Lugar teológico

Sumário

1 Expressão

1.1 Melchor Cano

1.2 Renovação conciliar

1.3 América Latina

2 Relevância teológica

2.1 Epistemologia teológica

2.2 Renovação da teologia

3 Status quaestionis

Referências

1 A expressão

A expressão “lugar teológico” tem uma longa tradição na teologia e ganhou muita relevância no contexto da renovação teológica (pós)conciliar, particularmente na teologia da libertação latino-americana. Essa relevância foi tamanha que acabou extrapolando seu campo semântico tradicional, embora essa mutação/ampliação semântica nem sempre tenha sido explicitamente tematizada e assimilada, nem muito menos formulada de modo adequado e suficiente. E isso não deixa de gerar ambiguidades e tensões teóricas que produzem ou contribuem para incompreensões, acusações e até condenações teológicas. Daí a importância de começarmos nosso estudo retomando o sentido clássico dessa expressão com Melchor Cano e os novos sentidos que ela foi adquirindo no contexto da renovação conciliar e latino-americana da teologia.

1.1 Melchor Cano

O sentido clássico da expressão “lugar teológico” na teologia católico-romana está ligado à obra do teólogo dominicano Melchor Cano De locis theologicis (1563). Inserida no contexto de crise da escolástica decadente e da reforma protestante, bem como dos intentos de renovação teológica em curso, a obra de Cano aparece como fruto maduro da reforma teológica preconizada e desenvolvida pela Escola de Salamanca (BELDA PLANS, 2000) e “constitui possivelmente a obra metodológica mais importante da teologia moderna” (BELDA PLANS, 2006, p. XCI). Ela teve uma influência decisiva na renovação da teologia escolástica e no movimento da contrarreforma, desencadeado sobretudo a partir do Concílio de Trento.

Cano não foi o único nem sequer o primeiro teólogo a tratar desse assunto. Tampouco sua compreensão e abordagem do tema eram as únicas e as mais comuns em sua época. Já em 1521, Philipp Melanchthon, o grande teólogo sistemático da reforma, havia publicado Loci communes (MELANCHTHON, 1993), onde trata dos “lugares comuns” ou “temas fundamentais” da doutrina cristã. Assim como toda ciência tem certos “pontos fundamentais” que abarcam e resumem a totalidade dessa ciência e ao mesmo tempo funcionam como objetivo ou meta que a direciona e a corrige, diz ele, também a teologia tem seus “lugares comuns” sobre os quais está construída e dos quais depende (MELANCHTHON, 1993, n. 0,1-4). O próprio Cano se refere a essa concepção no início de sua obra, ao explicar que não pretende disputar sobre os chamados “lugares comuns” que tratam de “qualquer matéria” ou dos “temas principiais” da teologia (justificação, graça, pecado, fé e outras questões do gênero), “como fizeram muitos dos nossos e, entre os luteranos, Felipe Melanchthon e Calvino” (CANO, 2006, p. 8-9).

Inspirado em Tomás de Aquino (STh I, q.1, a.8), Cano parte da distinção entre “argumentos de razão” e “argumentos de autoridade” e da afirmação do primado da autoridade sobre a razão na teologia (CANO, 2006, p. 7-8). E, baseando-se nos Tópicos de Aristóteles, compreende e propõe os “lugares teológicos”, não como “lugares comuns”, mas como “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos:

Assim como Aristóteles propôs em seus Tópicos uns lugares-comuns como sedes e sinais de argumentos, de onde se pudesse extrair toda argumentação para qualquer classe de disputa, de maneira análoga, nós propomos também certos lugares próprios da teologia como domicílios de todos os argumentos teológicos, de onde os teólogos podem sacar seus argumentos ou para provar ou para refutar (CANO, 2006, p. 9).

