Liturgia e Catequese

Sumário

Introdução

1 Liturgia e catequese nos primeiros séculos do cristianismo

2 Liturgia e catequese nos documentos recentes da Igreja

3 Interação liturgia e catequese: principais desafios

4 Mistagogia: caminho de interação liturgia-catequese

Conclusão

Referências

Introdução

O mistério pascal é o coração do cristianismo. A explicitação de sua grandeza e relevância em nossa vida é a grande tarefa da liturgia e também da catequese. Ambas as dimensões da vida da Igreja, por caminhos diferentes e essencialmente complementares, auxiliam o cristão no amadurecimento de sua fé e na sua tradução concreta, frente aos desafios do cotidiano.

A catequese sem a liturgia se esvazia da dimensão mistagógica e se reduz a um conjunto de ensinamentos teóricos sobre Deus, sobre a Igreja e sobre a vida cristã, bem articulados na sua forma, mas pouco capazes de dar algum significado mais profundo à vida do catequizando. Por outro lado, a liturgia sem a catequese é carente daquela compreensão necessária à acolhida e vivência ritual, que facilita o mergulho no mistério celebrado e toca o coração do fiel celebrante. Bem articuladas, no entanto, em constante interação, liturgia e catequese conduzem o cristão a celebrar com consciência e piedade os ritos cristãos, como preconizava a Sacrosanctum Concilium (SC, n. 14.19), bem como a considerar os conteúdos nos quais se crê sempre orientados à celebração da fé, da qual a liturgia é epifania.

Tendo como referência essa interação entre liturgia e catequese, o presente texto, após um breve sobrevoo sobre como essa relação se deu nos primeiros séculos do cristianismo, apresenta, em seguida, as perspectivas abertas pelos documentes recentes da Igreja sobre essa interação, indicando, num terceiro momento, os principais desafios enfrentados e apontando o caminho da mistagogia como aquele que melhor pode articular essas duas dimensões constitutivas da vida e da ação evangelizadora da Igreja.

1 Liturgia e catequese nos primeiros séculos do cristianismo

Os primeiros séculos do cristianismo testemunham a riqueza da interação entre liturgia e catequese, bem atestada no antigo princípio lex orandi lex credendi, que expressa bem o quanto liturgia e catequese se interpenetram e concorrem para modelar o coração e a consciência do cristão na perspectiva de uma fé bem vivida. Desde o início, foi em torno da mesa eucarística e da Palavra que os seguidores de Jesus foram consolidando sua identidade cristã e se fortalecendo para o testemunho da fé, como nos relata o livro dos Atos dos Apóstolos:

Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações […]. Unidos de coração, frequentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. (At 2,42.44.46-47)

Pode-se lembrar, ainda, a importância da catequese associada à liturgia no cristianismo primitivo, evocando aqui as figuras dos chamados Santos Padres (sec. III-VII), cujas pregações, quase sempre brotadas de contextos celebrativos, iluminavam a caminhada dos fiéis cristãos e dos catecúmenos. Foram grandes mistagogos, que conduziam as pessoas à experiência do mistério de Deus, da sua graça que salva, por um caminho mediado pela espiritualidade, pela contemplação dos sinais sagrados, sempre iluminados pela Palavra de Deus. Desse modo, celebrando a fé no ressuscitado, a Palavra era continuamente aprofundada e transmitida.

No entanto, mudanças históricas impactaram fortemente o cristianismo a partir do século IV e, com o advento da chamada cristandade, liturgia e catequese foram se distanciando uma da outra. A liturgia foi se transformando em ritualismo, com excessiva preocupação com os seus aspectos exteriores e com foco sacramentalista. Quanto aos conteúdos da fé cristã, esses foram se diluindo nos elementos que compunham a cristandade, nas definições dogmáticas dos grandes concílios e, a partir do século X, nas obras que tinham por finalidade sistematizar a teologia e os catecismos. Percebem-se, desde então, pontos não só de distanciamento entre essas duas dimensões fundamentais da vida da Igreja, como também conflitos significativos (PAIVA, 2020, p. 42).

