das escolhas de seus ancestrais, mas de suas opções no presente (14,12-23; 18,1-32). Dessa maneira, fica evidenciada a importância da conversão como decisão pessoal (3,16-21; 33,10-20). O profeta tem a missão de exortar, admoestar (3,16-21), mas a cada um cabe responder por seus próprios atos (33,1-9).

3.6 Novas perspectivas de futuro

Os c. 40–48 descrevem a grande restauração de Israel. No centro desta restauração encontra-se o Templo, que é reconstruído e para o qual retorna a glória do Senhor (43,3-7). A descrição do templo escatológico é idealizada e simbólica (c. 40–42), de modo a mostrar a perfeição definitiva: sua estrutura, os átrios, o “santo” e o “santo dos santos”, as dependências para os sacerdotes, o altar (c. 40–43). O cerimonial é minuciosamente detalhado (c. 44–46). Habitado novamente por Deus, do santuário sairá a fonte que se transformará em grande rio e trará vida plena para o povo (47,1-12).

O país será, como no tempo de Josué, novamente ocupado. O território de cada tribo será cuidadosamente delimitado (47,13–48,14; 48,23-29).

Por fim, também a cidade santa terá seu território detalhadamente dividido entre sacerdotes, levitas e o príncipe, de modo que não haverá mais usurpação de terras pelos governantes (48,15-22). Ela será aberta a todas as tribos (48,30-34), sendo, assim, a síntese de todo o povo de Israel. No último versículo do livro, anuncia-se o nome novo que ela receberá (48,35): “o Senhor está ali” (“YHWH sham”) – um jogo de palavras com seu nome: “Yerushalaim” (Jerusalém). Expressa-se, dessa maneira, sua total renovação.

Tudo isso é precedido pelo anúncio da ação de Deus, que transformará o povo a partir de dentro, purificando-o (36,25-28) de toda a idolatria, transformando seu interior e renovando com ele a aliança: “Sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus” (36,28). Como numa nova criação, aos exilados é dada a grande esperança de receber, pela força do Senhor, nova vida na sua terra (37,1-14).

4 Lendo o texto hoje

O livro de Ezequiel convida a reconhecer a transcendência de Deus, cuja glória se manifesta na criação e na história. A experiência a um tempo da transcendência e da proximidade de Deus confere olhos mais sensíveis a tudo o que se opõe à ordem divina na vida, particularmente no culto que se deve prestar a Deus mas também em todas as situações pessoais, comunitárias e sociais. Romper o coração “rebelde” é exigência fundamental para que a ação de Deus possa encontrar receptividade na vida humana. Deus oferece purificação, regeneração, o renascer da água e do Espírito (cf. Jo 3,5; Ez 36,25-27), e com isso abre a história, marcada pela negação do plano divino, a um futuro em que Deus realizará plenamente suas promessas.

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

 Referências bibliográficas

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TAYLOR, J. B. Ezequiel: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1984.

O livro do profeta Amós

Sumário

1 O profeta e sua época

2 Época da redação do livro

3 Origem do profeta e sua situação em Israel

3.1 O enviado de Judá a Israel

3.2 Amós profeta?

4 Estrutura do livro

5 Principais pontos de teologia

5.1 Crítica ao profetismo de seu tempo e valorização do profeta como portador da Palavra

5.2 Crítica à instituição monárquica de seu tempo, ao sacerdócio e ao culto

5.3 Crítica às injustiças sociais

5.4 A possibilidade do perdão divino

5.5 A imagem de Deus

6 Lendo o texto hoje

Referências bibliográficas

1 O profeta e sua época

O título do livro (Am 1,1) localiza a atividade de Amós sob o reinado de Ozias, rei de Judá (785/4-747/6), e Jeroboão II, rei de Israel (787/3-747/3 aC). Ponto seguro para a datação é dado pela menção do terremoto em Am 1,1. Escavações arqueológicas em Hasor e em Samaria levam a datar esta catástrofe na primeira metade do século VIII, em torno dos anos 760.

Os destinatários do livro são chamados de “filhos de Israel” (Am 3,1.12; 4,5; 9,7), “casa de Israel” (Am 5,1.3.4.25; 6,1.14; 7,10; 9,9), “virgem Israel” (Am 5,2), como indicação dos habitantes do reino do Norte. Igual sentido têm as expressões “casa de Jacó” (Am 3,13; 9,8), “de José” (Am 5,6) e “de Isaac” (Am 7,16).

Trata-se de uma época de prosperidade para o Reino do Norte. Politicamente, já antes de Jeroboão II, tinham sido reconquistadas as cidades da Transjordânia tomadas por Damasco (2Rs 13,25), e sob Jeroboão II as fronteiras foram alargadas desde Hamat até o Mar Morto (2Rs 14,25). Sob o ponto de vista econômico, o comércio bem desenvolvido (Am 8,4-8) traz muita riqueza para o país, o que transparece na construção do palácio (Am 3,10.12; 5,11; 6,4) e em cerimônias suntuosas (Am 5,4-5.21). As desigualdades sociais, no entanto, aumentam (Am 2,6ss; 4,1; 5,12; 6,4-6). O bem-estar, atribuído à bênção de YHWH, leva a esperar que Ele se manifeste gloriosamente para Israel, o que é desmentido pelo profeta (Am 5,18-20).

 2 Época da redação do livro

 Há muita divergência sobre a formação do livro de Amós. Embora substancialmente reflita a situação do Reino do Norte em meados do século VIII, certas passagens deixam entrever releituras em tempos posteriores. Para além do título, certamente redacional, é discutido se os oráculos contra Tiro, Edom e Judá (Am 1,9-10.11-12; 2,4-5) podem ser do tempo do profeta. Da mesma época desses oráculos podem ser as menções das tradições do êxodo, do caminho no deserto e da posse da terra (Am 2,9-10; 3,1-2; 5,24). Mas a referência a Sião (Am 1,2) e os fragmentos de hinos em Am 4,12-13; 5,8-9; 9,5-6, onde aparece título “YHWH Seba’ot”, que remete à teologia de Jerusalém, deixam entrever uma atualização do escrito para o Reino do Sul.

Além disso, algumas passagens manifestam uma influência deuteronomista (Am 2,10-12, com a proximidade a Jr 35,13-19; Am 3,7, com a expressão “seus/meus servos, os profetas”, 2Rs 9,7; 17,13.23; 21,10; 24,2). Enfim, a menção da “tenda caída de Davi” no oráculo que conclui o livro (Am 9,11-15), com toda a probabilidade supõe o exílio babilônico.

3 Origem do profeta e sua situação em Israel

3.1 O enviado de Judá a Israel

O nome “Amós” é um hápax legómenon do AT e pode ser abreviação do nome Amasiah (2Cr 17,16), “YHWH carrega”. O profeta é designado como noqed (Am 1,1), que tem sentido obscuro (2Rs 3,4): proprietário do gado ou empregado? As opiniões divergem, embora seja verossímil a primeira possibilidade, uma vez que para “pastor” (empregado) é usado o termo ro‘eh. Amós se apresenta como “vaqueiro” e “cultivador de sicômoros” (Am 7,14).

Sua origem é localizada em Técua. Geralmente identifica-se esta localidade com uma aldeia a 16 km ao sul de Jerusalém, a 825m de altitude. Trata-se de um local que serviu de ponto de apoio militar no tempo de Roboão (2Cr 11,6), de modo que devia ter alguma importância, sendo inclusive citada diversas vezes na Escritura (2Sm 14,2.4.9; 23,26; 1Cr 2,24; 4,5; 11,28; 27,9; 2Cr 11,6; 20,20; Ne 3,5.27; Jr 6,1). O fato, porém, de esta região, localizada às margens do deserto, não combinar com as atividades pastoris e agrícolas de Amós, além da nota um tanto inusitada que um profeta originário do Sul fosse enviado ao Reino do Norte para lá anunciar o fim de Israel, levam alguns autores a pensar em uma aldeia Técua no território do Reino do Norte, conjectura já presente na tradição judaica. Isto seria confirmado pelo fato de que os oráculos autênticos do livro se distanciam muito da visão religiosa judaica tal como expressa por Isaías e Miqueias. No entanto, uma vez que a aldeia Técua do Reino do Sul se localiza na fronteira entre a região cultivável e a estepe, não é impossível que ali se tenha desenvolvido uma atividade pastoril e agrícola, sendo, por isso, a hipótese preferida.

A figura de Amós apresenta diversas semelhanças com o “homem de Deus” citado em 1Rs 13. Todavia, como as diferenças são consideráveis, não se pode identificar os dois.

3.2 Amós profeta?

Uma discussão especial se dá em torno do estatuto profético de Amós: em Am 1,1 a ele é atribuído o verbo ḥazah (“ver”), donde se conclui ser ele um ḥozeh (“vidente”); em Am 7,14 ele declara não ser nabî’ (“profeta”). O termo ḥozeh indica aquele que tem visões proféticas, sendo muitas vezes citado ao lado de nabî’ (2Sm 24,11; 2Rs17,13; Is 29,10) e ro’eh (também com significado de “vidente”: Is 30,10). Empregado em Am 7,12, poderia ter um valor positivo, indicando Amós como um carismático.

Chama a atenção, porém, que Amós, que não rejeita ser chamado de ḥozeh, não aceite o título de “profeta”, embora ele tenha sido enviado a “profetizar” (Am 7,14-15).

Segundo o relato de Am 7,10-17, o sacerdote Amasias percebe a gravidade das ameaças verbalizadas pelo profeta em seus oráculos. Após tentar expulsá-lo para o Reino do Sul, o sacerdote argumenta que o santuário de Betel “é a casa do rei, a própria casa da monarquia”. Amasias argumenta com a fé de seu povo: Betel é lugar da promessa e da doação da terra (Gn 15,18; 1Rs 12,28-29) e, simultaneamente, santuário da monarquia. Poder-se-ia, então, esperar para este lugar a proteção absoluta de Deus. Anunciando que Israel seria mandado para o cativeiro, Amós contrariava a solidez da fé do povo de Israel, indo, portanto, além do que qualquer profeta ou vidente poderia dizer.

