As origens do messianismo davídico na Bíblia

Sumário

Introdução

1 Messianismo: semântica e modalidades

2 Messianismo pré-exílico: ponto de partida de uma longa tradição

3 Messianismo pós-exílico: uma tradição em contínuo desdobramento

Referências

Introdução

Dentre os temas complexos dos estudos bíblicos, encontra-se o messianismo. Muito se escreveu e, ainda, se escreverá sobre ele. Na raiz do problema, está a impossibilidade de se resgatar o passado de Israel e recuperar sua história, no sentido moderno, de modo a se obter evidências seguras. Os textos bíblicos, no seu conjunto, são de caráter narrativo-teológico. Estão enraizados em contextos histórico-geográficos bem precisos, e respondem às muitas crises de fé do povo de Israel, para as quais pretendem oferecer uma chave de compreensão. A teologia narrativa, com a qual são revestidos, preocupa-se com o presente e se reporta ao passado na estrita medida em que se pode conectar ao momento dos narradores, em vista de descortinar um futuro. Portanto, seria equivocada a pretensão de reconstruir a história de Israel, com textos cuja pretensão única foi a de narrar a história de YHWH com seu povo. Igualmente, quando se trata do messianismo.

A complexidade agrava-se, ainda mais, quando se sabe que muitos estudiosos se deixam enredar por suas opções religiosas e ideológicas, defendidas a ferro e fogo. Passando à margem de uma leitura honesta do texto bíblico, com os métodos apropriados, cultivam posturas intolerantes e belicosas, quando se esperava que buscassem consensos, na pluralidade de abordagens, por se trabalhar a mesma tradição escriturístico-teológica.

Nosso objetivo consiste em mostrar como as narrativas histórico-bíblicas, de modo especial a Historiografia Deuteronomista, descrevem o nascimento do messianismo davídico, que foi tomando corpo na tradição histórica e profética de Israel, bem como, nos salmos, até o ponto de, no pós-exílio, não mais se esperar um rei pessoal, e sim um davidida escatológico e, mais difusamente, um tempo messiânico.

O messianismo desdobrou-se de variadas formas, “mas reteve ao mesmo tempo alguns traços característicos comuns” (SOUSA, 2009, p. 10). Entre eles: os messias apresentam-se como libertadores, enviados por YHWH, com uma missão junto ao povo; uma de suas principais tarefas consiste em restaurar o Reino de Davi, nos limites geográficos e com a grandeza de outrora; reerguerão o Templo de Jerusalém; restabelecerão a unidade das tribos dispersas pelo exílio babilônico e, por fim, farão com que a Torá recupere sua centralidade na vida do povo por se tratar do querer de YHWH (SILVA; SILVA, 2017, p. 252). Cada messias tem a pretensão de ser “o” Messias!

O messianismo bíblico assumiu duas distintas conotações. Antes do exílio, refere-se ao rei em exercício ou, caso se tratasse de um rei ímpio, do rei justo esperado. Quando Jeremias denuncia a impiedade do rei Joaquim (609-597 aC), em seu horizonte está o desejo de que lhe suceda um rei justo (Jr 22,13-19). Depois do exílio babilônico, em face da impossibilidade de se restaurar a dinastia davídica, dificultada pelos dominadores persas, as esperanças messiânicas serão sempre mais postergadas, até assumirem dimensões escatológicas. Assim se deve entender que “as sementes do messianismo estavam presentes no pensamento israelita desde tempos muito mais primitivos, embora não tenham brotado e florescido antes do período pós-exílico” (BARTON, 2005, p. 387).

Nosso percurso se deterá nos albores do pós-exílio, quando os retornados da Babilônia fazem um discreto ensaio de confiar a liderança dos judaítas, em fase de reconstrução das instituições de Israel, a um davidida nascido entre os exilados. Muita água passou debaixo da ponte, na sequência da história, dando origem a uma enorme gama de tradições messiânicas, tanto em Qumran, no judaísmo rabínico, na diáspora alexandrina, bem como no âmbito do que se convencionou chamar Novo Testamento, com a figura de Jesus de Nazaré transformado por seus discípulos em Messias: Jesus Cristo (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008).

Os ideais messiânicos, dos mais diferentes naipes, ultrapassam o mundo da tradição bíblica e se fazem presentes, de maneira tácita, nas esperanças cultivadas pelos seres humanos. Aqui e acolá, surgem personalidades, mormente políticas e religiosas, em quem são depositadas expectativas de coloração messiânica, como acontecia, outrora, com o esperado messias, tanto no pré quanto no pós-exílio. A leitura discernida dos textos bíblico-messiânicos recomenda-se, quando se trata de avaliar os candidatos a messias de todos os tempos, com aspirações de salvadores, quais enviados da divindade para iniciar um novo tempo, como se fora uma era escatológica. Os tempos de crise são propícios para o surgimento de messias, em contexto de anseios de salvação presentes nos corações humanos, encarnados em lutas sociopolíticas de libertação, com motivações religiosas ou não, às vezes, de cunho nacionalista. Nesse sentido, pode-se falar de um messianismo de cunho ateu, por vezes não menos militante que os messianismos de caráter religioso.

O pano de fundo dos messianismos apresenta-se como uma utopia, nunca totalmente alcançada, por se descortinarem sempre novos horizontes na medida em que se vai progredindo. Seria razoável dizer que nenhum ser humano ou comunidade seria capaz de viver, com dignidade, se abrisse mão de cultivar ideais messiânicos ao logo da caminhada. A experiência bíblico-cristã constitui-se num excelente paradigma!

1 Messianismo: semântica e modalidades

A palavra messianismo, que não ocorre no texto bíblico, reporta-se à raiz verbal hebraica mashah, com o significado de ungir. No âmbito da Bíblia, aponta para quem foi escolhido por Deus – hamashiah – para assumir tarefas bem concretas e especiais, em consonância com a prática das monarquias no Antigo Oriente Próximo, adaptada ao javismo israelita. “Mesmo sendo devedor de religiões anteriores, como egípcia, babilônica e zoroastrismo, o messianismo, no antigo Israel, adquiriu contornos únicos e definidos” (SILVA; SILVA, 2017, p. 250).

