Inspiração e Inerrância da Sagrada Escritura  

Sumário

Introdução

1 Etimologia

2 Paradigma de revelação

3 O cristocentrismo do conceito teológico de inspiração

4 O cristocentrismo da verdade bíblica

5 O cristocentrismo da inerrância da Escritura

6 A normatividade da intenção divina

7 Autoria divina

8 O tempo dos apóstolos

9 Autoria humana

10 O testemunho da Igreja

Conclusão

Referências

Introdução

A fé cristã e católica professa como elementos importantes que os livros da Sagrada Escritura tiveram origem divina mediante um carisma denominado inspiração, e gozam de uma qualidade denominada inerrância. Trata-se de dois elementos muito antigos da fé eclesial e que permanecem indispensáveis a ela. Inspiração e inerrância são temas tradicionalmente abordados pela Teologia Fundamental e é nessa perspectiva que se desenvolve a presente exposição.

O conceito teológico de inspiração e a inerrância bíblica estiveram sob especial escrutínio nos últimos séculos. Em tal período, a origem divina e a inerrância da Escritura tornaram-se questionadas especialmente por descobertas propiciadas pela Ciência moderna. Frente a tais contraposições, o ponto de partida adotado para mostrar a natureza da origem divina e da verdade da Bíblia não pode ser o próprio texto bíblico. Valer-se da Escritura para demonstrar a inspiração e a inerrância seria uma petição de princípio na qual a conclusão que se pretende apresentar (que a Bíblia é inspirada e inerrante) já vem assumida como premissa (que a Bíblia possui tal autoridade para fundamentar a demonstração). Mesmo assim tal caminho do autotestemunho foi adotado pelo documento Inspiração e verdade, da Pontifícia Comissão Bíblica (2014, n.6).

Ao contrário, o ponto de partida aqui é a adesão àquilo que precede cronológica e teologicamente o texto bíblico: o ato de fé dos autores humanos da Bíblia e o objeto da revelação (Deus revelado plenamente em Jesus Cristo). Trata-se de ponto de partida inerente ao método teológico, que procede dentro da confissão religiosa e não “em cima do muro”. Tal ponto de partida é mais consistente para o estudo da inspiração e inerrância (ALVES, 2012, p.375). Nossa exposição examinará primeiramente a etimologia da palavra “inspiração”. Em seguida, inspiração e inerrância serão apresentadas de modo sistemático mediante nove elementos.

1 Etimologia

Os atuais termos teológicos inspirare e inspiratio derivam da passagem paulina de 2Tm 3,16, segundo o texto latino da Vulgata, que é a tradução que Jerônimo fez da Sagrada Escritura no final do século IV. Naquela passagem do apóstolo Paulo, o trecho original grego diz: “Ρᾶσα γραφὴ θεόπνευστος” (“Pása graphé theópneustos”). Esse texto grego foi assim traduzido para o latim por Jerônimo: “Omnis Scriptura divinitus inspirata est”. A passagem pode ser traduzida deste modo numa formulação mais à letra: “Toda a Escritura é soprada dentro [de seres humanos] por Deus”. Nas traduções atuais, a formulação é menos literal: “Toda a Escritura é divinamente inspirada”.

Θεόπνευστος (“theópneustos”) é o termo grego traduzido por Jerônimo quase à letra como divinitus inspirata e significa, em nossa língua, também à letra: “soprada dentro [de seres humanos] por Deus”. O termo grego é a justaposição de dois outros. Um é o substantivo θεός (“theós”, Deus); outro, o verbo πνέω (“pnéo”, soprar) que aparece em sentido literal em Mt 7,25: “Os ventos sopraram”. A passagem de 2Tm 3,16 utiliza o verbo “soprar” em sentido figurado, como analogia para expressar a ideia de uma realidade invisível aos olhos que gerou efeito concreto no mundo real.

Θεόπνευστος (“theópneustos”) pode ter tanto um sentido ativo (“sopra, exala Deus”), como passivo (“é soprada por Deus”). A forma ativa é pouco comum. Bem mais frequente é a forma passiva, em consonância com as concepções tanto pagã como hebraico-cristã de subordinação dos seres humanos à divindade. A religião pagã grega atribuía às pitonisas de templos como o de Apolo, em Delfos, a faculdade de serem passivamente tomadas pela divindade quando se encontravam sob o efeito de gases naturais. Contudo, no Antigo e Novo Testamento é recorrente a ideia de que, sem perder a consciência, o ser humano está sujeito ao influxo divino. Ali, quem procede em nome de Deus é a pessoa consciente e que pelo Espírito Santo vem “soprada por dentro” ou insuflada. Nessa forma passiva, θεόπνευστος (“theópneustos”) pode ser encontrado na literatura helenista em autores como Plutarco e Pseudo-Focílides (século I) e Vettius Vallens (século II) (BEA, 1954, p.2-5).

O verbo latino inspirare deriva de duas outras palavras: o prefixo in- (“dentro” ou “para dentro”) e o verbo spirare (“respirar”). Segundo o uso linguístico no século I, o resultado assim justaposto – inspirare – significa “soprar dentro” entendido em sentido físico. Inspirare, nesse sentido, aparece na literatura pagã no sentido literal de “soprar”, como por exemplo na obra História Natural do autor romano Plínio, o Velho (século I): “in transversas harundines foramen inspirantes” (“soprando dentro da abertura de tubos inclinados”; Naturalis Historia X, 43,3). No uso comum, além do sentido literal, inspirare já tinha também o sentido figurado de instilar uma impressão em outra pessoa, como aparece no poeta romano Virgílio (séculos I e II): “Ut te accipiet Dido, …] occultum inspires ignem, fallasque veneno” (“Quando a [rainha] Dido te receber, […] sopra dentro dela a chama secreta, e ardilosamente o veneno”; Aeneida I, 688).