O centro da discussão está no v.14. O texto hebraico traz literalmente: “não profeta, eu; não filho de profeta, eu”. Como compreender o verbo “ser”, que está subentendido? No presente (“não sou profeta nem filho de profeta”), como entende a Setenta e a Peshitta, ou no passado (“eu não era profeta nem filho de profeta” – mas agora sou).

Se lida no passado (“eu não era profeta…”), diante da ordem de Amasias de que deixe o Reino do Norte, Amós responderia que ele está lá não por vontade pessoal. Isso porque o problema de Amasias é o fato de ele, oriundo de Judá, estar pregando no Reino do Norte e contra a casa real. Diante disso, Amós diria não ser desde sempre um profeta, mas estar ali por ter sido enviado por YHWH. O v. 15, de fato, mostraria as duas finalidades do chamamento de Amós, quando refere a ordem de Deus: “Vai, profetiza ao meu povo Israel”: ele é enviado a profetizar (verbo nb’ nifal); em (’el: indica a direção) Israel. Israel é aqui designado como “meu povo”, isto é, de YHWH. Por Israel ser povo de propriedade de YHWH, Ele pode enviar mesmo do sul um mensageiro seu. Amós tem assim o direito (dever) de profetizar no Reino do Norte.

A leitura no presente (“não sou profeta…”), é, contudo, gramaticalmente mais evidente, pois todo o contexto está nesta dimensão temporal. De fato, as palavras de Amós no v. 14 são resposta a Amasias, que trata da situação presente. Além disso, no livro de Amós o título nabî’ parece ser usado de modo distinto da atividade de profetizar (verbo nb’ nifal:  Am 3,8; seriam de redação posterior os textos de Am 2,11; 3,7). Por isso, tanto Amasias como Amós usam o verbo, mas não o substantivo. Ou seja: Amós não pertence ao âmbito dos nebî’îm, que indicariam, no contexto, os profetas por profissão, mas exerce o ministério profético.

Diante do título “vidente” (v. 12), dado a ele por Amazias, Amós responderia dizendo não pertencer a uma instituição profética (nabî’), mas ser um profeta individual, carismático. Haveria aqui, portanto, a distinção entre o profeta institucional e o profeta por vocação direta de Deus. Com a afirmação do v. 14, Amós estaria declarando a independência de seu ministério profético, ancorado somente no chamado do Senhor. Desse modo, não sendo profeta institucionalizado, Amasias não teria autoridade sobre ele, não podendo, portanto, expulsá-lo do serviço no santuário.

Em síntese: a intervenção de Amasias (v. 12-13) baseia-se na legitimidade de Amós profetizar em Betel, uma vez que o profeta não está ligado àquele santuário. Amós responde a esta objeção (v. 14-15), dizendo que sua autoridade para pregar provém não de uma função institucional que possuísse, nem por sua própria iniciativa, mas unicamente da vocação recebida de YHWH. Seu ministério, por conseguinte, é transitório: ele não é nabî’, um profeta por profissão, institucionalizado. Assim, certamente ele não profetizará em Judá, como lhe diz o sacerdote, pois foi enviado por Deus para Israel.

 4 Estrutura do livro

 Após o título (Am 1,1) e uma palavra de abertura, que dá o tom de todo o escrito (Am 1,2), o livro apresenta-se organizado em quatro seções.

A primeira parte é formada por sete oráculos breves contra nações estrangeiras, incluindo Judá (Am 1,3–2,5), seguidos por um longo oráculo contra Israel (Am 2,6-16). O esquema 7 + 1 coloca o acento no último acusado, o Reino do Norte. Diferentemente do que ocorre em outros textos proféticos, as palavras contra as nações não têm aqui somente valor de punição para elas, mas sobretudo visam apontar Israel, que ocupa o lugar de clímax, como o povo mais pecador, que ultrapassa, nesse ponto, mesmo os estrangeiros. O livro inicia-se, assim, com um movimento que vai do exterior (nações) para o interior (Israel), para nesse, então, se concentrar.

A segunda parte (Am 3,1–6,14) inicia-se com um chamado a “ouvir” (Am 3,1) e desenvolve, em duas seções, acusações e ameaças contra Israel. Na primeira seção (Am 3,1–4,13), depois do anúncio sintético do que Deus realizará (Am 3,1-8), seguem-se oráculos contra Samaria: os ricos, que oprimem os pobres (Am 3,9–4,3); o culto em Betel e Guilgal (Am 4,4-5). A seção se fecha com uma retrospectiva que demonstra a dureza de coração do povo diante das seguidas iniciativas de Deus (Am 4,6-12). Um fragmento hínico fecha a retrospectiva e toda a seção, apresentando o poder do Senhor (Am 4,13).

A segunda seção tem início com um novo chamado de atenção, que anuncia um lamento fúnebre, prognóstico do que ocorrerá a Israel (Am 5,1). As acusações dirigem-se aos magistrados, que julgam a partir de subornos (Am 5,1-17). Diante da falsa confiança na prática cultual (Am 5,4-7), um novo fragmento hínico apresenta o poder de Deus (Am 5,8-9). Vem assim preparado o anúncio do “dia do Senhor” (Am 5,18-20), que, como punição inevitável, cairá sobre o Reino do Norte. Depois da menção de novos delitos cultuais (Am 5,21-27), a seção se fecha com duros oráculos contra as classes dominantes (Am 6,1-14).

De 7,1 a 9,9, a terceira parte do livro desenvolve cinco visões, entremeadas por uma narração e por oráculos de juízo. As três primeiras visões (Am 7,1-9) anunciam a punição do povo, suspensa momentaneamente pela intercessão do profeta nas duas primeiras (Am 7,1-3.4-6), mas apresentada como irrevogável na terceira (Am 7,7-9). Esta última é desenvolvida na narração do conflito entre o sacerdote de Betel e o profeta (Am 7,10-17), que, por sua vez, prepara a quarta visão, com seu anúncio sobre o “fim” de Israel (Am 8,1-3). Tal sentença é fundamentada pelos oráculos que seguem (Am 8,4-14).

A seção se fecha com a última visão (Am 9,1-4), que anuncia a destruição do santuário (provavelmente de Betel) e culmina em novo fragmento hínico de demonstração do poder do Senhor. Um último oráculo de juízo conclui a seção (Am 9,7-10).

A quarta parte do livro é composta por um oráculo de salvação de grandes proporções (Am 9,11-15), que anuncia a restauração supereminente do povo em sua terra.

5 Principais pontos de teologia

5.1 Crítica ao profetismo de seu tempo e valorização do profeta como portador da Palavra

Com a rejeição do título de “profeta” por Amós, no relato de Am 7,10-17, marca-se a crítica do livro à instituição profética enquanto submissa aos poderes do rei e ao sacerdócio. Em detrimento do profetismo profissional, valoriza-se o chamado e a missão dada por Deus.

Paralelamente a essa crítica, é posta em relevo a relação entre a palavra de Deus e o profeta e, através deste, entre a palavra de Deus e a história. O desenvolvimento favorável ou não desta depende da aceitação da palavra. A palavra profética tem sua origem em Deus (Am 3,7-8) e age no poder de Deus (Am 1,2). É uma palavra capaz de punir, aniquilar (Am 3,8), mas também de restaurar (Am 9,11-15). A falta de acolhimento da Palavra (Am 2,11-12) e a recusa formal de recebê-la (Am 7,10) trarão como consequência não somente as punições anunciadas, mas ainda o silêncio da própria Palavra (Am 8,11-12).

5.2 Crítica à instituição monárquica de seu tempo, ao sacerdócio e ao culto

Possivelmente pelo grande poder de Jeroboão II, em cujo tempo Israel chegou a notável progresso material, não há no livro nenhuma palavra do profeta diretamente contra o reinado e o sacerdócio. A monarquia, no entanto, encontra-se envolvida nas acusações feitas às classes dirigentes, responsáveis pela situação de penúria de grande parte da população (Am 5,5.27; 6,7); e o sacerdócio, nos oráculos de reprovação das práticas cultuais (Am 4,4-5; 5,5-6).

Com exceção de Am 5,26, que se refere à prática de cultos estrangeiros, a crítica do profeta ao culto concentra-se na busca que o povo faz dos santuários javistas. Dois são os motivos de reprovação: a falta de “procurar o Senhor” (Am 5,5-6) e a falta da prática do direito e da justiça (Am 5,21-25). Em lugar de ir aos santuários, essas seriam as condições essenciais para o bem-estar do povo. É nesse sentido que a última visão (Am 9,1-4) afirma destruição do santuário, provavelmente o santuário oficial do Reino, Betel (Am 7,13).

A relação entre a crítica à monarquia e a crítica ao culto mostra como os aspectos humanos da vida estão relacionados ao aspecto propriamente religioso.

5.3 Crítica às injustiças sociais

A ênfase da mensagem do profeta encontra-se, em parte substancial, na acusação dos responsáveis pela grave crise social pela qual passa a população mais desprotegida. As injustiças dos poderosos (Am 4,2; 6,1) levam os mais pobres a extrema penúria (Am 2,6-8). Tal situação é ainda mais ressaltada frente à ostentação do luxo (Am 6,4-6). Acusados são também os magistrados, que, nos tribunais às portas das cidades, vendem suas sentenças por subornos (Am 5,7.10-12).