O messianismo não está tão presente no Antigo Testamento como acontece no Novo Testamento.

No Antigo Testamento, encontram-se trinta e nove usos da palavra mashiah. Na maioria das vezes, designam o rei. Não se deve admirar que se encontrem essencialmente no livro de Samuel (quinze ocorrências), onde a unção dispensada pelo profeta sucessivamente a Saul, depois a Davi, tem sua importância por se tratar da consagração dos primeiros reis. Para o Segundo Isaías (45,12), o “ungido” é um soberano estrangeiro, o conquistador persa Ciro, que permite aos exilados de Judá voltarem a Jerusalém. (HADAS-LEBEL, 2006, p. 53)

O rei, de modo muito particular, recebe a unção como forma de consagração para a tarefa que lhe compete. “A unção é um rito religioso. Está acompanhada de uma vinda do Espírito. Diríamos que ela confere uma graça”, eis porque “o rei, pessoa consagrada, participa assim da santidade de Deus. Ele é inviolável” (DE VAUX, 1982, p. 161). Pode-se dizer que todo rei, por ser ungido, ao subir ao trono, torna-se messias, considerando-se a etimologia da palavra. Todos quantos recebem a unção são revestidos de identidade messiânica! Entretanto, a unção dos reis, no contexto bíblico, tem relevância especial. Fala-se da unção de Saul (1Sm 10,1; 24,7), Davi (1Sm 16,12-13), Salomão (1Rs 1,34-40), Hazael (1Rs 19,15), Jeú (1Rs 19,16; 2Rs 9,6), Joás (2Rs 11,12) e Joacaz (2Rs 23,30) (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 23).

Quando desaparece a monarquia em Israel, os sumos-sacerdotes recebem a unção; mais tarde, todos os sacerdotes (DE LA POTTERIE, 1977, col. 1049). Quanto aos profetas, só se fala de Elias recebendo a ordem divina de ungir Eliseu como seu sucessor (1Rs 19,16). Sir 48,8 recorda esse fato, ao exaltar o profeta Elias: “ungiste reis como vingadores e profetas para suceder-te”. Por sua vez, Is 61,1 – “YHWH me ungiu” – alude à unção do profeta anônimo do exílio, no início do ministério. Todavia, se trata de unção com caráter simbólico-espiritual, não propriamente física. “O Messias aparece na maioria dos casos como um rei, geralmente de ascendência davídica, com influência na esfera política e religiosa (indissoluvelmente unidas)”; no Antigo Testamento, a palavra jamais é usada “como título para referir-se a ‘um rei salvador dos últimos tempos’” (SICRE, 1995, p. 17,18).

O rito da unção dos novos reis indica o poder que YHWH lhes concede em vista de uma missão (1Sm 10,1-10; 16,13). Pode, igualmente, ser entendido como uma forma de adoção – “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Sl 2,7) –, que os reveste de grandeza especial e de inviolabilidade (1Cr 16,22; 2Cr 6,42; Sl 105[104],15), a ponto de poderem ser considerados presença de Deus ou, pelo menos, seu lugar-tenente no meio do povo.

O sentido específico do vocábulo messianismo aponta para a expectativa da chegada do Messias (em grego, christós; em português, ungido) que, revestido de autoridade divina, apresenta-se como portador de salvação histórica para o povo, em tempos difíceis de opressão. Portanto, tem conotações positivas de esperança ao descortinar um tempo alvissareiro, no qual terão fim a dor, o sofrimento e toda sorte de violência, pela intervenção divina por meio do ungido por YHWH. “No sentido judaico estrito, o messianismo é a expectativa de um descendente do rei Davi (um davidida) para o final dos tempos” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 13).

No Antigo Testamento, o vocábulo messias ocorre, mormente, em 1 e 2Sm (15 vezes), referido à unção dos primeiros reis de Israel, Saul e Davi. Is 45,1 aplica-o a Ciro, conquistador persa que haveria de permitir o retorno dos israelitas exilados a Jerusalém. Lv 4,3.5.16; 6,15 refere-se ao sumo-sacerdote como messias. Em Hab 3,13 e Sl 28,8, trata-se do povo de Israel. As alusões ao messias davídico, em Sl 2,2; 18[17],51; 20[19],7; 105[104],15, apontam para a esperança colocada em um rei humano, sem conotação escatológica. Em momento algum se pensa em uma figura que descortinaria uma era de salvação, como ocorrerá nas expectativas messiânicas forjadas ao longo da história do judaísmo. Embora servindo-se de mediações humanas, em última análise, YHWH apresenta-se como o autor da salvação em benefício do seu povo. Se algo aconteceu ou acontecerá, a ele se deve atribuir a autoria. YHWH apresenta-se como o realizador da salvação-libertação, não o messias, embora esse possa ser o anunciador da obra divina.

Num sentido aberto, o messianismo relaciona-se com a escatologia, a consumação dos tempos, onde a figura do Messias assume um lugar secundário num “messianismo sem messias”, por se visar um tempo novo na caminhada da humanidade, para além dos tormentos do presente. “‘Messianismo’ se tornou desse modo um conceito geral para muitas representações escatológicas e apocalípticas que tinham diferentes origens e funções” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 18).

No âmbito da tradição bíblica, o Messias assumiu três modalidades: rei, profeta e Filho do Homem, cada qual sublinhando um elemento de sua ação e de sua identidade. O messias rei foca a dimensão político-social (Is 11,1-9). O messias profeta tem uma palavra da parte de YHWH, no sentido de chamar o povo à conversão e dispô-lo para agir em conformidade com o querer divino (Jr 7,1-15). O Filho do Homem assume uma dimensão celeste, pois desce do céu para instaurar o projeto de Deus na história (Dn 7,13-14).

