A salvação em Jesus Cristo

Sumário

Introdução

1 O que é salvação?

2 A fé cristã em Jesus Salvador

3 Salvação pela encarnação do Verbo divino

4 Salvação pelo ministério público do Enviado do Pai

5 Salvação pela morte e ressurreição do Redentor

5.1 A morte como oferta sacrificial

5.2 A morte como expiação dos pecados

5.3 A morte como pagamento do resgate do cativeiro

5.4 A morte como prestação de satisfação a Deus

6 Salvação pela recapitulação do Cristo Cabeça

7 O anúncio da salvação em Cristo no contexto atual

Conclusão

Referências 

Introdução

O atual contexto do secularismo, da indiferença religiosa e do pluralismo religioso põe um instigante desafio à fé cristã. O cristianismo tem como ponto central de sua doutrina a fé em Jesus Cristo como único Salvador de todo o gênero humano: ele é o único mediador entre Deus e a humanidade (1Tm 2,5); não há outro nome, exceto o dele, no qual todos são salvos (At 4,12).

Este artigo apresenta os elementos básicos da fé na salvação em Jesus Cristo. Depois de apresentar o significado da salvação, sobretudo a partir da reflexão pastoral e teológica da América Latina, enuncia os pontos-chave da fé cristã em Jesus Salvador. Em seguida, discorre sobre os enfoques tradicionais que caracterizaram a soteriologia no decorrer dos dois milênios do cristianismo. Por fim, indica caminhos para o anúncio da salvação em Cristo no contexto atual, sugerindo como critério de verificação pastoral a opção pelos pobres.

1 O que é salvação? 

Todo ser humano busca algo mais, anseia por transcender-se para além da rotina cotidiana, por superar as incompletudes e preencher os vazios que acompanham a vida. Numa perspectiva negativa, todo ser humano busca fugir de situações adversas que lhe atrapalham a vida. Doentes buscam a cura. Desempregados entregam seus currículos aqui e ali em vista de colocação no mundo do trabalho. Pobres e miseráveis labutam para pôr o pão na mesa de cada dia. Prisioneiros sonham com a liberdade. Pessoas injustiçadas em seus direitos básicos correm atrás da justiça com o fim de verem condenados os seus malfeitores, de verem restituídos os seus direitos, de alcançarem indenização.

Na linguagem cristã, pode-se sintetizar o significado de salvação a partir de três elementos: a) o ponto de partida é uma situação negativa insuportável, marcada por situações opressivas de males físicos e morais, injustiças, doenças, insegurança financeira, medo da morte, pecado, com a incapacidade pessoal de suportá-la e superá-la; b) o ponto de chegada é uma situação positiva oposta à anterior, confirmada por uma vida satisfatória, de bem-estar, integridade física e moral, paz interior e senso de justiça, experimentada como dom; c) a intervenção de um agente  externo, Deus Pai, que age por meio de seu Filho e de seu Espírito Santo, e que faz o indivíduo ou o povo passar da situação negativa à positiva (BATTAGLIA, 2013, p. 341-342).

Esses três elementos são encontrados em dois parágrafos da Introdução das Conclusões de Medellín (1987). O primeiro e o segundo elementos se revelam na afirmação de que a transformação do povo latino-americano se dá pela passagem de situações negativas insuportáveis, desumanas, para situações mais positivas, de dignidade humana, em que se consideram valores humanos e cristãos.

O verdadeiro desenvolvimento é a passagem de condições de vida menos humanas para condições mais humanas. Menos humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital e as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo. Menos humanas: as estruturas opressoras que provenham dos abusos da posse do poder, das explorações dos trabalhadores ou da injustiça das transações. Mais humanas: a passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura. Mais humanas também: o aumento na consideração da dignidade dos demais, a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade de paz. Mais humanas ainda: o reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de Deus, que deles é a fonte e o fim. Mais humanas, finalmente, e em especial, a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade dos homens e a unidade na caridade de Cristo, que nos chama a todos a participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os homens. (MEDELLÍN, Introdução, § 9, 1987, p. 7)