O termo θεόπνευστος (“theópneustos”) da passagem de 2Tm 3,16 foi palavra seminal que estimulou a reflexão cristã. No que diz respeito ao conceito teológico de inspiração, talvez pelo seu caráter analógico é que aquela passagem de Paulo foi bem mais influente que 2Pd 1,20-21. Esta compõe a outra referência do Novo Testamento que indica a origem divina da Escritura. A ação divina na composição da Bíblia é expressa ali pelo verbo φέρο (“féro”; levar, mover):

Nenhuma profecia da Escritura é objeto de explicação pessoal, visto que jamais uma profecia foi proferida por vontade humana. Ao contrário, seres humanos falaram da parte de Deus levados [φερόμενοι; ferómenoi] pelo Espírito Santo. (2Pd 1,20-21)

2 Paradigma de revelação

O modo de conceber a inspiração e a inerrância bíblica é poderosamente influenciado pelo paradigma de revelação que se adota. Num contexto em que quase não se fala mais disso, a indicação da importância de se explicitar tal paradigma é  de extrema relevância (ALVES, 2012, p.153-154). Consideramos aqui dois paradigmas cujos títulos derivam de uma passagem de uma obra clássica nesse campo. A revelação, “antes que manifestação de alguma coisa, é manifestação de Alguém a alguém. É Yahweh ao mesmo tempo sujeito e objeto da revelação” (LATOURELLE, 1972, p.37-38). Daí os títulos dados a seguir a esses dois modos de se conceber a revelação: um paradigma coisificado (a manifestação apenas de coisas) e um paradigma personalista (a manifestação sobretudo de Alguém).

O paradigma coisificado de revelação concebe aquilo que é mostrado por Deus como apenas “algo”, que pode ser (embora não em todos os tempos) palavras, um novo conhecimento ou luz de julgamento. Na história da Teologia, um marco nesse paradigma é representado pela Teologia escolástica, da qual Tomás de Aquino é um exemplo (LATOURELLE, 1972, p.169-204). Segundo esse paradigma, aquilo que Deus revelou foram unicamente coisas, na maior parte das vezes palavras que compõem frases. Por isso tal paradigma pode também ser designado de verbalista ou “palavrista”. Trata-se de uma concepção de revelação vigorosa desde a Antiguidade e que assinalaria esferas em outros aspectos díspares entre si como o Islã, a Teologia escolástica, a Reforma protestante, os Concílios de Trento e do Vaticano I e a Teologia evangélica norte-americana.

Nessa concepção, a revelação consistiria na passagem, do âmbito divino para o humano, de um imenso conjunto de palavras que foi colocado por escrito. O processo dessa passagem já estaria terminado. No caso das correntes cristãs mencionadas, uma parte prévia daquele “algo” foi transmitida pelos profetas do Antigo Testamento, e a parte principal foi confiada a Cristo. Tal imenso conjunto de frases reveladas foi então entregue aos apóstolos e à Igreja. A partir daí, na concepção da Teologia escolástica, de Trento e do Vaticano I, a Igreja transmitiu esse imenso conjunto de palavras por escrito (a Bíblia) e também oralmente (as tradições não escritas).

Com essa concepção de revelação, também foi redigido o esquema pré-conciliar De fontibus revelationis, apresentado aos bispos no início do Concílio Vaticano II e rejeitado pela maioria conciliar. Já na concepção da Teologia protestante, tal transmissão teria se dado apenas por escrito. Segundo esse paradigma, Palavra de Deus é apenas “algo”, um imenso conjunto de frases postas por escrito. Tal concepção de revelação permeia a compreensão contemporânea (generalizada entre católicos e protestantes) de que “Palavra de Deus” é um equivalente estrito de “Bíblia”. Nesse caso, inspiração e inerrância consistiriam na origem divina e na infalibilidade desse imenso conjunto de frases reveladas num processo já encerrado.

Não era esse, contudo, o paradigma de revelação do “depósito da fé”, isto é, do Israel do Antigo Testamento, de Cristo e dos apóstolos, que era o paradigma personalista. Tal paradigma foi também aquele da Igreja nos primeiros séculos. Segundo essa concepção, o que é revelado continuamente por Deus é, sobretudo, “Alguém”, a saber, o próprio Deus. Em relação à revelação, Deus não só é o autor, mas também o objeto. Acima de tudo, o que se dá a descobrir, num processo permanente que prossegue até hoje, é o próprio Deus transcendente. No antigo Israel começou e se desenvolveu até o ponto máximo esse paradigma revelativo divino sui generis. “Agradou a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar a si mesmo [seipsum] e manifestar o mistério da sua vontade” (Dei Verbum n.2). Mais do que revelação de palavras que compõem frases, é o próprio Alguém divino – Seipsum – que se apresenta (LATOURELLE, 1972, p.11-85).

Esse processo revelativo singular atingiu seu maior grau possível no evento de Jesus Cristo. Dá-se a descobrir Alguém num processo contínuo que já atingiu no passado o maior grau possível (por isso é o “depósito da fé”) que pode se dar neste âmbito em que vivemos antes da morte, e que continua no presente. No período pós-apostólico, nada de novo sobre Deus será revelado que já não tenha sido revelado em Cristo. A revelação, contudo, continua a acontecer no encontro sem intermediários entre Deus e a criatura humana. Para os indivíduos das gerações pós-apostólicas, essa revelação representará novidade, pois tal encontro significa “nascer do alto” (Jo 3,3). Isso, porém, não constituirá novidade revelativa quando considerado o conjunto das gerações compreendidas desde o tempo bíblico até hoje. No paradigma personalista de revelação, “Palavra de Deus” é sobretudo “Alguém”, o próprio Cristo (Jo 1,1.14). É Jesus a “Palavra de Deus por excelência” (LOHFINK, 1964, p.172; MARTINI, 1980, p.57), em sentido absoluto e que se revela contínua e pessoalmente a cada geração. A esse Alguém é que o “algo” – o livro da Bíblia – se encontra subordinado e dele recebe por analogia o epíteto de “Palavra de Deus”. Nesse caso, inspiração e inerrância da Escritura dizem respeito a esse Alguém, a pessoa de Cristo, da qual a Bíblia é o registro escrito insuperável. O conceito teológico de inspiração e o tema da inerrância da Escritura se concebem essencialmente na sua relação com Cristo e com o processo revelativo que já atingiu o seu cume em Jesus e que continua no presente.