Tal bem-estar, amparado pela antiga teoria da retribuição, que interpretava a riqueza como bênção de Deus e a pobreza como resultado de pecados, dava aos abastados a falsa segurança de que nenhum mal os atingiria (Am 6,13; 9,10). Contra isso fala o profeta: importa “fazer o bem e não o mal”; só assim “o Senhor, Deus dos exércitos, estará convosco, como afirmais” (Am 5,14). A quem espera, com esta mentalidade, uma manifestação de glória da parte de Deus, o que ocorrerá, ao contrário, será a vinda do Senhor para uma terrível punição: o “dia do Senhor” será “trevas” e não “luz” (Am 5,18-20).

O profeta, contudo, fala também de um “resto” que pode ser poupado (Am 3,12; 5,3.15; 9,8): os que, ouvindo sua palavra, saírem de sua falsa segurança.

5.4 A possibilidade do perdão divino

Pertence à mensagem do livro a possibilidade de que o juízo anunciado seja revogado. Encontram-se no livro exortações, o que supõe a expectativa de uma mudança de comportamento (Am 5,4.14.24). Nas duas primeiras visões, o profeta intercede pelo povo (Am 7,2.5) e Deus não realiza o juízo previsto. No entanto, a intercessão do profeta, presente nessas visões iniciais, desaparece nas visões subsequentes, as quais culminam na grande destruição de Am 9,4. Além disso, se a ideia de “resto” pode indicar alguma esperança, não deixa, contudo, de falar de grande destruição. É, portanto, verossímil, que, de início, o profeta tenha entrevisto alguma esperança de mudança no povo e, com isso, de revogação do juízo; diante da dureza do coração (Am 4,6-10), todavia, tal expectativa transformou-se num juízo contundente para aquela geração (Am 8,9-10.11-12.13-14).

No conjunto do escrito, porém, as palavras que fecham o livro (Am 9,11-15) abrem um horizonte de restauração para além do juízo. A última palavra de Deus é uma grande promessa salvífica, que ultrapassa todo o mal que pudesse ocorrer.

5.5 A imagem de Deus

As diversas referências às tradições de Israel mostram que o Deus de Amós é o Deus presente na história: o Deus que elegeu seu povo, o tirou do Egito (Am 4,5-10), o conduziu pelo deserto (Am 5,25) até a posse da terra da promessa (Am 2,9-10).

Mas é sobretudo enfatizada a ideia de um Deus criador. Presente particularmente nos textos doxológicos (Am 4,19; 5,8-9; 9,5-6), demonstra seu domínio sobre a natureza e, com isso, sobre a história. Também sob este ângulo se entende a menção do terremoto no título do livro (Am 1,1) e que está subjacente a outras passagens (Am 8,8; 9,1.5). Este grande poder serve para reforçar sua capacidade de punir mesmo os poderosos desta terra.

6 Lendo o texto hoje

A mensagem de Amós questiona fortemente todas as estruturas injustas, causadas pelos responsáveis pela ordem social e por quem detém algum poder. A corrupção e o luxo, ao lado de grande pobreza e penúria, clamam aos céus. O culto a Deus, realizado pelos causadores desse estado de coisas, é vazio de sentido. Diante disso, tanto maior valor tem o anúncio profético, que, obediente à palavra de Deus, desvenda a gravidade da situação e anuncia a ordem querida por Deus. Deus é o Criador, todo-poderoso, não deixará subsistir para sempre a injustiça (cf. Lc 6,20-26), mas levará seu plano à plena realização.

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

 Referências bibliográficas

ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas. v.1. São Paulo: Paulus, 2002.

BARRIOCANAL GOMEZ, J. L. Diccionario del profetismo bíblico. Burgos: Monte Carmelo, 2008.

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SMITH, G. V. Amós. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

Os Salmos

Índice

1 Introdução

2 O Salmo

2.1  O termo

2.2  A atitude

2.3 Os gêneros literários

2.3.1 A variedade dos gêneros

2.3.2 A teologia dos gêneros

2.4 Os salmos imprecatórios ou “violentos”

2.5 O louvor e suas implicações

3 O Livro dos Salmos ou saltério

3.1 O termo

3.2 A formação do livro

3.3 A estrutura da obra

3.4 Saltério: profetismo e Torá de Davi

3.5 O saltério: expressão de diálogo

3.6 O saltério: continuação do templo

3.7 A figura de Davi no saltério

3.8 Os pobres no saltério

3.9 A numeração dos salmos e datação do saltério

4 Os Salmos e o NT

4.1 Os salmos e Jesus

4.2 Os salmos e a Igreja nos textos do NT

5 Referências bibliográficas

1 Introdução

O livro dos Salmos faz parte dos livros poéticos e sapienciais do AT, formado por 150 poemas provenientes de várias pessoas, situações, épocas, lugares. Enquanto orações, são palavras humanas dirigidas a Deus. Por meio desses poemas, o ser humano exprime diante de Deus sua angústia, sua súplica, sua sede, seu louvor, sua gratidão e alegria. Enquanto texto bíblico, é, também e ao mesmo tempo, palavra de Deus que acolhe, consola e afaga, mostra sua misericórdia, mas também sua intolerância com a perversidade e a duplicidade de coração (Sl 12,2). É o livro que deixa transbordar a relação de aliança entre dois amantes: Deus e seu povo. É um caminho de felicidade (Sl 1) para quem faz do louvor divino, da prática da justiça e do convívio entre irmãos (Sl 133,1; cf. 22,23) o fundamento da vida. O saltério é a história do povo e a Lei divina transformadas em oração. Desde outrora, serve ao culto e à interiorização do projeto divino.

2 O Salmo

2.1 O termo

Os salmos são orações bíblicas em forma de poesia ou poemas bíblicos para rezar. Numa linguagem mais acadêmica: teopoesia. O termo salmo vem do grego psalmos que significa uma recitação em forma de cantilena acompanhada por instrumentos de cordas. Com este termo, a Bíblia grega (LXX) traduz o hebraico mizmôr (frequente em títulos de salmos) e com o plural (psalmoi = salmos) muitos de seus manuscritos designam o inteiro livro como é o caso do Código Vaticano (B).

2.2 A atitude

A atitude atrás do termo. A linguagem poética, extrapolando a mera racionalidade do discurso, aponta para a atitude humana fundamental que está por trás de cada salmo ou da grande maioria deles: o transbordamento da alma perante Deus. Ao salmodiar, o ser humano derrama todo seu ser diante do Senhor, soberano do universo, a partir das várias circunstâncias da vida que o rodeiam, diante daquele que governa o mundo, mudou ou pode mudar a nossa sorte. Trata-se de uma relação de confiança e dependência amorosa da criatura frente a seu Criador. Nas palavras do próprio salmista: “Confiai nele, ó povo, em qualquer tempo, derramai [shāpak] vosso coração em sua presença, pois Deus é um abrigo para nós” (Sl 62[61],9). Isto é o que faz Ana na sua aflição (I Sm 1,15-16), é o que faz Jó na sua dor (Jó 30,16), é o que faz o autor das Lamentações na noite escura deixada pelos babilônicos (Lm 2,19a), é o que faz o infeliz ou perseguido em seu infortúnio (Sl 22,15; 102[101],1; 142[141],3). Em princípio, a expressão “derramar [shāpak] a alma ou o coração” aparece nas situações de lamento, mas é também o que faz o israelita com sede e saudade de Sião (Sl 42[41],5a). Contudo, por extensão, pode ser a atitude aplicada também ao louvor ou ação de graças. Estas também são ocasiões em que: “Meu coração transborda [rāḥash] num belo poema…” (Sl 45[44],2a). Mas é a atitude que muda a vida. É o que ocorre com Ana: “E a mulher seguiu o seu caminho, comeu e o seu aspecto não era mais o mesmo” (I Sm 1,18) ou com Jó (42,1-6). Aí está a origem e meta do salmo: brota da realidade da vida e visa mudar ou melhorar a própria vida enquanto reconhece e enaltece o Senhor, criador e soberano do universo, que muda nossa sorte, fortalece e alimenta o caminho. O salmo é, portanto, antes de tudo uma relação viva e dinâmica do crente com o Deus-vivente e vivificante.

Salmodiar é uma atitude humana livre, mas é também um dom de Deus. É ele quem “abre nossos lábios” (51,17a) e “coloca o louvor em nossa boca” (40,4). E corresponde ao sacrifício do templo, é a oferenda dos lábios: “Em lugar de touros nós queremos oferecer nossos lábios” (Os 14,3b; cf. Hb 13,15; Sl 69,31-32; 119,108).

 2.3 Os gêneros literários

Esta atitude básica interior se configura ou se exprime em formas ou gêneros literários. Eles escondem uma dinâmica atrás de si, traduzem as grandes manifestações humanas do crente diante de Deus. E assim, mais do que se deter na abstração da forma ou do gênero, é decisivo perceber esta dinâmica que dá vida à forma para melhor compreender (e mesmo saborear) cada salmo. Vejamos:

A) O projeto de Deus. Nas situações normais da vida, o ser humano se sabe criado e se sente amado por Deus e volta-se para ele numa relação de respeito (temor), amor e amizade. É o encontro de dois seres ou sujeitos: eu e tu, o crente e seu Deus, a criatura e o criador. Sendo que o eu pode ser a comunidade, Israel que reza. É a relação ideal, o projeto sonhado por Deus. Em nível macro e paradigmático, é aquela situação inicial de Gn 1-2. Em nível micro, é nosso cotidiano vivido na harmonia e na paz, sem a perturbação das contradições da vida. Na vida, nem tudo é deserto, também há oásis. É o dia ensolarado

Ora, esta é a dinâmica do hino de louvor. Focaliza o ser e o agir divinos.

