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Novo Testamento (NT)

Sumário

1 Novo Testamento

2 Contexto sociohistórico e cultural

3 Documentação

4 Autoria

5 Evangelhos e Atos dos Apóstolos

6 Cartas paulinas (“Corpus paulinum”)

7 Cartas católicas ou gerais

8 O Apocalipse 

9 Cânon do Novo Testamento e apócrifos

9.1 O NT canônico

9.2 Textos extracanônicos ou apócrifos do NT

10 Importância e atualidade no Novo Testamento

10.1 A origem do fato cristão

10.2 A pessoa e a mensagem de Jesus de Nazaré

11 Referências

1 “Novo Testamento”

 O Novo Testamento (NT) é a parte da Bíblia cristã que conserva por escrito o testemunho a respeito de Jesus de Nazaré, testemunho do âmbito dos apóstolos de Jesus, que a Igreja, guiada pelo Espírito, reteve como referência e expressão fundamental da revelação de Deus em Jesus de Nazaré. São os documentos que testemunham o momento fundador do “fato cristão”.

O nome “Novo Testamento” (ou Pacto, Aliança) remonta ao conceito hebraico berît (“aliança, pacto atestado”) e aponta para a interpretação da ação de Jesus de Nazaré – especialmente o sacrifício de sua vida – como cumprimento da profecia da “nova aliança” segundo Jr 31,31-33 e textos análogos do Antigo Testamento (AT). No NT, a expressão ocorre em relação à última ceia de Jesus em Lc 22,20 (Mt 26,28; Mc 14,24) e 1Cor 11,25; e ainda em 2Cor 3,6; Hb 8,8; 9,15; 12,24.

O NT pode ser considerado um “reposicionamento” do marco referencial da tradição escritural de Israel (o AT), do êxodo do Egito, evento fundador da consciência israelita, para a atividade de Jesus Cristo, evento fundador do cristianismo. Nesse reposicionamento, as Escrituras de Israel não perderam sua validade, mas foram lidas na perspectiva do novo evento fundador.

O AT é antigo no sentido de “primordial” (há quem o chame de “primeiro Testamento”). Sem ele, o NT seria impensável. É por isso que a Igreja incluiu, nas suas Escrituras, as de Israel[2]. Jesus falava a linguagem religiosa de seu povo, portanto, do AT. Rezava os Salmos, livro de oração e louvor do AT. Discutia com os escribas sobre como interpretar a Torá: em nome da justiça e do amor, relativizava as prescrições rituais (ex: Mc 2,21–3,6; 7,1-23) e radicalizava as exigências éticas, acentuando seu embasamento no interior do coração e seu caráter universal, sem discriminação (ex: Mt 5,17-48).

Para a conservação do AT na Bíblia foi fundamental o fato de ali se encontrarem as profecias, fatos ou figuras do AT que podem ser interpretadas como prefiguração de Jesus, cuja obra então aparece como a plenitude das Escrituras[3]. Por isso, o cristão procura ler, no AT, aquilo que “faz surgir Jesus”[4]. Mas, para encontrar isso, é preciso conhecer bem o AT (“as coisas novas e as antigas”, Mt 13,52) e tornar-se “judeu com os judeus” (1Cor 9,20), especialmente, com o judeu Jesus de Nazaré.

O NT é o mais antigo testemunho da cristalização da fé em Jesus como Cristo (Messias), Filho de Deus e Salvador do mundo. Não contém uma teologia sistemática como se desenvolveu nos séculos ulteriores, sobretudo a partir dos grandes concílios ecumênicos dos séculos IV e V. É, antes, uma coleção de testemunhos, extremamente diversificados conforme os ambientes e as personalidades que os produziram.

2 Contexto sociohistórico e cultural

 O tempo ao qual se refere o NT comporta menos de um século: desde o nascimento de Jesus até o fim do século I. Mas é um tempo de grandes mudanças. A Palestina, como era chamada a terra de Jesus desde Alexandre Magno (330 a.C.), depois da relativa autonomia sob os hasmoneus (164-63 a.C.), tinha sido incorporada ao Império romano, que nomeara como autoridade local, primeiro, Antípater e, depois, o “rei” Herodes Magno. Esse foi sucedido, em 4 a.C., por seus filhos, os “tetrarcas”, Herodes Filipe (Golã), Arquelau (Judeia e Samaria) e Herodes Antipas (Galileia e Perea). Em 6 d.C., Arquelau foi substituído por um governador romano. Durante a vida pública de Jesus, por volta de 30 d.C., a Galileia era governada pelo “rei” Herodes Antipas e a Judeia pelo governador romano Pôncio Pilatos. Mais tarde, aparecerão como autoridades locais os “reis” Agripa I e II, também do clã de Herodes.

O espaço do NT é em primeiro lugar a terra de Jesus, a Palestina (Judeia, Samaria, Galileia). Depois de Jesus, o cenário se deslocará para as regiões na bacia oriental do mar Meditarrâneo, como se pode ver nos Atos dos Apóstolos.

O cenário sociopolítico é determinado pelo Império romano, onipresente por sua administração e seu exército. A política se fazia na base do clientelismo e do favoritismo: os  herodianos na Palestina eram “clientes” do Imperador (o “Cesar”) de Roma, o único que podia usar o título de rei (os herodianos tinham esse título por concessão; os romanos executaram Jesus por causa da acusação de se ter proclamado rei). As autoridades locais deviam recolher os pesados impostos que o Império exigia. Certo poder na vida cotidiana e na comunidade religiosa (que era também política) era atribuído às autoridades da comunidade judaica, os sumos sacerdotes e o Sinédrio. A economia, tradicionalmente rural, tornava-se sempre mais citadina e mercantil, enquanto os pequenos proprietários, muitas vezes, não conseguiam entregar os elevados tributos e se tornavam arrendatários ou, mesmo, escravos rurais. Para o tempo depois de Jesus é importante conhecer a situação urbana na diáspora fora da Palestina, onde os judeus (e, portanto, os primeiros cristãos) viviam em guetos sem direito de cidadania (Paulo era uma exceção: At 16,37-38; 22,25-28). Contrariamente aos costumes greco-romanos, os cristãos acolhiam os escravos nas suas comunidades.

Quanto à cultura, deve-se distinguir entre o ambiente judaico tradicional, que reinava em Jerusalém e na Baixa Galileia (Cafarnaum), e a cultura helenizada “global”, presente nos países vizinhos e, também, em grandes partes da Palestina (Samaria, Decápole e, mesmo, Jerusalém). No ambiente judaico, o culto era celebrado em hebraico e a língua cotidiana eram os dialetos aramaico-hebraicos. Nos ambientes helenizados (exército, comércio) falava-se grego (inclusive em certos ambientes em Jerusalém; cf. At At 6,9 – a sinagoga dos Libertos – e 21,37). A língua administrativa era o latim (cf. Jo 19,20). Para ler o NT é preciso ter consciência do pluralismo cultural até nas imediações de Jesus (a mulher samaritana, a siro-fenícia, Jesus na Decápole, o centurião de Cafarnaum etc.).

3 Documentação

Não temos nenhum documento “autógrafo” do NT (da mão do próprio autor). As “testemunhas textuais” mais próximas dos originais são os documentos escritos em papiro (material usado até os séculos III-IV d.C.), com fragmentos de praticamente todas as partes do NT. Muitas vezes unem diversos escritos em um só documento (os evangelhos, as cartas paulinas ou até todo o NT), atestando, assim, não apenas a antiguidade dos escritos individuais, mas também sua integração num cânon das Escrituras. Há casos privilegiados, como o pap. 66 (Bodmer II), datado por volta de 200 d.C., que conserva consideráveis partes do evangelho de João, que, segundo o consenso geral, teria recebido sua forma final pouco antes de 100 d.C. Trata-se, pois, de uma testemunha extremamente valiosa, distante um século apenas da escrita original, caso raríssimo para escritos da Antiguidade.

Além dos mais de cem papiros valiosos, dispomos dos códices, ou seja, volumes encadernados, escritos em pergaminho, que se tornam a forma normal de transmissão do NT a partir do século IV d.C., tempo dos grandes concílios. Os mais antigos, chamados “unciais”, são escritos só com maiúsculas e praticamente sem sinais de pontuação, o que suscita problemas de interpretação. Os manuscritos unciais mais famosos são o Codex Sinaiticus, encontrado no mosteiro dos monges greco-ortodoxos do monte Sinai, e o Codex Vaticanus, guardado no Vaticano. Ambos provêm da cuidadosa recensão (= restauração do texto) alexandrina (dos cristãos de Alexandria do Egito), considerada como altamente confiável[5].

