Evangelho segundo João

Sumário

1 O texto

1.1 Documentos

1.2 Unidade e coerência composicional

1.3 Estrutura estática e dinâmica

1.4 Características literárias

1.5 Caráter semítico e “bilinguismo” 

2 Intertextualidade

2.1 Antigo Testamento e judaísmo

2.2 Novo Testamento

2.3 Escritos extracanônicos/extrabíblicos

3 “Autor” e leitorado

3.1 Autor e leitor dentro do texto

3.2 Quem foi este autor?

3.3 A gênese do texto

4 O Evangelho de João e seu mundo

4.1 O Evangelho de João e a sociedade

4.2 Judaísmo e helenismo

4.3 A mundividência de João

5 Teologia e mística

5.1 Presença de Deus no Cristo “enaltecido”

5.2 Mística e contemplação

5.3 Evangelho “espiritual” e “teo-lógico”

5.4 A cruz e a glória

5.5 Escatologia, pneumatologia, eclesiologia

5.6 Coordenadas éticas

Referências

1 O texto
1.1 Documentos

As testemunhas textuais mais antigas do Evangelho de João (Jo ou EvJo) são os papiros, alguns fragmentários, outros bastante completos, do século II (P52, P90, P66) ou III (P5, P28, P39, P45, P75, P80, P95), que confirmam o texto dos grandes códices do século IV-V (BEUTLER, 2016, p. 33-34; BROWN, 2020, p. 155-157). No texto que virou padrão, entraram alguns acréscimos de certo peso: Jo 7,53–8,11 (perícope da adúltera), que aparece nos manuscritos somente a partir do século V, nem sempre no lugar que ocupa atualmente, porém considerado “canônico” (OMANSON, 2010, p. 183-184; BEUTLER, 2016, p. 214-215; BROWN, 2020, p. 592-595), e Jo 5,3b-4 (o anjo na piscina de Bezata), acréscimo muito tardio, excluído da Nova Vulgata (OMANSON, 2010, p. 174-175).[1]

1.2 Unidade e coerência composicional

No passado, o Evangelho de João já foi comparado à “túnica sem costura” de Jesus (cf. Jo 19,23), mas desde alguns séculos costuma-se apontar falhas na sequência e incoerências no pensamento. Contudo, seu espírito e vocabulário são muito homogêneos e a narrativa, bastante coerente, apesar de alguns indícios de remanejamento (sobretudo em torno dos capítulos 5–7, 15–17 e 21) (cf. ZUMSTEIN, 2014, p. 27-28). Esses “defeitos” não comprometem o desdobramento temático, que é circular e reflexivo. O escrito não pretende ser propriamente narrativo, mas usa elementos narrativos como suporte para uma visão teológica. O estilo mostra sobriedade quase litúrgica, mas também grande expressividade. Temas se repetem, com leves, porém significativas, modificações e numerosas referências diagonais interligam as diversas partes. Há certo número de autocomentários (p. ex. 3,24; 4,2 etc.), que não rompem a unidade literária, mas antes ajudam a compreensão. A recente crítica literária, admitindo que o texto “cresceu”, tende a considerar irrelevante a distinção entre o autor original e eventuais redatores, a não ser para o cap. 21, acrescentado depois do final Jo 20,30-31 e figurando como epílogo editorial (→ § 3.3).

1.3 Estrutura estática e dinâmica

A estrutura estática do evangelho apresenta-se como um díptico com dois painéis, articulados entre si, incluídos entre um prólogo (1,1-18) e um epílogo (cap. 21) (BEUTLER, 2016, p. 16-17; BROWN, 2020, p. 158-159; ZUMSTEIN, 2014, p. 21-23). O primeiro painel, Jo 1,19–12,50, usa como suporte narrativo umas poucas, mas amplamente elaboradas, cenas da obra de Jesus, principalmente os grandes milagres que João chama de “sinais” (cf. 2,11; 5,54; 6,14; 11,47; 12,37); daí ser designado como “Livro dos Sinais”. Nessa parte, há diversas idas e voltas de Jesus entre a Galileia e a Judeia (enquanto o esquema dos evangelhos sinópticos, prescindindo do evangelho da infância, conhece uma única subida da Galileia a Jerusalém; → § 2.2). Descreve-se a missão (obra e palavras) de Jesus ao mundo, enquanto “ainda não chegou a sua hora” (2,4; 7,30; 8,20). O segundo painel, 13,1–20,31, chamado pelos estudiosos “o Livro da Glória”, apresenta Jesus na sua “hora de passar deste mundo para o Pai” para receber a “glória” (13,1; 17,1.5). Os capítulos 13–17 encenam a despedida no cenáculo, quando Jesus revela seu mistério para os seus. Nos capítulos 18–20, João traz o relato da paixão e ressurreição, semelhante ao dos evangelhos sinópticos, porém, com inserção de algumas cenas próprias, muito significativas (os interrogatórios de Anás e Pilatos, a elaborada cena da morte, a aparição a Maria Madalena, a missão final dos discípulos).

A estrutura dinâmica mostra uma dialética entre as duas partes maiores, a primeira preparando a segunda, e a segunda revelando o sentido da primeira. Assim, os sinais e obras de Jesus (Jo 1–12) recebem seu significado último da cruz, que, com a ressurreição, constitui o “enaltecimento” (exaltação) de Jesus na “glória” (Jo 13–20). As conclusões de ambas as partes maiores (resp. 12,37-50 e 20,30-31) remetem, a modo de inclusio, ao Prólogo.

Essa dinâmica sugere um processo de fé, quase uma catequese com iniciação e aprofundamento, uma mistagogia. Na primeira parte, percebe-se a catequese batismal (Nicodemos, a samaritana, o paralítico, o cego de nascença, Lázaro). A segunda parte anuncia o aprofundamento e atualização da memoria Christi pelo Espírito-Paráclito (16,13). No fim, o leitor-ouvinte é incentivado a continuar firme na fé, mesmo sem ter visto (20,29.30), mas confiando nas testemunhas autópticas (19,35; 21,24).

Podemos comparar essa estrutura a um templo. O pórtico é o Prólogo (1,1-18). No espaço geral (1,19–12,50), vemos se suceder, como os quadros na nave das igrejas barrocas, os “sinais” e obras de Jesus representando o dom de Deus como crescente apelo à decisão da fé. A seguir, nos “discursos de despedida” (cap. 13–17), entramos no espaço onde é revelado o sentido (presente e futuro) do gesto supremo de Jesus: é como o presbitério, no fundo do qual refulge a cruz gloriosa (18–20). O cap. 21 é o anexo “eclesiástico”.

1,1-18 1º painel: 1,19–12,50

preparação da hora de Jesus

2º painel: cap. 13–20

a hora de Jesus

21
Prólogo obra e sinais de Jesus perante o mundo: “ainda não a hora”  “chegou a hora”: o “enaltecimento” na cruz e na glória Epílogo
a Palavra do Pai ao mundo 1,19–4,54: início dos sinais; apresentação do dom 5–12: conflito em torno da obra de Jesus e opção de fé 13–17: despedida dos “seus” 18–20: a obra consumada o Ressuscitado e a comunidade

Na primeira parte, a linha cronológica é marcada pelas festas judaicas (1,19–2,12: os primórdios, culminando numa festa de núpcias de grande força simbólica; 2,13–4,54: Jerusalém, Samaria, Galileia: em torno da primeira Páscoa; 5,1-47: uma festa em Jerusalém; 6,1-71: a Páscoa na Galileia; 7–12: Jerusalém: de Tabernáculos até a Páscoa final, anunciada em 11,55–12,36). As transições (2,1; 2,12; 3,22-24; 4,1-3; 5,1-2; 6,1; 7,1; 10,40-42; 11,54) impedem a divisão em partes estanques.

A transição para a segunda parte, o tríduo pascal, em 13,1 constitui o pivô central do evangelho. Preparada pelo tema da “hora” em 12,23.27 e pela reflexão-dobradiça de 12,37-50, marca a passagem de Jesus deste mundo para o Pai e une a primeira parte à segunda.
1.4 Características literárias

Gênero narrativo-dramático. O EvJo está entre a narrativa e o drama: alguns episódios são como pequenas encenações (cap. 4, 9, 11, 13-14), e a narrativa inteira produz um clímax dramático. Encontramos diálogos cheios de vida, indicações de tempo e lugar, mudanças de cena. Esse caráter dramatúrgico proíbe considerar o EvJo como um mero registro factual. Os detalhes descritivos, mostrando boa informação (sobretudo em relação a Jerusalém), são ricos em referências simbólicas e comunitárias (p. ex., o “sinal” inicial em Caná pode ter sido realçado por existir ali uma comunidade joanina).