B) O antiprojeto humano. Esta relação normal e positiva entre o eu e o tu é interrompida. Entrepõem-se um terceiro sujeito, o ímpio. Tem-se então:

B1) O problema. O ímpio obscurece a relação. Não entra na dinâmica do louvor. Não aceita a dependência de Deus, quer ocupar seu lugar e construir o projeto contrário. Não consegue conhecer ou sentir o amor do criador. Em nível macro, é aquela situação de Gn 3-4, os exemplos paradigmáticos são Adão que afronta Deus e Caim que mata seu irmão. Em nível micro, é a realidade do mundo que nos rodeia, o contexto social de ontem e hoje dominados pela violência, corrupção, injustiça, opressão etc., o antiprojeto do Reino. O eu passa a ser vítima do ímpio. É o dia nublado, quando não se pode ver o sol e é difícil perceber seu calor.

O ímpio pode ser uma pessoa (inimiga) ou uma estrutura de poder que oprime, algo externo. Mas pode também estar dentro de nós como é o caso do pecado e da doença.

Ora, esta é a dinâmica do lamento ou queixa. É mais horizontal enquanto apresenta o problema. A queixa é típica do crente, o ímpio não reclama. Os problemas comuns são: enfermidade (6,7; 38,1-8), fome, guerra (3,7; 27,3), epidemias, abandono (22,2), acusações (35,1.11), impiedades ou maldades de quem persegue (7,2; 35,3-4), opressão (42,10; 44,8.11), pecado (41,5; 51) etc. Nos salmos, aparecem mais de 90 denominações para o inimigo, tal é a importância do tema para o orante. Pode ser expresso, porém, mediante imaginário poético como: água até o pescoço, lodo profundo, correnteza que me arrasta, lama, fundo das águas, poço (69,2-3.15-16; 124,4-5), feras (22,13-14.22; 57,5), ossos que tremem (6,3), secam (22,15), se consomem (31,11b; 32,3) ou são quebrados (42,11), coração que se agita (38,11) ou se derrete (22,15), águas do abismo, laços da morte (18,5-6) ou do abismo (116,3), xeol (6,6; 86,13; 88,4) etc.

B2) O apelo por solução. Esta situação não pode continuar assim, tem que ter um fim. O eu, vítima, apela à sua divindade, grita por socorro (Ex 2,23). É o “até quando Senhor?” (Sl 13,2-3; 90,13). Deus, intolerante com toda forma de impiedade (5,5-7; 6,9; 145,20), ouve e intervém libertando a vítima e restaurando a relação (Ex 2,24; 3,7-10; Sl 34,7.18). Os ímpios devem desaparecer, seu projeto não tem consistência (cf. Sl 1,4-6). Mas o eu também deve ser intolerante com a impiedade, já a partir daquela que está dentro de si. Numa linguagem moderna, o desaparecimento do ímpio se dá pela conversão (cf. Ez 18,23; 33,11; I Pd 3,9).

Ora, esta é a dinâmica da súplica. Ela é mais vertical enquanto apela a Deus pela solução do problema. Lamento-súplica são, na verdade, os dois lados de uma mesma moeda. Cara e coroa são nitidamente distinguíveis, mas formam uma mesma e única moeda. São situações complementares e nem sempre são tão puras. Pois não há súplica se uma situação lamentosa não leva a isso e não se lamenta pelo simples prazer de lamentar. Ao lamentar, implicitamente se está almejando uma solução do problema, ou seja, o lamento não deixa de ser uma súplica implícita. Às vezes, o salmista carrega de cores um aspecto, outras vezes, outro. Eis porque não raro nos deparamos com confusões na classificação destes salmos. Depende muitas vezes das cores que mais despertaram o olhar do biblista

c) O restabelecimento da ordem e o reconhecimento. Deus então intervém e liberta, restabelecendo a ordem, o seu projeto, e o ser humano, por sua vez, reconhece. Em nível macro, é paradigmático o evento do êxodo em que restabelece a liberdade de seu povo. Em nível micro, são aquelas conquistas cotidianas em termos de direitos humanos e sociais, as inclusões e humanizações etc., sem esquecer as superações pessoais, as mudanças de vida pessoais e comunitárias. Volta-se à relação eu-tu.

Esta é a dinâmica da ação de graças ou agradecimento. Foca o agir pontual de Deus em meu ou nosso favor. Ele intervém e liberta, e a vítima agraciada prorrompe na ação de graças. Nestes salmos, dá-se, portanto, o reconhecimento do benefício recebido

D) Os salmos que abordam o caminho do justo em sua busca de Deus, não raro num dilema que requer dele discernimento e escolha, decisão em vista de uma vida acertada e feliz, são os salmos sapienciais. O exemplo clássico é o Sl 1. Uma das perguntas que incomoda os sábios, como mostra o Sl 73 ou 49, é aquela feita a Deus por Jeremias: “Por que o caminho dos perversos prospera?” (Jr 12,1). Outra é: “por que o justo sofre?”

E) Alguns salmos retomam as façanhas de Deus em favor de seu povo, relatam momentos relevantes da sua história. Rezam a história, apresentam a história feita oração. Sugerem que o Deus que agiu no passado atua também no presente. São os salmos históricos. É o caso dos Sl 78; 105; 106; 135; 136.

 2.3.1 A variedade dos gêneros

As atitudes ou manifestações fundamentais do ser humano diante de Deus e, por conseguinte, os gêneros literários que as veiculam são estes indicadas acima e mais estreitamente: o hino de louvor, o lamento-súplica e a ação de graças. As demais formas ou gêneros são consideradas derivadas ou variantes. Por exemplo: os cânticos de Sião (Sl 46; 48; 76; 87) são hinos que exaltam, com certo tom escatológico, a cidade santa, enquanto habitação do Deus-vivo. Dali ele governa seu povo. Enaltece-se a glória de Sião e de seu santuário, destino dos peregrinos (cf. Sl 84 e 122); os salmos do Reino de Deus (caracterizado pela fórmula o Senhor reina Sl 96,10; 97,1; 99,1; Is 24,23; 52,7) são hinos cujo tema básico é a realeza divina (cf. Sl 47; 93; 95-99; 145); a confiança é um elemento característico dos salmos de súplicas ou de lamento. Às vezes, porém, o salmista acentua tanto a sua confiança na intervenção divina que este tema domina o salmo inteiro (cf. 4; 11; 25); variante dos salmos de lamento-súplica seriam ainda os penitenciais e os imprecatórios etc.

Também é preciso considerar as particularidades dos salmos. Há salmos que assimilaram (ou são) oráculos (Sl 2; 50; 75; 81; 82; 85; 95; 110), outros assimilaram uma ação litúrgica (Sl 15; 24), outros são formados por mais de um gênero (Sl 89: v. 2-19 hino; v. 20-38 oráculo; v. 39-52 lamento). O Sl 119 é um hino à Lei, mas ora apresenta traços do lamento individual, ora traços da sapiência etc. Estes elementos são compreensíveis se considerarmos que o orante não segue um protocolo na sua oração, ele simplesmente reza e a vida não é dividida em compartimentos, antes é “misturada”. Junta-se a isso o fenômeno das releituras, atualizações, coletivização etc.

Atrás da variedade de gêneros, se esconde, portanto, o aspecto dinâmico da oração de Israel. Não era fossilizada ou cristalizada no tempo, mas algo vivo que se movimentava ao longo da história. A variedade espelha também a pluralidade das situações da vida.

2.3.2 A teologia dos gêneros literários

O hino de louvor celebra a grandeza e majestade de Deus, manifestada na criação, e sua bondade expressa na sua atuação na história. Ele é rei e criador (desde Sião). O orante contempla o ser e o agir divinos e devolve no louvor. O tom do hino é de triunfo, gozo, alegria, solenidade. É o clima da assembleia litúrgica em festa. Sua base é o hallelû-yah, isto é, louvai ao Senhor. O louvor pressupõe abertura generosa e gratuita ao grande Outro, desapego de nós mesmos. Não é utilitarista ou interesseiro, mas centrado no amor. Nas palavras do salmista: “Seu amor vale mais do que a vida e por isso meus lábios vos louvam” (Sl 63,4). Ora, o egoísta encontra dificuldade para louvar. Algumas religiões (senão todas) possuem a oração básica, a súplica, voltada para as necessidades vitais do orante. O louvor pressupõe certa grandeza do indivíduo ou comunidade: reconhecer que Deus deve e merece ser louvado independente de meus interesses. Eis uma particularidade da oração bíblica.

Esta atitude é normalmente expressa com verbos como: hālal = louvar; bārak = bendizer; yādâ = dar graças; rānan = regozijar-se; gritar de alegria; rûm = exaltar (aparecem, p. ex., no Sl 145) e zāmar = cantar louvor; fazer música; shîr = cantar (aparecem, p. ex., no Sl 33) etc., ou substantivos como: terû‘â = ovação (Sl 27,6; 33,3; 47,6); tehillâ = louvor (Sl 33,1; 145,1 etc).

O lamento-súplica é a oração que brota da angústia, da aflição, do sofrimento, na expectativa de encontrar socorro, libertação, consolo. É marcada por uma total dependência e confiança em Deus, aquele que pode mudar a sorte do aflito. Pois ele é “um Deus que não aceita a iniquidade” (Sl 5,5), é fiel aos pequenos e não ignora seu grito (18,7; 22,25). Enquanto no hino de louvor o salmista glorifica Deus, no lamento-súplica ele dirige-se a ele apresentando sua dor, seu infortúnio. A oração é mais centrada no “eu”, é interesseira e não gratuita. O termo técnico para o lamento é qînâ. Mas o termo em si não é condição para que o salmo seja de lamento. O sofrimento tende a revoltar e afastar o crente de Deus, o lamento-súplica, por sua vez, conserva a relação. Nesta categoria de salmo, entram os salmos penitenciais. Por um lado, nestes salmos se dá a revelação do pecado, Deus permite o crente descobrir a miséria do pecado que desumaniza. O orante percebe que o infortúnio que o faz sofrer está dentro de si (Sl 32,3-4) e apela para que Deus aniquile este inimigo hospedado em seu ser (Sl 41,5; 51,3-4.9). Por outro, abre-se para acolher o perdão divino assim que se sinta recriado, refeito pelo perdão (Sl 32,1-2; 51,10.12.14). A súplica penitencial é baseada numa confiança profunda na misericórdia infinita de Deus que tudo renova (Sl 103; 118; 136).