Mais tarde, o texto grego (na língua original) continuou sendo copiado na Igreja greco-oriental, em letras cursivas minúsculas e com pontuação, na forma padronizada que se tornou conhecida também no Ocidente, no início da Era Moderna, quando se começou a imprimir a Bíblia. Ganhou o nome de textus receptus e é, ainda hoje, adotado como base em algumas traduções da Bíblia, até de divulgação mundial[6]. Mas as edições e traduções mais críticas preferem basear-se nos documentos mais próximos dos originais, sobretudo os papiros.

Além destas testemunhas em grego, os estudiosos recorrem também às traduções em diversas línguas antigas, principalmente em siríaco (próxima do aramaico) e em latim (África do Norte, Itália, Gália). Estas traduções remontam, às vezes, a formas do texto original anteriores aos documentos gregos hoje conhecidos; por isso são importantes para a crítica textual (busca da forma mais original do texto).

4 Autoria

A respeito dos autores do NT temos apenas certeza relativa. Os estudos críticos reconhecem Paulo como autor de suas “cartas autênticas” (cf. § 6), e há bastante unanimidade em reconhecer Lucas como o autor do evangelho que leva seu nome e dos Atos dos Apóstolos. Quanto aos outros escritos, nem sempre a autoria tradicionalmente aceita resiste aos questionamentos históricos. As cartas de Paulo mostram que ele se servia de secretários (em Cl 4,18, ele dá a entender que a carta foi escrita por um secretário, enquanto ele acrescentou a saudação “de próprio punho”). Esse foi certamente também o caso dos outros apóstolos. Em alguns casos, provavelmente, os escritos foram redigidos por discípulos para conservar a pregação de um apóstolo moribundo ou já falecido. O apóstolo ou evangelista é antes a “autoridade” do que o escritor no sentido moderno da palavra. Também as datas exatas em que os textos foram redigidos continuam objeto de pesquisa histórica e não são conhecidas de modo definitivo.

A inspiração e a verdade salvífica dos escritos não dependem da identidade do escritor, mas de seu valor como testemunho dos primórdios da fé. A inspiração não se situa no ato mecânico do escrever, mas na fé que a comunidade recebe e transmite por ação do Espírito Santo. Por isso, segundo a Igreja católica, o principal autor das Escrituras é o próprio Deus, servindo-se de autores humanos, que redigem os textos conforme os procedimentos válidos para toda literatura (cf. Concílio Vaticano II, Dei Verbum n.11).

5 Evangelhos e Atos dos Apóstolos

Embora os primeiros escritos do NT sejam as cartas paulinas (cf. § 6), o NT lhes antepõe os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, porque esses contêm a narrativa a respeito de Jesus, de seus seguidores e das primeiras comunidades, ou seja, a tradição das origens pressuposta para os demais escritos do NT.

Os evangelhos apresentam a narrativa da atividade de Jesus, sua mensagem e impacto; alimentam a pregação que é levada adiante por seus seguidores. Todos eles seguem o mesmo esquema fundamental: atividade de João Batista, pregação inicial de Jesus e, a partir de certo momento, o atrito com os mestres e chefes judaicos, culminando no conflito final, morte e ressurreição em Jerusalém.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são tão semelhantes que se deixam comparar em três colunas paralelas, numa sinopse. Por isso são chamados “sinópticos”, e a comparação entre eles chama-se a “questão sinóptica”. Hoje em dia, geralmente, aceita-se a seguinte hipótese:

1) Mateus e Lucas adotaram Marcos como narrativa básica (daí o acordo Mt = Mc = Lc).

2) Mateus e Lucas inseriram nessa narrativa uma coleção de palavras de Jesus, ausente em Marcos, e que os estudiosos chamam de “Q” (do alemão Quelle = “fonte”), hoje perdida; daí o acordo Mt = Lt (sem Mc). Mas esse acordo é relativo, porque Mateus e Lucas executaram essa operação de modo independente, inserindo as matérias de Q em lugares diferentes no roteiro dos seus respectivos evangelhos. Mesmo assim, o observador atento descobre relativa coincidência de ordem nas matérias de Q usadas por Mateus e Lucas.

Evidentemente, Mateus e Lucas integraram nos seus escritos também suas respectivas tradições particulares (p.ex. os “evangelhos da infância de Jesus”, que são diferentes em Mateus e em Lucas e não provêm nem de Marcos, nem de Q).

30-50: dC el Evangelio transmitido en la predicación apostólica oral

51-52: primeiras cartas de Paulo

50-60: coleção escrita das palavras de Jesus (Q)

65-70: Evangelho de Marcos

70: destruição do templo de Jerusalém

± 80 Mateus e Lucas

Pregação apostólica.

Tradições diversas

“tripla”: Marcos   “dupla”: Q

particular                                         particular

 

 

Mateus                                   Lucas

O quarto evangelho canônico, intitulado “segundo João”, segue o esquema narrativo fundamental dos três primeiros, mas com numerosas diferenças no modo de organizar a matéria (ordem diferente, seleção muito restrita dos gestos de Jesus) e no estilo (grandes diálogos e discursos em vez de breves parábolas).

Os Atos dos Apóstolos constituem a continuação do Evangelho de Lucas (cf. At 1,1-2). Descrevem o anúncio universal da salvação segundo o mandato de Jesus ressuscitado (At 1,8, cf. Lc 24,48) – o que é considerado devidamente encaminhado quando Paulo, missionário por excelência, chega a Roma, centro do mundo conhecido (At 28,16-31).

6 Cartas paulinas (“Corpus paulinum”)

Os primeiros escritos do NT são as cartas do apóstolo Paulo, escritas aproximadamente entre 50 d.C. e a morte de Paulo, em 64 (ou 67) d.C. A ordem canônica (como aparece na Bíblia o NT) não é necessariamente a ordem cronológica. Algumas, inclusive, podem ter sido publicadas depois de sua morte pelos discípulos (as dêutero e tritopaulinas).

Ordem canônica na Bíblia

Provável ordem cronológica e autenticidade
grandes cartas: Rm, 1 e 2Cor, Gl;

cartas do cativeiro: Ef, Fl, Cl;

primeiras cartas: 1 e 2 Ts;

cartas pastorais: 1e 2Tm, Tt e Fm;

carta aos Hebreus (Hb).

protopaulinas: 1Ts, 1 e 2Cor , Gl , Rm, Fl,  Fm, e talvez Cl;

deuteropaulinas: Ef, 2Ts;

tritopaulinas: as cartas pastorais 1 e 2 Tm, Tt;

atribuída a Paulo: Hb

1Tessalonicenses é, sem dúvida, a primeira carta de Paulo, banhada na espera da vinda gloriosa de Cristo para breve (“parusia iminente”). 2Tessalonicenses data de vários anos depois e reinterpreta essa perspectiva.

Entre as grandes cartas, costuma-se tomar 1Coríntios como porta de entrada no pensamento paulino, por causa de seu caráter bem concreto. O mesmo se diga da carta aos Gálatas, que opõe em tom polêmico a salvação pela graça de Cristo (a justificação pela graça) à confiança nas obras da Lei judaica, que Paulo considera válida para o passado judaico, mas inadequada para os não judeus que entram na comunidade cristã. A carta aos Romanos, às vezes chamada “o Evangelho de Paulo”, expõe a mesma ideia de modo mais sistemático e extenso. 2Coríntios é uma coleção de diversas cartas ulteriores, valiosa, sobretudo, por deixar transparecer a personalidade de Paulo. Tal acesso direto à pessoa de Paulo encontra-se também na carta aos Filipenses e no bilhete a Filêmon.

Na carta aos Colossenses aparece uma linguagem diferente, dialogando com o pensamento helenístico-gnóstico. Por isso questiona-se que seja do próprio Paulo, mas nada exclui essa possibilidade. Efésios é uma carta circular que amplia Colossenses (que se destinava a diversas comunidades, como mostra Cl 4,16).