Embora reconhecendo que não haja consenso quanto ao “número”, Cano estabelece dez lugares teológicos: autoridade da Sagrada Escritura, autoridade das Tradições de Cristo e dos Apóstolos, autoridade da Igreja Católica, autoridade dos Concílios, autoridade da Igreja Romana, autoridade dos Santos Padres, autoridade dos Teólogos Escolásticos e dos Canonistas, Razão Natural, autoridade dos Filósofos e autoridade da História Humana (CANO, 2006, p. 9-10). Os argumentos que se extraem dos sete primeiros lugares são argumentos “inteiramente próprios” da teologia, enquanto os que se extraem dos três últimos lugares são argumentos “adscritos e como que mendigados do alheio” (CANO, 2006, p. 10). Dos dez lugares teológicos, diz o teólogo salmantino, “os dois primeiros contêm os ‘princípios próprios e legítimos’ da teologia, enquanto os três últimos contêm os ‘princípios externos e alheios’, pois os cinco intermediários contêm ou a interpretação dos princípios próprios ou essas conclusões que nasceram e saíram deles” (CANO, 2006, p. 692).

Por mais que essa concepção de “lugar teológico” já tenha sido esboçada por Tomás de Aquino (CANO, 2006, p. 679) e retomada por teólogos contemporâneos a Cano, como Francisco de Vitória, Domingo de Soto e Bartolomeu de Carranza (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII), “até o momento ninguém havia se proposto a escrever um tratado científico completo e refletido sobre os loci theologici como o método próprio de argumentação em teologia” (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII). O próprio Cano chega a dizer explicitamente: “Nem Santo Tomás nem nenhum outro – que eu saiba – intentou explicar o método para fazer uso dos lugares mesmos” (CANO, 2006, p. 679).

1.2 Renovação conciliar

A obra de Melchor Cano exerceu um papel fundamental no contexto da contrarreforma católica: frente ao princípio sola Scriptura, da obra de Melanchthon (Loci communes), propunha dez “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos (De locis theologicis). Paradoxalmente, ela foi sendo submetida pelo mesmo contexto e espírito de contrarreforma a um reducionismo magisterial, que culminou no que se convencionou chamar “teologia do Denzinger” ou “teologia de encíclica”. O confronto com o biblicismo (protestante) desembocou não raras vezes numa espécie de papismo (romano). A superação desse reducionismo teológico, preparada por uma série de movimentos de renovação eclesial (LIBANIO, 2005, p. 21-48), que culminaram no Concílio Vaticano II, implicou numa retomada e atualização dos vários lugares teológicos e acabou produzindo uma ampliação e tensão semânticas na própria expressão “lugar teológico”.

Uma das contribuições mais importantes e mais destacadas do Concílio Vaticano II para a renovação da teologia católica foi a retomada das várias fontes da teologia. Isso foi se dando através dos movimentos de renovação eclesial (“volta às fontes”) que culminaram no Concílio Vaticano II e aparece explicitamente no Decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal (OT 16). Como bem afirma Joseph Ratzinger, “o concílio muito contribuiu para que se alargassem os horizontes teológicos e para que na Igreja toda se passasse para além de uma ‘teologia de encíclica’”, isto é, “um tipo de teologia que se restringia cada vez mais a escutar e analisar as declarações e os documentos papais” (RATZINGER, 1974, p. 267). De fato, diz ele, a) “o concílio conseguiu que a teologia voltasse novamente a considerar todas as fontes e em toda a sua integridade”; b) “mostrou também que a teologia não deve considerar todas as fontes apenas através do filtro da interpretação do magistério dos últimos cem anos, mas deve ler e procurar compreendê-las como são em si mesmas”; c) “expressou, inclusive, o desejo de não dar atenção apenas à tradição católica, como de estudar também seriamente o desenvolvimento da teologia de outras Igrejas e de outras denominações cristãs”; e) “considerou de importância a atenção que deve ser dada aos problemas do homem de hoje” (RATZINGER, 1974, p. 267). A indicação e valorização das diversas fontes da teologia, o acréscimo de novas fontes e a compreensão atual dessas várias fontes significaram uma verdadeira retomada e atualização dos clássicos “lugares teológicos”, mesmo quando Cano e sua obra não são explicitamente referidos.