No campo da inspiração e da inerrância estará truncada a reflexão que seguir o paradigma coisificado de revelação segundo o qual a revelação é meramente “algo”: as palavras da Bíblia. Uma reflexão assim estaria privada da parte mais essencial da revelação mesma que aconteceu no “depósito da fé”, cujo núcleo último não é “algo”, mas Alguém, Cristo. Uma parte da história teológica das reflexões sobre a inspiração e a inerrância, contudo, foi de fato feita com o paradigma coisificado de revelação, o que constitui para tais estudos um handicap. A história das reflexões indica como é crucial resgatar o paradigma personalista de revelação na consideração da inspiração e da inerrância bíblica. O paradigma personalista permite elevar a reflexão sobre a inspiração e inerrância a um patamar mais condizente com o núcleo último da revelação cristã.

3 O cristocentrismo do conceito teológico de inspiração

O conceito teológico de inspiração possui um vínculo essencial com a pessoa de Jesus de Nazaré. No Concílio Ecumênico Vaticano II isso vem evidenciado no fato que a doutrina sobre a inspiração da Escritura está inserida no quadro maior da Constituição Dogmática Dei Verbum, cujo tema é a revelação divina. Jesus Cristo está no centro daquela exposição sobre a revelação. Por isso ele deve estar também no centro dos assuntos secundários ali presentes, como a inspiração e a inerrância.

Já a encíclica Divino afflante Spiritu, de Pio XII, em 1943, havia mencionado que, além de se buscar, mediante os gêneros literários, o sentido do texto bíblico que os autores humanos inspirados haviam intencionado, era necessário também considerar outro sentido bíblico inspirado: “o [sentido] espiritual, desde que este tenha sido legitimamente posto [no momento da inspiração] por Deus. Esse sentido espiritual [spiritualis sensus] só Deus o conhecia e nos pode revelar” (DH 3828). Trata-se de um sentido que, na ocasião da inspiração que gerou os textos bíblicos, foi “intencionado e posto pelo próprio Deus [a Deo ipso intentum et ordinatum]” (DH 3828). A encíclica adverte que se deve ter “cuidado, porém, para não confundir esse sentido espiritual, intencionado e posto [no momento da composição da Escritura] por Deus, com os sentidos metafóricos das coisas” (DH 3828), chamados um pouco atrás, naquela encíclica, de “místicos” (DH 3827).

Na reflexão teológica pré-conciliar, esse “sentido espiritual” passou a ser chamado de sensus plenior. Tal sentido inspirado mais profundo do texto bíblico foi intencionado pelo autor divino no momento da redação da Bíblia, situava-se em geral além daquilo que os autores humanos tinham consciência e visava manifestar Jesus Cristo e a salvação. O recurso aos gêneros literários muitas vezes é insuficiente para identificar tal sentido mais profundo. Ainda assim, ele é sentido, inspirado, intencionado por Deus, que dá unidade e coesão à Bíblia inteira, tendo seu foco em Cristo e na salvação divina ali prometida e realizada.

Entre os muitos autores que examinaram a questão, os principais foram Joseph Coppens, François Braun, Raymond Brown e Pierre Benoit (ALVES, 2012, p.77-83).

Esse senso mais profundo é praticado desde o início pela Igreja. […] Se não vinha indicado por um nome especial, era um discernimento então deficiente que hoje fazemos melhor […], capaz de exprimir o cumprimento de todas as expectativas na pessoa e nas obras de Cristo. […] É uma das conquistas da nossa moderna ciência bíblica. (BENOIT, 1960, p.194)

À luz desse sentido bíblico mais profundo, a inspiração divina que plasmou a Bíblia o fez de modo totalmente relativo a Cristo. O conceito teológico de inspiração não diz respeito meramente a um livro. Ao contrário, “o fato constituído por Cristo é […] como uma chave escrita no início da partitura e que determina tudo” (LOHFINK, 1964, p.172). A inspiração que produziu a Bíblia, “algo”, teve total subordinação a alguém que está fora da Escritura, Cristo. A razão de ser da totalidade da Escritura inspirada é exatamente registrar e professar que a revelação plena de Deus e da salvação se encontram fora dela em Alguém, Jesus de Nazaré. Seria um contrassenso no conceito teológico de inspiração considerar o elemento subordinado (o livro) sem o elemento subordinante e principal, Jesus. Conceber a inspiração da Escritura sem tomar na devida consideração aquele que é o motivo da inspiração significa entender a Bíblia por si mesma, como imenso aglomerado divinamente inspirado de páginas escritas. Ignorar Cristo é entender mal o conceito teológico de inspiração (ALVES, 2012, p.385-386).

No número 11 da Constituição Dei Verbum do Concílio Ecumênico Vaticano II, esse elemento essencial do conceito teológico de inspiração permaneceu subentendido, não foi explicitado. Naquele número do documento conciliar o nome de Cristo não aparece nem uma vez sequer, mas é sempre tido como implícito em virtude daquelas reflexões sobre a inspiração e inerrância bíblica serem desenvolvidas em tal documento claramente cristocêntrico sobre a revelação divina.