Quanto às cartas pastorais, que já supõem certa organização das igrejas e são dirigidas não às comunidades, mas a seus chefes, a segunda carta a Timóteo tem maiores chances de ser de Paulo mesmo, já no fim de seu percurso; 1Timóteo e Tito (que repete 1Tm) parecem ser posteriores.

A carta aos Hebreus deve, por causa do tema e linguagem, ser atribuída a outro autor, provavelmente pertencente a uma comunidade paulina, o que explica sua conservação no Corpus Paulinum.

7 Cartas católicas ou gerais

A Carta de Tiago (Tg), as duas cartas com o nome de Pedro (1-2Pd), as três cartas de João (1-3Jo) e a Carta de Judas (Jd) são chamadas “católicas” ou “gerais” (significado do termo grego katholikós), à diferença das cartas de Paulo, destinadas (normalmente) a uma igreja particular. Mas essa diferença é relativa, pois também algumas cartas paulinas são “gerais” (Cl, Ef, cartas pastorais). As Cartas Católicas, junto com a Carta aos Hebreus, nos mostram algo da enorme diversidade teológica existente nas primeiras comunidades cristãs.

8 O Apocalipse

O último livro do NT, conhecido como Apocalipse ou Livro da Revelação, traz o nome de seu autor: João (Ap 1,4.9), mas não existe acordo sobre qual seja esse João. É um escrito do gênero apocalíptico, ou seja, de visões de revelação. Encerra o Novo Testamento, não só por causa de sua data tardia (cerca de 100 d.C.), mas sobretudo por causa de sua mensagem de esperança e sua grandiosa visão final, a nova Criação e a Jerusalém celeste (formando uma inclusão com o início da Bíblia, Gn 1-2).

9 Cânon do Novo Testamento e apócrifos

Reconhecendo nos textos anteriormente descritos os fundamentos de sua fé, a Igreja estabeleceu desde cedo o cânon, lista dos escritos que fazem parte do NT. Eles são referência e norma de nossa fé, mas não necessariamente “ao pé da letra”. Como a Bíblia inteira, também o NT deve ser entendido conforme o gênero e a finalidade de cada texto, dentro do espírito da comunidade de fé, que, fiel às suas origens, faz comungar seus membros na compreensão global e sempre atualizada da Palavra de Deus.

 9.1 O NT canônico

A canonização se deu pela recepção dos escritos nas comunidades (com a chancela dos seus pastores). O cânon (= lista, regra) surgiu como reação contra a proliferação incontrolável de escritos, e também contra a restrição proposta pelo gnóstico Marcião, que aceitava só dez cartas paulinas (devidamente expurgadas) e o evangelho “paulino” de Lucas, banindo as escrituras judaicas e tudo o que, no NT, soava judaico. Grande influência na progressiva canonização teve Irineu de Lião, que combateu os gnósticos e seus escritos, mostrando que o elitismo e a mente complicada deles se opunham diametralmente à proposta de Jesus.

Os primeiros indícios de recepção pela comunidade encontram-se ainda na fase da tradição oral: a constituição de coleções de sentenças e feitos de Jesus e, sobretudo, do relato de sua paixão, morte e ressurreição, para o qual aponta já o apóstolo Paulo, por volta de 52 d.C., em 1Cor 15,3-5 e 11,23-25. Por volta do ano 70, o evangelho de Marcos e a coleção de sentenças de Jesus (Q) são utilizados por dois escritos ulteriores, Mateus e Lucas. Todavia, existiam dúvidas em relação a muita coisa que se escrevia a respeito de Jesus, como mostram as observações críticas em Lc 1,1.

Não só as tradições orais e escritas a respeito de Jesus, mas também os escritos do apóstolo Paulo gozaram de rápido reconhecimento, como mostra 2Pd 3,15-16, recomendando a leitura das cartas de Paulo ao lado das “demais Escrituras” (= o AT). As cartas de Paulo eram, de fato, lidas em assembleia (1Ts 5,27) e permutadas (cf. Cl 4,16) ou passadas para outras igrejas (é o caso de Ef, derivada de Cl). Outras cartas eram escritas diretamente para várias igrejas (as “cartas católicas”, acima, § 6), recebendo rápida “canonização oficiosa”.

A constituição do cânon do NT não foi totalmente livre de percalços. Na igreja da Síria adotou-se, no fim do séc. II, um evangelho que fundia os quatro evangelhos canônicos em um só, o Diatessaron (= quatro-em-um) de Taciano. Este fato mostra que os quatro ainda não tinham o peso que receberiam ulteriormente. Mas a Igreja percebeu que reduzir os quatro evangelhos a um só seria uma grande perda.

O primeiro elenco dos livros do NT que conhecemos é o “cânon de Muratori”, texto do séc. II, descoberto pelo pesquisador Muratori, em 1740. Faltando a parte inicial, que certamente mencionava Mateus e Marcos, esse documento comenta Lucas, João, Atos, as cartas de Paulo, as cartas católicas e o Apocalipse. Faltam Hebreus e 2 Pedro, e de João são mencionadas apenas duas cartas em vez de três.

Uma distinção clara entre os escritos canônicos e os apócrifos/extracanônicos aparece na lista de Eusébio de Cesareia, no início do séc. IV. Deixa, porém, transparecer a dúvida que existe em torno do Apocalipse, que naquele momento ainda era recusado por bom número de teólogos. Atanásio, no fim do séc. IV, conseguiu romper as resistências a esse livro.

A canonização do NT acompanhou a da Bíblia inteira, no Concílio regional de Hipona (África do Norte), em 393, no Concílio de Cartago, em 419, no Concílio “in Trullo”, em 692, e no Concílio de Florença, em 1441. Lutero mostrava reservas em relação a Hb, Tg, Jd e Ap, mas não chegou a excluí-los. Embora o cânon existisse de facto anteriormente, a proclamação oficial do cânon bíblico pelo magistério católico só ocorreu no Concílio de Trento, em 1546, elencando Mt, Mc, Lc, Jo, At, Rm, 1 e 2Cor, Gl, Ef, Fl, Cl, 1 e 2Ts, 1 e 2Tm, Tt, Fm, Hb, Tg, 1 e 2Pd, 1, 2 e 3Jo, Jd, Ap. As igrejas orientais e protestantes aceitam o mesmo cânon para o NT.

9.2 Textos extracanônicos ou apócrifos do NT

Existem uns cinquenta livros dos primeiros séculos cristãos que se apresentam como evangelhos ou escritos dos apóstolos, mas não foram admitidos no cânon. São comumente chamados de apócrifos. As razões de sua não aceitação podem ser diversas. Alguns desses livros surgiram muito depois do tempo apostólico, mas outros são quase contemporâneos do NT (até o século II-III d.C.): Protoevangelho de Tiago, Evangelho de Pedro, Evangelho de Maria, Evangelho de Tomé… Nesse caso, não basta levarem o nome de algum apóstolo; a comunidade deve reconhecer nos escritos sua experiência de Deus em Jesus Cristo. Ilustra isso o seguinte exemplo. O Evangelho de Tomé, conservado em língua egípcia antiga, pode ser quase contemporâneo de 2Pd. Porém, não possui o espírito legítimo do evangelho de Jesus, como aparece nesta comparação da parábola do bom pastor em Mateus e no Evangelho de Tomé (os grifos são nossos):

Mt 18,12-14 Ev. Tomé, 107
Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e nove, indo procurar a que se extraviou? E quando a encontrar, em verdade vos digo que sentirá maior alegria por causa desta, do que pelas noventa e nove que não se extraviaram. Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos. O reino é semelhante a um pastor que tem cem ovelhas. Uma delas, a maior, se desgarrou. Ele deixou as noventa e nove e procurou até encontrá-la. Cansado, disse à ovelha: “Eu te amo mais do que às noventa e nove”.

O texto de Mateus (igual ao de Lc 15,4-6) acentua a universalidade do amor de Deus, especialmente para com os pequeninos. Qualquer filho pródigo, ao ser reencontrado, completa a alegria de Deus. Mas no evangelho de Tomé, trata-se da ovelha maior e mais bonita: é uma leitura elitista da parábola original de Jesus.

Observe-se, porém, que alguns escritos extra-canônicos não foram rejeitados tão radicalmente. Aqueles que contavam histórias populares e piedosas a respeito de Jesus, Maria, os anjos, Adão e Eva, entre outros, penetraram na catequese popular e continuam influenciando-a até hoje – não sem problemas, pois muitas vezes veiculam o dualismo e o antijudaísmo, além de realçarem questões periféricas, que com o essencial da fé pouco têm a ver. Há o perigo de privilegiar tudo o que parece estranho e curioso, acima da verdadeira fé cristã.