A consistência dos diversos personagens confirma a unidade dramática do evangelho: Pedro, o impulsivo; André, o singelo; Filipe, o sóbrio; Tomé, o realista; Nicodemos, o sábio; Caifás, o cínico; Pilatos, o céptico; Natanael, o “israelita”. Também as personagens femininas são bem caracterizadas: a samaritana, Maria de Betânia, Maria Madalena. A “mãe de Jesus” fica anônima e parece “emoldurar” a obra de Jesus (2,1ss; 19,25ss). O Discípulo Amado (em cena a partir de 13,23) é ao mesmo tempo a testemunha e o fiel por excelência (→ § 3.2) (cf. MARCHADOUR, 2005).

Diálogos e discursos de revelação. Os diálogos e monólogos do ator principal, Jesus, correspondem ao estilo dramatúrgico. Mesmo quando dirigidas a adversários, as palavras de Jesus servem para conduzir a plateia em seu processo de fé. Seus discursos (sobretudo os discursos parabólicos iniciados por “Eu sou”: 6,35; 8,12; 9.5; 10,7.9.11.14; 11,25; 14,6; 15,1.5) são tão profundos que só no fim os discípulos confirmam: “agora falas claramente” (16,29). Esse procedimento literário demonstra analogia com o gênero da revelação sapiencial.[2] O esquema de descida e volta de Jesus lembra o tema da palavra eficaz que sai de Deus e a ele volta (cf. Is 55,8-11).

Os “discursos de revelação” abrem progressivamente o significado da obra de Jesus. Não ensinam doutrinas esotéricas, mas o sentido profundo de sua palavra e obra, como sendo o que ele aprendeu do Pai (12,50). A missão de Jesus como Palavra reveladora de Deus (1,18) se consuma em sua obra principal: dar a própria vida por amor, revelando-se Filho do Pai que é Amor (3,16).[3]

Autocomentários. O Quarto Evangelho é permeado de comentários do autor junto ao texto, em off (VAN BELLE, 1985). Alguns são indicações de cenário para acompanhar o movimento dramático (p.ex. 5,9; 9,12). Outros são alusões à tradição evangélica geral, comprovando que este evangelho foi escrito para pessoas que já conhecem a pregação geral acerca de Jesus (3,24). Alguns evocam o conhecimento peculiar de Jesus (2,24-25; 6,6), revelam o sentido escondido de suas ações ou a mensagem escondida do texto (2,21; 12,16), explicam expressões simbólicas ou de duplo sentido inacessíveis para “os de fora” (7,37-39; 8,27; 10,6) etc. Destarte, mostram como o texto contribui para a mistagogia.

Simbolismo e metáfora. João usa com frequência metáforas, símbolos e figuras, a tal ponto que, na hora da despedida, os discípulos observam que “agora” Jesus tira o véu estendido sobre sua autorrevelação em linguagem simbólica (16,25.29). As próprias narrativas se tornam símbolos daquilo que Jesus em pessoa vem trazer ou é, pois Jesus é aquilo que seus sinais e gestos simbolizam: o vinho novo, a água da vida, o pão da vida, a luz do mundo, a ressurreição… O dom é o próprio doador.

Entenda-se bem o simbolismo dual (binário) do Quarto Evangelho: em cima/embaixo, carne/espírito, luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte (ZUMSTEIN, 2104, p. 33). Mediante símbolos arquetípicos, o autor insiste na necessidade de se optar entre dois âmbitos ou atitudes. Linguagem semelhante já aparece nos Profetas e nos Salmos. Não é um dualismo cósmico (explicação do universo por dois princípios, o do bem e o do mal, como na mitologia persa e na gnose), mas provocação profética para a opção pró ou contra Jesus (e o Pai nele), um dualismo ético, comparável a Dt 30,19.

Polissemia e ironia. Característica do texto joanino é a polissemia intencional (BROWN, 2020, p. 154; ZUMSTEIN, 2104, p. 33). Assim, o duplo sentido em Jo 3,3-5 (onde o advérbio ánōthen na boca de Jesus significa “do alto”, mas no ouvido de Nicodemos, “de novo”) introduz uma catequese sobre o nascimento desde o Espírito, significado pela água do batismo. Assim também o duplo sentido da água em Jo 4,10, do pão em 6,32-35, do ver e da cegueira em 9,37.39-41 etc. Muito peculiar é a polissemia complexa de hypsoō/doxázō, em diversas passagens interligadas, que exprimem o “enaltecimento” de Jesus (tema inspirado por Is 52,13), fazendo da elevação/exaltação na cruz a referência simbólica e, ao mesmo tempo, a presença realizada do amor dele e do Pai, a sua glória (Jo 3, 14-21; 12,32-33; 13,31-32 etc.).

Causando mal-entendido, a polissemia revela a distância entre a compreensão dos que são “do mundo” e a dos iniciados no mistério de Cristo, entre o âmbito “de baixo” e o “do alto” (3,31-36; cf. 19,8-11). Sem a adesão a Cristo na fé e o dom do Espírito (7,37-39), não se sai da compreensão errônea segundo a “carne” oposta a “espírito e vida” (6,63).

Finalidade semelhante tem a “ironia joanina”, ora branda, ora incisiva: o diálogo conscientizador (Jo 3,10; 4,10-15 etc.), a provocação irônica (9,25-27), a crítica dura e direta (5,44; 8,28), a alusão oblíqua (os “judeus” em 18,36). Às vezes, a ironia está nos próprios fatos narrados: a atitude do mestre-sala de Caná (2,9-10), a samaritana que abandona o balde que foi sua razão de ir até o poço (4,28), os “judeus” exigindo um sinal logo depois do milagre dos pães (6,30), os visitantes entendendo erroneamente por que Maria se levanta (11,30). João sublinha assim a distância entre a compreensão mundana e a divina (cf. Is 55,8-9).

O próprio termo “mundo” é polissêmico: pode significar a humanidade como âmbito da obra criadora e salvadora de Deus (3,16!), mas também, sobretudo na expressão “este mundo” (8,23; 18,36!), a parcela incrédula da humanidade, manipulada pelo poder das trevas, o “príncipe deste mundo” (12,31; 14,30; 16,11). Ao escrever que “Deus amou o mundo” (Jo 3,16), João evoca o amor divino que, no dom do Filho Unigênito, livra o mundo daquele “príncipe” (→ § 5.3). Tanto Jesus como seus discípulos estão no mundo (no sentido histórico) sem ser do mundo (não pertencem àquele “príncipe”) (cf. 17,11.14.16).

O simbolismo e a linguagem sóbria, porém densa, se opõem à compreensão imediata, seja ingênua, seja hostil. O significado que os de fora não entendem abre-se para os que estão na mistagogia. Esses, pois, não precisam procurar o “conhecimento” fora da comunidade da fé (no judaísmo ou nas especulações helenistas). Ao mesmo tempo, os de fora, ainda que sejam “mestres em Israel”, como Nicodemos (3,10), são convidados a entrar e conhecer (“Mestre, onde moras?” – “Vinde e vede”, Jo 1,39).

1.5 Caráter semítico e “bilinguismo” 

Se outrora a crítica literária chegou a ver em João um evangelho helenista, hoje se realça sua proximidade da linguagem e do pensamento semíticos. João conserva alguns termos em língua aramaica e os traduz para o grego: rabbi (1,38), messias (1,41), Kefas (1,42), rabbûni (20,16), amēn etc. Isso corresponde ao leitorado composto de judeu-cristãos e heleno-cristãos. O “bilinguismo” de João é também mental: escreve no grego comum (koiné), mas sente e pensa de modo semítico-bíblico, como transparece na sua gramática (hína no sentido de “que” ou “de modo que”; antecipação do assunto principal da frase como casus pendens etc.) (SCHNACKENBURG, 1980, p.  133-140).

Por trás das expressões e imagens está a tradição veterotestamentária, lembrada ora conforme o texto hebraico, ora conforme o texto grego da Septuaginta, ora conforme o targum (paráfrase aramaica). Assim, o termo logos (“palavra” ou “verbo”) não remete tanto ao Logos da filosofia grega (a razão), quanto à Palavra criadora e sapiencial de Deus. O esquema “do alto/de baixo” combina com o “enaltecimento” do “Filho do Homem” (Is 52,13; Dn 7,13-14; Jo 3,14; 8,28; 12,32.34). Por outro lado, certos termos da tradição bíblica se tornaram irrelevantes ou ambíguos. João evita o termo “aliança”, mas exprime essa realidade pela terminologia de amor e unidade (OLIVEIRA, 1966; CANCIAN, 1978). Não fala em “Reino de Deus” (fora do diálogo com o judeu Nicodemos, Jo 3,3.5), mas usa a expressão “vida eterna”, que abre um registro bem mais universal.