4 O cristocentrismo da verdade bíblica

Também no que diz respeito à verdade do Livro Sagrado, concebê-la sem levar apropriadamente em conta sua subordinação àquele que é tal verdade pessoal – Cristo – significa entender de maneira equivocada a natureza da verdade daquelas páginas. Tratar-se-ia de uma compreensão do elemento relativo (o livro inspirado) por si mesmo, como uma imensa massa precisa e exata de afirmações divinas. Ignorar Cristo é entender mal a verdade inteira da Bíblia (ALVES, 2012, p.384-386). Jesus é, no conjunto de sua pessoa, a revelação divina definitiva, a verdade e a salvação, que são os objetos centrais da mensagem da Bíblia inteira. Ele é o objeto formal de toda a Sagrada Escritura, mesmo quando não é seu objeto material. Tal distinção entre “objeto formal” e “objeto material” é clássica na história da Teologia. Ela já aparecia numa obra importante publicada em 1870 pelo cardeal Johannes Baptist Franzelin:

Referimo-nos aqui com a palavra formal a tudo aquilo de que um determinado livro é constituído e sem o qual ele não atinge o que o autor quer como objetivo do livro. Chamamos de material aquilo que poderia encontrar-se em modo diverso, sem que o livro deixasse de atingir o que o autor quer como objetivo. (FRANZELIN, 1870, p.297)

Por objeto material da Bíblia entende-se aquilo que se vê com os olhos naquelas páginas, as proposições verbais do texto bíblico. Por objeto formal da Sagrada Escritura entende-se o sentido, aquilo que constitui o propósito intencionado pelo autor (no caso, o autor divino). A pergunta pela verdade bíblica extrapola o objeto material e dirige-se ao objeto formal, o sentido intencionado por Deus. O Espírito Santo quis revelar Jesus Cristo. Por isso o que se deve procurar na Bíblia toda é Cristo, verdade e salvação bíblicas. “A Bíblia tem um só autor, Deus, e um único objeto central, a revelação da salvação em Jesus Cristo. Portanto todas as suas afirmações estão ligadas entre si e convergem na direção de um único centro” (MARTINI, 1969, p.250). A importância disso não é pequena para o estudo da inspiração e da inerrância da Sagrada Escritura, pois reflete uma consciência que tinham o próprio Cristo, os apóstolos e a Igreja do tempo dos apóstolos.

Qual é, portanto, a natureza da verdade bíblica? Em primeiro lugar, a natureza da verdade bíblica é Alguém, e nesse sentido é uma verdade pessoal, Cristo, e não as informações de cunho científico, como as geográficas, cosmológicas ou botânicas. Deus quis indicar na Sagrada Escritura sobretudo essa verdade pessoal, ao invés de um grande apanhado de verdades abstratas.

Na Constituição Dei Verbum do Concílio Ecumênico Vaticano II isso vem afirmado desde o início e precisa ser tido como pressuposto ao se estudar o que esse concílio apresentou a respeito da inspiração e da inerrância: “a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como da salvação do ser humano […] resplandece para nós em Cristo” (Dei Verbum, n.2). Pelo fato da verdade da Bíblia ser Cristo é que a Sagrada Escritura – algo – pode por analogia ser chamada de “Palavra de Deus”, já que é totalmente subordinada àquele Alguém que é a Palavra de Deus por excelência.

5 O cristocentrismo da inerrância da Escritura

O vínculo essencial do conceito teológico de inspiração com a pessoa de Jesus Cristo traz três consequências para a compreensão mais aprofundada e justa da inerrância bíblica.

a) A atitude de Deus em relação ao erro

A primeira consequência da vinculação entre conceito teológico de inspiração e Cristo é a de permitir vislumbrar, de um modo mais fiel à revelação cristã, o modo pelo qual o Deus único, infalível e suma verdade se relaciona de fato com o erro humano. As atitudes de Deus são reveladas plenamente nas atitudes de Cristo, e aquilo que Deus no fundo é foi revelado em plenitude só em Jesus de Nazaré: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Portanto a relação de Deus com o erro só é compreendida adequadamente na pessoa de Cristo, na sua vida e no seu jeito de ser. Conceber a inerrância da Bíblia sem tomar na devida consideração aquele que é a revelação plena da atitude de Deus em relação ao erro significa não entender direito a inerrância. Ignorar Cristo é entender mal a inerrância da Sagrada Escritura (ALVES, 2012, p.387). Nesse ponto, é necessário purificar pré-compreensões a respeito da relação de Deus com o erro (ALVES, 2012, p.362-367).

Jesus Cristo mostrou a autêntica relação de Deus com o erro no seu desenvolvimento como ser humano e nas suas atitudes em relação aos demais seres humanos. Na encarnação da Palavra de Deus por excelência – segunda pessoa da Santíssima Trindade – Jesus: 1) excluiu do seu próprio agir o erro que é pecado e 2) incluiu erros humanos não pecaminosos, como aqueles que acontecem ao aprender a falar e andar, por exemplo. Sempre chamando os seres humanos a uma santidade radical de vida como a dele próprio, Jesus: 3) convidou os que erram, os fracos e os pecadores com seus pecados a fazer parte do seu corpo místico. Isso se vê nos relatos da sua Paixão e também em outros momentos essenciais dos Evangelhos, como o episódio da mulher adúltera, a parábola do filho pródigo e a instituição dos doze, entre os quais “Judas Iscariotes, aquele que o traiu” (Mc 3,19; Mt 10,4). Pelos pecadores Cristo deu a própria vida (Rm 5,8).