10 Importância e atualidade do Novo Testamento

10.1 A origem do fato cristão

O NT nos faz assistir à origem da fé dos primeiros discípulos e das primeiras comunidades cristãs em Jesus de Nazaré. Essas origens estão inseparavelmente ligadas a um determinado contexto cultural e histórico, que para a tradição cristã faz parte da “encarnação”, ou seja, da verdadeira humanidade de Jesus não só biologicamente, mas, sobretudo, histórica, social e culturalmente. O cristianismo não é, em primeiro lugar, um conjunto de simbolismos religiosos e/ou de máximas de sabedoria universais e supratemporais, mas um evento situado na história e “cúmplice” desta! Por isso, os escritos fundamentais do NT (e da tradição cristã) são narrativas da atuação e da pregação de Jesus de Nazaré, cada uma a seu modo. Na realidade, narram a chegada ao mundo de um novo paradigma, que podemos chamar o “fato cristão”, uma nova maneira mental e prática de considerar o mundo e de viver e organizar-se nele, em abertura a uma transcendência na qual se vê em Jesus a revelação indicativa: “Eu sou o caminho” (Jo 14,6).

10.2 A pessoa e a mensagem de Jesus de Nazaré

Segundo o NT, sobretudo segundo os quatro evangelhos canônicos[7], a atuação de Jesus de Nazaré consistiu fundamentalmente em anunciar a chegada do Reino de Deus (Mc 1,14-15 paral.), ou seja, de uma nova realidade, não mais dominada pelos interesses religiosos e políticos vigentes, mas pelo projeto do amor de Deus para com todos os seres humanos (cf. Mt 5,45-48), realizando a esperança de paz e fraternidade do tempo final (ver escatologia). Na sua expressão concreta em palavras e gestos, essa mensagem destoou, por um lado, das estruturas estabelecidas, e também, por outro lado, de certas expectativas messiânicas inadequadas que reinavam entre o povo (cf. Mc 8,27-33). Por isso, Jesus teve de enfrentar uma bastante previsível oposição, a ponto de ser condenado pelas próprias lideranças do povo, em conluio com a potência imperial de Roma, que dominava a terra de Israel naqueles dias. Depois de sua morte, porém, Jesus apareceu, ressuscitado e vivo, aos seus seguidores, que, organizando-se em comunidades, se empenharam em guardar e levar adiante sua mensagem e seu modo de viver.

As comunidades conservaram também testemunhos do modo como assumiram o caminho de Jesus de Nazaré. Tal testemunho nos foi legado em forma narrativa por Lucas, no livro dos Atos (cf. a comunidade como “o caminho”, At 9,2; 19,5; 22,4; 24,14.22), mas também em forma de instruções, nas cartas de Paulo e dos demais mestres das comunidades, inclusive no Apocalipse de João, que inicia com uma avaliação crítica das sete igrejas da região de Éfeso (Ap 1-3).

Este “caminho” não estancou quando as primeiras comunidades findaram, e o próprio fato de elas terem transmitido os testemunhos daqueles momentos iniciais prova que o “caminho”, ou o “fato cristão”, continua até hoje. Ele passa, porém, por contínuas reconfigurações e, em função disso, por contínuas releituras dos escritos fundadores, enriquecidas não só pela sucessão temporal, mas também pela pluralidade simultânea de diversas interpretações.

Este dinamismo faz com que o NT não possa ser considerado como testemunho de um passado morto, mas se apresenta como inspiração de um caminho vivo e continuamente reinventado, sem perder sua identidade, como o mar, que é sempre diferente e sempre o mesmo.

Daí que, para o cristão crente, o NT não é apenas um documento arqueológico das origens de sua tradição religiosa, mas a referência permanente e sempre de novo inspiradora para sua existência e práxis histórica. Ser fiel significa: fazer acontecer, sempre de novo e em constelações históricas novas, o “evento Jesus” de que o NT dá um testemunho único e insubstituível.

Johan Konings, SJ, FAJE, Brasil. Texto original português. Submetido em 25/06/2014; aprovado em 20/08/2014; publicado em 13/10/2014.

Referências

BORNKAMM, Gunther. Bíblia Novo Testamento: introdução aos seus escritos no quadro da história do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1981.

BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2012.

MAINVILLE, Odete (org). Escritos e ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2002.

GILBERT, Pierre. Como a Bíblia foi escrita: introdução ao Antigo Testamento e ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1999.

KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: historia, cultura e religião do período helenístico. São Paulo: Paulus, 2005. 2v.

KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

KÜMMEL, Wener Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.

LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. 3.ed. São Leopoldo: Sinodal, 1980.

SCHNELLE, Udo. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.

STOTT, John. Homens com uma mensagem: uma introdução ao Novo Testamento e seus escritores. Campinas: Cristã Unida, [1996].

VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva: introdução ao Novo Testamento, aos apócrifos e aos pais apostólicos. São Paulo: Academia Cristã, 2005. (Historia de la literatura cristiana primitiva: introducción al Nuevo Testamento, los apócrifos y los padres apostólicos. Salamanca: Sigueme, 1991.)

[1] Para as abreviações dos livros bíblicos, ver Abreviações bíblicas.

[2] Contrariamente à posição do teólogo herege Marcião (séc. II).

[3] Acerca do uso do AT no Novo, leia-se: DODD, C. H. Segundo as Escrituras: estrutura fundamental do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979.

[4] Cf. Martinho Lutero: “was Christum treibt” (Tischreden, Weimarer Ausgabe 38, 364, 25-27).

[5] Além de Alexandria houve outros centros de recensão do texto do NT, principalmente em Cesareia da Palestina e em Bizâncio.

[6] Isso explica, entre nós, a diferença entre as diversas edições da tradução de João Ferreira de Almeida (séc. XVII, continuada nos séculos ulteriores): a “corrigida e fiel” (ACF) e a “revista e corrigida” (ARC), que têm por base o textus receptus, e a “revista e atualizada” (ARA), que adota o “texto crítico”, isto é, atualizado com base nas recentes descobertas de antigos documentos. Todas elas publicadas pela Sociedade Bíblica Brasileira.

[7] A respeito dos evangelhos apócrifos, ver Textos extracanônicos.

Ecumenismo

Sumário

1 O significado do termo “ecumenismo”

2 A história do movimento ecumênico

2.1 Associações cristãs

2.2 A missão em perspectiva ecumênica

2.3 Dois movimentos da unidade cristã

2.4 O Conselho Mundial de Igrejas

2.5 As assembleias do Conselho Mundial de Igrejas

3 As Igrejas e o movimento ecumênico

4 O ecumenismo no Concílio Vaticano II

4.1 O Decreto Unitatis redintegratio

4.2 O Diretório ecumênico

4.3 As estruturas ecumênicas

5 O ecumenismo na América Latina

6 Frutos do ecumenismo

7 Desafios para o ecumenismo na atualidade

8 Referências bibliográficas

 1 O significado do termo “ecumenismo”

O termo “ecumenismo”, tradução portuguesa do conceito grego oikoumene, é encontrado pela primeira vez em Heródoto (séc. V). Designa a “terra habitada”, no sentido geográfico. Desse sentido, passa-se ao de “habitantes da terra”, indicando toda a humanidade. Para os gregos, o elemento que unifica a oikoumene é a cultura helênica. Os romanos traduzem esse termo como ecumene, colocando como elemento unitivo a ordem jurídica, a organização política da orbis romanus.

É neste sentido profano que se encontra o termo “ecumenismo” na bíblia. Na tradução dos LXX, ele está, sobretudo, nos salmos e no livro de Isaías. No segundo testamento, oikoumene aparece 15 vezes: com o sentido de “a terra habitada” (Mt 24,14; Lc 4,5; 21,26; Rm 10,18; Hb 1,6), “os habitantes da terra” (At 17,31; 19,27; Ap 12,9), e em relação com a orbis romanus (Lc 2,1; At 24,5).

