Igreja e sociedade

Sumário

1 Relação Igreja-sociedade na história

2 Diferentes imagens explicativas da relação

3 Passagens importantes da Escritura

4 As aproximações das  diferentes denominações cristãs

5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação Igreja-Estado

6 O desafio da secularização e a privatização da religião

7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais

7.1 O modelo da lei natural

7.2 Propostas de teologia pública

7.3  Propostas da teologia da libertação

7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa

8 Referências bibliográficas

1 Relação Igreja-sociedade na história     

A relação entre a Igreja e a sociedade mudou muito ao longo da história do cristianismo e de acordo com as diferentes denominações cristãs. Desta forma, podemos ver momentos de profunda oposição entre a Igreja e a sociedade, como durante as perseguições do Império Romano, durante a Revolução Francesa ou os regimes liberais; e  tempos de conluio claro, como durante o final do Império Romano, depois do Edito de Tessalônica do ano 380, ou durante a Idade Média na Europa.

Como veremos, este problema pode ser apresentado de duas maneiras: de modo mais reduzido, como relação entre Igreja e Estado – entendida como parte da sociedade – ou, de modo mais amplo, enquanto relação geral da Igreja com a sociedade como um todo. Se o principal problema foi a primeira forma de relação durante grande parte da história do cristianismo, hoje é a segunda que está em evidência com o debate sobre a privatização das religiões.

2 Diferentes imagens explicativas da relação

A grande imagem explicativa da relação Igreja-sociedade tem sido, historicamente, a ideia das duas cidades presentes na história, a cidade de Deus e a cidade terrena, que propõe Agostinho em A cidade de Deus. A imagem das cidades é uma teologia da história que foca no amor que move aos homens, seja o amor-próprio, no caso da cidade terrena, ou o amor de Deus, no caso da cidade celestial (Livro XIV, 28). Ambas sociedades humanas coincidem na história e ambas se distribuem para os seres humanos existentes (Livro XV, 1). A origem e a finalidade da cidade celestial é Deus. Além disso, parte da cidade terrena, a Igreja, simboliza na história a Cidade de Deus (Livro XV, 2) Apesar do extenso tratamento desta imagem por parte de  Santo Agostinho, é difícil saber com precisão a relação concreta que ele propõe para ambas as cidades e ainda mais difícil saber a  relação da Igreja com elas. Esta dificuldade em interpretar fielmente o pensamento de Santo Agostinho implica que essa mesma imagem possa ser  entendida tanto como uma relação de colaboração entre a Igreja e a cidade terrena quanto uma relação de antagonismo.

Outro paradigma explicativo importante é proposto pelo teólogo alemão Ernst Throeltsch (1865-1923). Ele estudou as diferentes denominações cristãs em relação à sua visão da sociedade, e isso lhe permitiu propor uma distinção básica entre elas. Assim, Troeltsch diferencia, em sua obra Os ensinamentos sociais das igrejas cristãs, publicado em alemão em 1912, a categoria “seita” ou comunidade eclesial, que se limita apenas a dar um testemunho pelo seu modo de vida, e a categoria “igreja”, que considera que a comunidade cristã tem responsabilidades na configuração do conjunto da sociedade (TROELTSCH, 2009).

Talvez a tipologia explicativa mais abrangente a este respeito seja oferecida pelo teólogo americano H. Richard Niebuhr (1894-1962) em seu livro Cristo e a cultura (NIEBUHR, 1951). Neste trabalho, o autor identifica cinco diferentes pontos de vista da relação entre Igreja e sociedade: Cristo contra a cultura, o Cristo da cultura, Cristo na cultura, Cristo e a cultura como paradoxo, e Cristo transformador da cultura. Niebuhr  associa, de modo geral, cada categoria a uma confissão cristã. O autor favorece claramente a última categoria, Cristo transformador da cultura, que ele identifica com sua própria confissão calvinista.

3 Passagens importantes da Escritura

É possível ver uma base comum para a percepção do relacionamento das denominações cristãs com a sociedade inspirada, principalmente, em Mt 22,15-21 e em seu chamado para dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Esta base implicaria uma distinção entre Igreja e sociedade,  em contraste, por exemplo, com a visão da tradição muçulmana que tende a ver a religião e a sociedade como um todo inseparável.