Foi o Concílio Vaticano II, com seus movimentos preparatórios, que lançou novas luzes sobre a vida da Igreja, de uma maneira geral, e sobre a liturgia, de modo particular. Embora os padres conciliares não tenham produzido nenhum documento específico sobre a catequese, sua inspiração e novos paradigmas pastorais surtiram e continuam surtindo efeitos renovadores também nessa seara da educação da fé. Muitos textos preciosos vêm sendo produzidos pelo Magistério, desde aquele dos papas e dicastérios romanos até os documentos das conferências episcopais, todos eles apontando para a urgência de se resgatar a preciosa interação entre a liturgia e a catequese, como acena, por exemplo, o Diretório para a Catequese (DPC), de 2020:

A liturgia é uma das fontes essenciais e indispensáveis da catequese e da Igreja, não só porque a partir da liturgia a catequese pode colher conteúdos, linguagens, gestos e palavras da fé, mas sobretudo porque elas pertencem reciprocamente uma à outra no próprio ato de crer. (DPC, n. 95)

2 Liturgia e catequese nos documentos recentes da Igreja

Alguns documentos do Concílio Vaticano II, mesmo que com acenos, oferecem importantes contribuições para pensarmos a mútua relação entre a liturgia e a catequese. O decreto Christus Dominus, sobre a ação pastoral dos bispos, ao pedir aos pastores solicitude pela catequese, faz questão de afirmar que a liturgia é uma de suas fontes essenciais:

preocupem-se com a instrução catequética, que tem por fim tornar viva, explícita e operosa a fé ilustrada pela doutrina, seja administrada com diligente cuidado quer às crianças e adolescentes, quer aos jovens e mesmo adultos […] Essa instrução se baseie na Sagrada Escritura, na tradição, na liturgia, no magistério e na vida da Igreja. (CD n. 14)

A declaração sobre a educação cristã, intitulada Gravissimum Educationis, ao definir os objetivos da catequese, afirma que ela “ilumina e fortifica a fé, nutre a vida segundo o espírito de Cristo, leva a uma participação consciente e ativa no mistério litúrgico e desperta para a atividade apostólica” (GE n. 4).

Nos campos da liturgia e da catequese, especificamente, o Concílio Vaticano II desencadeou um processo fecundo e contínuo de mudanças. Sínodos, seminários, diretórios litúrgicos e catequéticos, encontros de formação de agentes, muito material produzido, tudo isso criou um clima favorável para a necessária renovação. Dignas de lembrança são a VI Semana Internacional de Catequese (1968), realizada em Medellín, a publicação do Diretório Geral Catequético, em Roma (1971), a publicação do documento Evangelii Nuntiandi (1976), pelo papa Paulo VI, sobre a evangelização, e a exortação apostólica Catechesi Tradendae, em 1979, pelo papa João Paulo II.

Nesse último documento, o papa ressalta a necessária e intrínseca ligação entre catequese e liturgia, afirmando claramente:

A catequese está intrinsecamente ligada com toda a ação litúrgica e sacramental, porque é nos sacramentos, e sobretudo na Eucaristia, que Cristo Jesus age em plenitude para a transformação dos homens. […] A catequese leva necessariamente aos sacramentos da fé. Por outro lado, uma autêntica prática dos sacramentos tem forçosamente um aspecto catequético. Por outras palavras, a vida sacramental se empobrece e bem depressa se torna um ritualismo oco, se ela não estiver fundada num conhecimento sério do que significam os sacramentos. E a catequese intelectualiza-se, se não haurir vida numa prática sacramental. (CT n. 23)

No Brasil, o grande marco na dimensão catequética foi o documento 26 da Conferência Nacional dos Bispos, Catequese Renovada: orientações e conteúdo. Seu impacto mudou a rota da caminhada da catequese, além de tocar profundamente em outras dimensões da vida pastoral da Igreja. O próprio nome já anunciava sua intenção: renovar a prática catequética, a partir de dentro, oferecendo princípios, orientações e conteúdo que sustentassem esse processo de mudança.