2 Messianismo pré-exílico: ponto de partida de uma longa tradição

Na origem do messianismo bíblico está a ideia do messias rei, ligada à casa de Davi, cuja eternidade foi garantida por YWHW: “a tua casa e a tua realeza subsistirão para sempre diante de ti, e o seu trono se estabelecerá para sempre” (2Sm 7,16). De fato, “no Antigo Testamento, a ideologia régia é a principal responsável pela posterior elaboração da expectativa messiânica” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 33). “Se Israel não tivesse tido reis, nunca teria chegado a formular a ideia messiânica. Ainda que tivesse havido reis, sem a figura de Davi e a promessa de uma dinastia eterna tampouco teria surgido o messianismo em Israel” (SICRE, 1995, p. 18).

Davi foi ungido por Samuel, em conformidade com o mandado divino: “YHWH disse-lhe: ‘Levanta-te e unge-o: é ele!’ Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o na presença dos seus irmãos. O espírito de YHWH precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois” (1Sm 16,13). Davi era ainda menino, sem qualquer peso social. Mais tarde, as tribos de Israel, reunidas em Hebron, “ungiram Davi como rei em Israel” (2Sm 5,5) de modo a confirmar o gesto de Samuel.

Todavia, alusões à realeza em Israel poderiam já ocorrer em Gn 49,10, mesmo sem a ocorrência da palavra messias: “o cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés”, e Nm 24,7.17: “um herói surge na sua descendência, e domina sobre muitos povos. Seu rei é maior que Agag, seu reinado se exalta. […] Um astro procedente de Jacó se torna chefe, um cetro se levanta, procedente de Israel” (COPPENS, 1967, p. 153-179). No período dos juízes, Abimelec foi “proclamado rei perto do carvalho da estela que está em Siquém” (Jz 9,6), numa tentativa de introduzir um novo modelo de liderança das tribos. Seu irmão Joatão denunciou a loucura da opção por meio de uma fábula (Jz 9,7-15) que descreve uma assembleia de árvores para escolher quem haveria de liderá-las (Jz 9,16-21). Uma escolha equivocada tem sérias consequências!

As lideranças das tribos pressionaram Samuel para lhes conceder um rei, quiçá descontentes com a maneira precária como se exercia a liderança entre elas: “agora, portanto, constitui sobre nós um rei, que exerça a justiça entre nós, como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). O pedido e a motivação desagradaram a Samuel (1Sm 8,6). Por um lado, YHWH era o rei de Israel; por outro, Israel não era um povo como os outros e sim o povo escolhido por Deus. Pedir um rei significava rebelar-se contra YHWH e recusar a se deixar guiar por ele. Todavia, uma ordem divina orientou Samuel a atender o pedido do povo. YHWH revelou o verdadeiro sentido do que se passava: “não é a ti que eles rejeitam, mas é a mim que rejeitam, porque não querem mais que eu reine sobre eles” (1Sm 7,7).

YHWH consente em atender o desejo do povo. Entretanto, ordena a Samuel: “mas, solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei (mishpat hamelek) que reinará sobre eles” (1Sm 8,9). Samuel o faz, descrevendo o rei com tintas carregadas (1Sm 8,11-17) e alertando para a inconveniência de terem se colocado na contramão de YHWH, o verdadeiro Rei de Israel. “Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas YHWH não vos responderá naquele dia” (1Sm 8,18). Mesmo assim, o povo permaneceu irredutível no seu intento.

YHWH ordena, então, a Samuel: “escuta a voz deles e faze reinar sobre eles um rei” (1Sm 8,22). Começa, pois, uma nova etapa na vida do povo de Israel, com a novidade de terem um rei (melek) à sua frente, de modo a obscurecer a liderança divina. “De agora em diante, será o rei quem marchará à vossa frente” (1Sm 12,2). Em outras palavras, um messias seria o rei de Israel. Davi se refere a Saul como messias (1Sm 24,7.11; 26,16); e pune com morte o estrangeiro amalecita que deu o golpe de misericórdia no moribundo Saul, “ungido de YHWH”, a pedido dele mesmo (2Sm 1,14.16). Abisai propõe a pena de morte para Semei, que amaldiçoou Davi, o “ungido de YHWH” (2Sm 16,5-14; 19,22). O título é aplicado a Davi, também, com a expressão “ungido do Deus de Jacó” (2Sm 23,1).

A unção de Saul, o primeiro rei, aconteceu por iniciativa de Samuel, orientado pela “palavra de YHWH”, como se o próprio YHWH o estivesse ungindo. Porém, o narrador não se refere a Saul como rei (melek), consequentemente ungido, e sim como comandante (nagid) (1Sm 9,27–10,1). Chamando-o de nagid, de certo modo, o narrador bíblico passa a impressão de não o considerar um autêntico “messias”, dignidade reservada a Davi. No período pré-monárquico, os líderes das tribos, chamados de juízes (sofetim), recebiam a vocação divina e passavam à ação sem o rito da unção.

Davi, por sua vez, foi ungido por Samuel quando ainda era criança, pois YHWH se arrependera de ter instituído Saul como rei (1Sm 15,11) e já havia encontrado “um homem conforme ao seu coração, e o instituiu como comandante (nagid) do seu povo” (1Sm 13,14). O pequeno Davi foi chamado às pressas, num momento em que cuidava do rebanho de seu pai, tendo sido rejeitados seus sete irmãos adultos (1Sm 16,10). Ao chegar, YHWH disse a Samuel: “levanta-te e unge-o, pois é ele!” Então, “Samuel apanhou o vaso de azeite e o ungiu na presença de seus irmãos. O espírito de YHWH precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois” (1Sm 16,12-13). No começo efetivo de sua missão, Davi, adulto, recebe uma segunda unção: “vieram os homens de Judá e ali ungiram Davi como rei (melek) sobre a casa de Judá” (2Sm 2,4). Recebe, ainda, uma terceira unção, que faz dele rei sobre todas as tribos de Israel: “todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei (melek), em Hebron, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebron, na presença de YHWH, e eles ungiram Davi como rei em Israel” (2Sm 5,3).