A ação de graças é a atitude de reconhecimento pelos benefícios que Deus concede. O verbo yādâ (render graças, agradecer) significa, antes de tudo, reconhecer. É edificante saber-se agraciado pelo bem alheio, comunicado como dom, como graça. Estes salmos são menos gratuitos e mais pontuais e diretos que o hino de louvor. Agradece-se uma ação pontual de Deus. Estive enfermo, supliquei, ele me atendeu e me curou e eu agradeço. O clima destes salmos é a alegria e o termo técnico é yādâ. Deus liberta o orante de seu infortúnio e o faz passar da morte à vida, da opressão à liberdade. A ingratidão é uma das misérias humanas, é algo reprovável no ser humano. A gratidão, por sua vez, é uma atitude de generosidade e grandeza. É nobre ser grato, particularmente a Deus, a quem devemos tudo o que temos e somos (I Cor 4,7). A criança pode facilmente sorrir ou chorar, exprimir alegria ou dor. Assim, de modo mais ou menos espontâneo, pode ocorrer o louvor ou o lamento-súplica. Se dermos um chocolate a uma criança, ela o receberá e até olhará para nós com simpatia. Mas a mãe precisará dizer-lhe: “Meu filho, diga-lhe obrigado”! Portanto, a ação de graças requer instrução, formação, educação.

Na verdade, estes gêneros literários estão a serviço de um mesmo e único louvor a Deus. A tradição judaica intitula o livro dos salmos como sefer tehillim, isto é, “Livro dos Louvores”. Significa que todas as atitudes humanas diante de Deus são expressas nos salmos e que estas formas literárias que as revestem são louvores a Deus. O lamento-súplica e até mesmo os salmos imprecatórios podem e devem ser vistos como louvor (VON RAD, 1973, p. 341-2).

2.4 Os salmos imprecatórios ou “violentos”

A imprecação é uma fórmula de juramento na qual se invocam maldições sobre alguém não raro exprimindo sentimentos violentos. Os salmos imprecatórios são aqueles em que o orante suplica a Deus para que ele puna o inimigo não só com a vergonha e a aflição ou infortúnio (para ele e sua família), mas até mesmo o amaldiçoe, destrua, aniquile, extirpe. São salmos que assustam pelo tom violento em plena oração. Este elemento aparece em vários salmos, domina, porém, a ponto de caracterizar os seguintes salmos: 35; 58; 69; 83; 109; 137,8-9. Todavia, a imprecação não se limita aos salmos.

A imprecação não era via ordinária. Era o último recurso quando a via ordinária, a instituição competente, se mostrava ineficaz para realizar a justiça. O infrator não podia ficar impune e a maldição era a proteção de quem era incapaz de se defender (Pr 11,26; 28,27; 30,10; Sir 4,4-5). Era a arma dos oprimidos: apelar a Deus contra o opressor. Portanto, a imprecação ou maldição era a afirmação da impotência humana. Aconselhava-se a ajudar o inimigo (Pr 25,21-22; Ex 23,4-5). O objetivo não era a violência em si, mas a exigência de justiça. Era o desejo que a justiça divina se manifestasse e restaurasse o equilíbrio, a igualdade na vida social. Tanto é que não é o orante quem executa tal vingança ou violência, mas se delega a Deus, como juiz, que retribua ao perverso segundo seus atos (cf. Sl 94,1-3). A ele cabe a vingança (Dt 32,35).

É Deus que deve agir segundo seus critérios e não segundo a fúria do orante. O efeito da imprecação depende, portanto, de Deus. Vale a máxima: “Como posso amaldiçoar quando Deus não amaldiçoa?” (Nm 23,8). Ele pode transformar uma maldição em bênção (cf. Sl 109,28) e vice-versa (cf. Ml 2,2). O efeito da imprecação ou maldição depende de um lado da culpabilidade do amaldiçoado, isto é, ela deve ser legítima ou justa, já que “a maldição injusta não chega a lugar nenhum” (Pr 26,2b). E por outro lado, ela depende da vontade soberana do Deus justo e misericordioso.

Todavia, exprimindo estes sentimentos violentos na oração, o orante se liberta deles e os confia àquele que pode libertar. A imprecação é também catártica. Não visa despertar sentimentos de ódio e violência.

No NT, predomina, porém, o preceito de amar o inimigo (Mt 5,44; Lc 6,27-29; Rm 12,14.20). Pensamento não ausente no AT. Paradoxalmente, Jesus “tornou-se maldição por nós” (Gl 3,13), “o justo pelos injustos” (I Pd 3,18). Esta foi a “vingança” de Deus para mostrar que o critério último da imprecação é o perdão e a misericórdia.

2.5 O louvor e suas implicações

O Sl 1 é a porta de entrada do livro dos Salmos, é o prólogo. Ele oferece a chave hermenêutica para a leitura do livro. É um salmo sapiencial, isto é, um salmo de sabedoria que propõe dois caminhos a serem discernidos e escolhidos. Trata-se do caminho dos ímpios e do caminho do justo. Isto significa que o louvor implica uma opção de vida, e vida feliz (v. 1a), já que o ímpio não louva nem Deus reconhece seu caminho (v. 6). É uma opção que vai se consumando ao longo do caminho, saltério adentro e ao longo da vida. Esta opção vale tanto para o indivíduo (Sl 1,1; 112,1; 119,1-2; 128,1) como para o povo (144,15). Ao mesmo tempo, louvar implica adesão a Deus e a seu projeto conforme sua Lei (v. 2) e consequente afastamento radical da roda dos ímpios, dos perversos (v. 1; cf. 146,8-9). Isto resulta numa conduta ética fecunda atestada pelos frutos (v. 3) e, enfim, ser justo (v. 5b.6a). O crente é, portanto, aquele que faz da justiça um critério de vida. Ela confere veracidade e fidedignidade à piedade, torna-se mediação para Deus. Ora, esta adesão a Deus implica, então, renúncia veemente ao louvor e à adoração aos ídolos e à barganha interesseira. O Sl 15 também responde em que implica “residir na tenda divina”, isto é, em que implica louvar. O mesmo ocorre no Sl 24,3-4. Portanto, o louvor, para além do amém-aleluia, é conduta de vida embebida do projeto divino. O Midrash Tehilim parafraseia o Sl 1,1 da seguinte forma: “Os louvores (do) homem (são) que ele não andou no conselho dos perversos, e não se colocou no caminho dos pecadores, nem sentou na reunião dos zombadores”. O louvor sálmico, portanto, não se compatibiliza com a injustiça ou com qualquer forma de impiedade e intolerância.

3 O Livro dos Salmos ou saltério

3.1 O termo

O Livro dos Salmos é a designação com a qual a versão grega (LXX) traduz o hebraico livro dos louvores. A designação é usada também por Lucas (Lc 20,42; [24,44]; At 1,20). Trata-se de um conjunto de 150 salmos (versão grega 151), também chamado saltério. O termo saltério é uma transliteração do grego Psaltérion, que na verdade é o nome do instrumento de corda que acompanhava os cânticos (cf. Dn 3,5) e que a versão grega usa para traduzir o termo hebraico nēbel = harpa (p. ex.: Sl 32,2; 56,9). É ainda o termo usado como título do livro no Código Alexandrino (séc. V dC). Este dado aponta para a natureza e posterior uso litúrgico destes poemas, ou seja, eram normalmente acompanhados com instrumentos de corda. Isto explica também as inúmeras ocorrências deste tipo de instrumento ao longo do livro bem como as inúmeras instruções musicais nos títulos dos salmos (p. ex.: 4,1; 5,1; 6,1; 9,1; 22,1 etc).

3.2 A formação do livro

O saltério não surgiu assim como o conhecemos hoje. Houve um processo. Neste processo, poucos foram produzidos por um escriba, os que podemos chamar de salmos redacionais. A maioria deles surgiu das situações existenciais do indivíduo ou mesmo da comunidade. A fonte deles é o ordinário da vida, ali onde o crente procura Deus. Aí estaria a primeira fase, a fase oral. Num segundo momento, estes poemas foram escritos e passaram por releituras ou acréscimos, ou seja, foram coletivizados (adaptados ao uso comunitário) e atualizados (no tempo e no espaço) e até mesmo “reciclados” de outras culturas (p. ex.: Sl 19,1-7; 29; 104) etc. Em seguida, alguém (ou alguns) agrupou os salmos, formando as coleções. Assim temos, por exemplo, as coleções de salmos dedicados: a Davi (3-41; 51-72; 138-145) com uma evidência intencional (72,20). Há ainda outros avulsos dedicados a Davi; a Asaf (50; 73-83); aos filhos de Coré (42-49.84-85.87-88); uma coleção de salmos de subida ou graduais (Sl 120-134), usados nas peregrinações; os grupos aleluiáticos, ou seja, aqueles que começam e/ou terminam com aleluia (105-107; 111-118; 135-136; 146-150) etc. Por fim, de forma análoga a uma diocese, ou paróquia ou congregação, que reúne os cantos mais comuns, que ajudam a rezar, e forma um livro de canto, um redator (ou uma escola) deu forma final à obra e ela passou a fazer parte do cânon, chegando até nós.