Dois números desse documento, em especial, refletem a importante interação entre liturgia e catequese. No número 89, podemos ler:

Não só pela riqueza de seu conteúdo bíblico, mas pela sua natureza de síntese e cume de toda a vida cristã, a liturgia é fonte inesgotável de catequese. Nela, encontram-se a ação santificadora de Deus e a expressão orante da fé da comunidade. As celebrações litúrgicas, com a riqueza de suas palavras e ações, mensagens e sinais, podem ser consideradas uma “catequese em ato”. Mas, por sua vez, para serem bem compreendidas e participadas, as celebrações litúrgicas ou sacramentais exigem uma catequese de preparação ou iniciação. (CNBB, 1983, n. 89)

E o número seguinte acrescenta:

A Liturgia, com sua peculiar organização do tempo (domingos, períodos litúrgicos como Advento, Natal, Quaresma, Páscoa etc.) pode e deve ser ocasião privilegiada de catequese, abrindo novas perspectivas para o crescimento da fé, por meio das orações, reflexão, imitação dos santos, e descoberta não só intelectual, mas também sensível e estética dos valores e das expressões da vida cristã. (CNBB, 1983, n. 90)

No ano de 1997, foi publicado pela Sagrada Congregação para o Clero o Diretório Geral para a Catequese (DGC), mostrando significativa sensibilidade à temática da interação liturgia e catequese, dando ênfase à necessidade de uma catequese litúrgica como forma de iniciar os catequizandos à vida celebrativa. Nele podemos ler:

A catequese litúrgica, que prepara aos sacramentos e favorece uma compreensão e uma experiência mais profunda da liturgia. Ela explica o conteúdo das orações, o sentido dos gestos e dos sinais, educa à participação ativa, à contemplação e ao silêncio. Deve ser considerada como “uma eminente forma de catequese” (DGC, n. 71).

O documento 84 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Diretório Nacional de Catequese (DNC), dedicou vários números ao tema liturgia e catequese, sempre reafirmando a mútua dependência dessas duas dimensões da ação pastoral da Igreja. Considera, primeiramente, a liturgia como fonte da catequese, e cita a proclamação da Palavra, a homilia, as orações, os ritos sacramentais, a vivência do ano litúrgico e as festas como momentos de educação e de crescimento na fé. Sem titubear, afirma que “os autênticos itinerários catequéticos são aqueles que incluem em seu processo o momento celebrativo como componente essencial da experiência religiosa cristã” (DNC, n. 118).

Logo a seguir, o mesmo Diretório ressalta a urgência de uma catequese litúrgica, dizendo que “é tarefa fundamental da catequese iniciar eficazmente os catecúmenos e catequizandos nos sinais litúrgicos e por meio deles introduzi-los no Mistério Pascal” (DNC, n. 120). Assim, aponta como missão da catequese preparar o cristão à iniciação sacramental e ajudá-lo a viver como bom cristão mediante orações, gestos e sinais, silêncio, contemplação, presença de Maria e dos santos, escuta da Palavra etc. (DNC, n. 120).

Digna de menção aqui é a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG), do papa Francisco. Ao refletir a respeito da necessidade de uma catequese querigmática e mistagógica, ele propõe a valorização dos símbolos litúrgicos da iniciação cristã e uma catequese centrada na Palavra, mas que não descuide “de uma ambientação adequada e de uma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes” (EG, n. 166), reafirmando a tradicional via pulchritudinis, caminho da beleza que faz resplandecer no coração do homem a verdade e a bondade do ressuscitado (DGC, n. 167).

Mais recentemente, o documento 107 da CNBB, Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários (IVC), em contexto mais catecumenal, voltou a insistir nessa interação entre catequese e liturgia, afirmando que “os processos de Iniciação se fundamentam na Sagrada Escritura e na liturgia, educam para a escuta da Palavra e para a oração pessoal, mediante a leitura orante, evidenciando uma estreita relação entre Bíblia, catequese e liturgia” (IVC, n. 66). E continua: “Tal resgate do espírito catecumenal implica o compromisso de reatar a parceria e a união entre liturgia e catequese que, ao longo dos séculos, ficaram comprometidas” (IVC, n. 74).