Mas, além de retomar, atualizar e até ampliar as “fontes” ou os “domicílios” de argumentos teológicos, a renovação conciliar da teologia acabou extrapolando o sentido clássico da expressão “lugar teológico”. A insistência no caráter histórico da revelação (DV), na Igreja como sacramento de salvação (LG), na liturgia como fonte e cume da vida cristã (SC), na importância dos “sinais dos tempos” (GS), no ecumenismo como obra do Espírito (UR), nas “sementes do Verbo” presentes nas culturas e religiões (AG, NA), dentre outros temas, levou à percepção da densidade e do valor epistemológicos dessas realidades. E isso foi sendo expresso, de modo um tanto espontâneo, em termos de novos lugares teológicos”. Vai se tornando muito comum falar da Igreja, da liturgia, do “mundo ou dos sinais dos tempos como “lugar teológico” (SCHILLEBEECX, 1968, 189-92; TABORDA, 2009, p. 31-37; GUTIÉRREZ, 2000, p. 63, 69; RITO, 1998, p. 123-128; WICKS, 1999, p. 22; HÜNERMANN, 2014, p. 263-291), como se fosse uma mera ampliação das “fontes” ou dos “domicílios” de argumentos teológicos. Curiosamente, poucos percebem que a expressão “lugar teológico” já não se refere aqui, como na obra de Cano, a “fontes” ou “domicílios” de argumentos teológicos, mas a realidades teologais, nas quais Deus se faz presente de um modo muito particular (densidade teologal) e pode ser encontrado e mais bem conhecido (densidade teológica). A expressão “lugar teológico” já não significa aqui uma espécie de “áreas de documentação” (WICKS, 1999, p. 20), mas se refere a realidades ou acontecimentos. Como bem adverte Max Seckler, não se pode falar de “atualidade”, de “liturgia” ou de “Igreja” como novos “lugares teológicos” no sentido de Melchor Cano (SECKLER, 1987, p. 44, nota 11).

Importa destacar aqui que a renovação conciliar da teologia não apenas retoma, atualiza e amplia os “lugares teológicos” como fontes ou domicílios de argumentos teológicos, mas, extrapolando esse sentido clássico, usa a expressão “lugar teológico” para se referir também a realidades teologais. E importa também chamar atenção para o fato curioso de que essa nova acepção da expressão “lugar teológico” (realidades ou acontecimentos teologais) tenha sido tomada e continue sendo tomada em grande medida ainda hoje no sentido de Cano (fontes ou domicílios de argumentos teológicos).

1.3 América Latina

A teologia da libertação nasce no contexto da renovação conciliar da Igreja e, mais concretamente, no contexto da “recepção criativa” do Concílio na América Latina. Ela é fruto e expressão do processo de renovação eclesial latino-americana, que tem na Conferência de Medellín (1968) um marco histórico fundamental.

Fiel à intuição e ao propósito originais de João XXIII, de abertura, diálogo e cooperação da Igreja como o mundo, que encontram na Constituição Pastoral Gaudium et Spes e sua incipiente teologia dos “sinais dos tempos” sua melhor expressão, Medellín inaugura uma nova etapa na vida da Igreja do continente, marcada por uma autêntica inserção na realidade latino-americana e por um compromisso cada vez mais intenso com os pobres e marginalizados e suas lutas por libertação.

Isso já aparece explicitamente no Tema da Conferência: “Presença da Igreja na atual transformação da América Latina”. E é afirmado com muita força na Introdução do Documento Final: a) começa dizendo que “a Igreja latino-americana, reunida na II Conferência Geral de seu Episcopado, situou no centro de sua atenção o homem deste continente que vive um momento decisivo de seu processo histórico”; b) fala do “momento histórico” vivido na América Latina (anseio de emancipação e de libertação) como um “evidente signo do Espírito”; c) termina reafirmando que toda “reflexão [da conferência] orientou-se para a busca de forma de presença mais intensa e renovada da Igreja na atual transformação da América Latina” (CELAM, 1987, p. 5-8).