O terceiro item surge quando se professa que é Deus quem realiza a salvação do ser humano, agindo misteriosamente na condução dessas passagens, por meio de Jesus Cristo e de seu Espírito Santo, e fazendo que essas conquistas humanas terrenas apontem para a eternidade:

Nós, cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pressentir a presença de Deus, que quer salvar o homem inteiro, alma e corpo. No dia definitivo da salvação Deus ressuscitará também nossos corpos, por cuja redenção geme agora em nós o Espírito com gemidos indescritíveis. Deus ressuscitou a Cristo e, por conseguinte, todos os que creem nele. Através de Cristo, ele está ativamente presente em nossa história e antecipa seu gesto escatológico não somente no desejo impaciente do homem para conseguir sua total redenção, mas também naquelas conquistas que, como sinais indicadores, com voz cada vez mais poderosa, do futuro, vai fazendo o homem através de uma atividade realizada no amor. (MEDELLÍN, Introdução, § 8, 1987, p. 6-7)

Quando, pois, a fé cristã fala de salvação, não a reduz a um único aspecto, mas a entende em suas mais variadas dimensões, uma vez que diz respeito à salvação do ser humano, em corpo e alma, em sua inteireza e integridade. Em linha de síntese, afirma-se que salvação é redenção do pecado em vista da vida eterna e é também libertação sociopolítica em vista da justiça social numa sociedade democrática em que se possa viver com dignidade a vida terrena. Desde Medellín, a visão de salvação, tanto da teologia como do Magistério da Igreja latino-americana, supera o dualismo reinante até então nos âmbitos eclesiais e abrange o ser humano em todas as suas dimensões e relações: consigo mesmo, com o mundo, com os irmãos e com Deus. Para a teologia e o Magistério da Igreja latino-americana, a salvação acontece no processo histórico de libertação de tudo o que impede a promoção e a defesa da vida. A salvação é, então, a realização cada vez mais plena do ser humano em sua história pessoal, comunitária, social e cósmica, até alcançar a plenitude na meta-história, a felicidade eterna.

2 A fé cristã em Jesus Salvador

Desde os seus inícios, a fé cristã afirma que os desejos mais profundos do ser humano, sejam os referentes à vida neste mundo sejam os que apontam para a vida após a morte, têm sua realização em Jesus Cristo, reconhecido como o único Salvador de toda a humanidade. A soteriologia (do grego soteria, salvação), disciplina teológica que estuda o processo da salvação humana por meio de Jesus Cristo, considera que não há, em todo o Novo Testamento, preocupação pela afirmação do ser de Jesus (o que só vai acontecer com os concílios cristológicos dos séculos IV a VIII), mas que o acento se dá sempre no agir salvífico de Jesus.

É precisamente no retorno ao agir salvífico de Jesus de Nazaré que a teologia atual conseguirá escapar das duas teses problemáticas que impedem o caminho reflexivo atual: o exclusivismo e o relativismo (FELLER, 1995, p. 11-15). O exclusivismo descarta a possibilidade de revelação e de salvação divina fora do âmbito do cristianismo. Além do risco do imperialismo, do fanatismo e da intolerância – atitudes que não condizem com o Evangelho de Cristo –, essa tese se revela injuriosa em relação ao amor de Deus, que “é maior que o nosso coração” (1Jo 3,20) e que excede todo nosso conhecimento e pretensão de açambarcá-lo. Ele também não dá nenhuma explicação sobre a ineficácia do cristianismo e do Evangelho cristão para a salvação de milhões de pessoas. Teria Deus se servido de um instrumento tão inadequado historicamente para realizar sua vontade de salvação universal? (SHORTER, 1986, p. 230-234). O relativismo, por sua vez, considera que as religiões não são nem verdadeiras nem falsas, porque não fazem afirmações sobre a realidade, mas servem-se de metáforas para descrever um sentimento pessoal ou um compromisso. Além de expor as religiões ao risco da banalização e do nivelamento pela linha da mediocridade, essa tese não respeita o diferencial de cada religião. No caso do cristianismo, não há que se negar que a fé cristã na divindade de Cristo não é puramente subjetiva, poética ou metafórica, mas fundamenta-se em atualidade histórica (SHORTER, 1986, p. 234-237).