O Diretório para a Catequese (DC), do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, publicado em 2020, ao tratar das fontes da catequese, dedica preciosos números à liturgia (DC, n. 95-98), além de outras afirmações importantes, ao longo de todo o texto: a necessária interação da liturgia com a catequese; a liturgia como lugar privilegiado da catequese do povo de Deus, conservando-se o caráter celebrativo da liturgia; a urgência de um itinerário mistagógico na catequese, que leve à interpretação dos ritos à luz dos eventos salvíficos, introduza ao sentido dos sinais litúrgicos e apresente o significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões; a importância da participação dos catequizandos na liturgia dominical e nas festas do ano litúrgico.

3 Interação liturgia e catequese: principais desafios

A fecunda interação da liturgia com a catequese está garantida nos documentos da Igreja e muito bem enraizada na sua tradição. No dia a dia, em grande parte das comunidades eclesiais, entretanto, ainda há muito o que fazer.  “Na situação atual não faltam aspectos problemáticos e pontos de atrito, seja no âmbito da reflexão catequética e litúrgica, seja no terreno da prática pastoral” (ALBERICH, 2004, p. 305).

Um dos grandes desafios diz respeito a uma práxis catequética que não inicia de fato à liturgia. Não obstante a boa vontade dos catequistas e alguns passos já dados nesse sentido, ainda é incipiente a formação litúrgica no âmbito da catequese e limitada à concepção de “celebrar” com os catequizandos. Fala-se muito sobre a importância da liturgia, mas ainda se celebra pouco. E não é possível iniciar alguém à ritualidade apenas com discursos. E quando se celebra, é clara a dificuldade do catequista em articular fé, vida, Palavra de Deus, símbolos, gestos, enfim, aqueles elementos que constituem sobremaneira o rito cristão. Essa dificuldade há tempos foi apontada pelo Diretório Geral da Catequese, quando chamou a atenção:

Muitas vezes […] a prática catequética apresenta uma ligação débil e fragmentada com a liturgia: limitada atenção aos sinais e ritos litúrgicos, pouca valorização das fontes litúrgicas, roteiros catequéticos com pouca ou nenhuma relação com o ano litúrgico, presença secundária de celebrações nos itinerários da catequese. (DGC, n. 30)

Alberich é do parecer que as dimensões antropológica e experiencial, aquelas que tratam das questões do homem e suas experiências de vida, de caridade e de serviço, obviamente importantes na catequese, acabaram por ofuscar a centralidade da experiência litúrgica no crescimento da fé (ALBERICH, 2004, p. 306). Assim, podemos falar de uma catequese desfocada da vivência litúrgica ou que tem essa apenas como um apêndice dos seus processos.

Outro desafio não menos preocupante é a instrumentalização da liturgia com finalidade didática e pedagógica para satisfazer à necessidade de explicar os ritos para crianças e jovens. Essas práticas desconsideram a natureza da liturgia, essencialmente celebrativa e mistagógica, impondo-lhe linguagem e metodologia estranhas à sua própria essência, transformando a celebração em uma “aula” mais animada sobre a missa, por exemplo. Além de não iniciar de fato à dinâmica celebrativa da fé, pois não se respeita a estrutura mistagógica e psicológica própria do rito, causa resistência e certo aborrecimento às assembleias e não permite que se encantem pela dimensão contemplativa e orante da fé.  

As deficiências no modo de celebrar, tanto da parte das assembleias como de muitos de seus ministros, incluindo os ordenados, constituem também mais um importante desafio para se consolidar essa tão importante relação da liturgia com a catequese. Não podemos desconsiderar que a liturgia é a principal transmissora da fé da Igreja, uma verdadeira catequese em ato. Sendo assim, o fato de participar de uma celebração deveria ser uma maneira privilegiada de recepção e acolhida da fé transmitida pela profundidade e riqueza dos ritos constituídos bimilenarmente pela Igreja. Perpassados pela Palavra, os ritos litúrgicos comunicam, em si mesmos e na sua vivência concreta, a mais genuína fé da Igreja, centralizada no mistério pascal de Jesus Cristo. Desse modo, a assembleia apreende e compreende a sua fé à medida que faz o rito acontecer em sua vida. A liturgia celebrada de modo relapso, improvisado ou atropelada pelo voluntarismo de seus ministros cria dificuldades para que dela se depreenda uma autêntica educação da fé cristã.