Essa perspectiva da Conferência de Medellín, que será decisiva para a recepção do Concílio na América Latina, diferente de sua recepção em outros continentes, ajuda a compreender o sentido e a importância da expressão “lugar teológico” na teologia latino-americana. É verdade que essa teologia reproduz aquela ambiguidade e tensão semânticas evocadas no item anterior. É comum usar a expressão “lugar teológico” para se referir tanto às fontes ou domicílios de argumentos teológicos (Melchor Cano), quanto a realidades ou acontecimentos teologais (renovação conciliar). Mas, na linha aberta pela renovação conciliar e desenvolvendo uma intuição já presente no Concílio (LG 8), vai insistir sobretudo na tese dos pobres e marginalizados como lugar teológico ou mesmo como lugar teológico fundamental (contribuição própria e peculiar) (ELLACURIA, 2000, p. 139-161; SOBRINO, 1996, p. 42-61; SUSIN, 2008, p. 151-180; AQUINO JÚNIOR, 2010, p. 265-318; 2017, p. 97-116; COSTADOAT, 2015, p. 179-202; 2018, p. 19-40).

É verdade que “o uso da terminologia dos ‘lugares teológicos’ é errático entre os teólogos da libertação” (COSTADOAT, 2018, p. 34). É verdade também que essa expressão, com raras exceções, é mais afirmada que problematizada, como se fosse algo evidente e tranquilo. E é verdade ainda que não se alcançou um nível de elaboração que supere as ambiguidades teórico-teológicas e favoreça um consenso mais amplo sobre a tese dos pobres e marginalizados como lugar teológico. Em todo caso, convém destacar aqui dois aspectos da reflexão teológica desenvolvida na América Latina que permitem e favorecem uma elaboração mais ampla, mais precisa e mais convincente da afirmação dos pobres e marginalizados como “lugar teológico”.

Antes de tudo, é preciso advertir e insistir que a expressão “lugar teológico” não é tomada aqui no sentido clássico de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, mas, na nova acepção que adquiriu no contexto da renovação conciliar da teologia, como “realidades ou acontecimentos teologais”. Não se trata, portanto, de “textos” (de onde se extraem argumentos teológicos), mas de “realidades” (nas quais Deus está presente e pode ser mais bem conhecido) (SOBRINO, 1996, p. 48; SUSIN, 2008, p. 170; AQUINO JÚNIOR, 2010, p. 287s). Isso é fundamental para se compreender adequadamente em que sentido se fala dos pobres e marginalizados como “lugar teológico”. E será fundamental para se estabelecer adequadamente o estatuto teológico dessa afirmação no contexto mais amplo da epistemologia teológica como um todo.

Mas é igualmente importante indicar, ainda que em grandes linhas e em forma de teses, como se entende a afirmação dos “pobres e marginalizados como lugar teológico”. Embora se possa recorrer aqui a muitos autores, os elementos fundamentais dessa reflexão foram esboçados de modo sistemático por Ignacio Ellacuría, por mais que se possa discutir os termos de sua formulação e se deva avançar em sua elaboração. Para ele, “os pobres são lugar teológico enquanto constituem a máxima e escandalosa presença profética e apocalíptica do Deus cristão e, consequentemente, o lugar privilegiado da práxis e da reflexão cristã” (ELLACURÍA, 2000, p. 148). Ao mesmo tempo em que indica várias razões que justificam essa afirmação, Ellacuría destaca distintos aspectos ou matizes nela implicados: 1) são “o lugar onde o Deus de Jesus se manifesta de modo especial”; 2) são “o lugar mais apto para a vivência da fé em Jesus e para a correspondente práxis do seguimento”; 3) são “o lugar mais próprio para fazer a reflexão sobre a fé, para fazer teologia cristã” (ELLACURIA, 2000, p. 149-153). Em síntese: são “lugar teológico” enquanto lugar da revelação e, consequentemente, lugar da e da teologia. Esses três aspectos precisam ser tomados em sua irredutibilidade e inseparabilidade.

2 Relevância teológica

A expressão “lugar teológico” está muito ligada à problemática da epistemologia teológica. E, tanto no seu desenvolvimento com Melchor Cano no éculo XVI, como no contexto da renovação conciliar e latino-americana no século XX, desempenhou um papel fundamental na renovação da teologia. Nesse sentido, convém situar a problemática do “lugar teológico” no contexto mais amplo da epistemologia teológica e destacar sua importância nos processos de renovação da teologia.