Na bíblia, “ecumenismo” ganha também um sentido religioso, indicando o mundo inteiro e que tudo o que esse possui recebeu de Deus criador e a Deus pertence: “a mim pertence o mundo e o que ele contém” (Sl 49,12; também Is 10,14). A oikoumene/mundo é onde se realiza a história da salvação, onde acontece o pecado, a ação dos profetas, a encarnação. Deus julgará o mundo (Is 10,14-23; Lc 21,6; Ap 3,10; At 17,31); envia os profetas e os apóstolos para mostrar o caminho da salvação (Sl 48,2; Mt 24,14); o mundo será salvo, enfim, por Cristo que o glorificará (Hb 2,5).

Na patrística, ecumenismo ganha sentido eclesiológico, associado com frequência à Igreja católica espalhada por toda a terra. Os termos “católico” e ecumene se justapõe: a Igreja é católica, isto é, espalhada por toda a terra (oikoumene). Orígenes entende que a doutrina e a piedade cristãs encheram a terra (De principiis, L. IV, n.5) e trata dos que habitam a oikoumene da Igreja de Deus (Ps., XXXII, 8). Para Basílio, a Igreja deve ser difundida por toda a terra e chegar a todas as pessoas, agrupando nela a diversidade das condições humanas (Homilia in Ps., 48).

Ao longo da história do cristianismo, o termo ecumenismo foi considerado como expressão de comunhão na fé pela adesão às doutrinas definidas nos “concílios ecumênicos”. Com a divisão dos cristãos, sobretudo a partir do século XVI, o ecumenismo vai ganhando o sentido de esforço para restabelecer a unidade rompida. É nesse sentido que, a partir do século XIX, surgem iniciativas de diálogo entre Igrejas separadas, dando origem ao atual “movimento ecumênico”.

2 A história do movimento ecumênico

 2.1 Associações cristãs

No final do século XVIII, surgiram na Europa fenômenos políticos, sociais e culturais como a Revolução Francesa, o racionalismo, a revolução industrial, o capitalismo e o socialismo, o liberalismo, que exigiram um posicionamento das Igrejas. Esse posicionamento foi diferenciado conforme cada igreja, entre o fechamento e a condenação da realidade social, de um lado, e a integração e diálogo com essa realidade, de outro.

Nesse contexto surgiram várias associações cristãs, que influenciariam decisivamente no futuro movimento ecumênico. Destacam-se: a Associação Cristã de Jovens (1844) e Associação Cristã de Mulheres Jovens (1854), a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (1895). A preocupação não era, na verdade, aproximar as Igrejas mas evangelizar a sociedade e os meios universitários, buscando a “ampliação do Reino de Deus entre a juventude” (NEILL, p.327-9). Entretanto, essas associações favoreceram as relações e intercâmbios entre as Igrejas. Três elementos contribuíram para isso: 1) o internacionalismo das associações, que fundam novas sedes e isso exige um contato estreito com as Igrejas; 2) a competência para organizar eventos internacionais, que torna seus líderes peritos das futuras assembleias ecumênicas; 3) a preocupação missionária, com interesse sobretudo pelas “igrejas jovens” da Ásia e da África, ajudando as demais Igrejas a uma unidade na missão (NAVARRO, p.121).

A conferência para a paz, celebrada em Haia (1907), deu origem à Aliança Mundial para a Amizade Internacional, congregando as Igrejas para, na iminência da Guerra Mundial, atuarem na promoção da paz. Uma conferência protestante realizada em Lausanne e outra católica em Lieja, ambas em agosto de 1914,  redigiram resoluções em favor da paz. Não evitaram a guerra, mas desenvolveram a cooperação ecumênica em favor da paz e do atendimento aos atingidos.

2.2 A missão em perspectiva ecumênica

Tais iniciativas prepararam o terreno para as Igrejas realizarem debates sobre a relação entre missão e unidade (Londres, 1888; Nova Iorque, 1890). Sentia-se a necessidade da cooperação, do testemunho comum, da interação ecumênica nos projetos missionários confessionais. Chegou-se, assim, ao grande evento que marca, de fato, a origem do movimento ecumênico moderno, a Conferência Missionária Internacional, realizada em Edimburgo, em 1910. Participaram dessa Conferência 1.200 delegados de 159 sociedades missionárias. O tema da Conferência foi “Problemas que surgem no confronto entre missões cristãs e religiões não-cristãs”. Dessa Conferência surge, em 1921, o Conselho Missionário Internacional (Lake Mohonk, EUA), que se integrará ao Conselho Mundial de Igrejas na Assembleia Geral em Nova Delhi (1961).

2.3 Dois movimentos da unidade cristã

Dois outros movimentos são criados para fortalecerem a aspiração ecumênica manifestada em Edimburgo: 1) Vida e Ação, que busca unir as Igrejas em projetos de ação social. A inspiração foi do arcebispo luterano da Suécia, Nathan Soderblom (1866-1931), que buscava unir as hierarquias eclesiásticas dos países em guerra. Em 1920, Soderblom convocou uma conferência mundial com o nome de Vida e Ação, que se realizou em Estocolmo, em 1925, tratando de questões sociais como a economia, a moral, as relações internacionais, a educação cristã, os métodos de cooperação e federação. Não se tratou de questões dogmáticas, por entender-se que “a doutrina divide, a ação une”. Em 1937, foi realizada uma segunda conferência em Oxford, refletindo sobre “Igreja, Nação, Estado”, condenando o fascismo e o Estado transformado em ídolo.

2) O segundo movimento é Fé e Constituição, que surgiu por iniciativa do bispo anglicano Charles H. Brent (1862-1929), na Conferência realizada em Lausanne, em 1927, debatendo questões doutrinais como a unidade, a evangelização, a natureza da Igreja, a confissão da fé, o ministério, os sacramentos. Uma segunda conferência realizada em Edimburgo, em 1937, refletiu sobre a graça de Jesus Cristo, a Igreja de Cristo e a palavra de Deus, a comunhão dos santos, a Igreja, o ministério e os sacramentos, a unidade da Igreja na vida e no culto.

2.4 O Conselho Mundial de Igrejas

Os dois movimentos vistos acima tentaram formar um Conselho Mundial de Igrejas numa reunião em Utrecht, em 1938. Mas isso só aconteceu de fato em 1948, em Amsterdã.

O Conselho Mundial de Igrejas é o fruto mais maduro da aspiração pela superação da divisão dos cristãos. Ele é hoje composto por 349 Igrejas de todas as tradições eclesiais, exceto o catolicismo, e busca manter entre as igrejas-membros um diálogo estável e projetos de cooperação que fortaleçam as relações fraternais. A ideia de um conselho de Igrejas se manifestava com frequência desde a Conferência de Edimburgo (1910). Foi proposta pelo patriarcado de Constantinopla em 1920 como uma liga de igrejas, e pelos bispos anglicanos na Conferência de Lambeth (1920), além da tentativa dos movimentos Vida e Ação e Fé e Constituição, em Utrech (1937). Dessa última tentativa, surgiu o “Comitê dos Quatorze”, que em 1938 reuniu-se novamente em Utrech e criou um comitê provisório para pensar a criação de um Conselho de Igrejas. Após duas reuniões desse comitê (Clarens, na Suíça, em 1938 e Saint-Germain, na França, em 1939), os trabalhos foram dificultados por causa da Guerra, até 1948, quando se realizou a assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdã, com a presença de 147 Igrejas.

O Conselho Mundial de Igrejas não é uma “super Igreja”, nem a Igreja universal, nem a Una Sancta. Ele não toma decisões em nome das Igrejas e a sua teologia não expressa uma concepção particular de igreja confessional, como também as Igrejas não consideram relativas suas eclesiologias por causa de sua pertença ao Conselho (Wisser´t Hooft, p.278). Para ser membro do Conselho é necessário aceitar a base doutrinal aprovada na Assembleia em Nova Delhi (1961):

(…) o Conselho Mundial de Igrejas é uma associação fraternal de Igrejas que creem em Nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador segundo as Escrituras e se esforçam por responder conjuntamente à sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo (Nouvelle-Delhi, 1961, Rapport de la Troisième  Assemblée – Delaxaus et Niestlé, Neuchâtel, 1962, 147-148).