O narrador bíblico considera Davi, de fato, o primeiro rei em Israel. A tríplice unção, não repetida para nenhum outro rei, aponta nessa direção. Por outro lado, a forma como descreve o personagem Saul, reduzindo-o em importância, dá a impressão de que, afinal, foi uma espécie de meio-termo entre os juízes e o rei Davi. A profecia de Natan (2Sm 7,4-17), anunciadora da perpetuidade da realeza em Israel, de fato, refere-se a Davi e à sua descendência, ao declarar: “quando os teus dias estiverem completos e vier a dormir com teus pais, farei permanecer a tua linha após ti, aquele que terá saído das tuas entranhas e firmarei a sua realeza” (2Sm 7,12).

A unção de Salomão, realizada num contexto de intriga palaciana, dá sequência à série de unção dos reis de Israel. O poder começou a escapar da mão de Davi, já “velho e com idade avançada” (1Rs 1,1). Dois partidos entram em conflito para tomá-lo. De um lado, está Adonias, filho do rei, que se gabava, juntamente com seus partidários, dizendo: “sou eu que vou reinar (malak)!” (1Rs 1,5). Doutro lado, o profeta Natã com Betsabeia, mãe de Salomão, articula-se para frustrar os planos de Adonias e obter o trono para Salomão. A artimanha consistiu em cobrar do decrépito Davi uma suposta promessa feita a Betsabeia: “teu filho Salomão reinará depois de mim e é ele quem se sentará no meu trono” (1Rs 1,19). Porém, nenhuma informação se dá ao leitor da existência de tal promessa e seu contexto. O rei deixa-se convencer, ordenando: “como te jurei por YHWH, Deus de Israel, que teu filho Salomão haveria de reinar (malak) depois de mim e se sentaria em meu lugar no trono, assim o farei hoje mesmo” (1Rs 1,30). Ato contínuo, determina a unção real de Salomão, a ser realizada pelo sacerdote Sadoc, acompanhado pelo profeta Natã e pelo general Banaías: “o sacerdote Sadoc apanhou na Tenda o chifre de óleo e ungiu Salomão. Soaram a trombeta e todo o povo gritou: ‘viva o rei Salomão’” (1Rs 1,39).

Tendo recebido o reino de mão beijada, Salomão se mostra extremamente ativo, seja eliminando os cabeças do partido contrário (1Rs 2,26-46a), de modo que “a realeza se consolidou em suas mãos” (1Rs 2,46b), seja dando mostras de esperteza política (1Rs 1,1–2,46), de ser amigo de Deus (1Rs 3,1-15; 8,14-61; 9,1-9), de ter senso de justiça (1Rs 3,16-28), de ser sábio (1Rs 5,9-14; 10,1-13), de ser exímio construtor (1 Rs 5,15–6,14) e de ser um rico comerciante (1Rs 10,14-29).

No entanto, um passo em falso levou-o à ruína. A grandeza de seu reino resultou de uma extensa política de alianças, que o texto bíblico indica quando se refere ao seu hiperbólico harém: “teve setecentas mulheres princesas e trezentas concubinas, e suas mulheres desviaram seu coração” (1Rs 11,3). Construiu templos para as divindades nacionais de suas mulheres e concubinas, chegando ao cúmulo de prestar-lhes culto (1Rs 11,5-8). YHWH irrita-se com tal desvio de conduta (1Rs 11,9-10) e decide: “vou tirar-te o reino e dá-lo a um de teus servos” (1Rs 11,11).

Tem, então, início a derrocada do Reino de Israel, já nos seus albores, por infidelidade de seu messias. O narrador bíblico conta com detalhes uma história que culminou na deportação do rei Joaquin (597 aC) para a Babilônia, juntamente com “todos os dignitários e todos os notáveis, dez mil exilados, e todos os ferreiros e artífices, só deixando a população mais pobre da terra” […] “todos os homens valentes, em número de sete mil, e todos os homens capazes de empunhar armas”, levando, também, “os tesouros do Templo de YHWH e os tesouros do palácio real, além de quebrar todos os objetos de ouro que Salomão, rei de Israel, havia fabricado para o Templo de YHWH, como YHWH havia anunciado” (2Rs 24,13-17). Um messias espúrio, Sedecias, foi colocado no lugar do rei exilado (2Rs 24,17).

Na sequência dos fatos, acontece uma segunda deportação (587 aC) – “Judá foi exilado para longe de sua terra” (2Rs 25,21b) –, no rastro do saque e da destruição do Templo de YHWH (2Rs 25,13-17) e da matança dos assessores da corte (2Rs 25,18-21a). Quanto ao rei Sedecias, imposto pelos dominadores, foi agarrado e levado a Rebla, onde estava o quartel general dos babilônios, à presença de Nabucodonosor, que o submeteu a julgamento. “Mandaram degolar os filhos de Sedecias na presença dele, depois Nabucodonosor furou os olhos de Sedecias, algemou-o e o conduziu para a Babilônia” (2Rs 25,6).

A narrativa que vai do Livro de Josué até o Segundo Livro dos Reis, conhecida como Historiografia Deuteronomista, conclui-se com uma cena intrigante. O rei babilônico Evil-Merodac, quando subiu ao trono, anistiou Joaquin, o rei de Israel exilado, tirando-o da prisão. “Falou-lhe benignamente e deu-lhe um trono mais alto que o dos outros reis que estavam com ele na Babilônia. Jeconias (Joaquin, 2Rs 24,6.8) deixou suas vestes de prisioneiro e passou a comer sempre na mesa do rei, por toda a vida. Seu sustento foi garantido constantemente pelo rei, dia após dia, enquanto viveu” (2Rs 25,29).

Joaquin, na convicção do povo, era o autêntico rei de Israel, o messias, por Sedecias carecer de legitimidade. Sua sobrevivência, em terras estrangeiras, apontava para a esperança da restauração da realeza davídica, na linha da profecia de Natã (2Sm 7,1-17), onde YHWH declara a eternidade da casa de Davi, v. 16: “a tua casa e a tua realeza subsistirão para sempre diante de ti, e o seu trono se estabelecerá para sempre” (Sl 18[17],51).