2.1 Epistemologia teológica

Por mais que a questão dos “lugares teológicos” seja decisiva para a compreensão e elaboração dos diversos temas ou conteúdos da teologia, sua tematização e seu desenvolvimento estão sempre ligados à problemática da epistemologia teológica: seja no sentido mais fundamental dos seus pressupostos teóricos (noção, possibilidades e limites do conhecimento teológico), seja no sentido mais operativo de seu desenvolvimento concreto (elementos, passos, procedimentos). Está em jogo aqui a problemática do método teológico no seu duplo aspecto de pressupostos teóricos (método fundamental) e de procedimentos operativos (método concreto). E isso se pode verificar sem maiores dificuldades na história da teologia, particularmente naqueles contextos específicos a que nos referimos no item anterior, nos quais a expressão “lugar teológico” desempenha um papel fundamental na problematização e compreensão do fazer teológico.

a. Melchor Cano

Só se pode compreender adequadamente a obra de Cano De locis theologicis no contexto de crise e busca de renovação teológica do século XVI. Por mais que se deva destacar sua transcendência histórica, não se pode jamais perder de vista seu contexto e seu propósito originais. Cano “teve a perspicácia e a genialidade de recolher com toda seriedade essa preocupação geracional acerca da reforma e do método da teologia e dar-lhe uma solução científica profunda e acabada” (BELDA PLANS, 2006, p. LXVII).

O próprio Cano fala explicitamente disso no Prólogo Geral, ao apresentar como motivação e propósito fundamentais de sua obra o desejo de articular a “erudição dos antigos” (“abundância de conteúdo”) como a “clareza dos modernos” (“ordem, disposição e clareza”), tomando de uns “como que a matéria” e de outros “como que a forma” da dissertação para “exortar na sã doutrina” e para “arguir a quem a contradiga”: “O desejo de explicar isso moveu-me inteiramente a propor uma discussão sobre os lugares teológicos” (CANO, 2002, p. 3).

Nessa discussão, Cano é influenciado pela noção de teologia de Tomás de Aquino e pela noção aristotélica de tópicos/lugares que recebeu do ambiente humanista e mais concretamente de Rodolfo Agrícola. De Tomás, como se pode verificar no primeiro livro ou capítulo da obra (CANO, 2006, p. 7-10), tomou a compreensão de teologia como ciência que “procede de princípios conhecidos à luz de uma ciência superior” (STh I, q. 2), seu modo de argumentação (razão e autoridade, primado da autoridade) e o uso dos vários tipos de argumentos (estranhos e prováveis, próprios e certos, próprios, mas prováveis) (STh I, q. 1, a. 8). Dos humanistas, tomou uma forma didática de expor a doutrina cristã: “ordem, disposição e clareza” (CANO, 2006, p. 3) e, particularmente, a noção aristotélica de lugares/sedes de argumentos (CANO, 2006, p. 9). Essa dupla inspiração/influência confere à noção de “lugares teológicos” de Cano tanto um caráter de “jazidas de argumentos teológicos”, quanto um caráter de “instâncias autoritativas de argumentação teológica” (KASPER, 2012, p. 88). E a insere explicitamente no contexto da problemática da epistemologia teológica, seja no que se refere à noção de teologia, seja no que se refere ao modo concreto de proceder na elaboração e exposição da doutrina cristã.

b. Renovação conciliar e latino-americana

Assim como não se pode compreender a reflexão de Cano sobre os lugares teológicos fora do contexto de crise e de renovação teológica do século XVI, tampouco se pode compreender a retomada dessa problemática e os novos desenvolvimentos que ela adquire ao longo do século XX sem considerar o processo intenso de renovação teológica que culmina no Concílio Vaticano II e seus desdobramentos no processo de recepção conciliar, particularmente na Igreja latino-americana.