Alguns indícios, visíveis a olho nu, apontam para este processo de formação. Por exemplo: a) o nome divino Javé (= Senhor) aparece de forma quase exclusiva nos Sl 1-41; 84-150 enquanto o nome Elohim (= Deus) predomina nos Sl 42-83 a ponto de ser chamado saltério eloísta; b) os salmos atribuídos a pessoas caracterizam decididamente os Sl 3-89, enquanto a partir daí torna-se escassa tal atribuição. A partir do Sl 90, predominam os salmos com títulos temáticos como “aleluia” (Sl 106; 111-113; 135), ou “rendei graças/celebrai” (Sl 105; [106]; 107; 118; 136), ou “subidas” (Sl 120-134), ou anônimos (114-117; 119; 137); c) os salmos com títulos biográficos, isto é, com informações a respeito da vida de Davi (cf. Sl 3; 7; 18; 34; 51; 52; 54; 56; 57; 59; 60; 63), são um fenômeno típico dos Sl 3-72. A única exceção fora deste bloco é o Sl 142; d) a partícula hebraica selâ (provavelmente informação musical, talvez “pausa”) aparece 37 vezes entre os Sl 3-89 enquanto no resto do saltério encontramos apenas em 140,4.6 e 143,6; e) as duplicatas de salmos em diferentes coleções. Por exemplo: Sl 14 e 53; 40,14-18 e 70; 57,8-12 + 60,7-14 e 108; 18 e II Sm 22 (e com variações em 144,1-10); o Sl 115,4-11 é retomado com variações no Sl 135,15-20 etc. Estes indícios não são casuais, antes revelam um trabalho intencional de colecionadores e/ou redatores na formação da obra. Mas não só, sugerem também uso de salmos em locais e épocas diversas bem como um processo dinâmico da vida orante de Israel. Convém lembrar que os salmos não se limitam ao saltério, eles estão espalhados por toda a Bíblia. Por exemplo: Ex 15,1-18; Dt 32; I Sm 2,1-11; Is 12,1-6; 38,10-20; Jn 2,3-10; Sir 51,1-12 ou, mais evidente, o Sl 18 encontra-se também em II Sm 22 ou, ainda, I Cr 16,8-36 é formado por três salmos: v. 8-22 = Sl 105,1-15; v. 23-33 = Sl 96 e v. 34-36 = Sl 106,1.47-48, respectivamente início e fim do Sl 106.

3.3 A estrutura da obra

Estes 150 salmos não estão aleatoriamente justapostos. Eles foram organizados numa estrutura, cujos elementos delimitatórios são oferecidos pela própria obra. Trata-se das doxologias (= glorificações) presentes nos Sl  41,14; 72,18-19; 89,53; 106,48. Elas são formadas por quatro elementos básicos: a) o louvor: “bendito seja o Senhor”; b) especificação: “Deus de Israel”; c) elemento temporal: “desde sempre e para sempre”; d) elemento conclusivo: “amém, amém”. O Sl 145, único com o título hebraico louvor, cujo plural intitula o inteiro saltério (livro dos louvores), desempenha a função da 5ª doxologia (TORQUATO, 2009, p. 430-45). A doxologia não tem apenas a função teológica de dar glória ou bendizer a Deus, mas tem também a função literária de delimitação. Além das doxologias, existem dois blocos de salmos chamados “órfãos”, isto é, sem títulos (1-2; 146-150) que tem a função de moldura, respectivamente introdução e conclusão. A partir daí, se pode visualizar a estrutura do saltério da seguinte forma:

Saltério messiânico

1-2: prólogo

3-41: I

42-72: II

73-89: III

Saltério teocrático

90-106: IV

107-145: V

146-150: epílogo

Nota-se que o saltério é formado por 5 partes (ou livros) à imitação do Pentateuco (ZENGER, 2003, p. 314) e por isso também conhecido como Torá de Davi.

A organização atual reproduz, na opinião de alguns pesquisadores, a caminhada histórica de Israel a partir da monarquia: a) o período de Davi corresponderia aos dois primeiros livros (Sl 2-72), como sugerem sobretudo os títulos dos salmos, e o Sl 72,20, à sucessão simbolizada na figura de Salomão a quem é dedicado o Sl 72,1 como prece do pai ao filho. Esse salmo apresenta um verdadeiro programa de governo do rei; b) em seguida, a falência da monarquia no terceiro livro, como mostra sua conclusão (Sl 89). Estas três primeiras partes ou livros (Sl 3-89) formariam o saltério messiânico introduzido pelo Sl 2. A instituição da monarquia e seu rei humano fracassaram; c) o quarto livro corresponderia ao período do exílio babilônico, outro “Egito”. Curiosamente, a abertura, o Sl 90, é dedicada a Moisés e o livro é caracterizado pelas referências a Moisés (99,6; 103,7; 105,26; 106,16.23.32-33); d) o quinto livro corresponderia ao pós-exílio, Deus que repatria e reúne o seu povo (cf. Sl 107,3; 126,1-3) despertando outra vez a esperança. Nesse livro, está a coleção dos salmos de subida ou peregrinação a Jerusalém (Sl 120-134). Seria a fase do redator. Esses dois livros formariam o saltério teocrático, isto é, quando a instituição fracassa, o próprio Deus continua a governar seu povo. O rei humano é deposto, mas o Senhor continua a reinar. Este saltério praticamente abre (Sl 93-99) e conclui (Sl 145) com os salmos da realeza divina: o Senhor é rei. Enfim, o saltério aparece como história rezada, a história feita oração. Exprime, no louvor, as maravilhas divinas feitas a seu povo.

Estes dois saltérios teriam histórias redacionais diferentes até sua fusão na obra única. Enquanto os salmos de lamento-súplica dominam o primeiro saltério, os salmos de louvor e ação de graças dominam o segundo. A dinâmica da obra (presente também em muitos salmos) revela uma passagem da opressão e suas causas para a liberdade e a alegria. “Na tarde pode vir o pranto, mas pela manhã a alegria” (30,6b), pois ele “transforma o luto em dança” (30,12). Significa que o saltério segue uma dinâmica pascal. Além disso, há temas que são transversais no saltério todo, como: a sapiência, a torá (davídica), a aliança, dimensão messiânica, a teocracia, a realeza divina, a peregrinação a Sião, os pobres, o conflito justo x ímpio, a criação, Deus como escudo, auxílio e misericórdia etc.

Cada salmo individual tem obviamente a sua teologia, a sua mensagem. Todavia, quando situado no seu respectivo livro ou parte do saltério ele ganha um brilho maior. Eis porque a interpretação do salmo individual não deveria ignorar o conjunto do saltério.

3.4 Saltério: profetismo e Torá de Davi

No livro de Jeremias, Deus fala em estabelecer uma aliança nova (Jr 31,31) e, em seguida, especifica em que consiste a novidade: “Eu porei minha lei no seu seio e a escreverei em seu coração” (v. 33). Não será mais em pedra (externa), mas no coração (interior). Nesta linha caminha o movimento profético, na tentativa de interiorizar a Lei e os valores da fé. Superar a mera obrigação e abraçar a lei como valor que dá sabor à vida. Era preciso ultrapassar o formalismo. No pós-exílio, o saltério teria assumido esta tarefa.

No Deuteronômio, Deus propõe aos israelitas – mediante Moisés – dois caminhos: a vida feliz e a morte, benção e maldição (Dt 30,15-20). O primeiro é baseado na Lei divina. Israel precisa discernir e optar, terá que decidir, fazer uma escolha sábia. Em seguida, o livro apresenta uma bem-aventurança (Dt 33,29) e com ela praticamente conclui o Pentateuco. O texto que segue trata da morte de Moisés e é considerado tardio. Esta bem-aventurança transforma, portanto, a Lei de Moisés, a Torá (expressa no Pentateuco), num ideal de vida e vida feliz. Este ideal é reproposto na entrada da terra prometida como base para o começo de um novo projeto de vida: agir segundo a Lei (Torá) e tê-la nos lábios, meditando nela dia e noite e assim ter êxito (Js 1,7-8). Ora, o Sl 1, introdução do livro dos salmos, abre-o com uma bem-aventurança (v. 1) retomando e repropondo os dois caminhos: o caminho do justo e o do ímpio. Ora, o caminho do justo, do feliz”, é baseado na Lei (Torá) (v. 1-2). Assim, a Torá de Davi (o saltério a ele atribuído) seria uma continuação ou uma resposta àquela de Moisés. Somente agora aberta a todo ser humano: “feliz o homem” (Sl 1,1). Esta relação entre as duas Torás não é nova. A tradição judaica já a percebeu há séculos:

Moisés presenteou Israel com Cinco Livros da Torá e Davi presenteou Israel com Cinco Livros dos Salmos. Moisés concluiu a Torá com a benção “Quão digno de louvor tu és, Israel, quem te é comparável?” Davi começou seus Salmos com a expressão final de Moisés, “Os louvores do homem”. (…) Davi enfatizou essa verdade, começando sua fórmula de felicidade com o aviso para se evitar os perversos e os pecadores (primeiro versículo)(Midrash Tehilim, Sl 1,1).