A esperança é simbolizada, na Historiografia Deuteronomista, com uma lâmpada (ner) que não deve se apagar. Tal lâmpada seria o rei, messias, de Israel (2Sm 21,17; 1Rs 11,36; 1Rs 15,4; 2Rs 8,19; cf. 2Cr 21,7; Sl 132[131],17). A sobrevivência de Joaquin pode ser entendida como a conservação da lampadazinha de Israel, que haveria de voltar a brilhar em todo seu esplendor. Afinal, a profecia de Natã comportava uma cláusula importante, no tocante à eventual infidelidade do rei-messias, válida tanto para Salomão quanto para seus sucessores: “se ele fizer o mal eu o corrigirei com varas e golpes humanos, porém não romperei minha aliança com ele. […] Tua casa e teu reino permanecerão para sempre na minha presença; teu trono durará eternamente” (2Sm 7,14-16; Sl 89[88],29-38) (ALVES, 2015, p. 67-84).

3 Messianismo pós-exílico: uma tradição em contínuo desdobramento

A profecia de Natã está na origem da continuidade do messianismo davídico no pós-exílio. A certeza de que a realeza correspondia ao projeto de YHWH motivou os israelitas a buscarem os meios de restaurá-la após a tragédia do exílio babilônico. “Se nunca tivesse havido monarquia em Israel, e se ela não tivesse assumido a alta posição ideológica que, com frequência, os profetas de fato criticavam, dificilmente o messianismo teria criado raízes” (BARTON, 2004, p. 389).

Uma esperança despontou no horizonte, quando o rei persa, Ciro, venceu os babilônios, em 539 aC, e, no ano seguinte, publicou o Édito em que permitia a volta dos exilados (Esd 1,1-11). Esse expediente corresponde ao modelo persa de dominação que consistia em captar a benevolência dos povos vassalos, agindo com violência apenas em caso de insubordinação.

Todavia, ao retornar à terra, não foi dado aos exilados o direito de restabelecer a realeza, com a indicação de um rei para o trono de Davi, de certo modo, vago desde a deportação de Joaquin. No relato bíblico, Ciro se reconhece encarregado pelo próprio YHWH para construir um templo ao “Deus de Israel” (Esd 1,3). Daí ter promovido uma coleta de fundos para levar a cabo a obra: “que todos os sobreviventes, em toda parte, a população dos lugares onde eles moram tragam uma ajuda em prata, ouro, bens, animais e donativos espontâneos para o Templo de Deus que está em Jerusalém” (Esd 1,4). Nada se diz a respeito de quem haverá de liderar o trabalho de reconstrução, com a possibilidade de ser considerado rei-messias. No entanto, a chama do messianismo permanece viva como brasas escondidas sob as cinzas.

O pós-exílio abre novas perspectivas para o messianismo em Israel (CARVALHO, 2000, p. 33-37). Os olhares se voltam para Zorobabel, neto de Joaquin, o rei que morreu no cativeiro. 1Cro 3,17-19 elenca, entre os “filhos de Jeconias, o cativo: Salatiel, seu filho”, pai de Fadaías, pai de Zorobabel. Todavia, a tradição mais difundida fala de Zorobabel, filho de Salatiel (Esd 3,2; Ag 1,1; Ne 12,1; Mt 1,12; Lc 3,27). A etimologia do nome, “broto de Babel”, dá a entender que nasceu durante o cativeiro na Babilônia. “Foi celebrado como o rei salvífico esperado” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 45). De fato, tratava-se de um davidida autêntico, motivo pelo qual, “sem dúvida, os persas, segundo o seu costume, o constituíram governador” (VAN DEN BORN, 1977, col. 1580). Dt 17,14-20, a lei do rei, pode ser entendido como baliza para a ação do novo davidida a ocupar o trono, praticamente vacante desde o exílio de Joaquin. A submissão à Lei mosaica (Dt 17,18-20), em vista de se evitarem futuros desastres, haveria de ser a marca registrada do ethos do novo monarca de Israel (Ez 34,23-24; 37,24-25), sempre se recordando que YHWH haveria de ser o verdadeiro rei de Israel!

O profeta Ageu dá-se conta de que os olhares de YHWH se voltam para ele: “naquele dia, oráculo de YHWH dos Exércitos, eu tomarei Zorobabel, filho de Salatiel, meu servo, oráculo de YHWH, e farei de ti como um sinete (hotam). Porque foi a ti que eu escolhi, oráculo de YHWH dos Exércitos” (Ag 2,23). Cabia-lhe um papel indispensável na nova realidade política que estava para despontar em Israel, já que reunia em si duas qualidades essenciais: era membro da dinastia davídica, além de ser credenciado pelas autoridades persas. Uma esperança messiânica real se apodera do povo!

O profeta Zacarias aplica a Zorobabel o título de “rebento” (simhah), que “carregará insígnias reais, sentará em seu trono e dominará. Haverá um sacerdote à sua direita. Entre os dois haverá perfeita paz” (Zc 6,13) (RINALDI, 1966). Em Zc 3,8, o mesmo título já lhe havia sido atribuído: “eis que vou introduzir o meu servo ‘Rebento’”, cuja origem remonta a Jr 23,5: “eis que dias virão, oráculo e YHWH, em que suscitarei a Davi um rebento justo. Um rei reinará e agirá com inteligência e exercerá na terra o direito e a justiça”. Essa afirmação repete-se em Jr 33,15 (Is 4,2; 11,1). O rei-messias fará sua entrada triunfal em Jerusalém entre gritos de alegria, “justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta” (Zc 9,9; Gn 49,11; Jz 5,10; 10,4; 12,14; 2Sm 19,27), com a tarefa de suplantar a guerra e “anunciar o shalom às nações”, em seu domínio que “irá de mar a mar e do rio às extremidades da terra” (Zc 9,10); em termos geográficos, o espaço que vai do mar Mediterrâneo ao rio Eufrates.