De fato, a expressão “lugar teológico” reaparece com força e ganha bastante relevância no século XX no contexto de um novo processo de renovação teológica (tão intenso e fecundo como o que se deu no século XVI) e, mais uma vez, aparece profundamente ligada à problemática do fazer teológico: seja no sentido clássico de fontes ou domicílios de argumentos teológicos, seja num sentido novo de realidades ou acontecimentos teologais. Em ambos os casos está sempre ligada a uma compreensão de teologia e do fazer teológico, por mais que isso nem sempre seja tematizado e explicitado e por mais que esse duplo sentido da expressão “lugar teológico” produza ambiguidade e tensão teórico-teológicas, levando a um uso errático da expressão.

Por um lado, a expressão “lugar teológico” aparece na acepção clássica de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, no duplo sentido de “jazidas de argumentos teológicos” e de “instâncias autoritativas de argumentação teológica” (KASPER, 2012, p. 88). Essa concepção é fruto da genialidade de Cano no seu esforço de articular a sabedoria dos antigos e a concepção de teologia de Tomás com a forma ordenada e clara de exposição dos humanistas. A novidade aqui consiste na retomada das várias fontes de argumentos teológicos e mesmo em sua ampliação, bem como na nova compreensão dessas fontes, possibilitada pela “volta às fontes” dos movimentos de renovação eclesial e pelo estado atual dos estudos dessas fontes. Ela se reflete tanto na orientação conciliar para a formação teológica (OT 16), quanto no modo de exposição dos vários temas teológicos no período pós-conciliar: Escritura, padres, magistério, teologia.

Por outro lado, a expressão “lugar teológico” aparece num sentido novo e bem diferente (não contrário!) do sentido clássico, referindo-se não a “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, mas a “realidades ou acontecimentos teologais”, nos quais Deus se faz presente e pode ser encontrado e mais bem conhecido. Isso pressupõe e/ou implica uma nova concepção de teologia e do teologizar, nem sempre tematizada e assimilada, nem muito menos elaborada de modo adequado e suficiente. A complexidade e relevância epistemológicas dessa questão se mostram particularmente nos debates acerca do estatuto teológico-epistemológico dos “sinais dos tempos” e sobretudo dos pobres e marginalizados como lugar teológico (BOFF, 1979; HÜNERMANN, 2014; AZCUY-GARCIA-SCHICKENDANTZ, 2017; SCHICKENDANTZ, 2018, p. 133-158). Não é possível entrar aqui nesse debate, mas apenas situá-lo no âmbito da epistemologia teológica, seja no sentido mais fundamental da concepção de teologia, seja no sentido mais operacional do fazer teológico.

Importa, aqui, em todo caso, insistir no caráter estritamente epistemológico da problemática dos lugares teológicos. E importa também chamar a atenção para os sentidos e usos da expressão “lugar teológico” (fontes de argumentos teológicos e realidades teologais) e para a diferença e tensão epistemológicas implicadas nesses diferentes sentidos e usos da expressão (compreensão de teologia e do fazer teológico).

2.2 Renovação da teologia

A discussão sobre os lugares teológicos desempenhou um papel fundamental nos processos de renovação da teologia. Foi assim no século XVI com Melchor Cano. Foi assim no século XX com a teologia conciliar e latino-americana. Dois momentos particularmente criativos e fecundos de renovação da teologia católico-romana. Embora já se tenha insistido nesse texto na importância dessa problemática nos processos de renovação da teologia, ao apresentar os diferentes sentidos da expressão “lugar teológico” ao longo da história, convém voltar a essa questão, explicitando em que sentindo ou de que modo a discussão sobre os lugares teológicos não é apenas um tópico de epistemologia teológica, mas um fator de renovação teológica.