Em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, Ulrich Luz considera, no entanto, que não é possível desenvolver toda uma teoria do Estado a partir desta passagem, pois essa não era a intenção do evangelista (LUZ, 2003, p.332-343). O autor do Evangelho de Mateus visa, unicamente, mostrar a malícia dos fariseus ante Jesus, ao tentar apanhá-lo numa armadilha, e como Jesus se saiu bem. Contudo, é certo que a história da interpretação da passagem a identificou como chave para entender a relação Igreja-sociedade. Especificamente, a tradição tem enfatizado o versículo 21, se perguntando se a obrigação de obediência a Deus e a obrigação fiscal de pagar o tributo a César são do mesmo nível.

Para Luz, uma interpretação rigorosa da passagem deve reconhecer que a mensagem principal é que a obediência a Deus está acima de qualquer outra, embora isso não signifique necessariamente negar essas outras obediências. Assim, reconhece-se que a obediência ao Estado é necessária, mas afirma que nunca pode ser superior à obediência a Deus. Deus é o Senhor acima de toda autoridade. Luz adverte, porém, que um perigo a evitar na interpretação dessa passagem é identificar a obediência a Deus com a obediência à Igreja.

Outra passagem importante que marcou a história das relações entre a Igreja e a sociedade é Rm 13,1-7. Neste trecho da Carta aos Romanos, Paulo chama a submeter-se à autoridade civil, porque “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1) Esta afirmação tem sido historicamente usada para exigir da comunidade cristã a obediência ao Estado e ao poder político. Foi, assim, uma passagem clássica para legitimar formas absolutistas de governo.

Simon Légasse reconhece, estudando essa passagem, que Paulo faz uma chamada à submissão ante as autoridades civis e que existe uma visão implícita subjacente sobre a relação entre a Igreja e sociedade (LEGASSE, 2002, p.807-834). No entanto, Legasse afirma que esta posição de Paulo responde a uma situação histórica particular: os primeiros momentos da comunidade cristã, quando ainda não há perseguição por parte do Estado romano e é possível encontrar cristãos e homens prudentes (como Sêneca) no governo do Império. O ensinamento de Paulo é uma verdadeira teologia do poder civil, porque evidencia que a autoridade política é necessária para a vida em sociedade e que é querida por Deus como servidora de seus planos. A comunidade cristã, para viver comprometida com a sua sociedade, deve reconhecer isto e respeitar a sua autoridade. No entanto, esta mesma teologia legitimaria a desobediência ou a crítica ao poder se não cumprir o seu papel como um servo do plano de Deus e da sociedade.

4 As aproximações das diferentes denominações cristãs

Além desta base bíblica comum, podemos identificar diferentes posições segundo a interpretação dessas passagens em função da história e circunstâncias de cada confissão cristã. Estas posições diferentes nos oferecem alternativas de interpretação das fontes cristãs que nos permitem continuar a aprofundá-las.

Por um lado, a posição católica – do Papa Gelásio I, em 496, e seu argumento do Duo sunt contra o imperador bizantino – tem defendido a existência de dois poderes independentes, Igreja e Estado, um espiritual e outro temporal, com ordens jurídicas diferentes: civil e eclesiástico. Ambas as ordens têm, no entanto, um quadro moral  comum de fundo, que é normalmente expresso pela lei natural. Igreja e Estado são, portanto, consideradas duas “sociedades perfeitas”, ou seja, elas têm em si mesmas todos os recursos para atingir seu fim e não precisam da intervenção da outra. Elas se diferenciam pelo fim de cada uma: o bem comum terrestre da sociedade e o bem comum espiritual da Igreja. Considera-se que o fim da Igreja é superior ao do Estado e que o engloba.

Por outro lado, a ortodoxia diferencia Igreja e sociedade-Estado, mas fala de uma relação “sinfônica” entre as duas, ou seja, há o reconhecimento mútuo e respeito sem a pretensão de estar uma acima da outra. Esta visão é o desenvolvimento da experiência do intervencionismo dos imperadores bizantinos na vida da Igreja Ortodoxa.