2 Intertextualidade
2.1 Antigo Testamento e judaísmo

A referência ao AT está sempre presente no Quarto Evangelho, mas não reproduz, necessariamente, a letra do texto hebraico, pois na sinagoga dos “hebreus” o texto hebraico vinha acompanhado da glosa aramaica (targum), e na sinagoga helenista lia-se o texto grego (Septuaginta).

A referência à “Escritura” (graphē, termo preferencial em João) sugere o cumprimento no sentido de plenitude: a “Escritura” ganha um sentido pleno como analogia, imagem ou símbolo daquilo que aparece em Cristo (tipologia) etc. As citações são eventualmente adaptadas ao novo sentido (p.ex.: Jo 2,17 muda o verbo de Sl 68,10 LXX do passado para o futuro, para significar a futura morte de Jesus).

João parece aludir também aos livros deuterocanônicos (sobretudo Sirácida e Sabedoria), recusados pelo judaísmo formativo e rabínico, mas conhecidos entre os cristãos, muitos dos quais eram judeus de língua grega. Chega a ser irônico: em Jo 5,18; 10,33, os fariseus acusam Jesus de se tornar igual a Deus por chamar Deus de Pai, mas é exatamente isso que se diz do justo perseguido em Sb 2,13.16.18. Se os fariseus quisessem ler os livros deuterocanônicos, compreenderiam!

2.2 Novo Testamento

Os evangelhos sinópticos. Embora o EvJo siga o esquema geral dos evangelhos sinópticos, sintetizado em At 10,37-43, ele estende a atividade pública sobre três anos em vez de um só (→ § 1.3), reduzindo, porém, o número de episódios. Muitos textos de João não têm paralelo nos sinópticos. Entretanto, nas chamadas “perícopes sinópticas” de João (2,13-21; 4,45-54; 6,1-21.60-71; 12,1-19) e na narrativa da Paixão e Ressurreição (Jo 18–20), João reinterpreta a narrativa dos sinópticos na linha de sua visão teológica.

At 10,37-43 Mt Mc Lc Jo
”após o batismo por João” 3,1–4,11 1,2-13 3,1–4,13 1,19–2,12
”Deus o ungiu com Espírito Santo e poder… andou fazendo o bem e curando todos os possessos do demônio… tudo o que fez na região dos judeus” 4,12–20,34

 

 

1,14–10,52 4,14–19,27

 

2,13–6,71:

2,13 Páscoa em Jerusalém;

4,1 passagem pela Samaria

5,1 festa em Jerusalém;

6,4 Páscoa/Galileia

7,1–12,50:

atividade na Galileia e subida única a Jerusalém
“e em Jerusalém” 21, 1–25,50 11,1–13,37 19,28–21,38 3ª subida a Jerusalém

7,1 Tabernáculos;

10,22 Dedicação;

11,55 Páscoa

ensino em Jerusalém

 

Páscoa final

“pregaram-no na cruz” 26,1–27,56 14,1–15,47 22,1–23,56 13,1–19,42
“Deus o ressuscitou no 3º dia” 28,1-20 16,1-8 24,1-53 20,1-31

As Cartas de João.[4] Prescindindo da questão da autoria, convém ler o EvJo e as Cartas como mutuamente esclarecedores (→TLA, Cartas católicas). As Cartas (1Jo, 2Jo, 3Jo) mostram muita semelhança temática com os discursos de Jesus no EvJo. 1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o prólogo do evangelho. 1Jo 3,11-18 corresponde ao tema do amor fraterno em Jo 13,34-35; 15,10-17. Porém, as Cartas não mais se referem à discussão com a sinagoga judaica, mas refletem a situação do fim do primeiro século, quando se impôs a reta compreensão em contraste com o gnosticismo incipiente; os adversários não são mais “os judeus”, mas os dissidentes da própria comunidade (1Jo 2,19).

O Apocalipse. O EvJo foi redigido, provavelmente, no mesmo ambiente das sete igrejas de Ap 2–3, em torno de Éfeso, na Ásia Menor (Turquia). Por ser o Apocalipse de estilo muito diferente, tanto mais chamam atenção algumas semelhanças exclusivas com o EvJo, por exemplo, a designação de Jesus como “Cordeiro” (Ap 5,6 etc.) e “Palavra de Deus” (19,13). Também: o tema do martírio, o Espírito que fala às Igrejas, papel que o EvJo atribui ao Paráclito etc. As núpcias messiânicas (Ap 21–22) lembram Jo 2,1-10, e a luta contra o Dragão/Satanás (Ap 12), o desmascaramento do Diabo em Jo 8,39-47 e as alusões a ele em diversos outros textos (Jo 12,31; 16,11 etc.).

A diferença entre o EvJo e o Apocalipse está mais na linguagem e no gênero literário do que no mundo mental. Nem mesmo a diferença quanto à escatologia é tão grande assim: o Apocalipse usa imagens futurísticas para falar do juízo e da vitória de Deus, do Cordeiro e dos fiéis, aos quais assegura que não conhecerão “a segunda morte”, mas o efeito retórico concerne ao presente, exatamente como a escatologia presente do EvJo, que significa que a opção por Jesus na fé é equivalente ao Juízo e introduz na “vida eterna” (“passaram da morte para a vida”, Jo 5,24). São duas maneiras de exortar os crentes a ficarem firmes na fé e a “seguir o Cordeiro aonde ele for” (Ap 14,4; cf. Jo 12,26; 13,36-37) (PRIGENT, 2020, p. 44-49).

Outros escritos neotestamentários. A pregação dos apóstolos era muito diversificada. Paulo não se deixava impor por outros o modo de pregar o evangelho e de organizar igrejas (Gl 1,11-12). Essa relativa autonomia dos primeiros pregadores e de suas comunidades torna mais significativas ainda as semelhanças entre os diversos escritos do NT: a messianidade de Jesus, seu senhorio, sua missão divina, seu pastoreio, seu ato consagrador, o valor salvífico de sua morte, a salvação pela fé, a presença da vida nova, a primazia do mandamento do amor, a fraternidade, a comunhão. João aborda sob outro ângulo o mesmo mistério; não é apenas um texto para ser lido em si, mas também uma chave para outros escritos, inclusive anteriores, revelando o potencial de sentido que eles contêm. Assim, o fato de o EvJo acentuar a escatologia presente nos ensina a perceber melhor a dimensão presente (e pragmática) da escatologia nos outros escritos do NT, inclusive no Apocalipse.

2.3 Escritos extracanônicos/extrabíblicos

Há, sem dúvida, certa proximidade ambiental do EvJo com os incipientes movimentos gnósticos (final do séc. I), mas os textos gnósticos são ulteriores e não podem ser considerados como fonte; antes, são influenciados pelo EvJo (é o caso de Heraclão, os valentinianos e o Evangelho da Verdade, descoberto em Nag Hammadi). Quanto aos textos de Qumrã, há alguma analogia quanto ao “dualismo” (luz/trevas, verdade/mentira) e quanto à oposição ao Templo de Jerusalém, mas não o suficiente para fundamentar um contato orgânico com Qumrã e/ou os essênios.

3 “Autor” e leitorado
3.1 Autor e leitor dentro do texto

O autor implícito do EvJo, geralmente, “submerge” no texto, identificando-se com a comunidade no meio da qual ele faz seu relato, como transparece no plural comunitário usado no Prólogo (v. 14.16) e em algumas palavras de Jesus (3,11; 4,22) e dos discípulos (1,41.45; 6,68-69!). Ele fala de dentro da comunidade, como numa homilia – uma das bases do Quarto Evangelho. O autor se apresenta como articulador do testemunho e da confissão de fé da comunidade (20,30-31). O autor transparece também nos autocomentários (→§ 1.4). Em 19,35, aparece a testemunha ocular: será que o autor se identifica com esta figura, ou torna-se apenas seu porta-voz? (No epílogo, em 21,24, o editor dá a entender que essa testemunha proporcionou o escrito.)

O leitor é tratado como receptor de informação, mas, sobretudo, como destinatário da formação na fé.  Na medida em que o texto é uma narrativa, o leitor fica conhecendo a obra de Jesus. Pelos autocomentários, pelo simbolismo, pela técnica do mal-entendido e da ironia, o leitor-ouvinte é tratado como discípulo no processo da fé (→ § 1.4). A relação autor-destinatário é intensa, e o estilo de drama envolve o leitor. Podemos ver no Jesus-rabi de diversas passagens uma projeção desse intento didático do texto; o tratamento “filhinhos” (teknía) com que Jesus se dirige aos discípulos (13,31) é usado com frequência na 1ª Carta. 