Não se pode esquecer que a obra de Cano se insere no contexto mais amplo de busca de renovação da teologia no século XVI e, mais concretamente, no esforço de reforma teológica preconizada e desenvolvida pela Escola da Salamanca, da qual Cano é herdeiro e expressão por excelência: “um exercício vigoroso da teologia positiva e especulativa ao mesmo tempo, com grande profissão no manejo da primeira, mas sem omitir o nervo especulativo” e um “cuidado extraordinário pela forma literária latina, próprio da cultura humanista da época” (BELDA PLANS, 2006, p. XXXIII). A obra de Cano representa o auge desse processo de reforma teológica e terá uma influência decisiva na renovação da teologia escolástica no contexto do humanismo renascentista. Além do mais, no contexto da reforma e da contrarreforma, sua obra será muito importante para explicitar e fundamentar a teologia católico-romana. Enquanto Melanchthon, de acordo com o princípio da sola scriptura, sistematiza e propõe uma dogmática cristã a partir dos temas ou pontos principais da Escritura (lugares comuns); Cano sistematiza e fundamenta o método da teologia a partir dos vários lugares onde se podem encontrar os argumentos teológicos (lugares teológicos). Tudo isso mostra a importância fundamental da problemática dos “lugares teológicos” na renovação da teologia no século XVI.

Tampouco se pode desconsiderar a importância fundamental da problemática dos lugares teológicos na renovação conciliar e latino-americana da teologia no século XX. Seja no sentido da retomada, ampliação e atualização (compreensão e uso) das várias “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, frente ao reducionismo magisterial do que se convencionou chamar “teologia do Denzinger” ou “teologia de encíclica”; seja, sobretudo, no sentido novo e revolucionário de “realidades ou acontecimentos teologais”, com os desconcertos e as transformações epistemológicas que isso implica. Mais que mera retomada e atualização da teologia de Cano, isso significou uma crise e uma transformação da própria concepção de teologia, por mais que o estatuto teórico dessa nova concepção de teologia continue uma questão aberta e disputada. De uma forma ou de outra, a problemática dos lugares teológicos reaparece inserida num processo mais amplo de renovação teológica, ao mesmo tempo é fator decisivo em seu desenvolvimento. A teologia (pós)conciliar como um todo e a teologia latino-americana em particular são testemunhas da importância fundamental da retomada das várias fontes de argumentos teológicos e do enfrentamento das realidades teologais para a renovação da teologia católica no século XX. Provavelmente, o processo de renovação teológica mais fecundo e intenso da teologia católica depois do século de ouro da teologia espanhola.

Transformações profundas nas ciências em geral e na teologia em particular não é algo muito comum e frequente. Em geral, a teologia vai retomando e reelaborando temas/problemas antigos e abordando questões novas, mas dendro de uma compreensão consolidada e amplamente compartilhada de teologia e do fazer teológico, sem maiores novidades. Raramente acontecem crises e, sobretudo, mudanças mais profundas que tocam no próprio estatuto teórico da teologia e do fazer teológico, como as que se deram nos primeiros séculos com os Padres da Igreja, no século XIII com Tomás de Aquino, no século XVI com Melchor Cano e no século XX, com a renovação conciliar e a teologia latino-americana da libertação. São, com seus limites e suas ambiguidades, os períodos mais fecundos e criativos da teologia. No caso concreto da renovação teológica nos séculos XVI e XX, como foi indicado, a problemática dos “lugares teológicos” ocupa um lugar e desempenha um papel fundamentais. E isso não obstante sua ambiguidade semântico-epistemológica e o caráter inconcluso e aberto desse debate.

3 Status quaestionis

Antes de tudo, é preciso reconhecer e destacar a importância fundamental da discussão sobre os “lugares teológicos”: seja no que se refere à problemática mais ampla da epistemologia teológica (noção de teologia e do fazer teológico); seja no que se refere aos processos de renovação da teologia no século XVI, com Melchor Cano (diálogo com o humanismo renascentista e alternativa ao reducionismo da sola scriptura), e no século XX ,com a teologia conciliar e latino-americana (superação do reducionismo magisterial das “fontes de argumentos teológicos”, reconhecimento e valorização teológica de “realidades ou acontecimentos teologais”, densidade teologal e teológica dos pobres e marginalizados). Esse estudo sobre os vários sentidos e usos da expressão “lugar teológico” e sua relevância teológica não deixa dúvidas sobre a importância dessa problemática para a teologia e o fazer teológico.