Lutero, reagindo à confusão entre o poder político e religioso da Renascença, desenvolveu sua teoria dos dois reinos. Esta teoria, difícil de precisar em suas concreções, assume que as esferas da Igreja e da autoridade política (o magistrado) são completamente diferentes, sendo a da Igreja puramente espiritual, e sendo a ação temporal do Estado necessária para conter o mal dos homens. Portanto, a Igreja não pode intervir na vida temporal e a lógica do Estado não pode ser contrastada pela Igreja. Ao mesmo tempo, o Estado tem a responsabilidade de lidar com a dimensão temporal da vida da Igreja.

Calvino tem uma visão mais positiva do Estado que Lutero e acredita que o Estado pode contribuir para o bem-estar do homem, e não só para conter o pecado. Calvino propõe ainda um sistema de equilíbrio de poderes dentro do governo. Nisso há forte influência da concepção que propõe as profissões civis como vocações cristãs. Estado e Igreja devem cooperar para o bem da sociedade, mas se o governante se levanta contra Deus, perde a sua autoridade e deve ser deposto.

É particularmente interesse a compreensão da relação entre Igreja e sociedade que tem o movimento menonita. Entende que há uma oposição necessária entre sociedade e Igreja, e que esta última há de tornar-se uma sociedade alternativa que ofereça uma proposta de vida contrária à da sociedade. A Igreja deve viver segundo o Evangelho, enquanto a sociedade vive em oposição a ele.

5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação Igreja-Estado

A interpretação tendenciosa medieval de A cidade de Deus, de Santo Agostinho, levou ao paradigma clássico medieval de relação Igreja-Estado que Henri-Xavier Arquillière, em 1934, denominou “agostinismo político” (ARQUILLIERE, 2005). Para o autor, esta interpretação da obra de Santo Agostinho identificava a cidade de Deus  com a Igreja e a cidade terrena com o Estado e a sociedade. Cada um tinha um âmbito de atuação, mas o fim da Igreja era superior, o que significava a subordinação do Estado.

Esta interpretação da relação Igreja-Estado, na prática, conduzia a uma situação oposta, porque, sob o pretexto de servir à Igreja, os governantes frequentemente intervinham e condicionavam sua vida interior. Um bom exemplo disso é o regalismo dos reis dos estados nacionais dos séculos XVI e XVII, como no caso dos reis católicos da Espanha. Este regalismo acentuou-se no século XVIII, com medidas como a necessidade de aprovação prévia dos reis para publicar documentos papais em um país.

A Revolução Francesa, e o liberalismo extremo das revoluções do século XIX, envolviam, em grande parte, uma reação de rejeição desta estreita relação entre Igreja e Estado. De modo particular, a Igreja Católica experimentou essa posição de liberalismo político como uma agressão e defendeu-se ao longo do século XIX e grande parte do século XX. Mas, aos poucos, foi-se estabelecendo um diálogo entre os dois lados que acabou permitindo à Igreja receber os valores da posição liberal.

Atualmente, existe um consenso prático – com algumas nuances – nas várias denominações cristãs sobre o modelo político da democracia pluralista ocidental, o que significa a separação Igreja-Estado. No caso católico, chegar a este consenso tomou tempo e várias discussões ao longo dos séculos XIX e XX, pois as primeiras propostas democráticas da Revolução Francesa foram apresentadas como explicitamente anticatólicas.

Historicamente, podem ser encontradas raízes deste modelo democrático no pensamento católico clássico. Francisco Suarez, em De Legibus (Livro 1), fala sobre a origem do poder do príncipe como vindo de Deus, mas tendo como origem a própria sociedade humana.

Um primeiro passo de aceitação deste modelo foi feito por Leão XIII, com sua teoria da tese-hipótese. Este ponto de vista é abordado de forma privilegiada na encíclica Libertas Praestantissimum, de 1888. De acordo com este ponto de vista, a religião católica ainda é a verdadeira fé, portanto, é responsabilidade do Estado proteger a verdadeira fé como parte do bem comum (tese). Defende-se, assim, a existência de Estados confessionalmente católicos e restrições ao culto público de outras religiões, mas não a prática privada. No entanto, se aceita a tolerância com o culto público de outras confissões cristãs, se as circunstâncias práticas o exigirem, em prol da paz social (hipótese). Um exemplo clássico desta situação seria um país predominantemente protestante, onde seria impensável tentar impor um Estado católico.