O saltério é, portanto, a Torá rezada ou cantada: “Os teus decretos tornaram-se os meus cânticos (…)” (cf. Sl 119,54). Mais ainda, é a Torá interiorizada: “Meu Deus, eu quero ter a tua Lei dentro das minhas entranhas” (Sl 40,9), lá onde ela é fecunda. A Lei deixa de ser aquela externa apresentada outrora por Moisés na pedra (Ex 24,12; 31,18), para ser aquela que o justo medita com prazer dia e noite, recitada nos salmos. Por Lei = Torá, não se entende algo negativo e legalista, pois seu primeiro sentido é instrução, ensinamento, orientação para a vida, expressão da vontade divina, plena de sabedoria e inteligência como os rios (Sir 24,23-28). Por isso ela e seus sinônimos vão aparecer nos salmos como ḥāpēts = prazer, deleite (cf. Sl 1,2; 112,1; 119,35), como sha‘ăshu‘îm = delícia, prazer, deleite (cf. Sl 119,16.24.47.70.77.92.143.174), que reside no coração (Sl 37,31), que se ama (Sl 119,47b.48.97.113.119.127.159.163). Ela é do Senhor (78,1.5) e é perfeita (19,8-9), deve ser observada (105,45) pois é instrumento educativo (94,12). Embora exista a possibilidade de se rejeitar (78,10; 89,31-32). Mas enfim, a Lei se torna oração numa relação viva com o Deus vivente e em resposta a seu dom.

Os salmos em si nasceram das circunstâncias cotidianas sem finalidade necessariamente litúrgica. É inegável, porém, a relação do saltério com o culto. Esta relação deve estar na base da formação do próprio saltério. Isto significa que houve uma evolução no uso dos salmos. Passam a servir à liturgia e mais exatamente à interiorização e vivência da Lei enquanto expressão da vontade, do projeto de Deus.

3.5 O saltério: expressão de diálogo

A Sagrada Escritura é palavra de Deus ao ser humano. Por meio dela, Deus propõe algo ao homem para que o ajude a caminhar na sua presença e ser feliz. Os salmos, enquanto orações, são palavras humanas a Deus. Pela salmodia, o ser humano responde a Deus.

É que Javé não escolheu um povo para ser objeto passivo de sua vontade histórica, mas o escolheu para o diálogo. A resposta de Israel, que extrairemos do saltério, já é, no plano teológico, uma questão em si mesma (VON RAD, 1973, p. 340-341).

Ora, se os salmos são parte da Sagrada Escritura é porque também são palavra de Deus. Logo, palavra Deus não é só a que ele nos fala, mas também aquela que ele quer ouvir de nós (BONHOEFFER, 1969, p. 66-68). Ele não só ouve nossa oração, mas faz dela as suas próprias palavras e nos devolve como dom para que possamos louvá-lo como convém. É ele quem abre os nossos lábios (Sl 51,17) e põe o louvor em nossa boca (Sl 40,4a), que inspira o louvor [mesmo] na noite (Jó 35,10b). Portanto, instaura-se aí um diálogo provocado e querido pelo próprio Deus. Ainda segundo D. Bonhoeffer, é algo comparável à criança: “A criança aprende a falar porque seu pai lhe fala; deste modo, ela aprende a língua de seu pai. Do mesmo modo aprendemos a falar a Deus porque Deus nos falou e continua a nos falar” (1969, p. 65, tradução nossa).

3.6 O saltério: continuação do templo

Na diáspora, sem templo e aparato litúrgico, para onde peregrinar para contemplar a face do Senhor? Onde apresentar as oferendas e sacrifícios? O texto de Daniel, embora tardio, exprime esta realidade: “Não há mais chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias ()” (Dn 3,38). É o vazio das instituições política e religiosa. Como encontrar Deus? Ezequiel oferece uma grande ajuda. Ele vê a glória do Senhor se afastar do templo (Ez 10,3-22; 11,22-24) e voltar (43,1-9). Mostra, assim, que Deus não está amarrado à instituição, mas ao seu povo. E Deus mesmo é seu santuário (Ez 11,16). O prólogo do saltério mostra que aquela seiva, a água da vida, que antes vinha do templo e fazia a árvore frutificar (cf. Ez 47,12; Sl 52,10; 92,13-16), agora vem pela meditação prazerosa da Lei (Sl 1,1-3). Deus mesmo vai até aquele que o invoca com a condição de que ele o invoque sinceramente (Sl 145,18). Pois ele é “o Santo que habita-reina (yāshab) nos louvores de Israel” (Sl 22,4). Deus reina onde quer que Israel salmodie. A salmodia dá continuidade ao templo e a serviço disso está o saltério. É a oração como incenso, oferenda (Sl 141,2). O louvor é adesão ao projeto deste grande Rei, independente do lugar. É a oferenda dos lábios.

Já no Sl 1,1-2, o indivíduo começa sozinho, mas termina no conselho (ē), isto é, no coletivo, na comunidade. A mesma dinâmica se encontra em todo o saltério. O fiel que louva converge para a qāhāl, a Assembleia (Sl 22,23.26; 26,12; 35,18; 40,10-11; 89,6; 107,32; 149,1). O verdadeiro louvor não isola, leva à comunidade. O templo é importante enquanto lugar onde a Assembleia se realiza. Todavia, o templo pelo templo pode mascarar a relação com o Senhor (cf. Jr 7,1-11) se faltar a interiorização dos valores da fé. É da Assembleia que parte o louvor.

3.7 A figura de Davi no saltério

Na tradição bíblica, Davi não é somente o rei, é também animador da liturgia: organiza os levitas (1Cr 23,6) e os cantores (1Cr 25,1; Esd 3,10-11; Ne 12,24), ele mesmo sabia dedilhar a lira (1Sm 16,16-18) e “cantou de coração, mostrando seu amor por seu Criador” (Sir 47,8) e por isso é o “cantor dos cânticos de Israel” (2 Sm 23,1). Ora, ele aparece no saltério de três formas: a) no título dos salmos atribuídos a ele, os salmos ledāvīd = de Davi. São 61 salmos no hebraico e mais 14 na versão grega. As diferenças revelam o trabalho redacional. Qumran e a tradição rabínica atribuem, porém, todos os salmos a Davi. A Igreja não será diferente (cf. Mt 22,43-45; At 2,25.34; Rm 4,6-8). É provável que esta atribuição evoque a atuação litúrgica de Davi, homem cantor de louvores, o servidor (cf. 2 Cr 29,30). Convém lembrar que também Asaf, os filhos de Coré, Emã e Etã, a quem são atribuídos salmos, todos eram cantores do templo (Esd 2,41; 3,10-11; 1Cr 25). Alguns biblistas, porém, preferem ver aí a figura do israelita exemplar e rei ideal, figura do messias futuro. Seriam salmos, portanto, a serem lidos em chave messiânica; b) nos títulos biográficos. Trata-se de 13 títulos vinculados a eventos da vida de Davi relatados em 1Sm 19; 21-24; 2Sm 8; 10-12; 15-16; 22 (// Sl 18), portanto, provenientes da Obra Histórica Deuteronomista (OHD). Seria uma releitura do salmo na ótica desta obra, conferindo uma nova luz ao salmo. Não é o Davi da realeza (exceto 51,1), mas o homem simples, escolhido por Deus em favor de Israel, com virtudes e fraquezas, emoções, medo, coragem, amor, lamento, que convida ao louvor. É o servo do Senhor, perseguido, sofredor exemplar, pecador, cujo motivo de sua oração é ser salvo ou liberto por Deus em suas dificuldades. É o Davi a altura de qualquer israelita ou de qualquer pessoa em igual situação; c) no interior de alguns salmos (18,51; 78,70; 89,4.21.36.50; 132,1.10-11.17; 144,10; cf. ainda 122,5). Para estes salmos, Davi é o rei do Senhor, o seu servo, o eleito, o ungido, alguém com quem ele fez um pacto com um juramento solene que a sua dinastia duraria para sempre (cf. 2Sm 7). À luz destes textos, quando em outros salmos se fala de ungido, de rei, de servo do Senhor, o leitor ou orante vê o rei Davi e as promessas feitas a ele. Assim, o Davi que canta os salmos é um símbolo de esperança do tempo messiânico (LORENZIN, 2014, p. 551-552).

3.8 Os pobres no saltério

Em função do espaço, a temática se limitará a um exemplo. No primeiro livro do saltério (Sl 3-41), o orante aparece envolto em várias situações de opressão que são apresentadas a Deus na oração. Ele é, portanto, um oprimido, um pobre. O ímpio, que se levanta contra ele (3,2) e tenta impedi-lo de levantar-se (41,9), forma a moldura deste livro, caracterizado pelo verbo qûm = levantar(-se). Uma ininterrupta súplica do orante para que o Senhor se levante (qûm) (3,8; 7,7; 9,20; 10,12; 17,13; 35,2) e tenha compaixão (ḥānan) (4,2; 6,3; 9,14; 25,16; 26,11; 27,7; 30,11; 31,10) culmina em 41,11, convergindo ambas as expressões: “tende compaixão de mim levanta-me”. Deus, por sua vez, toma posição: “pelos pobres oprimidos e os necessitados que gemem, agora me levanto (qûm)” (12,6). Na conclusão desse primeiro livro, o salmista faz da defesa do fraco um ideal de vida, uma bem-aventurança: “feliz quem cuida (śākal) do pobre (ptōchos) e do fraco (dāl), no dia da infelicidade o Senhor o liberta” (Sl 41,2). E cuidar a exemplo de Deus (41,11-13). Aqui se explicita em que consiste “buscar o abrigo de Deus” presente na bem-aventurança da introdução (Sl 2,12b). A opção de Deus pelo fraco é uma constante no saltério (cf. p. ex.: 107,41; 113,7; 138,6; 146,7-9; 147,6). Portanto, a oração dos salmos não ignora a sorte dos fracos, antes a tem por pressuposto elementar. Aliás, na maioria dos salmos, são eles que se dirigem a Deus contra os ímpios, convictos que Deus não compactua com o perverso e enganador.