Mas é preciso reconhecer também uma ambiguidade e tensão semântico-epistemológicas na compreensão e no uso da expressão “lugar teológico”: semântica, na medida em que a expressão é tomada tanto no sentido de “fontes ou domicílios de argumentos teológicos”, quanto no sentido de “realidades ou acontecimentos teologais”; epistemológica, na medida em que esses diferentes sentidos e usos da expressão pressupõem e/ou implicam uma determinada compreensão de teologia (aristotélico-tomásica, hermenêutica, momento da práxis).

Muitos autores, infelizmente, parecem não atentar para essa problemática. Falam da liturgia, da Igreja, dos sinais dos tempos e dos pobres como novos lugares teológicos, no sentido de mera ampliação do número dos lugares teológicos indicados por Cano. Não se dão conta de aqui já não se trata de fontes ou domicílios de “argumentos teológicos”, mas de “realidades teologais”, nas quais Deus se faz presente e pode ser encontrado e mais bem conhecido. Tampouco percebem que esses diferentes sentidos e usos da expressão estão ligados (pressupõem e/ou implicam) a diferentes concepções de saber: a concepção aristotélico-tomásica de ciência que condiciona e determina a reflexão de Cano sobre os lugares teológicos é muito diferente das concepções de saber e de ciência implicadas na compreensão de realidades teologais como lugar teológico.

Mesmo quando se intui ou se percebe certa ambiguidade e tensão teóricas na compressão e no uso da expressão “lugar teológico”, não se consegue avançar muito numa elaboração teórica que tome em sério as diferenças, tensões e rupturas implicadas nessa problemática. Um exemplo bastante emblemático aqui pode ser a reflexão do grande teólogo alemão Peter Hünermann. Ele não só reconhece que o Concílio Vaticano II representa uma “virada na teologia do século XX” e que essa virada tem a ver com a “irrupção do pensamento histórico” (HÜNERMANN, 2014, p. 41-70), mas se esforça por explicitar e fundamentar o estatuto teórico-teológico das realidades ou dos acontecimentos históricos. O problema é que, ao fazer isso, apela para a doutrina dos “lugares teológicos” de Cano, como se bastasse um “novo acesso” aos lugares já indicados e uma atualização da lista dos “lugares próprios” e dos “lugares alheios” (HÜNERMANN, 2014, 260-291). A reflexão de Carlos Schickendantz parece ir na mesma direção, ao tomar, com Hünermann como referência, a obra de Cano e (propor) tratar os sinais dos tempos e os pobres como “lugares próprios” da teologia (SCHICKENDANTZ, 2017, p. 33-69; 2018, p. 153-154).

Não obstante o mérito indiscutível de buscar explicitar e fundamentar a densidade teológica dessas realidades, esses intentos terminam fracassando ao não tomar em sério a diferença teórico-epistemológica entre “fontes ou domicílios de argumentos teológicos” e “realidades ou acontecimentos teologais”. Ao formular a problemática, na linha de Melchor Cano, em termos de determinação da “autoridade” das “instâncias de testemunho da fé” (HÜNERMANN, 2014, p. 272) ou de “reflexões acerca da ‘força argumentativa’ da histórica humana na teologia” (SCHICKENDANTZ, 2014, p. 157, 159), os dois teólogos parecem não perceber ou, em todo caso, não tomar em sério, como bem indica Max Seckler, que atualidade, liturgia, Igreja, sinais dos tempos não são “lugar teológico” no sentido de Cano (SECKLER, 1987, p. 44, nota 11) e, portanto, não podem ser enquadrados em seu sistema de pensamento como se fossem mera ampliação ou atualização da lista de “fontes ou domicílio de argumentos teológicos” estabelecida por ele no século XVI.

Tudo isso nos leva a concluir que, não obstante a importância e relevância fundamentais da problemática dos “lugares teológicos” para a teologia e o fazer teológico, estamos diante uma questão “inconclusa” (SCHICKENDANTZ, 2014, p. 159, 161) e aberta que exige maiores desenvolvimentos ou memo novas abordagens em vista de uma elaboração mais precisa, mais profunda e mais ampla.

Francisco de Aquino Júnior (Faculdade Católica de Fortaleza e Universidade Católica de Pernambuco). Texto enviado em 30/05/2023; aprovado: 30/10/2023; postado: 31/12/2023. Original português

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