2.5 As assembleias do Conselho Mundial de Igrejas

 O Conselho Mundial de Igrejas desenvolve suas atividades por muitas formas e através de diferentes meios, como o Instituto Ecumênico de Bossey, o escritório do Conselho em Nova Iorque, o departamento de comunicações, com seus boletins, revistas, livros e gravações em diferentes línguas, bem como a biblioteca que possui em sua sede em Genebra. Mas o trabalho de articulação maior entre as Igrejas acontece nas Assembleias Gerais, dez já realizadas ao longo de sua história. A saber:

1) Amsterdã, 1948participam 147 Igrejas de 44 países. O tema geral foi “A desordem do homem e o desígnio de Deus”; 2) Evanston, 1954 participaram 162 Igrejas, tendo como tema geral “Cristo, única esperança do mundo”; 3) New Delhi, 1961, com a presença de 198 Igrejas cristãs e o tema geral “Cristo, luz do mundo”; 4) Upsala, 1968 – o tema foi “Eu torno novas todas as coisas”; 5) Nairóbi, 1975contou com 286 Igrejas-membros e refletiu sobre o tema “Jesus Cristo liberta e une”; 6) Vancouver, 1983teve como tema geral “Jesus Cristo, vida do mundos”; 7) Camberra, 1991 –  participaram 317 Igrejas e o tema geral foi “Vem, Espírito Santo, renova toda a criação”;  8) Harare (Zimbabwe), 1998, com o tema “Buscar a Deus com a alegria da esperança”; 9) Porto Alegre, 2006, com o tema “Deus, em tua graça transforma o mundo”; 10) Busan (Coreia do Sul), 2013, com o tema: “Senhor da vida, conduz-nos à justiça e à paz”.

3 As Igrejas e o movimento ecumênico

As diferentes tradições cristãs logo se integraram no movimento ecumênico, desde suas origens. Nas associações e no movimento missionário, havia representantes de praticamente todas as Igrejas do protestantismo, do anglicanismo e das tradições ortodoxas. Os cristãos protestantes são pioneiros das iniciativas ecumênicas. Dentre eles destacam-se o metodista John Mott (1865-1955), o luterano Nathan Soderblon (1866-1931), o reformado holandês Willem Adolf Visser’t Hooft (1901-1985), os metodistas Philip Potter (1921) e Emílio Castro (1927-2013). Esses, entre muitos outros, contribuíram significativamente para que as Igrejas luteranas, reformadas e metodistas aderissem ao movimento ecumênico desde suas origens.

Os anglicanos foram impulsionados ao diálogo ecumênico pelo Movimento de Oxford (1833-1845), que buscava recuperar as tradições primitivas do cristianismo, que muito favoreceu para o diálogo com a Igreja católica, sobretudo pelos esforços de Henry Newmann (1801-1890). Esse diálogo foi fortalecido pelas Conversações de Malinas (1921- 1926), junto com o padre Portal e o cardeal Mercier.  A Conferência de Lambeth, em 1920, apresentou quatro elementos fundamentais para a reconstituição da unidade da Igreja: as Escrituras, o Símbolo de Niceia e dos Apóstolos, os sacramentos e os ministérios. Com relação aos ortodoxos, ainda em 1902, o patriarca Joaquim III de Constantinopla publicou uma encíclica que muito incentiva o ecumenismo. Em 1920, os doze metropolitas do Sínodo de Constantinopla também publicaram uma carta encíclica propondo a criação de uma liga das igrejas e apresentando elementos pastorais para isso.

A Igreja católica teve duas posições frente ao movimento ecumênico: a) resistência ao diálogo – reiteradas vezes as autoridades católicas recusaram o convite para participarem das iniciativas ecumênicas. Entre outras: em 1910, pela ocasião da Conferência de Edimburgo; em 1925, na criação do Movimento Vida e Ação; em 1927, na criação do Movimento Fé e Constituição; em 1948, na assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas. A primeira vez que a Igreja romana enviou delegados oficiais em um encontro ecumênico foi em 1961, na assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, em Nova Delhi.  b) integração na caminhada ecumênica: a abertura para o ecumenismo na Igreja católica surge apenas em meados do século XX, com a instrução do Santo Ofício Ecclesia Catholica (conhecida como De motione oecumenica), de 20 de dezembro de 1949, reconhecendo a importância do movimento ecumênico e apresentando os critérios para os católicos dele participarem. Trata-se do primeiro pronunciamento oficial da Igreja Católica Romana que valoriza o movimento ecumênico, entendendo-o como uma “inspiração da graça do Espírito Santo”.

O caminho da Igreja católica para o ecumenismo foi aberto em cinco direções:

1) na teologia – as primeiras intuições ecumênicas no meio católico são encontradas em teólogos do século XIX, sobretudo Johann Adam Möhler (1796-1838) e John Henry Newmann (1801-1890), que propunham uma concepção de unidade eclesial que supera a perspectiva institucionalista, juridicista e visibilista, própria da eclesiologia da “sociedade perfeita” de então. Mas os esforços mais consequentes surgem mesmo no século  XX, tendo como marco a obra de Y. M. J. Congar, Chrétiens Désunis. Principes d´un oecuménisme catholique (1937). Na mesma direção estão K. Rahner, H. Urs Von Balthasar e J. Danielou, apenas para citar os que mais influência tiveram no Concílio Vaticano II.

2) na espiritualidade – o Papa Leão XIII, no seu Breve Providae Matris (1865),  recomendou uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na primeira semana de Pentecostes. Em 1867, escreve, na Carta Encíclica Divinum illud múnus, sobre o valor da oração em que se pede que o bem da unidade dos cristãos possa amadurecer. A Semana de Oração ganha força originalmente no meio protestante e anglicano, a partir de 1908. Quando a Society of the Atonement se tornou corporativamente membro da Igreja católica, o Papa Pio X concedeu, em 1909, a sua bênção oficial à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos no mês de janeiro. Mas foi Bento XV que a introduziu de maneira definitiva na Igreja católica. Em 1937, o padre Paul Couturier (1881-1953), junto com Paul Wattson (1863-1940), fortaleceram ainda mais a Semana de Oração pela Unidade, integrando decididamente as comunidades católicas. É significativo o fato de o papa João XXIII ter anunciado a realização do Concílio Vaticano II no dia 25 de janeiro de 1959, encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos.

3) na criação de organismos ecumênicos – o monge beneditino Lambert Beauduin (1873-1960) fundou, em 1925, os “monges da união”, na Bélgica, e, em 1939, a revista Irenikon, ainda hoje uma das principais nos meios ecumênicos. Uma série de outros organismos ecumênicos vão surgindo pela iniciativa de católicos romanos, como o Centro Istina (Paris), o movimento Una Sancta (Alemanha), o Centro Pro Unione (Roma).

4) na busca do diálogo estável – entre os anos 1921 e 1925, um grupo de teólogos anglicanos e católicos romanos desenvolveram conversações doutrinais (Malines) de fundamental importância para a unidade das duas Igrejas.

5) na ação social – cristãos de diferentes igrejas solidarizaram-se nos esforços pela promoção humana, sobretudo durante os dois grandes conflitos mundiais.

4 O ecumenismo no Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II (1962-1965) teve como um dos seus principais objetivos promover a unidade dos cristãos (Unitatis redintegratio, n.1). Na intenção do papa João XXIII, o ecumenismo não era um tema de segunda importância, mas um dos elementos que configuram a Igreja conciliar, em seu ser e em seu agir. E para se fortalecer como um objetivo do Vaticano II, o ecumenismo perpassa a teologia, a espiritualidade, a eclesiologia, a missiologia do concílio. Tornou-se uma perspectiva da discussão dos padres conciliares em praticamente todos os 16 documentos conclusivos do concílio, tendo como passagens mais significativas: LG 8.13.15; CD 16; OT 16; DV 22; AA 27; GS 92; PO 9; AG 6.15.29.36.39.

O Vaticano II foi um fato ecumênico. Mostram isso o seu objetivo, a explicitação da dimensão ecumênica das diferentes temáticas do concílio, a presença dos observadores cristãos não católicos romanos na Assembleia dos padres conciliares.[1] A publicação do Decreto sobre o Ecumenismo, Unitatis Redintegratio, em 21 de novembro de 1964, foi a expressão maior da convicção ecumênica da Igreja conciliar.

4.1 O Decreto Unitatis redintegratio 

O Decreto sobre o De oecumenismo foi tratado nos três períodos do concílio. Isso serviu como atualização ecumênica aos padres conciliares, o que possibilitou o documento final, em três capítulos: princípios do ecumenismo (cap. I), a prática do ecumenismo (cap. II) e a relação com as tradições eclesiais do Oriente e do Ocidente, considerando as especificidades de cada uma (cap. III).