3.2 Quem foi esse autor?

Em 21,24, o editor do texto parece identificar aquele que escreveu (ou mandou escrever) o EvJo como sendo o Discípulo Amado (13,23; 18,15; 19,26-27; 20,2-4.8; 21,7.20-24), a testemunha anônima ao pé da cruz em 19,35.[5] Aceita essa identificação, sugerida pelo próprio texto, pergunta-se: será o Discípulo Amado uma pessoa real ou uma figura simbólica, representando o discípulo perfeito e testemunha fiel? Uma coisa não exclui a outra: o Discípulo Amado pode ser histórico e simbólico ao mesmo tempo. Na figura simbólica pode se reconhecer o evangelizador fiel que conduziu a(s) comunidade(s) no caminho da fé. Não obliteremos, porém, a individualidade do autor: o EvJo apresenta o testemunho de Jesus e sua obra com uma profundidade teológica que ultrapassa a expressão coletiva.

Tradicionalmente, este Discípulo Amado, “autor” do EvJo, é identificado com o apóstolo João, filho de Zebedeu, mas essa atribuição pode ser causada pelo desejo de respaldar a canonicidade pela atribuição a um apóstolo, embora  o caráter apostólico não consista em ter sido escrito por um dos Doze (ou Paulo), mas em expressar e transmitir a fé dos apóstolos.[6] A tradicional atribuição do EvJo ao filho de Zebedeu supõe que esse seja o Discípulo Amado, e essa identidade (como também a de seu irmão Tiago) teria sido escondida pelo anonimato, inclusive em 1,35, em que ele seria um dos dois não nomeados (o segundo sendo André, nomeado em 1,40). Os estudos críticos, porém, não conseguem tornar convincente as teorias nesse sentido.[7] É melhor considerar o EvJo como um escrito anônimo. O Discípulo Amado é mencionado só a partir da “hora” da paixão e morte de Jesus (13,23), para ser a testemunha fidedigna da morte e da ressurreição (19,35; 20,9; cf. 21,24). No nível do leitor, seu anonimato permite ver nele o representante de todos os verdadeiros discípulos diante da cruz e ressurreição de Jesus (KONINGS, 2016, p. 59).

3.3 A gênese do texto

Podemos supor um período de pregação do “mestre joanino”, culminando na coleção de suas palavras (por via oral e escrita) nas comunidades que dele se originaram, primeiro na Judeia, na Samaria e na Galileia, depois na Síria e até na região de Éfeso (BROWN, 2020, p. 19-28; BEUTLER, p. 33). Provavelmente, entre 50 e 80 dC, pode ter havido uma primeira redação substancial, unificada em forma de evangelho consecutivo, com todas as características joaninas: as narrativas de sinais, os discursos simbólicos ou de revelação, o primeiro discurso de despedida (Jo 13-14), a Paixão e Ressurreição.

Pelo fim do século, depois da destruição do Templo e da separação radical do judaísmo (com a expulsão dos cristãos da sinagoga, aludida em 9,22 e 12,42), essa primeira redação foi continuada, pelo evangelista ou por alguém muito sintonizado com ele, em alguns trechos (como Jo 3,31-36; 6,51-58; 12,44a-50, cap. 15-17). Já no cap. 21 temos indícios claros de edição final por outra mão (21,24-25).

Não é possível separar de modo cirúrgico a primeira redação e as continuações, embora perceptíveis. Melhor é considerar o atual EvJo como um evangelho “ruminado” (KONINGS, 2016, p. 17). Os mesmos temas são retomados em vários níveis de reflexão e em vários horizontes: o da vida de Jesus, o da primeira pregação cristã, o das comunidades do fim do século I. É um exemplo daquilo que a tradição e a pregação cristã sempre deverão ser: uma contínua releitura.

Para instruir as comunidades, João usou, de modo eclético, narrativas e palavras de Jesus veiculadas em diversos círculos cristãos. Procedendo por amostras (como sugere 20,30-31), João espelha a vida da comunidade. É “o livro da vida da comunidade”: articula a vida da comunidade com aquilo que é anunciado, oralmente ou por escrito, a respeito de Jesus, cuja palavra é fonte de vida (6,68). Porém, o texto não retoma toda a tradição. O EvJo faz uma releitura seletiva, mas criativa, de alguns elementos da tradição prévia – oral, escrita ou mesmo pós-sinóptica (DAUER, 1992). Ora, a mão de João é mágica: transforma tudo que toca. Seu procedimento na hora de redigir o texto modifica a letra e o teor das tradições que utiliza. Por isso, o sentido que João quer dar a seu texto não se encontra em primeiro lugar pela comparação com suas fontes, embora útil, mas pela leitura atenta do texto em si.

4 O Evangelho de João e seu mundo           
4.1 O Evangelho de João e a sociedade

Ricos e pobres. O EvJo põe em cena antes pessoas específicas do que o povo em geral. Poucas vezes aparece a multidão popular. Com frequência aparecem as lideranças, como adversários de Jesus, a tal ponto que a expressão “os judeus”, muitas vezes (não sempre), aparece num sentido hostil. Quanto à estratificação sociológica, em vez de pobres e camponeses explorados, encontramos João Batista, reconhecido entre os judeus (5,35); uma família oferecendo ampla festa de bodas em Caná (2,1-10); Nicodemos, fariseu e chefe dos judeus (3,1); um funcionário real em Cafarnaum, que se converte com “toda a sua casa” (4,46-54); a família de Lázaro, recebendo visita de judeus influentes de Jerusalém e oferecendo um banquete a Jesus (11,32; 12,3); e o Discípulo Amado, familiarizado com a casa do sumo sacerdote (18,15). No fim, aparecem Maria de Magdala (19,25; 20,1), José de Arimateia e Nicodemos (19,38-39), aparentemente pessoas abastadas. O EvJo parece refletir a sociedade urbana judaica (em parte helenizada) no fim do I século dC (→ § 5.2), que a sinagoga procurava trazer de volta para seu meio (cf. Jo 12,42-43).

A pobreza e o uso do dinheiro não parecem ser a preocupação primordial de João. Os únicos textos que mencionam o dinheiro são retomados, tais quais, da tradição sinóptica (6,7 e 12,5) ou representam o estereótipo de Judas ladrão, dominado pelo diabo (12,6; 13,2).

Por outro lado, o EvJo é fortemente comunitário. Assim como a sinagoga, a comunidade joanina garantia proteção e previdência social para os pobres. O EvJo menciona os pobres apenas de passagem (12,8), mas insiste no serviço mútuo (13,14) e no amor fraterno comunitário (13,34-35), que inclui o cuidado dos pobres (a esmola é pressuposta em Jo 12,5-6; 13,29); e na 1ª Carta, o dever de partilhar os bens com os necessitados é bem explícito (1Jo 3,17; 4,20). Contudo, o conflito mais determinante não é pobreza vs. riqueza, mas amor vs. ódio (15,1-17 e 15,18-6,4).

No tempo da redação final, as comunidades joaninas (também na Diáspora) estavam sofrendo a exclusão por parte do judaísmo dominante. Se, para os pobres, a excomunhão significava mendicância, para os ricos significava perda de prestígio e relações sociais (“honra”, cf. Jo 12,43). Significava também perda do reconhecimento como “religião lícita”, como era o judaísmo no Império Romano e, daí, a exposição a arbitrariedades e perseguição. Contra esse pano de fundo, compreende-se melhor a história do cego de nascença (Jo 9,22!), a timidez de Nicodemos (3,2; cf. 7,50) e a desistência dos chefes que creram em Jesus (12,42).

João não esconde sua simpatia para com os desprezados: assim, no cap. 7, menciona os policiais do Templo, malditos como ‘am ha-áreṣ (povão ignorante) por terem testemunhado a favor de Jesus. O cego de nascença é um excluído que testemunha que Jesus é profeta (cap. 9). A samaritana é claramente alheia ao padrão judaico: mulher e samaritana (4,9), porém testemunha de Jesus. Em 12,19, os fariseus mostram desprezo pelas multidões que prestigiam Jesus. A todas essas pessoas é oferecido o dom de Deus em Jesus e a acolhida em sua comunidade.

Política. O EvJo rejeita o messianismo nacionalista (6,14-15; 18,36). A declaração: “meu reino não é deste mundo” liga o “reino” à verdade de Deus (18,36-37). O título “rei dos judeus” (19,19-22) é tratado com ironia joanina (→§ 1.4). Decerto, o EvJo pretende mostrar que Jesus é o Messias (Jo 20,31), mas acopla a esse termo o título de “o Filho de Deus” no sentido específico (20,31; cf. ainda 1,49, “rei de Israel”; 11,27; 18,36 + 19,7).

João não mostra interesse especial pelo Império Romano, mas o processo de Jesus perante Pilatos (18,28–19,22) esbanja tanta ironia que se deve concluir, no mínimo, que João não busca a simpatia dos romanos. Ele vê Pilatos como um fantoche nas mãos dos “judeus” ou como um cínico; sua declaração da inocência de Jesus nada significa (18,38).