O grande avanço na Igreja Católica ocorre com o Vaticano II, em que o direito à liberdade religiosa e à participação política, dois pilares da democracia moderna, são afirmados explicitamente. No entanto, estes princípios não são novos na doutrina social da Igreja, pois haviam sido já anunciados pelas rádio-mensagens de Natal de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial (1942 e 1944).

Do ponto de vista da imagem de duas cidades de A Cidade de Deus, o Concílio, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, explicitamente fala de uma “interpenetração” (compenetratio) entre a cidade terrena e a cidade de Deus, o que implica uma relação entre elas. Observando a complexidade desta inter-relação, a Constituição fala que tem um certo grau de mistério (Gaudium et Spes n.40). O Concílio reconhece, assim, a ajuda mútua que se prestam Igreja e mundo e como precisam um do outro (GS n.41-44).

Na declaração Dignitatis Humanae, o Concílio afirma que, como resultado da dignidade humana, os seres humanos não devem ser coagidos na sua consciência e devem gozar de liberdade religiosa. O Concílio não cai no relativismo ao declarar isso, pois afirma-se que há uma obrigação moral de buscar a verdade. A chave é que esta verdade deve ser encontrada livremente (DH n.2)

Na Constituição Gaudium et Spes, o Concílio, recolhendo ensinamentos anteriores, reafirma o direito de participar da vida política como expressão da dignidade humana (GS n.73) A garantia desta participação é o respeito, pelo Estado, dos direitos humanos dos cidadãos.

O reconhecimento da autonomia e do valor da vida sócio-política, a afirmação explícita do direito à liberdade religiosa e à participação política, como consequência da dignidade humana, bem como a exigência de respeito, por parte do Estado, dos direitos humanos implica a plena aceitação do paradigma da democracia pluralista moderna pela Igreja Católica. Depois deste posicionamento, a doutrina social da Igreja segue reafirmando esta posição a cada novo documento social. Ultimamente, há, no entanto, um novo matiz mais crítico no tratamento do modelo das democracias ocidentais, que é acusado, especialmente, de ter renunciado a uma moral mais profunda do que a mera ordem legal como base para a organização social. Assim afirmava, por exemplo, João Paulo II, em 1991, na Centesimus Annus parágrafo 47.

6 O desafio da secularização e a privatização da religião

O consenso sobre o paradigma da democracia pluralista moderna permitiu superar, em certa medida, a controvérsia sobre a relação Igreja-Estado. No entanto, as mudanças sociais, em particular o processo de secularização, trouxeram à tona uma controvérsia levemente diferente, a da relação Igreja-sociedade ligeiramente diferente em geral. A partir de algumas posições – como as de John Rawls (1995) e Marcel Gauchet (2005) – afirma-se que a democracia real requer a redução das crenças para a esfera privada e qualquer presença pública da Igreja é rejeitada porque ela supõe a imposição de crenças concretas ao conjunto da sociedade. Se a justa separação de Igreja e estado é chamada laicidade, a rejeição da presença pública de religiões pode ser chamada laicismo, a laicidade negativa ou excludente (CONSELHO EDITORIAL, 2009).

O modelo para esta posição está representado pela proposta de Rousseau em O contrato social para desenvolver uma religião civil que substitui, no espaço público, as religiões particulares. A tradição republicana francesa inspira-se diretamente nestas posições, cuja melhor expressão é a lei francesa de separação entre Igreja e Estado de 1905. Esta visão foi apoiada pelas teorias de secularização de autores como Thomas Luckmann, que afirmavam que o declínio da religião até o seu desaparecimento era um processo histórico necessário (LUCKMANN, 1973).