O Decreto entende que a divisão dos cristãos “contradiz abertamente a vontade de Cristo”, é “escândalo” e prejudica a pregação do Evangelho (UR n.1). Para mudar essa realidade surge o movimento ecumênico, por moção do Espírito Santo, como uma “divina vocação” e “graça” a todos os cristãos. Dentre os princípios que orientam a ação ecumênica, o concílio destaca: o entendimento que a Igreja de Cristo é una e única, pois sendo Cristo um só, uma só é a comunidade que Ele quer para todos seus discípulos (Jo 17,21); a unidade cristã é significada e realizada na Eucaristia; tem como princípio o Espírito Santo e como modelo a Trindade; é vivida em uma só fé, num mesmo culto e na fraterna concórdia; e se organiza na história em fidelidade aos Doze, tendo Pedro à sua frente (UR n.2). É reconhecida a eclesialidade das Igrejas oriundas das reformas dos séculos XVI-XVIII, conferida pelos elementos ou bens da Igreja de Cristo nelas presente, como a Palavra de Deus, a vida da graça, a fé, a esperança e a caridade (UR n.3; LG n.15). Por esses elementos, “o Espírito de Cristo não recusa a servir-se delas como meios de salvação” (UR n.3).   

Nas orientações práticas para a ação ecumênica, o Decreto destaca: os esforços por eliminar palavras, juízos e ações que separam os cristãos (UR n.4). E enfatiza: o ecumenismo deve interessar a todos, fiéis e pastores (UR n.5); ele possibilita a renovação da Igreja e a fidelidade à sua própria vocação (UR n.6); exige a conversão do coração e da mente, a humildade e a generosidade para com os outros (UR n.7); se fortalece na oração comum, “alma de todo o movimento ecumênico” (UR n.8); é fundamental o conhecimento mútuo, pelo estudo das doutrinas, espiritualidades e costumes das tradições eclesiais (UR n.9), bem como a formação ecumênica (UR n.10); propõe um método na exposição da doutrina que considere a hierarquia das verdades (UR n.11); incentiva a  cooperação das Igrejas na ação social (UR n.12).

4.2 O Diretório ecumênico               

A partir das orientações ecumênicas do Concílio Vaticano II, o então Secretariado para a Unidade dos Cristãos emanou normas e critérios para a atuação ecumênica dos cristãos católicos. O principal documento é o Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, publicado em etapas: em 1967, tratando das comissões ecumênicas diocesanas e nacionais, o mútuo reconhecimento do batismo, e a comunhão nas coisas espirituais; em 1970, apresentando os princípios e a prática ecumênica na formação em colégios, universidades e seminários; e em 1993, atualizando as mudanças ocorridas no Código de Direito Canônico (1983).

O Diretório ecumênico visa “fornecer normas gerais universalmente aplicáveis para orientar a participação católica na atividade ecumênica” (n.7). É composto por cinco capítulos: as razões da busca da unidade dos cristãos; a organização do serviço da unidade no interior da Igreja romana; a formação para o ecumenismo; a comunhão de vida e de atividade espiritual entre os batizados; e a cooperação ecumênica, o diálogo e o testemunho comum. Esses temas são apresentados à luz do Concílio, buscando “reforçar as estruturas que foram já preparadas para manter e orientar a atividade ecumênica a todos os níveis da Igreja” (n.6).

4.3 As estruturas ecumênicas

A realização do ideal da unidade exige condições estruturais que possibilitem sua concretude, destacando-se:

a) Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos

No dia 5 de junho de 1960, o papa João XXIII instituiu o Secretariado para a Unidade dos Cristãos para ajudar a Igreja católica a melhor integrar-se no movimento ecumênico, contribuindo para que todos os cristãos encontrem “mais facilmente a estrada para alcançar aquela unidade pela qual Cristo rezou”. A atuação do Secretariado foi fundamental para colocar o ecumenismo em foco no Concílio. Ele foi responsável pelas conversações com as Igrejas para que enviassem seus representantes no Concílio e para que enviassem também suas observações sobre os temas a serem estudados.  A ele coube a responsabilidade dos documentos promulgados pelo Concílio sobre ecumenismo, liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), relações da Igreja com as religiões (Nostra Aetate) e divina revelação (Dei Verbum), este último preparado conjuntamente com a comissão teológica. O Secretariado foi também responsável pelas relações religiosas da Santa Sé com os hebreus, criando o comitê internacional de relações entre católicos e hebreus. Após o Concílio, em 3 de janeiro de 1966, o papa Paulo VI confirmou o Secretariado como instituição permanente da Cúria Romana, especificando sua estrutura e competências. Esse organismo continua como o responsável, no âmbito universal, pela orientação ecumênica dos cristãos católicos e a articulação do  diálogo da Igreja católica com as outras Igrejas e organizações ecumênicas. Em 1989, o papa João Paulo II reestruturou o Secretariado dando-lhe o nome de Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

b) As comissões de diálogo bilateral e multilateral

A partir das relações oficiais estabelecidas com as Igrejas, formaram-se comissões (bilaterais e multilaterais) de diálogo com organismos representantes das mais diferentes tradições eclesiais. Em nossos dias, consolidou-se, no nível nacional e internacional, uma vasta rede de diálogos bilaterais e multilaterais, envolvendo quase todas as Igrejas. Esses diálogos são oficiais, porque autorizados pelas respectivas autoridades eclesiásticas, que nomeiam delegados para tratarem de questões doutrinais, buscando superar as divergências na compreensão e vivência da fé no Evangelho e na Igreja. Atualmente, a Igreja católica participa de 70 dos 120 Conselhos de Igrejas existentes no mundo; em 14 Conselhos Nacionais e em 3 dos 7 Conselhos Regionais. Além disso, ela compõe 16 comissões de diálogo bilateral tratando das mais variadas questões, como autoridade na Igreja, Eucaristia, ministérios, eclesiologia, etc.[2]

c) As comissões nacionais e diocesanas para o ecumenismo

Para que as orientações ecumênicas do Vaticano II cheguem às igrejas diocesanas e às comunidades paroquiais, o Concílio Vaticano II confiou o trabalho ecumênico especialmente “aos Bispos de todo o mundo, para que o promovam e orientem com discernimento”. Esta diretiva, muitas vezes aplicada individualmente por Bispos, por Sínodos das Igrejas Orientais Católicas ou por Conferências Episcopais, foi incluída nos Códigos de Direito Canônico (can.755). Mais, orienta-se que em cada conferência episcopal exista alguma organização, comissão ou setor, que motive a recepção e vivência das orientações ecumênicas do Concílio. A eles cabe incentivar para que também nas dioceses exista alguma estrutura que motive a ação ecumênica da igreja local, função desenvolvida pelo delegado e uma comissão diocesana para o ecumenismo (Diretório, n. 44).

5 O ecumenismo na América Latina

O ponto de partida do movimento ecumênico na América Latina pode ser encontrado no descontentamento dos missionários latino-americanos sobre a forma como a Conferência Missionária, realizada em Edimburgo (1910), desconsiderou a América Latina de suas preocupações. Esses realizaram uma reunião em Nova Iorque (1913) onde criaram um Comitê de Cooperação para a América Latina. O Comitê realizou o Congresso da Ação Cristã na América Latina, no Panamá (1916) – primeiro evento ecumênico latino-americano – com o objetivo de compreender os desafios para a missão no continente e estabelecer pistas de cooperação intereclesial. Outros congressos semelhantes foram realizados, como Montevidéu (1925) e La Habana (1929), até se chegar a realização de várias Conferências Evangélicas Latino-Americanas – CELA (Argentina, 1949; Peru, 1961; Buenos Aires, 1969, entre outras). Essas conferências deixaram clara a necessidade de se dar uma expressão orgânica aos anseios de um maior intercâmbio, cooperação e coordenação das relações intereclesiais, o que deu origem à Unidade Evangélica Latino-Americana – UNELAM (Campinas, 1969). Essas iniciativas possibilitaram desenvolvimento da consciência ecumênica numa significativa parte do mundo evangélico latino-americano, e logo sentiu-se a necessidade de um novo organismo que possibilitasse a afirmação do projeto ecumênico na região, frente aos novos desafios que emergiam, tanto do interior das Igrejas quanto da realidade social a partir dos anos 70 do século XX. Surgiu, assim, o Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI (Peru, 1982), principal organismo ecumênico no âmbito evangélico no continente na atualidade, constituído por cerca de 150 Igrejas batistas, congregacionais, episcopais, evangélicas unidas, luteranas, morávias, menonitas, metodistas, nazarenas, ortodoxas, pentecostais, presbiterais, reformadas, valdenses, assim como organismos cristãos especializados em áreas de pastoral da juventude, educação teológica, educação cristã, em 21 países da América Latina e do Caribe.