A mulher. Enquanto no sistema social e religioso do judaísmo ocupavam um lugar secundário, no EvJo as mulheres desempenham um papel notável. Jesus realiza seu primeiro sinal depois de uma sugestão de sua mãe (2,4-5). A primeira pessoa a colher da boca de Jesus sua identificação como Messias é a samaritana (4,25-26), comunicando-o logo a seus conterrâneos. Em 11,27 é notável a profissão de fé de Marta, e é comovido pela intervenção de Maria que Jesus reergue Lázaro (11,32). A mesma Maria de Betânia oferece a Jesus a unção que nos outros evangelhos é atribuída a uma mulher anônima (12,1-8). A primeira a visitar o túmulo e a ver o ressuscitado é Maria Madalena, que depois é enviada a anunciar aos “irmãos” a notícia da ressurreição (20,10-18).

Gerado na fronteira do judeu-helenismo e do mundo grego, o EvJo oferece amplo espaço à mulher, desde a mãe de Jesus até Maria Madalena. Neste evangelho, a mulher se sente em casa. Ainda que seja improvável identificar o Discípulo Amado como mulher, a leitura feminista observou que é uma “personagem aberta”, permitindo às leitoras “entrar” nessa figura.

4.2 Judaísmo e helenismo

O judaísmo. O EvJo alterna a periferia (Galileia e Samaria: 20% do texto) com o centro do judaísmo, Jerusalém (80%). Mas o significado de Jerusalém é diferente do que se vê em Lucas, que vê em Jerusalém o ponto de partida da missão cristã. Em João, a antecipação da purificação do Templo e da expulsão dos animais de sacrifício “neutraliza” o Lugar Santo desde o início (2,13-21): não é mais o lugar da adoração (4,21-23). Jesus não sobe a Jerusalém para ter sucesso ali (7,1-10), e os mestres que lá se encontram são “deste mundo” (8,23).

Depois do exílio babilônico haviam surgido, em Judá e Israel, sinagogas em torno da leitura da Lei. No interior do país e em Jerusalém havia grande número de sinagogas, que não ofuscavam o Templo, mas, antes, alastravam sua influência. Jesus e os apóstolos se criaram no ambiente das sinagogas, lideradas por mestres da linha farisaica. As comunidades joaninas mantiveram uma herança disso, de onde o caráter homilético de muitos trechos. Tanto mais traumática deve ter sido, no fim do século I dC, a exclusão da sinagoga (12,42).

Outro traço do judaísmo é o discipulado (cf. Qumrã e os grêmios farisaicos). O tratamento de “mestre” para Jesus e de “filh(inh)os” para os discípulos (13,33; cf. 1Jo 2,1 etc.) vem da tradição sapiencial (cf. Sr 2,1 etc.), mas, no EvJo, o conceito de discípulo recebe um caráter diferente: Jesus é mestre e servo ao mesmo tempo, e seus discípulos, amigos (13,16; 15,15).

Frequentemente citada para localizar o Quarto Evangelho no seu contexto sócio-histórico é a expulsão dos cristãos da sinagoga (9,22; 12,42; 16,2). No nível do Jesus histórico, esse tema é anacrônico, pois a expulsão formal se situa no fim do século I, e durante a vida de Jesus, o grupo de seus seguidores era insignificante.[8] João alude a essa expulsão para mostrar que o ser cristão implica ruptura com a pertença sociorreligiosa dominante.

O Prólogo estabelece um paralelismo entre “o mundo [que] não o conheceu” e “os seus [que] não o receberam” (1,10-11). Estas frases não são absolutas, pois João continua: “A quantos, porém, o acolheram…” (1,13), incluindo bom número de judeus.
João não censura os judeus no sentido étnico; nas Cartas, certos cristãos são criticados com o mesmo rigor (cf. 1Jo 2,19; 4,3; 4,8; 2Jo 9; 3Jo 9-10). Quando usa o termo “os judeus” em sentido hostil, João não visa aos judeus em geral, mas aos que rejeitam Jesus, grupos de peso político e social, com os quais Jesus e os seus estão rompidos, tanto em Jerusalém (Jo 1,19 etc.), como na Galileia (Jo 6,41.52), tanto no ano 30 quanto nos anos 80.  Precisamos ler o evangelho que mais censura “os judeus” a partir da herança de Israel, ou seja, do ponto de vista de um judeu que lamenta a cegueira de seus líderes (Jo 9,40-41).

O culto judaico. Alguns comentadores veem no EvJo um evangelho “sacerdotal”. Algumas frases usam vocabulário sacerdotal (17,17-19), e o Discípulo Amado parece conhecer o ambiente sacerdotal em Jerusalém.[9] Nos caps. 5 e 7–12, João demonstra interesse crítico pelo Templo, onde se fazem os grandes pronunciamentos de Jesus, mas em nenhum lugar transparece conivência com o sistema do Templo. Por isso, o culto do Templo (“bois e ovelhas”, 2,15) é posto em xeque desde o início.  Aliás, João se distancia das instituições judaicas em geral: fala em “festa dos judeus” (2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 11,55), “vossa Lei” (8,17; 10,34; cf. “Lei deles”, 15,25). Onde a linguagem de João parece sugerir um novo culto (4,22-24), esse se situa na linha do culto “espiritual” ou “racional” das cartas do NT (Rm 12,1; Hb 13,15; 1Pd 2,5). E se Jo 17,19 (como Hb 9,11-28) vê na prática de Jesus, fiel até a morte, uma “consagração”, isso deve ser entendido como realidade nova, que torna supérfluo o culto antigo. João substitui os grandes símbolos do sistema religioso de Israel pela pessoa de Jesus Cristo.

Enquanto Tiago e Mateus ensinam que os cristãos devem guardar e interpretar a Torá com maior perfeição que o judaísmo, em Paulo e João o laço umbilical com o judaísmo parece radicalmente cortado. Jesus fala aos escribas e fariseus em termos de “vossa Lei” etc. Sobretudo, João relata com ironia a desistência dos “judeus” da expectativa messiânica, quando dizem: “Não temos outro rei senão César” (19,15).

O movimento de João Batista. O EvJo releva e relativiza a figura de João Batista. Já no Prólogo, explica que João não era a “luz”, mas deu testemunho da “luz” (1,6-8) e de sua preexistência (1,15). Depois do Prólogo, a narrativa inicia por um elaborado testemunho do Batista, que anuncia Jesus como Cordeiro e Filho de Deus (1,19-34) e encaminha seus discípulos para Jesus (1,35-36). O Batista e os discípulos voltam à cena para outro testemunho em 3,22-30. Em 5,33-35, Jesus mesmo aponta para João Batista como lâmpada passageira anunciando a luz verdadeira. Em 10,40-42, o povo aprova o testemunho de João Batista. Esse ritmo decrescente das referências ilustra a palavra do Batista em 3,30: “Ele deve crescer, eu, decrescer”. Segundo At 18,24–19,7 existiam, ainda na segunda metade do século I, discípulos de João Batista em Éfeso, presumido local da redação final do EvJo. Talvez o evangelista tenha buscado atrair esses “joanitas” para a comunidade cristã? Quando a comunidade do Batista desapareceu, seu lugar foi assumido pela comunidade de Jesus. O EvJo apresenta os discípulos do Batista se transferindo para Jesus (1,35-36); seu movimento diminui diante de Jesus (3,30), pois é provisório (5,33-35), mas testemunha a favor de Jesus (10,40-42). João parece erguer o Batista em testemunha-mor de Jesus diante dos “judeus”, que talvez tenham invocado o Batista contra Jesus, por ser anterior e não ter desacatado a autoridade deles (KONINGS, 2017, p. 59-60).

Os samaritanos. A antiga oposição entre judeus e samaritanos (1Rs 12) recrudescera depois da destruição do templo samaritano do Garizim pelo rei judeu João Hircano em 128 aC (cf. Jo 4,19). Contudo, ambos povos são “filhos de Israel”. Os samaritanos celebram a Páscoa, memorial do Êxodo, e leem os Livros de Moisés, protótipo do profeta que deve vir ao mundo (cf. Jo 4,25). Possuem até uma tradução própria da Torá em grego. O EvJo aproxima Jesus dos samaritanos (4,1-42), a ponto de ser insultado como samaritano (8,48). Jo 11,52 parece aludir à promessa messiânica da nova união entre judeus e samaritanos (cf. também 10,16).

O helenismo. Como se situa o EvJo em relação à onipresente cultura helenista? Será o silêncio um indício de sua posição? Não encontramos nenhuma referência aos sábios gregos[10], nenhuma admiração pela “filantropia” dos magistrados romanos. Até há pouco, por causa do Prólogo, admirava-se o Evangelho de João como evangelho filosófico. Porém, o termo logos, no Prólogo, não aponta para a filosofia grega, mas sim, para a “Palavra” de Deus na criação. O EvJo não se dirige a um grupo eclético, e os termos simbólicos que usa são acessíveis a qualquer pessoa que tenha sensibilidade. Seus pressupostos culturais são: familiaridade com os grandes temas da Escritura e sensibilidade pelos símbolos da humanidade (luz e trevas, verdade e mentira, vida e morte…).