Deus, que é suma verdade e santidade, tem eternamente essa conduta amorosa em relação ao erro, atitude só plenamente revelada em Cristo. “Com esse modo de agir Deus criou o universo e o mantém, e com esse mesmo eterno modo de agir inspirou integralmente a Sagrada Escritura” (ALVES, 2012, p.372). Por isso há erros e imperfeições materiais no texto sagrado. Eles não envilecem a autoridade da Bíblia. Pelo contrário, são indícios da pedagogia divina em relação a essas coisas (SEGUNDO, 2000, p.137-144).

b) A natureza da inerrância bíblica

A segunda consequência de se vincular o conceito teológico de inspiração a Cristo é permitir ver, de modo mais fiel à revelação cristã, a natureza da inerrância. Essa diz respeito à substância da mensagem intencionada por Deus ao originar a Bíblia: precisamente Cristo. Em toda a Escritura, aquilo que Deus teve de fato a intenção de anunciar de modo infalível é Jesus Cristo. Tal intenção divina, concretizada na Escritura de maneira inerrante, verificava-se mesmo naquelas ocasiões em que os autores humanos – sempre fazendo uso de suas faculdades e forças – não tinham consciência de tal intenção divina (pensa-se aqui particularmente nos hagiógrafos do Antigo Testamento).

Durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, o abade beneditino Christopher Butler foi quem quantitativamente mais contribuiu para a redação do número 11 da Constituição Dei Verbum no qual vem exposta a doutrina conciliar acerca da inspiração e inerrância. Após o concílio, ele escreveu a respeito: “Em resumo, o que a Bíblia ensina fielmente e sem erro é Cristo e o que se refere diretamente a ele” (BUTLER, 1968, p.101).

c) Motivo de a providência divina indicar-nos erros materiais na Sagrada Escritura

A terceira consequência de vincular o conceito teológico de inspiração com a pessoa de Jesus Cristo é trazer à luz o motivo pelo qual a providência divina concede-nos modernas ferramentas de análise que evidenciam a presença de inexatidões da informação histórico-científica na Bíblia. Já São Jerônimo era capaz de manifestar ali a presença de erros materiais. Ao comentar a carta de Paulo aos Efésios, ele afirma: “Este [Paulo], portanto, que comete solecismos nas palavras, que não pode produzir hipérbatos [elegantes] nem fechar [elegantemente] frases, reivindica corajosamente a sabedoria” (JERÔNIMO, 1845, II:3,1-4, c.478). Solecismos são erros de concordância, regência e construção frasal. O reconhecimento de Jerônimo da existência de erros desse gênero em Paulo era relevante num contexto no qual os adversários da revelação cristã argumentavam que tais erros da Bíblia indicavam que ela não poderia ter origem divina. Jerônimo mostrava com isso que a inerrância precisava ser mais bem compreendida.

A identificação de erros materiais na Sagrada Escritura tornou-se muito acentuada nos séculos XIX e XX. Tais erros materiais consistiam daquilo que, na compreensão moderna, são inexatidões da informação histórico-científica. Isso levou à frequente impressão de que o cristianismo sustentaria que a Bíblia não contivesse erros de informação histórico-científica. Nesse caso o termo “erro” adquiriu ambiguidade e assumiu um sentido não desejado na origem divina do texto sagrado. Durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, o abade inglês Christopher Butler chamava a atenção para a ambiguidade indevida que tal vocábulo havia adquirido na compreensão moderna e que dificultava a compreensão da inerrância:

O uso da palavra “erro”, mesmo que nós compreendamos o que ela significa, só traz confusão às pessoas de hoje. Elas conhecem, nas descrições da Escritura, muitas coisas que contradizem a história científica e as ciências naturais. Nós conseguimos contornar essa dificuldade. Mas, para os que são pequeninos no assunto, a palavra “erro” é causa de tropeço. (ALVES, 2012, p.211)

No Concílio Vaticano II, houve apelos para que se manifestasse com precisão o sentido da palavra “erro” ao se afirmar a inerrância bíblica. Os bispos de expressão alemã manifestaram nesse sentido:

Ninguém que examine as afirmações do Magistério eclesial de Leão XIII a Pio XII ousaria negar que a Sagrada Escritura é absolutamente isenta de qualquer erro. Mas – para que o esquema tenha, na realidade, um caráter verdadeiramente pastoral, isto é, tendo em conta tanto a mentalidade como as dificuldades de nosso tempo – pode-se desejar ao menos uma breve explicação do que se deve entender aqui com a palavra erro. […] As pessoas de hoje, que falando com sua própria terminologia encontram erros na Sagrada Escritura, dificilmente podem ser persuadidas a mudar de opinião a este respeito. (ALVES, 2012, p. 156)

Durante o mesmo evento, pela primeira vez na história da Igreja foram apresentados a um concílio ecumênico trechos bíblicos concretos para que ele se pronunciasse a respeito do tema da inerrância da Escritura. Os mesmos bispos de expressão alemã apresentaram exemplos de inexatidões da informação histórico-científica que se encontram na Bíblia e pediram:

Para que a autoridade da Sagrada Escritura não sofra nenhum dano, deve-se falar delas lealmente e sem ambiguidade, e não artificialmente e com receio. […] Mc 2,26 conta o que aconteceu durante uma visita de Davi ao templo de Jerusalém no período em que Abiatar era sumo sacerdote. Mas 1Sm 21,1-7 afirma que era Abimelec, pai de Abiatar. Mt 27,9-10 cita uma passagem do AT e a atribui ao profeta Jeremias, mas na verdade é uma passagem do profeta Zacarias (Zc 11,12-13). Dn 1,1 afirma que Nabucodonosor cercou Jerusalém no terceiro ano do reinado de Joaquim, mas as crônicas do rei da Babilônia achadas em escavações arqueológicas mostram que isso só pode ter acontecido três anos depois. (ALVES, 2012, p.212)

Naquela mesma ocasião, o bispo brasileiro Dom João Batista da Mota e Albuquerque acrescentou outros exemplos nessa linha:

A genealogia de Cristo em Mt 1,1-17 afirma que, entre Abraão e Jesus, houve três séries de 14 gerações. A história mostra que isso não é verdade. […] É só [também] recordarmos a cosmologia antiga: o movimento do sol ao redor da Terra, a massa das águas que se acreditava acima dos céus. Não são gêneros literários, ou certo modo de falar. Na verdade, os antigos acreditavam firmemente nessa cosmologia. (ALVES, 2012, p.212-213)

Em passagens bíblicas desse tipo, com inexatidões da informação histórico-científica, o termo “erro” assume um sentido não desejado na origem divina da Escritura a partir do Espírito Santo. O que então Deus, que é único, infalível e suma verdade, quer mostrar de Si quando, mediante sua divina providência, concede-nos ferramentas de análise que identificam erros desse tipo na Bíblia? Precisamente que a sua completa e amorosa atitude em relação ao erro humano é muito mais rica e complexa do que a mera exclusão de erros por arrogância ou dureza de coração, como se tais erros consistissem em impurezas das quais Ele deveria se manter apartado por ser desprovido de condescendência, misericórdia e compaixão incondicionais.

De que esse Deus único e suma-verdade quer tornar a Igreja mais consciente ao conceder tais instrumentos de análise que evidenciam esses erros de informação histórico-científica na Bíblia? Ele quer torná-la mais consciente de sua divina intenção original, a saber, que a substância da mensagem da Sagrada Escritura inteira é Cristo, e que nisso a totalidade da Bíblia é imune a erro (ALVES, 2012, p.384-385). Santo Agostinho já alertava para o risco de se perder o foco a esse respeito:

Tem-se o costume de se perguntar qual a forma e estrutura do céu em que devemos acreditar segundo nossas Escrituras. Muitos, de fato, polemizam a respeito dessas coisas […] que não têm utilidade para uma vida feliz e, o que é pior, ocupam tempo muito precioso que devia ser ocupado com os assuntos da salvação. Que importância tem [na Bíblia] se o céu se estende como uma esfera com a terra equilibrada no meio, ou se recobre esta como a um disco só pela parte de cima? Trata-se aqui da credibilidade da Escritura […]. O Espírito de Deus, que falava mediante eles [os autores humanos da Bíblia], não quis ensinar aos seres humanos esse tipo de coisa que não tem utilidade para a salvação. (AGOSTINHO, 1845, II,9,20, c.270)

6 A normatividade da intenção divina

Outro elemento que o conceito teológico de inspiração inclui é o caráter normativo da intenção divina quando, mediante a ação do Espírito Santo, atuou de maneira direta na composição do texto sagrado. A inspiração bíblica acarretou um caráter de normatividade para esses textos que é expresso mediante um adjetivo especial: Sagrada Escritura. Tal normatividade da intenção divina manifestou-se como parte da intenção divina mais ampla de gerar o Israel do Antigo Testamento e a Igreja.

A normatividade, contudo, não é suficiente para caracterizar a intenção divina manifestada durante a composição inspirada da Bíblia. A Igreja possui outros textos normativos posteriormente elaborados, como por exemplo as declarações dos concílios ecumênicos, a lista do cânone dos livros bíblicos e o Código de Direito Canônico. Desses textos pode até mesmo ser dito que, de algum modo, eles tiveram uma certa origem divina na medida em que sua composição contou com a iluminação ou assistência do Espírito Santo (ALVES, 2012, p.376). Eles, contudo, não são sagrados. É necessário então acrescentar um elemento mais específico que explique porque, de todos os textos normativos, só a Bíblia é designada como sagrada.

7 Autoria divina

No conceito teológico de inspiração, para explicitar o elemento que só se pode atribuir ao texto normativo da Bíblia e a nenhum outro mais, uma afirmação clássica é a de que Deus é o autor da Sagrada Escritura. De nenhum outro texto normativo diz-se que Deus foi seu autor. A ação de Deus como autor de um texto verificou-se mediante uma direção especial do Espírito Santo já encerrada na história (O’COLLINS, 1991, p.297). Em Teologia, Deus-autor é uma expressão que, quando aplicada a um texto, só é aplicada à Bíblia e em estreita vinculação com o conceito teológico de inspiração.

A inspiração bíblica é, portanto, o fenômeno cuja origem é a intenção divina normativa com a qual, através do Espírito Santo, Deus produziu e estabeleceu como autor o texto normativo e definitivo que registrou a revelação de Alguém – Ele próprio, Deus – acontecida num processo de automanifestação cuja plenitude deu-se na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, segunda pessoa da Santíssima Trindade e Palavra de Deus por excelência que existia antes de todos os tempos. Nenhum outro texto pode honrar-se em ter Deus como autor (ALVES, 2012, p.376).

8 O tempo dos apóstolos

O conceito teológico de inspiração implica um elemento clássico de Teologia Fundamental: há uma diferença essencial entre, por um lado, a fase da Igreja do tempo dos apóstolos e do Israel do Antigo Testamento e, por outro lado, a fase da Igreja pós-apostólica (O’COLLINS, 1991, p.125-127). A inspiração bíblica é um fenômeno que corresponde apenas à primeira fase (O’COLLINS, 1991, p.283). Nos textos teológicos do Magistério isso transparece no fato que, desde a encíclica Providentissimus Deus, em 1893, os termos inspirare e inspiratio são empregados apenas no sentido limitado à composição da Bíblia. A intenção divina inspiradora manifestou-se apenas naquela primeira fase, que era normativa. Essa é a tese central do célebre texto de Karl Rahner sobre a inspiração bíblica (RAHNER, 1956, p.150-160).