Outros desafios ainda podem ser enumerados, como uma visão sacramentalizadora da catequese, a tímida presença do ano litúrgico nos processos catequéticos, o subjetivismo aliado à ignorância da teologia litúrgica por parte de muitos leigos e ministros ordenados, a falta de preparação dos catequistas para fazer intercambiar as duas dimensões da liturgia e da catequese na sua vivência, prática pastoral e testemunho de vida etc.

4 Mistagogia: caminho de interação da liturgia com catequese

Pensar a interação liturgia e catequese toca diretamente na temática da mistagogia, tão cara à tradição e à espiritualidade do cristianismo. Na verdade, desde o judaísmo, já se evidencia o método mistagógico como via privilegiada de educação da fé das novas gerações e reafirmação da fé para aqueles já iniciados. Um dos melhores exemplos disso nós podemos encontrar na celebração anual da Páscoa dos judeus. A prescrição contida no livro do Êxodo sempre ressoava soberana para eles:

Quando tiverdes entrado na terra que o Senhor vos dará, conforme prometeu, observai este rito. Então os vossos filhos perguntarão: “Que significa este rito?”. Respondereis: “É o sacrifício da Páscoa do Senhor, que passou ao lado das casas dos israelitas no Egito”. (Ex 12,25-27)

“Que significa este rito?” era a pergunta reservada ritualmente ao mais novo. Não se trata apenas de formalidade ritual, mas de algo essencial. Na resposta a essa questão estava o conteúdo que sustentava e dava sentido ao rito da Páscoa. E ao responder, o mais velho da família fazia a memória dos feitos libertadores de Deus em favor de seu povo, garantido historicidade ao rito, inserindo-o em uma história de salvação continuada em suas vidas. “Que significa este rito?” era a pergunta que os catecúmenos e neófitos do cristianismo primitivo faziam, buscando compreender a fé que estavam abraçando. Da resposta dependia a eloquência do rito em suas vidas. Sem a resposta, o rito permaneceria mudo e inexpressivo (BOSELLI, 2014, p. 29). A resposta vinha com as catequeses mistagógicas dos Santos Padres, que, partindo da Palavra, uniam Antigo e Novo Testamento e ajudavam os fiéis a mergulharem no coração do mistério pascal. “Que significa este rito?” é a pergunta que hoje e sempre ecoará na Igreja da parte dos cristãos e dos não cristãos, procurando algum sentido nas ações litúrgicas, isto é, buscando haurir da ritualidade alguma catequese que lhes ajude a desvelar ou, ao menos, acolher o mistério celebrado.

A constituição Sacrosanctum Concilium ocupou-se de resgatar a centralidade do mistério pascal na ação litúrgica e de mostrar sua incidência sobre toda a ritualidade da Igreja. Procurou libertar a liturgia de sua concepção exteriorizada, vista apenas como cerimônia, chamando a atenção para sua essência. Definiu-a como o culto perfeito que o Cristo total, cabeça e membros, presta ao Pai, no Espírito Santo, por meio de ritos e preces. Ela é o cume e a fonte da vida da Igreja (SC n. 7.10.48). Per ritus et preces: é desse modo que a Igreja, povo de Deus, reconhece o crucificado ressuscitado e o dá a conhecer na mediação dos sinais sagrados, palavras, gestos, silêncio, orações… E, ao congregar suas assembleias para seus ritos, ela transmite a sua fé em Cristo. Os eventos salvíficos, presentes e atualizados em cada celebração, fundamentam e legitimam os ritos, libertando-os da magia e da ilusão (BOSELLI, 2014, p. 29). Desse modo, é por meio dos sinais que tocam os sentidos, feito pontes que vão do coração dos cristãos ao coração do próprio Deus, que se chega ao Sentido por excelência, o próprio Senhor ressuscitado. Mas, para bem transitar por essas pontes, cabe à Igreja iniciar seus fiéis ao universo litúrgico e à sua rica linguagem. Boselli, parafraseando São Jerônimo, que dizia “Ignoratio Scripturarum, ignoratio Christi est”, ousa dizer: “ignoratio liturgiae, ignoratio Christi est”, isto é, não conhecer a liturgia significa não conhecer Cristo (BOSELLI, 2014, p. 32).