O EvJo não tematiza a relação com outras religiões.[11] A abertura para os samaritanos vale na medida em que aceitam a palavra de Jesus (4,41-42). A “religião em Espírito e verdade”, que Jo 4,23 opõe tanto ao judaísmo quanto ao samaritanismo, é a que bebe da fonte que é Jesus; nada tem a ver com uma religião mundial e/ou não institucional. Todavia, a meditação joanina em torno de Jesus-Messias nos prepara para o diálogo com as religiões e mundividências em geral pela profundidade. Liga tudo, não pela superfície, mas pela raiz. Não fala da filantropia “em geral”, mas do amor fraterno concreto, como testemunho para o mundo todo (Jo 13,34-35).

Sabedoria e conhecimento. Na linguagem bíblica, cultura se chama “sabedoria”. Os escribas “perscrutam as Escrituras” (5,39) e desprezam os simples que “não conhecem a Lei” (7,49). O Jesus joanino, porém, mostra que o conhecimento da Lei para nada serve se não acreditam nele (3,10; 5,39 etc.). Em compensação, os cristãos “conhecem” Deus em Jesus. Os que acreditam em Jesus chegam ao verdadeiro conhecimento salutar, sem se entregarem a algum sistema judaico ou helenista. O “conhecer” proposto pelo Quarto Evangelho distingue-se da sabedoria dos escribas e nada tem de elitista. O próprio Jesus passa por alguém que não teve instrução (Jo 7,15). Na coleção de ditos de Jesus conhecida como Q (Logienquelle), encontra-se uma sentença que recebeu o nome de “lógion joanino” (Mt 11,25-27 = Lc 10,21-22): Jesus agradece a Deus, seu Pai, porque revelou aos simples e pequenos aquilo que ficou escondido aos sábios e entendidos. João tem em comum, não só com os sinópticos, mas também com Paulo (1Cor 1,20.26 etc.) e Tg (3,1-2.13), a convicção de que o verdadeiro saber não é a cultura deste mundo, mas o conhecimento do Pai, que conhecemos em Jesus (Jo 17,2). Esse saber não vem através da sabedoria deste mundo, mas através do amor de Cristo, do qual se participa ativamente no amor fraterno.

Em grego, o conhecimento chama-se gnṓsis. João, embora nunca use esse termo (mas sim o verbo ginōskein), tornou-se o evangelho preferido da gnose que se espalhou no século II dC, prometendo aos iniciados uma vida fora deste “mundo mau”. Assim, o “Evangelho da Verdade” (encontrado em Nag-Hammadi, no Egito). Ora, esse escrito, que procura a salvação individual longe do mundo mau, é uma interpretação egocêntrica do saber evangélico proposto por João, para quem o saber “criterioso” não pode preterir o amor fraterno (cf. Jo 13,34-35; 1Jo 4,20–5,2), a ser praticado no mundo, embora sua fonte não seja o mundo!

O Quarto Evangelho se ambienta numa comunidade de tipo judeu-cristão helenista, em conflito com o judaísmo dominante do último quartel do século I e reservada quanto às outras esferas “do mundo” (o Império Romano, a cultura helenista). Não obstante, assume decididamente sua missão “no mundo”, no testemunho da fé e da caridade a partir de Jesus de Nazaré (13,35).

4.3 A mundividência de João

O amplo uso de símbolos e arquétipos dá ao EvJo um alcance universal, que transcende sua situação histórica e possibilita o diálogo com outros contextos. Por exemplo, quando João reage à expulsão dos cristãos da sinagoga, seu fraseado desliza para categorias mais amplas: o mundo, as trevas. Ao mencionar Judas, “um dos Doze”, João evoca “o chefe deste mundo” (13,2). Esses episódios são casos particulares de uma realidade universal.

O horizonte mais abrangente do EvJo é “o mundo” (kósmos), a criação, de modo especial a humanidade, no sentido neutro, vista como destinatária da salvação divina (Jo 3,16). Muitas vezes, porém, “o mundo” ou “este mundo” indica a resistência à oferta de Deus e a rejeição de seu Enviado e sua comunidade. Por isso, tanto o Enviado como a comunidade são estranhos para esse “mundo”: estão no mundo, mas não são do mundo (17,11.14), não lhe pertencem, não lhe são subservientes.

O “mundo” no sentido hostil se mostra, de modo amplo, no Império Romano com sua cultura helenista e, de modo mais próximo, no judaísmo que rejeita os cristãos. Contudo, não se deixa identificar sem mais com nenhum sistema político, econômico, social, cultural ou religioso. Antes, parece um poder indefinido que, embora fadado à impotência, estende seus tentáculos pelo universo, no espaço e no tempo. É o domínio do opositor de Deus – o diábolos, o “chefe deste mundo” (12,31; 14,30; 16,11). O Prólogo já menciona essas três esferas: o mundo refratário em geral (1,10), o povo eleito (“os seus”, 1,12, que em 8,44 são acusados de terem o diabo por pai) e a comunidade que acolhe a Palavra (1.14.16), mas na qual o diabo se insinuará na pessoa de Judas (6,70; 13,2).

5 Teologia e mística
5.1 Presença de Deus no Cristo “enaltecido””

O cerne da teologia joanina é a contemplação de Deus que se manifesta como palavra e amor na “carne”, em Jesus Cristo, à luz da Páscoa e do dom do Espírito. Mais que o evangelho da encarnação no sentido histórico, o EvJo é o evangelho da manifestação da glória de Deus em Jesus “enaltecido”. Depois da destruição do Templo em 70 dC, confrontaram-se duas maneiras de conceber a presença salvífica de Deus. Para o judaísmo renovado, essa presença se dava na Torá (escrita e oral), fortemente orientada para a halaká (ordenações rituais e morais). Para o cristianismo, a presença de Deus se dava na práxis de Jesus de Nazaré, que a comunidade cristã, vivenciando o tempo final e iluminada pelo Espírito, pretendia atualizar na prática do amor fraterno (Jo 16,13-15). Isso distingue a “via joanina” não apenas do judaísmo, mas também dos outros caminhos de salvação (cultos de mistérios, gnose etc.) e, sobretudo, dos caminhos do desamor.

O Quarto Evangelho quer ser escutado como o testemunho apostólico de que Jesus é o Messias e o Filho Unigênito de Deus, para que, na firmeza dessa fé, o ouvinte tenha “vida” (20,31). Esse testemunho apresenta Jesus como o Enviado do Pai. Pouco fala do Reino de Deus, porque, como em Paulo, não o “Reino”, mas Jesus mesmo é o objeto do anúncio.[12] João menciona o “Reino” apenas onde reproduz a linguagem judaica (Jo 3,3.5; 18,36). Não nega a messianidade daquele “de quem falam a Lei e os Profetas” (1,45), mas sugere correções fundamentais (6,14; 12,34).

João usa uma linguagem específica, que os de fora não entendem (daí o duplo sentido, o mal-entendido, a ironia; →§ 1.4). É um evangelho para os que procuram andar na luz, na verdade, em oposição aos que vivem na mentira e nas trevas (cf. Jo 12,36). Porém, não é esotérico como o gnosticismo. Para João, a iniciação não consiste na posse da verdade, mas na consciência de ser envolvido pela verdade e de ter que testemunhá-la (Jo 3,14; 4,22; 1Jo 2,3.5; 3,16.24; 4,13.16; 5,2.20). Essa verdade que ilumina a vida não está ao alcance do esforço humano, mas é um dom conferido a partir do “enaltecimento” de Jesus, através do “Espírito da Verdade” (Jo 7,39; 14,17; 15,26).

Não apenas os rabinos judaicos ficam sem entender, também o leitor é um aprendiz da fé. O EvJo conduz o leitor-ouvinte, de modo narrativo-dramático, pelo itinerário da fé. Recorda os primórdios (Jesus nos anos 30) para reforçar a fé do leitor no tempo da crise (anos 80-100), abrindo a perspectiva para as gerações vindouras (17,20; 20,29), assistidas pelo Paráclito, que em todo tempo os conduzirá “na plena verdade” (16,13). Por isso, João redesenha os fatos e as palavras de Jesus, tornando-os eloquentes para as gerações ulteriores, que devem crer no testemunho do amor fraterno (13,35) e recebem a bem-aventurança por crerem sem ter sido testemunhas da primeira hora (20,29). Assim se desenha, de acordo com a estrutura do texto (→§ 1.3), o seguinte processo/progresso: convite para a novidade do mistério (Jo 1–4), o conflito, levando à opção da fé (5–12), na intimidade dos discípulos fiéis (13–17), contemplando o “enaltecimento” (18–20).