Por isso não se deve confundir o conceito teológico de inspiração com o emprego ordinário da palavra “inspiração”. Na vida cotidiana essa palavra pode ser efetivamente empregada para descrever ações do nosso tempo. Porém o conceito teológico de inspiração designa um termo técnico que possui um sentido técnico limitado à Igreja do tempo dos apóstolos e do Israel do Antigo Testamento. Houve uma relação qualitativamente única de Deus com o antigo Israel e a Igreja do tempo dos apóstolos na qual, mediante o carisma da inspiração bíblica que se encontra encerrado, a intenção divina gerou a Escritura como elemento normativo e permanente para a Igreja das épocas posteriores (ALVES, 2012, p.83-85). A utilização na linguagem cotidiana do termo “inspiração” não possui esse limite. Um texto teológico sobre inspiração bíblica que não leva em consideração o sentido técnico exclusivo do conceito teológico de inspiração indica uma lacuna no campo da Teologia da revelação e em Teologia Fundamental, mais do que inova na reflexão sobre a inspiração bíblica (ALVES, 2012, p.377). Tal falta de distinção mais atrapalha que ajuda, pois gera falta de clareza sobre algo que é qualitativamente restrito ao primeiro período (aquele do “depósito da fé”) enquanto normatizador para o segundo período, o nosso.

Será que tal distinção qualitativa entre os dois períodos significaria que houve uma interrupção na revelação, que esta deixou de ser contemporânea às gerações pós-apostólicas e que não se conta mais com a criatividade destas (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 280)? Será que o Espírito Santo não se encontra mais atuante nos seres humanos? As respostas são negativas. A revelação no período pós-apostólico continua acontecendo e significando novidade para cada geração. Deus dá-se a descobrir como “Alguém” num processo contínuo que já atingiu no passado o maior grau possível nesta realidade em que vivemos antes da morte e que continua no presente. O Espírito Santo continua vivo e atuante. Se no período pós-apostólico nada de novo sobre Deus será revelado que já não tenha sido revelado em Israel e em Cristo (o “depósito da fé”), contudo a revelação permanece acontecendo no encontro sem intermediários entre Deus e a criatura humana. Para os indivíduos das gerações pós-apostólicas, essa revelação representará novidade e envolverá criatividade, pois tal encontro pessoal significa “nascer do alto” (Jo 3,3). O Espírito Santo continua a tornar presente Deus já plenamente revelado em Cristo. Isso não será, contudo, novidade revelativa se considerado o conjunto de todas as gerações desde o tempo dos apóstolos até hoje.

Há de fato uma linha de reflexão que tomou rumo diverso e que não limita o conceito teológico de inspiração ao tempo dos apóstolos. Ela aparece com frequência na reflexão feita após o Concílio Vaticano II. Em 1964 – antes, portanto, da Constituição Dei Verbum – o biblista jesuíta Luis Alonso Schökel terminou a obra seminal A Palavra inspirada, que marcaria a reflexão pós-conciliar sobre a inspiração num grau não menor que o próprio documento do Vaticano II. O subtítulo do livro – A Bíblia à luz da Ciência da linguagem – anunciava sua originalidade: trabalhar o tema da inspiração bíblica segundo o ponto de vista dessa ciência. No prólogo da edição de 1986, o autor diz que sua intenção foi a de transpor o tratado da inspiração do campo do conhecimento para o campo da linguagem. Schökel repensa ali a reflexão sobre a inspiração como carisma de linguagem e o faz mediante categorias linguísticas: as funções da linguagem e seus níveis. Ele centra seu estudo a respeito da inspiração da Bíblia sobre “algo”, isto é, a obra literária concreta da Sagrada Escritura, ao invés de fazê-lo precisamente sobre “Alguém”, a pessoa de Jesus Cristo. Isso leva o autor a um ponto de partida que se tornaria comum nas décadas seguintes: os próprios livros inspirados (SCHÖKEL, 1992, p. 84). Outro elemento relevante é o da vinculação entre escrever e ler, que é refletida mediante a categoria de “círculo hermenêutico”. Com base em tal vínculo é utilizado na obra o sentido que o termo “inspiração” tem na linguagem ordinária cotidiana. Isso levou Schökel a pensar a inspiração não só na formação do texto sagrado, mas também na atividade dos leitores dos séculos posteriores: os leitores litúrgicos e o leitor que medita a Sagrada Escritura (SCHÖKEL, 1992, p. 249).

A partir de então, o fascínio da Ciência da linguagem e o emprego do sentido ordinário da palavra “inspiração” assinalam em geral os estudos pós-conciliares no campo da inspiração da Escritura. Nesse campo tornou-se comum designar também como inspiração a ação do Espírito Santo sobre o leitor da Bíblia. Empregada nesse sentido, tornou-se cômoda a frase “A Bíblia não é apenas inspirada, mas também inspirante” (IZQUIERDO, 2002, p. 79.130). No tempo pós-apostólico, o leitor da Bíblia poderia “fazer a experiência da inspiração” (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 293). Expressão dessa atual linha da reflexão é o documento Inspiração e verdade da Sagrada Escritura da Pontifícia Comissão Bíblica, publicado em 2014.

Claro que o Espírito Santo é responsável pelo texto bíblico tanto no “escrever”, durante a composição da Sagrada Escritura, como no “ler”, em ocasião de sua leitura no período pós-apostólico. Sendo, contudo, atividades diferentes, também a ação do Espírito Santo será diferente (ALVES, 2012, p.359). A doutrina da inspiração bíblica ensina que o Espírito Santo era atuante como inspirador apenas na composição da Bíblia. Uma maneira teologicamente já consagrada de expressar isso é dizer que esse é o único escrito que tem Deus como autor. Tal ação divina exclusiva durante a composição da Bíblia refletia uma intenção divina já encerrada e que representa o “depósito da fé”. Na segunda atividade (o “ler” no período pós-apostólico, atividade diversa de “escrever” o texto bíblico), o mesmo Espírito Santo permanece ativo, mas de modo diverso e que pode ser denominado assistência, iluminação, moção ou impulso do Espírito.