O profeta Ageu reconhece Zorobabel como “governador de Judá” (pehah yehudah – Ag 1,1.14; 2,2.21). Não poderia chamá-lo de rei (melek), pelas circunstâncias, apesar de desempenhar funções próprias de quem detém o poder real. A tarefa principal que lhe foi conferida, bem como a Josué, sumo-sacerdote, pelo oráculo do profeta Ageu, dizia respeito à reconstrução do Templo, reduzido a ruínas pelos babilônios (Ag 1,3-11). A ordem divina foi prontamente obedecida, de modo que “eles vieram e se entregaram ao trabalho no Templo de YHWH dos Exércitos, seu Deus” (Ag 1,14). A preocupação com a reconstrução do Templo tem a ver com um desejo dos retornados do exílio, com recomendações expressas da autoridade persa para fazê-lo (Esd 1,3-4), e com a pressão do sumo-sacerdote Josué, companheiro de Zorobabel. Porém, pode-se suspeitar tratar-se de uma estratégia de Zorobabel para engajar o povo numa tarefa comum, um grande mutirão, capaz de arrefecer os conflitos entre os que voltaram do exílio e queriam se impor e os que permaneceram na terra, padecendo as agruras de viver em meio a ruínas.

O tempo passou e não se conseguia restaurar a realeza nos moldes davídicos. Depois de Zorobabel, não houve quem assumisse a liderança de Judá enquanto descendente de Davi, dando ao cargo colorido real. Por sua vez, o Templo passou a ocupar o lugar outrora reservado ao palácio real. Em consequência, o sumo-sacerdote, bem como sua família, destacou-se sempre mais, de modo a relegar ao segundo plano a esperança, para breve, da ascensão de um davidida que se assentasse no trono vacante, desde que o último rei legítimo, Joaquin, fora levado à força para a Babilônia, onde morreu.

Com o exílio, a linha dos davididas foi interrompida, e a unção, por consequência, suspensa. Mas, apesar das experiências negativas com a monarquia, permaneceu a lembrança positiva, que foi reformada como uma boa expectativa do rei, a qual pareceu se realizar inicialmente sob Zorobabel, sendo em seguida frustrada e transformada numa expectativa indeterminada de um Davi redivivus. No início, essa expectativa não era messiânica, na medida em que não prognosticava nada senão que o sistema hierocrático pós-exílico seria sucedido pela tomada de poder de um davidida. (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 30)

Nascem daqui duas vertentes de esperança. Na vertente apocalíptica, passou-se a esperar a volta de Davi. Jr 30,8-9, uma glosa, aponta nessa direção: “neste dia – oráculo de YHWH dos Exércitos –, […] Israel e Judá servirão YHWH, seu Deus, e a Davi, o rei (melek) que suscitarei para eles”; bem como Ez 34,23-34: “suscitarei para eles um pastor que os apascentará, a saber, o meu servo Davi: ele os apascentará, ele lhes servirá de pastor. E eu, YHWH, serei o seu Deus e meu servo Davi será príncipe (nashi’) entre eles”; Os 3,5: “depois disso, os israelitas voltarão e procurarão YHWH, seu Deus, e a Davi, seu rei (melek). Voltarão tremendo a YHWH e a seus bens no fim dos dias”.

Na vertente escatológica, foi dada ao messias uma projeção para além do tempo e do espaço, ao se falar da situação dramática de “YHWH e seu messias”, às voltas com conspirações perpetradas pelos povos (Sl 2,2). YHWH, no entanto, mantém-se firme na proteção de seu eleito: “fui eu que consagrei o meu rei (melek), sobre Sião, minha montanha sagrada!” (Sl 2,6), na condição de filho (ben): “publicarei o decreto de YHWH, que me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede e te darei as nações como herança, os confins da terra como propriedade. Tu as quebrarás como um cetro de ferro. Como um vaso de oleiro as despedaçarás’” (Sl 2,7-9). O Sl 72[71], por sua vez, prospectando o futuro rei, pede a YHWH: “concede ao rei (melek) teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei; que ele governe teu povo com justiça, e teus pobres conforme o direito […] com justiça, julgue os pobres do povo, salve os filhos do indigente e esmague seus opressores” (v. 1-3), de modo a serem evitados os equívocos dos reis de outrora. Em alusão a 2Sm 7,4-17, pede-se: “que seu nome permaneça para sempre, e sua fama dure sob o sol” (Sl 72[71], 17). O Sl 110[109] retoma o tema do messianismo, agora, com uma conotação sacerdotal, ao declarar: “tu és sacerdote (kohen) para sempre segundo a ordem de Melquisedeque” (v. 4). Esse, referido em Gn 14,18-20, apresenta-se como sacerdote sem genealogia, embora seja “sacerdote do Deus altíssimo”, bem como “rei de Salém” (Jerusalém?) (v. 18). Logo, o rei futuro não será da estirpe davídica, embora sua entronização seja “para sempre” e sua base de ação seja Jerusalém-Sião: “de Sião, YHWH estende teu cetro poderoso (mateh ‘oz) e dominas (radah) em meio aos teus inimigos” (v. 2). A referência ao rei-sacerdote Melquiseque, no Salmo, chama a atenção para as tarefas cultuais exercidas pelos reis de outrora (2Sm 6,17; 1Rs 8,62-63; 12,32-33; 2Rs 16,12-13).

Em virtude de sua posição especial diante de Iahweh […] decorrente da natureza sagrada de sua realeza; […] para o rei, não há como fugir à responsabilidade da mediação, não há como escolher não ser sacerdote ou não desempenhar deveres sacerdotais. (ROOKE, 2005, p. 201.206)

De certa forma, o messias davidida será um rei original, que descortinará um tempo novo para o Povo de Israel. O Sl 110[109],3 sublinha a vocação messiânica do novo rei, chamado para tal missão desde os albores de sua existência: “a ti o poder (hayil) desde o nascimento, as honras sagradas desde o seio (meroham), desde a aurora da tua juventude”.

Também, Is 8,23b–9,6 serve de chave para compreender o messianismo régio que surgiria das cinzas do exílio babilônico (VITÓRIO, 2015, p. 27-34). As expectativas recaem sobre um recém-nascido, a quem cabe dar continuidade à dinastia davidida: “um menino (yeled) nos nasceu, um filho (ben) nos foi dado. Ele recebeu o poder (misrah) sobre seus ombros” (Is 9,4), para reinar “sobre o trono de Davi e sobre o seu reino”, a fim de “firmá-lo e consolidá-lo sobre o direito e sobre a justiça” (9,6bc). Uma série de títulos capacitam-no para o exercício de sua missão: “conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno e príncipe da paz” (9,5b). Volta o tema da eternidade, na afirmação: “desde agora (me’atah) e para sempre (`ad `olam), o amor ciumento de YHWH dos Exércitos fará isso” (9,6d). “Num rei humano o profeta deposita sua esperança de que ele governe o povo de modo admirável, o acolha com afeto de pai, o defenda corajosamente, instaure uma época de paz e bem-estar” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 432).