O CLAI tem como objetivos principais: promover a unidade entre as Igrejas; apoiar a tarefa evangelizadora de seus membros; promover a reflexão e o diálogo sobre a missão e o testemunho cristão no continente. Assim, o CLAI se propõe como espaço de encontro, formação, diálogo, cooperação, incidência pública e articulação, em relação a processos, dentro do universo ecumênico, inter-religioso e em relação à sociedade civil e aos organismos multilaterais. Está estruturado em cinco Secretarias Regionais: México e Mesoamérica (Manágua, Nicarágua), Caribe e Grã-Colômbia (Barranquillla, Colômbia); Andina (Santiago, Chile); Rio da Prata (Buenos Aires, Argentina) e Brasil (Londrina).

Naturalmente, não são apenas as Igrejas evangélicas que realizam o ecumenismo na América Latina. As Igrejas anglicanas, ortodoxas e católica romana também têm suas organizações ecumênicas e também integram organismos ecumênicos com a presença de Igrejas evangélicas em cada nação, a exemplo do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC (1982). Situam-se aqui, por exemplo, o setor de ecumenismo nas conferências episcopais da Igreja católica em cada país e o Departamento de Comunhão Eclesial e Diálogo, do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM (1955), que tem a responsabilidade de promover o ecumenismo nos meios católicos em todo o continente.

6 Frutos do ecumenismo

Em seus 100 anos de existência, o movimento ecumênico produziu significativos frutos nos esforços de aproximação e unidade das Igrejas, nos campos da doutrina, da pastoral, da espiritualidade e da cooperação na ação social. Os cristãos separados não mais se consideram estranhos, concorrentes ou inimigos, mas irmãos e irmãs, linguagem desconhecida até bem pouco tempo. Em sua encíclica sobre o ecumenismo, Ut Unum Sint (1995), o papa João Paulo II afirma que é a “primeira vez na história que a ação em prol da unidade dos cristãos assumiu proporções tão amplas e se estendeu a um âmbito tão vasto” (UUS n.41). O mesmo papa reconhece como frutos do diálogo: a fraternidade reencontrada pelo reconhecimento do único Batismo e pela exigência que Deus seja glorificado na sua obra; a solidariedade no serviço à humanidade; convergências na palavra de Deus e no culto divino; o apreço mútuo dos bens nas diferentes tradições eclesiais; o reconhecimento de que “aquilo que une é mais forte do que o que divide” (UUS n.20.41-49).

Esses frutos permitem elencar cinco aspectos de crescimento nas relações ecumênicas: a) nas relações dos dirigentes das Igrejas, existe a localização de pontos de encontro e mútua procura de avizinhamento e diálogo; b) no nível teológico-doutrinal, chegou-se a importantes convergências e consensos sobre vários elementos da fé cristã e eclesial[3]; c) nas comunidades dos fiéis, cresce o convívio entre cristãos de diferentes confissões, vencendo-se preconceitos e hostilidades; d) no campo pastoral, a cooperação ecumênica é realidade em muitos ambientes; e) cresce a sensibilidade ecumênica na espiritualidade.

7 Desafios para o ecumenismo na atualidade

Mas permanecem sérios desafios a serem superados na caminhada ecumênica. Verifica-se em nossos dias pouca disponibilidade ao diálogo em muitas instâncias das Igrejas, mesmo nas que propõem o ecumenismo em seus documentos normativos. A tendência é o  recentramento identitário das Igrejas provocado, por um lado, pelo contexto plural que exige uma redefinição do seu ser e agir; por outro lado, por tensões internas que tendem a fragilizar as convicções ecumênicas. Aumenta a tensão entre o espírito de abertura e diálogo e a necessidade de salvaguardar a própria identidade. Em função disso, em alguns ambientes os fiéis sentem-se obrigados a caminhar de um jeito próprio, no ecumenismo popular, por vezes distanciando-se das orientações oficiais. E as estruturas eclesiais tendem a voltar-se para si mesmas, sentindo-se ameaçadas pelo dinamismo das iniciativas ecumênicas populares. A consequência é que as convicções ecumênicas apresentadas nos documentos e nos pronunciamentos oficiais das Igrejas não se articulam com a vida concreta das comunidades dos fiéis.

Assim, há um desencontro entre ecumenismo e Igreja, como se fossem realidades separadas ou que se tocam apenas superficialmente. Isso manifesta-se por uma setorização do compromisso ecumênico, quase exclusivo aos ambientes oficialmente vinculados às relações intereclesiais e não na comunidade eclesial como um todo; na carência de estruturas, de pessoas e de recursos destinados ao trabalho ecumênico; na pouca formação teológica e pastoral que priorize o diálogo como o jeito de ser e de agir da Igreja. Acresce-se a esses desafios a realidade social de divisão e a pluralidade do campo religioso; a intensa prática do proselitismo, o fundamentalismo e o conservadorismo; a perda de sentido da pertença eclesial; a privatização da prática de fé dos cristãos; o trânsito dos cristãos de uma confissão para outra em busca de uma experiência religiosa satisfatória; o hibridismo dos símbolos religiosos.

Enfim, o status quaestionis da divisão dos cristãos se configura atualmente em 6 principais horizontes: 1) Teologia – as Igrejas estão divididas na interpretação dos elementos que constituem a natureza e o conteúdo da fé cristã, como a doutrina da graça os sacramentos, a natureza da Igreja e os ministérios, entre outros; 2) Estruturas eclesiais – as Igrejas divergem tanto sobre os elementos estruturais da Igreja, quanto sobre a compreensão teológica que se tem deles; 3) Espiritualidade – a compreensão da fé e a vida eclesial são alimentadas por espiritualidades diferentes no interior de cada tradição eclesial. Esse fato – que poderia ser apenas manifestação da diversidade da atuação do Espírito – num contexto de divisão manifesta tensões e o distanciamento de uma tradição eclesial em relação às outras; 4) Pastoral – as divergências nos tópicos anteriores leva as Igrejas a se dividirem quanto ao conteúdo e ao método da evangelização; 5) Ética – existem também divisões no horizonte da ética e dos costumes, na sua origem, expressão e fundamentação teológica; 6) Questões sociopolíticas – não há consenso entre as Igrejas na compreensão da sociedade e no modo de situar-se nos conflitos que nela ocorrem.

Elias Wolff, PUC Paraná. Texto original português. Submetido em 20/06/2014; aprovado em 08/08/2014; publicado em 13/10/2014.

 8 Referências bibliográficas 

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______. A Unidade da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007.

______. Vaticano II – 50 Anos de ecumenismo na Igreja Católica.  São Paulo, Paulus, 2014.

[1] Delegados das Igrejas que participaram do Concílio: 1ª sessão: 49 delegados de 17 Igrejas; 2ª sessão: 66 delegados de 22 Igrejas; 3ª sessão: 76 delegados de 23 Igrejas; 4ª sessão: 103 delegados de 29 Igrejas. Cf. Bravo, Ernesto. “Aspectos históricos do ecumenismo na América Latina”. In: Congresso Ibero Americano sobre la Nueva Evangelizacion y Ecumenismo. Madrid: Gráficas Lormo, 1992. p.99-110.

[2] Os resultados dos trabalhos das comissões, no nível internacional, encontram-se em Enchiridion Oecumenicum. Bologna: EDB, vol. I, 1988; vol. III, 1995; vol. VII, 2006.

[3] Exemplos: com os ortodoxos, foi alcançado um amplo consenso na doutrina trinitária (cristologia e pneumatologia); com a Comunhão Anglicana avança o diálogo sobre a autoridade na Igreja; com os metodistas, foi alcançado um acordo sobre a tradição apostólica; com a Federação Luterana Mundial, foi alcançado um  “consenso diferenciado” sobre a doutrina da justificação. Em todas as Igrejas, atingiu-se um amplo consenso sobre a relação entre ecumenismo e missão.