5.2 Mística e contemplação

Se a mística é busca da união com Deus, ela não nos enclausura no intimismo. O EvJo nos introduz no novo Templo que é o Jesus eclesial (2,22), espaço de encontro com Deus para todos (4,21-24). Aí contemplamos aquele que revela a presença de Deus (1,14), como já antecipou Isaías (Is 6,10, cf. Jo 12,41). O EvJo é místico, porque acena à presença de Deus no mundo, porém, sem pertença ao mundo. Os discípulos não são do mundo, mas estão nele (17,14-15). É no mundo que os fiéis vivem a vida unida a Jesus, e, isso, sendo perseguidos e excluídos pelo mundo, que ameaça penetrar até dentro da comunidade cristã, na forma de desamor, ambição, apostasia, traição. Por isso, a 1ª Carta de João se opõe violentamente à “cobiça do mundo” (cf. 1Jo 2,16).

A mística joanina se exprime sobretudo em Jo 17,20-23, no tema da unidade dos discípulos com Cristo e o Pai. Esse tema é articulado também pelo uso característico do verbo “permanecer” (menein), sobretudo na alegoria da vinha (Jo 15,1-17). Essa alegoria mostra que o misticismo não termina na experiência da união na fé e no amor, mas se exprime na guarda do mandamento, que é o amor fraterno (15,9-11.12.16-17), práxis selada pelo dom da própria vida de Jesus (15,13).

A mística, a experiência de Deus no mistério, é um fator de liberdade, percepção íntima da grandeza incomparável de Deus, fonte de resistência à exploração dos poderes mundanos. O EvJo nos faz contemplar a glória de Deus no dom da “carne” de Jesus (cf. 1,14). João reformula de modo decisivo a Torá no novo mandamento do amor fraterno (13,34-35; 15,12), que não apenas exclui o medo (1Jo 4,18), mas tudo o que não condiz com Deus, que é “meu Pai e vosso Pai” (20,17). Assim, desperta-nos para uma ação solidária abrangente e toca nas raízes da existência cristã. Eis a força mística desse evangelho.

A mística desse evangelho não consiste na fuga do mundo, mas na abertura para o Espírito nas circunstâncias da existência. O EvJo não apresenta muitos fatos, nem receitas morais, mas, à luz de Jesus, Palavra de Deus “na carne”, mostra as opções: luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte.

5.3 Evangelho “espiritual” e “teo-lógico”

 Clemente de Alexandria chamou o EvJo de pneumático (“espiritual”), à diferença dos outros três, que seriam mais somáticos (“corporais”), descrevendo a história exterior de Jesus (cf. EUSEBIO de Cesareia, 2000, VI, 14, 7). Porém, João não é “espiritualista”, nem apregoa um cristianismo alheio ao mundo histórico e material, mas interpreta a vida e a mensagem de Jesus à luz do Espírito de Deus, que nos faz descobrir sentidos sempre novos e atuais (cf. 16,13).

O Quarto Evangelho é “teo-lógico”: fala de Deus e leva Deus à fala. Fala de Jesus como Filho de Deus, ou como “o Filho”, sem mais, porque Deus é o horizonte onipresente daquele cujos “sinais” são narrados no evangelho (20,30; 1,18). Nisto, leva Deus mesmo à fala, a ponto de Jesus ser chamado “a Palavra” de Deus (1,1).

A teologia do Quarto Evangelho é uma teologia… de Deus: “teo-logia”! Não permite relegar a questão de Deus ao segundo plano. Sem Deus em sua transcendência e imanência não se entende esse evangelho: “Eu não vim (falei/agi) por mim mesmo” (cf. 12,50). Jesus veio, falou e agiu porque o Pai, Deus, estava nele e assim lhe ordenou.

O EvJo nos ensina que a prática de Jesus é a prática de Deus mesmo “em carne”, em existência humana histórica. Jesus não apresenta uma doutrina sobre Deus ou um receituário moral. Em Jesus se dá a conhecer aquele que ninguém jamais viu, mas que é a referência última de tudo o que somos e fazemos. Por isso podemos crer em Jesus, aderir a ele, confiar nele de modo radical. Nele, nosso viver tem seu ponto de referência inabalável. João não fala de Deus em termos abstratos, conceptuais, mas em linguagem narrativa: ao descrever a prática de Jesus Cristo, João “conta” Deus e sua presença atuante entre os homens (1,18). Em Jesus, Deus se torna “história”: é isso que quer dizer o termo “carne” em Jo 1,14.

Hoje, Deus virou produto de supermercado, mas para ler o EvJo é preciso admitir o Transcendente verdadeiro e real. João nos ensina que tocamos Deus internamente, no limite em que o Ilimitado nos envolve, como o feto conhece a mãe no útero. Tocar o Infinito por dentro, é isso que João nos proporciona ao retratar Jesus, nosso irmão, que, na hora do “enaltecimento”, nos fala de “meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (20,17). Isso se exprime mais claramente ainda em 1Jo 4,12: nós conhecemos o Deus invisível se praticamos, guiados pela palavra de Cristo, aquilo que Deus internamente é: Amor. O amor ao próximo nos faz conhecer Deus por dentro (1Jo 4,12) e sermos iguais a seu Filho (1Jo 3,2).

5.4 A cruz e a glória

Assim como um gráfico deve ser lido a partir do ponto zero, no qual se cruzam o eixo horizontal e o vertical, assim devemos ler a nossa vida a partir da cruz de Jesus, que desenha os eixos para que nossa vida se inscreva na dinâmica do amor a Deus (vertical) e do amor ao próximo (horizontal), inseparavelmente unidos (cf. Jo 15,9.12; cf. 1Jo 4,20-21).

Na visão joanina, a vida de Jesus é o relato de Deus manifestando-se na “carne”, como existência humana na história no mundo. Mas para que esse Deus não seja mero objeto de conhecimento exterior, aprendemos a olhar, a partir de Jesus, numa única visão, para Deus e para os nossos irmãos, vendo o Deus de Jesus Cristo em nossos irmãos. Deus, Jesus e os irmãos se fundem em uma única visão.

No afã de mostrar em Jesus Nazareno o agir de Deus, João o apresenta com todos os “títulos” da cristologia, mas nenhum é tão significativo e abrangente quanto o de “Filho”, chamado de “unigênito” (1,14.18; 3,16.18) para o distinguir dos outros filhos e filhas amados de Deus. A messianidade e a divindade de Jesus devem ser entendidas a partir de seu amor filial, sua “paixão” por fazer o que o Pai deseja e sua missão de revelar o que o Pai lhe dá a conhecer. “Eu e o Pai somos um” (10,30), “Quem me vê, vê o Pai” (14,9), “O Pai é maior do que eu” (14,28): nessas frases se resume a cristologia joanina.

Nossa busca e nosso agir serão orientados pelo que vemos de Deus em Jesus (14,9). Tal cristocentrismo não é um cristomonismo sectário. Não se trata, tampouco, de fazer de Jesus um outro Deus, como julgaram, indevidamente, “os judeus” (5,18; 10,33), porque não entendiam o “mistério do Filho”. Jesus é um com Deus enquanto Filho. A “divindade” de Jesus se manifesta a nós no seu amor e obediência filiais: “O Pai é maior [= mais importante] que eu” (14,28).

Assim, o “cristocentrismo teo-lógico” de João não exclui a abertura àqueles que buscam Deus por outros caminhos. O que importa é a certeza de que o Deus verdadeiro manifesta seu rosto em Jesus de Nazaré. Assim se compreendem os sinais narrados no Quarto Evangelho. Não são “provas” de sua divindade, mas sinais pelos quais Deus manifesta que está com ele (Jo 3,2) e realiza nele as suas obras (14,11), na “glória do amar” (SYMOENS, 1981).

5.5 Escatologia, pneumatologia, eclesiologia

Cristologia e escatologia são inseparáveis, pois o Cristo/Messias deve inaugurar o tempo do Fim, o reinado de Deus no mundo, tempo de plenitude e paz, shalom. Tais representações, porém, são insuficientes. João fala inicialmente em “reino de Deus” usando a linguagem do judaísmo (3,3.5; 18,36), mas depois substitui esse conceito por “vida eterna”, vida recebida e assumida na opção de fé diante da palavra e da prática de Jesus como exercício da vontade de Deus. Quem crê em Jesus vive aquilo que condiz com Deus, aquilo que é definitivamente válido: “Quem ouve minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a juízo, mas passou [tempo perfeito com efeito no presente] da morte para a vida” (Jo 5,24). A vida eterna deve ser entendida não como extensão quantitativa desta vida, mas como vida do éon novo que suplanta o tempo precário “deste mundo”. Significa o salto qualitativo, na fé e no seguimento de Cristo, já agora. O “enaltecimento”, morte-e-ressurreição de Jesus, foi a manifestação dessa vida, que no dom de si supera a morte. Por isso chamamos essa “escatologia-já” de “existência pascal”.