Diante desta visão privatizadora da religião, o desafio para o pensamento teológico é mostrar a necessidade e bondade de uma presença pública das religiões, como resultado da necessária dimensão social da fé. Um fato contribuiu para este esforço em nosso atual mundo globalizado: a crescente presença, nas sociedades ocidentais, de comunidades provenientes de outras regiões do mundo, com diferentes religiões. Assim, as democracias ocidentais são forçadas, hoje, a gerenciar a presença de novas religiões, particularmente a presença do islamismo, que são regidas por diferentes parâmetros e que exigem uma presença pública essencial para sua própria existência. Esta nova realidade obriga a repensar essas posições mais privatizantes do aspecto religioso.

De fato, no pensamento filosófico e político atual, há uma clara recuperação do valor do religioso e da sua contribuição para a vida pública. Jürgen Habermas fala mesmo de uma época pós-secular em que é necessário reconhecer a contribuição das religiões para a vida social (HABERMAS, 2006, p.122-155). Enquanto isso, José Casanova rejeita as teorias de secularização e afirma que o declínio das religiões no Ocidente não é um processo necessário, mas conjuntural e que hoje vivemos um processo de desprivatização da religião (CASANOVA, 1994). Diante dessa crescente presença pública das religiões, Casanova oferece um modelo de presença positivo que ele chama de “religião pública”. Religião pública é aquela capaz de contribuir para a vida pública com as fontes de sua tradição, mas a partir da aceitação plena das liberdades políticas e da separação religião-Estado. Os exemplos de Espanha, Polônia, Brasil ou Estados Unidos mostram que uma presença pública positiva das religiões é perfeitamente possível.

O desafio é, portanto, mostrar como as religiões – integrando plenamente a separação religião-Estado – podem fazer uma contribuição para o bem comum da sociedade através da sua presença pública. Tal posição é chamada laicidade positiva ou inclusiva. Esta é a posição que a doutrina social da Igreja Católica tem defendido recentemente (cf. Caritas in Veritate n.55-56).

7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais

Do ponto de vista teológico, atualmente uma questio disputata, no campo da relação Igreja-sociedade, é como articular o discurso da Igreja em democracias pluralistas. Esta questão é muito importante, porque a forma como o discurso é elaborado condiciona o tipo de presença pública da Igreja na sociedade. Hoje encontramos diferentes modelos de articulação do discurso religioso. Cada modelo envolve uma visão da Igreja e da sociedade diferente, e poderia remeter, mesmo, às diferentes posições das denominações cristãs.

7.1 O modelo da lei natural

Na tradição da Igreja Católica é extremamente importante o paradigma ético da lei natural, que sempre esteve presente no magistério católico, embora de modo mais discreto no Concílio Vaticano II. Este paradigma implica a existência de uma ordem moral, que todo ser humano pode reconhecer pela razão, que deve orientar a organização social e as leis e que a comunidade cristã pode ajudar a descobrir, iluminando-a a partir do evangelho. O jesuíta norte-americano John Courtney Murray propunha adotar o paradigma da lei natural para fazer uma filosofia pública que estabelecesse as bases morais e políticas da sociedade pluralista estadunidense dos anos 1950 e 1960 (MURRAY, 2005).

  Articular a presença pública da Igreja a partir do paradigma da lei natural implica a suposição que existe um espaço para o diálogo sobre os princípios éticos nas sociedades modernas. Esse diálogo seria totalmente racional e comum a todas as tradições religiosas. A Igreja poderia ajudar nesse diálogo, sob a forma de um discurso racional semelhante ao de outros atores. Um problema com este ponto de vista da sociedade é que, em ambientes não-crentes e secularistas, esse modelo da lei natural é rejeitado, por ser considerado um subterfúgio da Igreja para impor sua própria moral.

A própria visão da lei natural mudou e irá variar ainda mais no futuro. Se, no passado, foi entendida de maneira muito rígida e excessivamente detalhada, hoje apresenta-se mais na forma de consenso acerca de alguns princípios éticos entre as diferentes tradições culturais e religiosas. São especialmente importantes, neste contexto, as contribuições de Jean Porter (PORTER, 1999) e Lisa Cahill (CAHILL, 2013).

7.2 Propostas de teologia pública

Desde o início do século XX, tem havido um crescente interesse em mostrar as consequências sociais da fé cristã em diferentes denominações. Um bom exemplo desta preocupação foi a conferência do movimento ecumênico realizado em Oxford, em 1937, sob o título “Igreja, comunidade e Estado”.