Is 11,1-9 pode ser lido na perspectiva dessa esperança messiânica, em face do fracasso dos reis de Israel, cuja linha sucessória foi suspensa por ocasião do exílio babilônico. “A esperança de restauração talvez tenha sido formulada durante o exílio ou nos anos finais do século VI, durante o governo de Zorobabel” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 435). O profeta tem em mente a metáfora de uma árvore cujo tronco foi cortado, de modo a sobrar, apenas, um toco do qual nasce um pequeno broto. A declaração “um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes” (v. 1) liga o renascimento da realeza em Israel com o tronco davídico ancestral, embora sendo uma novidade. Na sequência, o profeta descreve a identidade carismática do rei-messias (v. 2-3a), seu modo de atuação (v. 3b-5), bem como o resultado em forma de uma sociedade onde a solidariedade seja a marca das relações interpessoais, na busca de entendimento entre partes contrapostas (v. 6-9a). Ação benéfica do rei-messias se difundirá para além dos limites de Israel e seu povo, para atingir a terra inteira: “a terra ficará cheia do conhecimento de YHWH, como as águas enchem o mar” (v. 9b). “Em nenhum destes textos se utiliza o termo Messias, mas as referências à casa de David e ao seu papel de liderança constituem sempre a pedra fundamental sobre a qual se edifica a esperança” (CARVALHO, 2000, p. 33).

A profecia isaiana refere-se, ainda, ao messianismo davídico: “o trono se firmará sobre a misericórdia, e sobre ele, na tenda de Davi, sentar-se-á um juiz (sofet) fiel, que buscará o direito e zelará pela justiça” (Is 16,5). Como se vê, o juiz exercerá as funções de um rei, “quando a opressão tiver cessado, a devastação tiver terminado e os que espezinham a terra tiverem desaparecido” (Is 16,4b). Is 32,1-5, ao declarar que “um rei reinará de acordo com a justiça”, pode ser lido numa perspectiva messiânica (BARTON, 2005, p. 389). Is 55,3b faz uma alusão à perpetuidade da dinastia davídica, conforme as promessas de 2Sm 7,4-17, a única referência no Dêutero-Isaías que jamais se refere à restauração da monarquia: “farei convosco uma aliança eterna (berit olam), assegurando-vos as graças prometidas a Davi”.

Às profecias de Isaías soma-se uma profecia de Miqueias que fala, igualmente, de um recém-nascido destinado a exercer funções régias (Mq 5,1-4a). Originário de Belém-Éfrata, como o rei Davi, terá a função de governar (masal) Israel (v.1). Vale notar que não terá raízes no davidismo de Jerusalém, já que provirá do interior, do “menor entre os clãs de Judá”. Por outro lado, não será conhecido como rei (melek) e sim como governante (mosel). Assim, ao mesmo tempo em que afirma a continuidade com a dinastia davídica, “suas origens são de tempos antigos, de dias imemoráveis” (v. 5b), referindo-se “ao momento histórico de Davi, distante já há vários séculos” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 437), se estabelece uma ruptura para frisar a novidade de um novo começo, por se assemelhar a um pastor que cuida do seu rebanho: “ele se erguerá e apascentará o rebanho” (v. 3a). Será um rei-pastor! Como sempre aconteceu, em tudo, na história do Povo de Israel, o grande artífice da reviravolta histórica será o seu Deus, pois tudo sucederá “pela força (`oz) de YHWH, pela glória (ga`on) do nome de seu Deus” (v. 3,b). A profecia de Miqueias, portanto, “anuncia a vinda de um verdadeiro chefe e pastor, idêntico ao Davi idealizado e deformado pela tradição, transformado numa figura quase mítica, muito distante da realidade histórica” (SICRE DÍAZ, 2012, p. 437).

A profecia de Jeremias comporta oráculos alusivos a uma restauração atemporal da realeza em Israel, nos moldes davídicos. Jr 33,14-16 declara:

eis que virão dias, oráculo de YHWH, em que cumprirei a promessa que fiz à casa de Israel e à casa de Judá. Naqueles dias, naquele tempo, farei germinar para Davi um germe de justiça, que exercerá o direito e a justiça na terra. Naqueles dias, Judá será salvo e Jerusalém habitará em segurança. E este é o nome com que a chamarão “YHWH, nossa Justiça”.

Segue-se uma palavra calcada na profecia de Natã (2Sm 7,4-17): “porque assim disse YHWH: não faltará a Davi um descendente que se sente no trono da casa de Israel”. Jr 17,25 antevê que “entrarão pelas portas desta cidade reis e príncipes, que se sentarão sobre o trono de Davi”. Ou, então, Jr 33,22: “como o exército dos céus que não pode ser enumerado, como a areia do mar que não pode ser contada, assim multiplicarei a posteridade de Davi, meu servo”. Embora não seja possível precisar quando e quem, o refazimento da dinastia davídica torna-se inquestionável.

O profeta Ezequiel segue na mesma direção, quando, ao prospectar a reunificação dos reinos de Israel e de Judá, anuncia que “haverá um só rei para ambos” (Ez 37,22). E, mais, “o meu servo Davi será rei sobre eles, e haverá um só pastor para todos” (Ez 33,24), como fora dito, anteriormente, “suscitarei para eles um pastor que os apascentará, a saber, o meu servo Davi que os apascentará e lhes servirá de pastor. Eu, YHWH, serei o seu Deus e meu servo Davi será príncipe entre eles” (Ez 34,23-24). A imagem do pastor servirá para se compreender a relação do rei com o povo, a exemplo de como YHWH cuidou com carinho de Israel, golpeado pelo exílio e disperso entre os povos (Is 40,11; Jr 31,10; Ez 34,1-31). Imagem semelhante encontra-se em Jr 23,1-4; 31,10; 37,24, bem como no Sl 23[22]. Essa metáfora messiânica será retomada pelo evangelista João, ao falar de Jesus como pastor (Jo 10,1-21) que, pregado na cruz, foi declarado “o rei dos judeus” (Jo 18,33).