3.9 A numeração dos salmos e datação do saltério

A versão grega (LXX), seguida pela versão latina (Vulgata = Vg), une os Sl 9 e 10 e os Sl 114 e 115 e divide em dois os Sl 116 e 147. Por esta razão, as Bíblias que seguem a versão grega ou latina, como a Ave Maria, passam a ter uma unidade numérica a menos após o Sl 10. Eis porque a maioria dos salmos aparece com duas numerações. Isto resulta na seguinte tabela (LORENZIN, 2014, p. 11):

Bíblia Hebraica (TM)

Bíblias Grega (LXX) e Latina (Vg)

Sl 1-8

Sl 9-10

Sl 11-113

Sl 114-115

Sl 116,1-9

Sl 116,10-19

Sl 117-146

Sl 147,1-11

Sl 147,12-20

Sl 148-150     Sl 1-8

Sl 9

Sl 10-112

Sl 113

Sl 114

Sl 115

Sl 116-145

Sl 146

Sl 147

Sl 148-150

 Quanto à datação da obra, não é tarefa simples. Todavia, a afinidade da moldura do saltério (1-2; 146-150) com o livro de Sirácida, composto por volta de 175 aC, a afinidade dos temas da sapiência da lei, escatologia e louvor divino desta mesma moldura com os textos essênios encontrados em Qumran, datáveis entre 200 a 150 aC, e a proximidade do saltério teocrático (Sl 90-150) com a sapiência levam a pesquisa atual a conjecturar a redação do saltério entre 200 e 150 aC, isto é, no séc. II aC (LORENZIN, 2014, p. 25).

4 Os Salmos e o NT

4.1 Os salmos e Jesus

Os Livros de Isaías e dos Salmos são as obras mais citadas no NT. O saltério é citado expressamente por volta de 78 vezes e alusões superam outras 300. Obviamente que este uso porta uma novidade, os salmos são lidos em chave cristológica. O evangelista Lucas coloca na boca do próprio Jesus uma frase que ilustra isso: “era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (24,44). Mas Jesus teria utilizado os salmos durante sua vida? Quais os indícios.

a) Jesus participa das festas judaicas (Lc 2,41; Jo 2,13; 5,1; 7,14.37; 10,22; 12,12-13). Ora, na liturgia das festas fazia parte o uso de salmos como mostram as referencias do Talmud. Na Páscoa, por exemplo, se recitava o hallel egípcio (Sl 113-118). Em Lc 22,7-20, Jesus celebra a Páscoa com os discípulos. Mt 26,30 e Mc 14,26 seriam referência à recitação do hallel.

b) as peregrinações a Jerusalém e a festa das Tendas eram animadas com os cânticos de subida (Sl 120-134). Jesus com os pais e depois com os discípulos pode ter se servido desta coleção.

c) Jesus frequentava a sinagoga, lá fez leitura (cf. Lc 4,16) e ensinou (Mc 1,21; 6,2). Após a leitura da Torá e dos Profetas se cantava um salmo. Disso o Sl 92,1 é um indício.

d) Nos salmos, Jesus encontra inspiração para seu ensino. Em Mt 13,35, ele cita o salmo para justificar sua pedagogia: “Vou abrir minha boca em parábolas” (Sl 78,2).

Ora, esses indícios ainda não permitem afirmar, mas pressupor, que Jesus tenha usado os salmos. Há outras ocorrências, porém, em que os salmos aparecem na boca de Jesus como:

e) No ensino e nas controvérsias com os adversários: Mt 7,23 (Sl 6,9); 21,16 (Sl 8,3); 21,42 (Sl 118,22-23); 22,43-44 (Sl 110,1); 23,39 (Sl 118,26); Mc 12,10-11 (Sl 118,22-23); 12,36 (Sl 110,1); 14,18 (Sl 41,10); Lc 12,27 (Sl 6,9); 13,35 (Sl 118,26); 20,17 (Sl 118,22-23); 20,42-43; 22,69 (Sl 110,1); Jo 10,34 (Sl 82,6); 13,18 (Sl 41,10). Existe, ainda, um número considerável de alusões aos salmos.

f) Na vida pessoal: “ao entrar no mundo” o autor de Hb 10,5-7 coloca na boca de Jesus o Sl 40,7-9. Ele anuncia o nome divino aos irmãos na Assembleia (Hb 2,12; cf. Sl 22,23). Na cruz, usa os salmos para dizer “tenho sede” (Jo 19,28; cf. Sl 22,16; 69,22), lamentar o abandono por parte de Deus (Mt 27,46; Mc 15,34; cf. Sl 22,2) e para se entregar ao Pai e deixar este mundo (Lc 23,46; cf. Sl 31,6) (GOURGUES, 1984, p. 80).

Estes últimos elementos confirmam a pressuposição precedente enquanto mostram que a Igreja primitiva via em seu mestre um amante dos salmos. Ele se serviu dos salmos na missão e na relação com o Pai. Por conseguinte, o saltério deve significar algo para o crente e a comunidade que rezam.

4.2 Os Salmos e a Igreja nos textos do NT

A Igreja faz, em várias ocasiões, citações diretas do saltério para iluminar a vida ou ministério de seu messias e Senhor. Além dos textos já indicados, há outra série de textos conforme alguns exemplos:

a) nos Evangelhos: Mt 4,6 (Sl 91,11-12); 21,9 (Sl 118,25-26); 27,43 (Sl 22,9); Mc 15,24 (Sl 22,19). Em Lucas, o Magnificat (Lc 1,46-55) é tecido, entre outros textos, com os Sl 89,11; 98,3; 103,17; 107,9; 111,9; o Benedictus (Lc 1,67-79) utiliza as doxologias dos Sl 41,14; 72,18; 106,48; 111,9 e há os salmos que falam da misericórdia e aliança com os antepassados: Sl 105,8-9; 106,45a. Além disso: Lc 3,22 (Sl 2,7); 4,10-11 (Sl 91,11-12); 19,38 (Sl 118,25-26); 23,34 (Sl 22,19); Jo 2,17 (Sl 69,10); 6,31 (Sl 78,24); 12,13 (Sl 118,25-26); 19,24 (Sl 22,19); 19,36 (Sl 34,21).

b) nos Atos: 1,20 (Sl 69,26; 109,8); 2,25-28 (Sl 16,8-11); 2,34-35 (Sl 110,1); 4,11 (Sl 118,22); 4,25-26 (Sl 2,1-2); 13,33 (Sl 2,7); 13,35 (Sl 16,10).

c) nas epístolas de Paulo: para dizer que o ser humano é pecador – em Rm 3,10-18 – o apóstolo se serve dos Sl 5,10; 14,1-3; 36,2; 107,7; 140,4. Deus, porém, justifica: Rm 4,7-8 (Sl 32,1-2). Para outros exemplos: 8,36 (Sl 44,23); 11,9-10 (Sl 69,23-24); 15,3 (Sl 69,10b); 15,9 (Sl 18,50); 15,11 (Sl 143,2); I Cor 3,20 (Sl 94,11); 10,26 (Sl 24,1); 15,25 (Sl 110,1); II Cor 4,14 (Sl 116,10a); 9,9 (Sl 112,9); Gl 2,16 (Sl 143,2); Ef 1,22 (Sl 8,7); 4,8 (Sl 68,19); 4,26 (Sl 4,6 cf. LXX); II Tm 4,14 (Sl 62,13).

d) na epístola aos Hebreus: 1,5-13 para provar que Cristo é superior aos anjos, o autor recorre aos Sl 2,7; 45,7-8; 97,7; 102,26-28; 104,4; 110,1. O homem pouco menor que os anjos: 2,6-8 (Sl 8,5-7); Jesus, o irmão: 2,12 (Sl 22,23); o tema do repouso tem por base o Sl 95: 3,7-11 (Sl 95,7-11); 4,1.3.5 (Sl 95,11); 4,7 (Sl 95,7-8); o tema do sacerdócio de Cristo: 5,5 (Sl 2,7); 5,6.10; 6,20; 7,1.11.17.21 (Sl 110,4); o tema do sacrifício: 10,5-7 (Sl 40,7-9 cf. LXX); 10,9 (Sl 40,8); 10,12-13; 12,2 (Sl 110,1). Nas recomendações finais (13,6), recorre ao Sl 118,6.

e) nas epístolas católicas: Tg 5,11b (Sl 103,8a); 1Pd 2,7 (Sl 118,22); 3,10-12 (Sl 14,13-17); 5,7 (Sl 55,23); 2Pd 3,8 (Sl 90,4).

f) no Apocalipse: 1,5 (Sl 89,28); 2,23 (Sl 62,13); 2,26-27 (Sl 2,8-9); 9,20 (Sl 115,4; 135,15); 11,18b; 19,5 (Sl 115,13); 15,3 (Sl 92,6).

Parece obvia a relevância dos salmos nos escritos neotestamentários e, por conseguinte, de uso na Igreja nascente no anúncio e ensino da Boa-Nova. Alguns elementos se destacam:

a) a preferência dos autores neotestamentários pelos Sl 2; 22; 110; 118, evocando o aspecto messiânico;

b) o fato que os dois grandes apóstolos da Igreja primitiva se valham dos salmos para anunciar a ressurreição: Pedro recorre aos Sl 16,8-11 e 110,1 em At 2,25-28.34, e Paulo recorre aos Sl 2,7 e 16,10 em At 13,33-37. Hebreus recorre ao salmo para falar também da vinda de Jesus ao mundo (Hb 10,7.9; cf. Sl 40,8-9) e de seu sacerdócio (Hb 5,6.10; 6,20; 7,11.17.21; cf. Sl 110,4);

c) a Igreja se reúne para oração após a libertação de Pedro em At 4,23-30 e toma por base o Sl 2,1-2 (cf. At 4,25b-26);

d) Paulo recomenda o uso de salmos na vida cristã: “(…) em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais” (Cl 3,16) e “Falai uns aos outros com salmos e hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef 5,19).

Deste quadro se pode concluir que os salmos ocuparam lugar importante na expressão da fé da Igreja primitiva.

Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português.

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