No ambiente católico, essa preocupação com as consequências sociais da fé vem do século XIX e foi formulada de forma privilegiada no Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, n.30). A partir de então, foram desenvolvidas várias propostas de compreensão da teologia do ponto de vista social. Entre essas propostas podemos mencionar a teologia da libertação, a teologia política e a teologia pública. Em todas elas pode ser percebida a influência do esquema teológico de Karl Rahner (MARTINEZ, 2002, p.216-251).

Dentre essas correntes, a teologia pública foi a que mais diretamente refletiu o discurso público da Igreja nas sociedades pluralistas. A teologia pública implica um desenvolvimento da ideia de John Courtney Murray de uma filosofia pública, mas que procura desenvolver um discurso explicitamente teológico que seja ao mesmo tempo significativo e relevante para a sociedade plural. Assim, esta forma de argumentação quer afirmar os dois polos: o respeito pelo pluralismo moral e religioso da sociedade democrática e a integridade do discurso teológico e das fontes cristãs. Isto supõe que se acredita que a Igreja e a fé cristã podem contribuir para o bem comum da sociedade plural a partir de sua própria identidade e respeitando a pluralidade de pontos de vista. No ambiente católico, é David Tracy que tem uma metodologia concreta mais sólida para esta tarefa, o paradigma da correlação crítica (TRACY, 1981). Por sua vez, o moralista David Hollenbach aplicou esta metodologia a vários problemas sociais (HOLLENBACH, 2002).

7.3 Propostas da teologia da libertação

Embora o problema que a teologia da libertação enfrenta não seja diretamente o da relação entre sociedade e Igreja, ser um modelo de mediação entre a revelação e a vida social, inevitavelmente, envolve uma certa visão dessa relação. Sua origem puramente latino-americana, mas, acima de tudo, sua enorme popularidade e influência, tornam sua abordagem muito importante. A teologia da libertação tem origem nas posições do Vaticano II, que já vimos, e que foram recebidas na América Latina através da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín em 1968. Nas conclusões dessa Conferência, se afirmava que, ao se observar o homem latino-americano, se percebia em primeiro lugar a situação de injustiça em que se encontra, e se descrevia a  ação salvífica de Deus na história, ante essa situação, como um processo de libertação (Cf. EPISCOPADO LATINOAMERICANO, Conferencias Generales, 1993, n.109-111).

Gustavo Gutiérrez desenvolveu essas intuições em sua obra programática Teologia da Libertação – Perspectivas, de 1971. Gutierrez vê a salvação que Deus nos traz como um processo de libertação com três fases, que se condicionam entre elas:  libertação política, libertação do homem e libertação do pecado. Isto significa que a salvação de Deus deve ter efeitos e supor mudanças na dimensão sócio-histórica. Esta salvação, o Reino de Deus, é um dom de Deus, mas o homem contribui para ela através de sua luta histórica pela libertação, luta impulsionada pela a ação de Deus nele (Cf. GUTIERREZ, 1972, p.236-241). Seguindo a inspiração eclesiológica do Vaticano II, o papel da Igreja na sociedade seria, então, um sacramento, mas o sacramento da libertação que Deus traz. Isto significa estar presente e apoiar os seus membros comprometidos com essa luta sócio-histórica pela libertação (Cf. GUTIERREZ, 1972, p.325-336).

Também Ignacio Ellacuría contribuiu para a fundamentação da tradição da teologia da libertação, especialmente filosoficamente. Sua abordagem leva a uma perspectiva sobre a relação Igreja-sociedade muito concreta. Para Ellacuría, a Igreja deve ser uma Igreja institucionalizada por ser um sinal de salvação que é histórica. No entanto, esta institucionalização tem sempre o perigo de cair em mundanização, colocando-a no centro da sua própria atividade. Para evitar esse desvio, a Igreja há de ser consciente que seu centro está fora de si mesma, o seu centro é o Reino de Deus. Isso permite que a Igreja abandone a mundanização e avance para o Reino, que tem como protagonistas e vencedores os pobres e os oprimidos (cf. ELLACURÍA, 2000). Ellacuría compreende a Igreja na sociedade como uma Igreja que há de ter os pobres como principal sujeito e fundamento da sua própria estrutura, e falará, assim, da verdadeira Igreja dos pobres (cf. ELLACURÍA, 1990, p.147).