Conclusão

Esses e outros textos da tradição bíblica de Israel, alusivos a um rei-messias e sua ação na total fidelidade a YHWH, quando o trono de Davi estava vacante, passaram a não visar mais uma pessoa concreta e imediata.

Gradualmente, a crítica tecida – principalmente pelos profetas – aos reis desembocou em uma expectativa de uma figura idealizada de um rei vindouro. A concretude das concepções iniciais de monarquia passa então a se tornar cada vez mais utópica e investida de características sobrenaturais e sobre-humanas. (SOUZA, 2009, p. 10)

No início, o referencial era o rei efetivamente em exercício; já no pós-exílio, passou-se a focalizar um futuro monarca de tempos sempre mais distantes, até o final dos tempos. Com o passar do tempo, a vertente apocalítica e a vertente escatológica tomam corpo, já que não se vislumbra a possibilidade de, efetivamente, fazer subir ao trono de Jerusalém um autêntico descendente de Davi. Assim, o messianismo histórico do pré-exílio, paulatinamente, tornou-se messianismo escatológico no pós-exílio. Quando se fala de messianismo, em geral, pensa-se no messianismo escatológico que chega a se converter em tempos messiânicos, nos quais a figura-pessoa do messias torna-se secundária. Nesse sentido específico, “o termo masiah/christós foi usado pela primeira vez como designação do ‘Messias’ nos Salmos de Salomão e no Novo Testamento” (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 25).

A ideia do Messias […] pressupõe que virá um dia em que Deus encontrará meios de intervir para instituir seus preceitos, e ele o fará por via de um agente humano e, por isso, potencialmente político. O Messias é um ser humano no meio de outros: isso é ressaltado até no tipo de judaísmo mais inclinado a crer na intervenção pessoal de Deus. (BARTON, 2005, p. 390)

Na sequência dos fatos, na impossibilidade de se restaurar a realeza em Israel, o sumo-sacerdote e as famílias sacerdotais, a partir de Jerusalém e do Templo, assumem o protagonismo na condução do povo de Israel, incluindo-se quem vivia na diáspora.

Embora às vezes se possa supor a forma mais antiga na unção sacerdotal, seus registros devem ser, quase sem exceção, datados tardiamente, de modo que a unção do sacerdote provavelmente se desenvolveu da unção do rei apenas no tempo exílico/pós-exílico, para legitimar teologicamente o sistema teocrático pós-exílico. (FABRY; SCHOLTISSEK, 2008, p. 30)

Surgirá daqui um messianismo de caráter sacerdotal, paralelo ao messianismo real davídico que sobrevive até os nossos dias (ROOKE, 2005, p. 195-216). De fato, Zc 4,14, em contexto de visão, faz uma importante identificação: “estes são os dois ungidos (literalmente, filhos do óleo) que estão de pé diante do Senhor de toda a terra”. Trata-se do sumo-sacerdote Josué e do governador davidida Zorobabel, colocados em pé de igualdade. Entretanto, o messianismo sacerdotal careceu de fôlego no âmbito do judaísmo subsequente, embora uma teocracia tenha assumido o lugar da monarquia. E se imporá o messianismo real, nos seguintes termos, embora não sendo o único:

O Messias é o rei ideal dos tempos escatológicos, o soberano dos últimos tempos, ou seja, o último dos soberanos de origem davídica, por cuja intermediação as predições proféticas, universalizadas e espiritualizadas, se realizarão. Ele inaugurará, por conseguinte, na história da salvação uma nova era, que será ao mesmo tempo a era definitiva, a era da salvação e das promessas salvíficas realizadas. (COPPENS, 1967, p. 153)

As expectativas messiânicas, em torno de Jesus de Nazaré, articularam-se a partir desse cenário, fazendo eco a uma larga tradição que passou a acentuar “os aspectos ético, religioso, espiritual da figura do Messias e do seu reino”, em correntes que faziam menção ao “Servo de YHWH”, ao “Filho do Homem” e, até mesmo, ao “Anjo de YHWH” (COPPENS, 1968, p. 126), além de “algum profeta” (1Mc 4,46), “um profeta fiel” (1Mc 14,41), “o profeta Elias” (Ml 3,23), “o Eleito” (1Hen 48,3-6), “o Filho de Davi” (Salmos de Salomão XVII,21), “o Ungido” (Salmos de Salomão XVII,32; XVIII,5.7).

A partir desse momento, se começa a sonhar com um autêntico descendente de Davi, justo e bondoso, como o conselheiro admirável de Is 11, humilde como o rei montado sobre o jumento de Zacarias 9. Como não se tem em vista nenhum descendente de Davi, passa-se a dizer que, com certeza, está oculto. (HADAS-LEBEL, 2006, p. 59)

Desde o século I até nossos dias, os ideais messiânicos tomaram as mais diferentes formas e coloridos, dependendo dos momentos históricos e das circunstâncias particulares de cada comunidade de fé. São duas as vertentes principais assumidas pelo messianismo, ao largo do tempo: a vertente política, que se inspira no rei Davi; e a vertente apocalítica voltada para a figura do Filho do Homem. “A primeira atenderia mais à expectativa das classes dominantes, a segunda mais às classes pobres” (SILVA; SILVA, 2017, p. 263).

Por outro lado, multiplicam-se as pessoas que se dão ares de messias e se propõem a realizar obras dignas das esperadas de um messias. Prudência e discernimento se recomendam, quando se trata de avaliar a presença de expectativas messiânicas na história (Mt 24,23-24; At 5,34-39)!

Jaldemir Vitório, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Texto original: português. Enviado: 32/05/2022; Aprovado: 30/10/2022; Publicado: 30/12/2022.

Referências

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