Antes de falar da vida eterna, Jesus ensina a Nicodemos o nascimento do alto, que remete à renovação – pela conversão e pelo ensinamento de Deus – do coração daqueles que dão ouvido a Jesus (cf. Jr 33,31-33; Ez 36; Is 54,13 etc.). O símbolo disso é a efusão da água que representa o Espírito (Jo 3,5). João Batista diz que o Espírito Santo desceu sobre Jesus e permaneceu (1,33), pois ele é quem batiza com o Espírito Santo. Esse dom do Espírito acontece quando Jesus, glorificado na morte de cruz (cf. 7,39!), volta ao Pai e nos confia o mundo para que nós realizemos “obras maiores” do que ele realizou (14,12). Neste tempo de nossa existência pascal, Jesus rogará ao Pai para que nos envie o “Espírito da verdade”, o Paráclito (14,16-17), para ser nosso auxilio na missão no mundo e nosso defensor no processo com o mundo (16,7-11), guiando-nos na plena verdade de cada momento histórico (16,13). Ressuscitado, Jesus dá, no dia da Páscoa, aos discípulos o dom do Espírito (20,19-23).

5.6 Coordenadas éticas

O ensinamento moral de João se resume no binômio verdade e amor. Ambas essas realidades práticas[13] têm sua fonte em Deus e seu mediador em Jesus (15,12). Deus é verdadeiro (cf. 7,26; 8,26) no sentido de autêntico, totalmente oposto à mentira e à falsidade. Ele é fiel, seu amor é eterno e a sua palavra, digna de toda confiança. Essa palavra é Jesus, no qual se encarna a verdadefidelidade de Deus, juntamente com o amor e a graça (1,14). Na boca de Jesus, a verdade significa: a manifestação da verdade do Pai nele (LA POTTERIE, 1977). Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16), e é a partir desse amor que seu “Filho unigênito” ama aqueles que Deus lhe deu, os que acolhem sua palavra, a ponto de dar sua vida por eles, como exemplo para nós. Na fidelidade de Jesus até o fim, por amor, Deus nos ama e salva o mundo do “príncipe deste mundo” (Jo 3,16). Maior explicitação desta ética do amor encontra-se em 1Jo 3,11-18; 4,7-16; 5,1-2.

São essas as coordenadas da ética cristã segundo João: veracidadefidelidade e amor fraterno, fundados em Deus e vividos segundo o amor revelado por Jesus no gesto parabólico do lava-pés, prefigurando sua morte (“como eu vos fiz”, 13,15; “como eu vos amei”, Jo 13,34-35; 15,12). João não oferece listas de mandamentos, à maneira do AT, ou de virtudes, à maneira da sabedoria grega. Confia que os cristãos adultos deem, à ética conhecida desde a sua tradição e cultura, a forma do amor de Cristo (cf. 1Jo 2,7-8).

Johan Konings, SJ. FAJE. Texto original em português. Recebido: 23/06/2021. Aprovado: 26/09/2021. Publicado: 24/12/2021.

 Referências

BEUTLER, Johannes. Evangelho segundo João: comentário. São Paulo: Loyola, 2015.

BROWN, Raymond E. Comentário ao evangelho segundo João. Santo André: Academia Cristã, 2020. 2 v. com paginação contínua.

BROWN, Raymond E. The Epistles of John. Garden City: Doubleday, 1982.

BULTMANN, Rudolf. Theologie des Neuen Testaments. 6. Aufl. Tübingen: Mohr, 1968.

CANCIAN, Domenico. Nuovo Comandamento, Nuova Alleanza, Eucaristia: nell’interpretazione del capitolo 13 del Vangelo di Giovanni. Collevalenza: Ed. l’Amore Misericordioso, 1978.

EUSEBIO de Cesareia, História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000.

DAUER, Anton. Spüren der (synoptischen) Synedriumsverhandlung im 4. Evangelium. In: DENAUX, A. (ed.). John and the Synoptics. Leuven: Peeters, 1992. p. 307-339.

HENGEL, Martin. The Johannine question. London: SCM Press, 1989.

KONINGS, Johan. O Evangelho do discípulo amado: um olhar inicial. São Paulo: Loyola, 2016.

KONINGS, Johan. O Evangelho de João: amor e fidelidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2017.

LA POTTERIE, Ignace de. La vérité dans Saint Jean. Rome: Biblical Institute, 1977. 2 v.

MARCHADOUR, Alain. Les personnages dans l’Evangile de Jean: miroir pour une christologie narrative. Paris: Cerf, 2005.

NESTLE-ALAND. Novum testamentum graece … editione vicesima septima revisa…. 9. korrigierter Druck. Münster: Deutsche Bibelgesellschaft, 2006.

OLIVEIRA, Carlos Josaphat Pinto de. Evangelho da unidade e do amor: texto e doutrina do Evangelho de São Joao. São Paulo: Duas Cidades, 1966.

OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do aparato crítico de “O Novo Testamento grego”. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

PRIGENT, Pierre. O Apocalipse de São João. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2020.

SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio según San Juan: versión y comentario. v. 1. Barcelona: Herder, 1980.

SYMOENS, Yves. La gloire d’aimer: structures stylistiques et interprétatives dans le Discours de la Cène (Jn 13-17). Roma: Pontificio Istituto biblico, 1981.

THEOBALD, Michael. Studien zum Corpus Iohanneum. Tübingen: Mohr, 2010.

VAN BELLE, Gilbert. Les parenthèses dans l’évangile de Jean: aperçu historique et classification; texte grec de Jean. Leuven: University Press, 1985.

ZUMSTEIN, Jean. L’évangile selon Jean (1-12). Genève: Labor et Fides, 2014.

ZUMSTEIN, Jean. L’évangile selon Jean (13-21). Genève: Labor et Fides, 2007.

[1] Usamos como texto crítico a 27ª edição do Nestle-Aland (ver Referência).

[2] Cf. Provérbios cap. 8, Sirácida cap. 24, Baruc cap. 3-4 e Sabedoria (→§ 2.1).

[3] Nas comunidades joaninas, Jesus mesmo era o revelador, como aparece no Apocalipse (Jesus revela a visão divina sobre a comunidade, Ap 1,1), à maneira dos apocalípticos judaicos (Henoc etc.).

[4] O estudo mais completo é BROWN, 1982.

[5] O “outro discípulo” (outro que Pedro) em 18,15; 20,2.8 é muito provavelmente o Discípulo Amado, que contracena com Pedro também em 21,7.20.23.

[6] O Concílio Vaticano II, Dei Verbum 18-19, distingue entre os apóstolos e os autores sagrados.

[7] Resumo do debate em HENGEL, 1989;  THEOBALD, 2010, p. 181-183; BEUTLER, 2015, p. 31-33. Melhor é respeitar o anonimato (ZUMSTEIN, 2014, p. 86, n. 85).

[8] Continua aberta a questão se esse conflito com a sinagoga deve ser localizado no fim do primeiro século, quando do sínodo rabínico de Jâmnia e a inserção, na oração matinal dos judeus, da “bênção contra os hereges” (a birkat ha-minim, c. de 85 dC), ou já em décadas anteriores. De fato, cedo depois da morte de Jesus, ocorreram perseguições no âmbito do judaísmo (At 6–7 e At 9) (veja também Mc 13,9-13 par.).

[9] O nome “João”, atribuído ao autor, é um nome frequente nas famílias sacerdotais (cf. também João Batista, filho de sacerdote). Daí as hipóteses, gratuitas, de o Discípulos Amado ser o ancião João mencionado por Papias (cf. 2Jo 1 e 3Jo 1), ou até o João da família sacerdotal de Anás (At 4,6 – já que Anás recebe destaque exclusivo em Jo 18,12-24).

[10] Os “gregos” em Jo 7,35; 12,20 podem ser não judeus, achegados ao judaísmo, ou judeus helenistas da diáspora, menos hostis que os judeus de Jerusalém no ano 30 e do sínodo de Jâmnia nos anos 80.

[11] Implicitamente, Jo 10,16, com os verbos no futuro, sugere uma dinâmica que vai do grêmio joanino para os outros grupos cristãos, realizando num sentido novo a reunião escatológica de Israel na perspectiva do mundo inteiro (ZUMSTEIN, 2014, p. 345).

[12] “De anunciador, ele se tornou o Anunciado” (BULTMANN, 1968, p. 35).

[13] Jo 3,21; 1Jo 1,6: “fazer a verdade” = o que é verdadeiro (segundo a revelação em Cristo).