Tal distinção entre conceito teológico de inspiração e assistência ou iluminação não representa obstáculo porque não há oposição ou contradição entre as duas ações diferentes do mesmo Espírito Santo, mas apenas a distinção qualitativa mencionada. Em ambas a viva revelação divina continua contemporânea de cada geração e chamando-as à criatividade inerente a quem se insere em tal diálogo revelativo com base no que Cristo revelou definitivamente pela primeira vez no evento de sua vida, morte e ressurreição, o núcleo do “depósito da fé”. Longe de representar obstáculo, a denominação diferenciada para referir as ações do Espírito Santo no “escrever” a Bíblia no passado e no “ler” hoje o mesmo texto sagrado evita a confusão de qualidade entre os dois períodos.  Isso talvez não seja pouco, pois convida à humildade em relação ao período em que vivemos e contribui para uma mais justa compreensão da importante diferença qualitativa presente na intenção divina historicamente manifestada.

9 Autoria humana

O conceito teológico de inspiração integra pelo menos três elementos acerca dos seres humanos. Primeiro, a Sagrada Escritura inspirada teve verdadeiros autores humanos. O Magistério designa os hagiógrafos como autores desde a encíclica Providentissimus Deus, de Leão XIII. em 1893 (ALVES, 2012, p.38). No Concílio Ecumênico Vaticano II, o número 11 da Constituição Dei Verbum chama-os de “verdadeiros autores”, no sentido de verdadeiros escritores do texto que elaboraram. Nesse mesmo sentido, desde a encíclica Divino afflante Spiritu, de Pio XII, em 1943, o Magistério havia abandonado o termo dictare para expressar a autoria divina da Sagrada Escritura. No século XX, por aparecer traduzido nas línguas modernas no sentido de “ditar”, tal termo havia adquirido um significado mecânico incompatível com a autoria humana da Bíblia. Pela mesma razão, durante o Concílio Vaticano II o Magistério abandonou nesse campo as categorias aristotélico-tomistas de causalidade eficiente, que levavam a chamar o hagiógrafo de autor-instrumental e a Deus de autor-principal da Escritura. O termo “instrumento” aplicado ao hagiógrafo mais escondia que patenteava o papel do ser humano como verdadeiro autor do texto sagrado.

Segundo, a quantidade desses verdadeiros autores humanos da Bíblia foi muito grande. Hagiógrafos, ou autores humanos da Escritura, foram todos aqueles que de fato tomaram parte na redação dos textos bíblicos. Dois extremos devem ser evitados: por um lado, que a ação divina teria se espalhado indistintamente sobre todos os membros do povo de Israel, e por outro lado, que a inspiração divina teria sido coisa que aconteceu apenas no último redator que interveio no texto.

Terceiro, a psicologia dos autores humanos durante a inspiração não era caracterizada por um estado fenomenológico interno que teria sido exclusivo, distinto dos estados internos nos quais a inspiração bíblica não se manifestava. O número 11 da Constituição Dei Verbum utilizou a esse respeito termos aptos a descrever também outras ações divinas sobre o ser humano: “Deus escolheu homens dos quais se valeu – fazendo, estes, uso de suas faculdades e forças, e agindo Ele próprio neles e através deles – a fim de que colocassem por escrito” (Dei Verbum n.11). O elemento distintivo da inspiração da Bíblia não se encontra no nível da experiência subjetiva do hagiógrafo inspirado. “Aqui a Teologia deve fazer-se particularmente modesta” (GIBERT; THEOBALD, 2007, p. 69). Aquilo que dá ao conceito teológico de inspiração seu caráter específico, único e irrepetível encontra-se na intenção de Deus, e não no estado mental do autor humano inspirado (ALVES, 2012, p.378).

10 O testemunho da Igreja

Enfim, a inspiração e a inerrância bíblicas incluem a prova dessas coisas: é dada pelo testemunho da Igreja que remonta ao tempo dos apóstolos. Não convém prová-las mediante o próprio texto bíblico, pois seria petição de princípio. No Concílio Vaticano II, o número 11 da Constituição Dei Verbum recorre três vezes ao testemunho da Igreja. Duas vezes refere-a pelo nome: “a santa mãe Igreja” e “Igreja”. Uma vez o faz indicando algo que se deve tomar como profissão de fé: “portanto […] deve-se professar” (“inde […] profitendi sunt”. A inspiração e a inerrância bíblicas são garantidas com base no testemunho eclesial. É tal testemunho com base na fé da Igreja (que remonta ao tempo dos apóstolos) que prova e garante a origem divina e a inerrância da Sagrada Escritura (ALVES, 2012, p.379).

Conclusão

O estudo da inspiração e da inerrância ganha em qualidade ao ser deixado de lado o paradigma coisificado de revelação, segundo o qual aquilo que Deus faria passar do âmbito divino ao humano seriam palavras exatas contendo seus textos revelados em uma precisa grafia e fraseologia. Esse estudo só obtém tal ganho de qualidade à luz da Teologia Fundamental quando é inserido no quadro mais amplo da revelação judaico-cristã em seu caráter de paradigma personalista segundo o qual o que é revelado é sobretudo Alguém, cuja plenitude revelativa deu-se em Jesus de Nazaré. Esse era o paradigma de revelação do próprio Cristo e dos apóstolos. Cristo presente continua se revelando no tempo atual, embora o que de si venha agora a mostrar já tenha sido revelado anteriormente no tempo da revelação fundamental. A Bíblia, inspirada e inerrante à luz dessas reflexões, é o registro da revelação fundamental já culminada e guia com segurança o encontro atual com Cristo vivo.

César Andrade Alves SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Belo Horizonte, Brasil. Texto original português

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