Uma catequese mistagógica é aquela que leva a um aprofundamento e a uma maior consciência do mistério que, para nós, é “Cristo, esperança da glória” (Cl 1,27). Ela se apresenta como a única possibilidade de libertar o catequizando de uma relação teórica com Deus, ajudando-o a mergulhar na sua graça e a experimentá-lo como seu Senhor e sua vida. De acordo como o documento 107 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é impensável um processo catequético que desconsidere o altíssimo valor do elemento mistagógico, e esse passa necessariamente pela liturgia, à qual coube, desde o início do cristianismo, em plena interação com a catequese, a missão de iniciar na fé
(Doc. 107, n. 70).

O Diretório para a Catequese oferece alguns elementos essenciais para que se percorra um itinerário mistagógico na catequese o que, ao nosso ver, muito contribuiria para uma aproximação mais eficaz entre a liturgia e a catequese: a intepretação dos ritos à luz dos eventos salvíficos, relendo a vida de Jesus, a partir do Antigo Testamento; a introdução ao sentido dos sinais litúrgicos, educando a sensibilidade dos fiéis à linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à Palavra, constituem o rito; e a apresentação do significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões (DPC, n. 98).

Conclusão

Percorremos um rápido, mas denso caminho, procurando mostrar, mais do que a importância, a urgência de buscarmos alternativas para fazer interagir as dimensões litúrgica e catequética em nossa prática pastoral. Vimos como os recentes documentos da Igreja apontam o enriquecimento mútuo dessas duas dimensões, quando se consegue essa interação, bem como os desafios para que ela efetivamente aconteça. Terminamos por considerar como uma possível resposta eficaz uma catequese mais mistagógica, que dê conta de inserir o catequizando na experiência do encontro com Cristo e de aprofundar sua fé nas mediações dos sinais e ritos sagrados, sempre iluminados pela Palavra de Deus.

O que está em jogo é a necessidade de reconstruir a unidade da experiência da fé, sem reducionismo de nenhuma de suas dimensões, mas procurando concebê-la na sua globalidade. Isto exige articular liturgia, catequese e vida cristã. Se concordamos com a Igreja quando afirma que a sagrada liturgia constitui o “cume e a fonte da vida da Igreja” (SC, n. 10), ela se constitui como verdadeiro locus theologicus, tendo sempre uma função catequética para todo o povo de Deus, na riqueza e eficácia de seus ritos. Para que toda essa força seja experimentada com proveito, requer-se da catequese o cuidado propedêutico de iniciar crianças, jovens e adultos ao universo litúrgico, menos pelo que fala e mais pelo que faz, recorrendo ao rico patrimônio que a liturgia oferece para tornar possível ao cristão o acesso ao mistério de fé por ela professado e continuamente celebrado.

Vanildo de Paiva. Presbítero da Arquidiocese de Pouso Alegre, Minas Gerais (Brasil). Mestre em psicologia e professor na Faculdade Católica de Pouso Alegre. Texto original português. Enviado: 30/07/2022; aprovado: 30/10/2022; Publicado: 30/12/2022.

Referências

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BOSELLI, G. O sentido espiritual da liturgia. v. 1. Brasília: CNBB, 2014. Coleção vida e liturgia da Igreja.

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FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola; Paulus, 2013.

JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Catechesi Tradentae. 15.ed. São Paulo: Paulinas, 1982.

PAIVA, V. Catequese e liturgia: duas faces do mesmo Mistério. Reflexões e sugestões para a interação entre catequese e liturgia. São Paulo: Paulus, 2020.

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