Como podemos ver, a tradição da teologia da libertação, olhando para a relação entre Igreja e sociedade e propondo um papel para a Igreja na sociedade, é muito exigente com a integridade entre a vida da Igreja e a mensagem que ela apresenta. Esta integridade implica colocar no centro os pobres e sua libertação, bem como concretizar sua mensagem em práticas sócio-históricas em favor deles. O lugar da Igreja na sociedade é determinado, portanto, pelo princípio da opção preferencial pelos pobres, que já se estabelecera em Medellín e que se consagrou na Conferência de Puebla em 1979 (Cf. EPISCOPADO LATINOAMERICANO, Conferencias Generales 1993, n.436).

7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa

A partir da tradição anabatista, atualizada por John Howard Yoder (YODER, 1972), e reforçada pela renovação da ética aristotélica de Alisdair McIntyre (MACINTYRE, 1987), aparece, a partir dos anos 1980, uma nova posição na controvérsia entre Igreja e sociedade. Podemos chamar esta posição de Igreja como comunidade alternativa. Esta posição, defendida por autores como John Milbank (MILBANK, 1990) – fundador do movimento Radical Orthodoxy, Stanley Hauerwas (HAUERWAS, 1981) e Michael Baxter (BAXTER, 1996), envolve uma visão relativamente negativa da sociedade. Estes autores consideram que qualquer esforço para elaborar um discurso da Igreja em termos significativos e próximos aos da sociedade envolve, necessariamente, concessões na integridade da identidade cristã da comunidade. Por isso, eles consideram que o objetivo deve ser, sim, cuidar da vida interna da comunidade cristã, se esforçando para ser fiel ao modelo do Evangelho. Esta centralidade da vida e da identidade da comunidade é entendida a partir da ética das virtudes, pois visa fortalecer o caráter da comunidade.

A comunidade cristã torna-se, assim, uma comunidade de contraste, que confronta os valores e as práticas da sociedade. Este tipo de articulação do discurso cristão envolve uma visão da relação Igreja-sociedade que coloca no centro a oposição entre elas. A Igreja participa da missão salvífica de Cristo compartilhando o sofrimento e a rejeição que ele viveu em sua própria sociedade. A Igreja pode fornecer e iluminar a vida social, mas o fará enfatizando o contraste, confrontando a sociedade em seus valores e a partir do testemunho de uma vida alternativa.

Não devemos ver estas três posições como mutuamente excludentes, mas sim como complementares ou como diferentes formas de estar presente na sociedade, segundo as circunstâncias que se apresentam. O paradigma da lei natural permite chegar a consensos morais de grande força normativa e autoridade, que podem ser muito importantes para graves problemas morais. O paradigma da Igreja como uma comunidade alternativa é uma perspectiva interessante para pensar a presença da comunidade cristã em ambientes secularizados que podem corroer a sua identidade. O paradigma da teologia pública é uma proposta moderada e construtiva, especialmente válida para situações de grande pluralismo religioso e moral.

O desafio, hoje, para as denominações cristãs está em sua capacidade de serem religiões públicas, segundo os termos de José Casanova. É necessário partir de um reconhecimento teórico e prático completo dos valores da democracia pluralista moderna, mas manter uma voz própria, inspirada pelas fontes cristãs, e capaz de fornecer uma visão crítica da sociedade – especialmente em defesa dos mais pobres – quando se fizer necessário. Junto a isso, o crescente pluralismo religioso da sociedade moderna está começando a exigir que a presença e a voz pública da Igreja na sociedade sejam capazes de entrar em diálogo e promover ações com outras religiões presentes na sociedade, como pode ser com o islamismo. Uma palavra comum dita pelas religiões na sociedade em favor da justiça tem uma força sem paralelo, que deve ser explorada.

Gonzalo Villagrán Medina, SJ. Faculdade de Teologia de Granada, Espanha. Texto original em espanhol.

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