O cristianismo está essencialmente ligado a uma insuperável particularidade histórica, que demanda a necessidade de eliminar a pretensão cristã à verdade absoluta, condensada em pronunciados traços imperialistas no decorrer de sua história. Mas é nessa particularidade que a fé cristã, desde o início, vê a manifestação da salvação em seu caráter escatológico, que obriga ao empenho pela superação de qualquer acomodação relativista. Para os cristãos, Jesus de Nazaré é uma manifestação relativa (porque é histórica) de um sentido absoluto (porque é divino) (SCHILLEBEECKX, 1997, p.179). É na particularidade histórica de Jesus de Nazaré que os cristãos hão de se firmar para confessar a universal ação salvífica do Cristo da fé. Citando a reflexão de von Balthasar sobre Jesus como “universal concreto”, M. Bordoni explica que esta é uma afirmação cristológica que “se fundamenta sobre a conjunção ontológica entre Deus e o homem que é o grande evento da história que nenhum pensamento humano poderia imaginar: ‘Cristo não é nem um indivíduo entre os outros, porque é Deus em pessoa, sem iguais entre os outros, nem é a norma como universal, porque é singular’” (BORDONI, 1997, p. 77).

Na linha da ótica calcedoniana da distinção na unidade entre o humano e o divino, o histórico e o eterno, crê-se que na particularidade histórica de Jesus de Nazaré se manifesta e se realiza, de modo pleno, o único plano salvífico universal de Deus, o qual, por sua vez, dilata-se e finca estacas nas religiões e culturas de todos os povos. Essa perspectiva é consequente com as reflexões cristológicas modernas que partem da história para chegar ao mistério, do particular para atingir o universal. A teologia atual parte da humanidade de Jesus de Nazaré para afirmar a divindade e a messianidade salvífica do Cristo da fé. Assim, seguindo uma cristologia de baixo para cima, procede-se da particularidade histórica de Jesus de Nazaré e da sua predileção pelos pobres, para perceber e definir nele a revelação da presença e da ação salvíficas de Deus-Pai em favor de todos.

Nesse sentido, encaixam-se aqui as quatro trajetórias cristológicas básicas que, segundo Helmut Koester, se desenvolveram nos anos entre a morte de Jesus e a redação dos textos neotestamentários. Fazendo memória de Jesus, de seus ensinamentos, escolhas, decisões e enfrentamentos, as primeiras comunidades cristãs foram elaborando essas trajetórias, todas elas com conteúdo soteriológico, isto é, voltado para a ação salvífica de Jesus: a) numa cristologia da parusia, voltada para o futuro, Jesus é o Filho do homem e Senhor vindouro, o agente divino que em breve retornaria na glória para julgar o mundo; b) numa cristologia da vida pública, centrada no presente da comunidade, Jesus é o homem divino, aprovado por Deus com milagres, prodígios e sinais que Deus fez por meio dele no meio dos seres humanos; c) numa cristologia da sabedoria, interessada na origem de Cristo, ele é o mestre, o enviado da sabedoria divina ou, até mesmo, a sabedoria encarnada; d) numa cristologia pascal, atenta ao final da vida de Jesus e ao início da comunidade cristã, Jesus é o crucificado e ressuscitado dentre os mortos (KOESTER, citado por GALVIN, 1997, p. 336-338).

A partir dessas trajetórias cristológicas, anteriores à redação dos textos neotestamentários, irão se desenvolver, no interior mesmo do Novo Testamento e, depois, no decorrer da história cristã, diversos modelos soteriológicos ou explicações concernentes ao modo como opera a graça de Cristo em favor de nossa salvação. Convém salientar que essas explicações enfocam como salvíficos um ou mais aspectos da existência de Cristo, sendo que os principais pontos de referência são a encarnação, a vida pública, a morte e a ressurreição de Cristo, a recapitulação final (GALVIN, 1997, p. 359). A soteriologia pascal, embora com acento mais na morte que na ressurreição, será predominante. Por sua maior fidelidade ao Jesus histórico, maior poder de edificar a Igreja, maior aproximação com a realidade do sofrimento humano, maior capacidade de oferecer estrutura aglutinadora dos outros tipos soteriológicos, ela funcionará como fator unificador.

Nos itens a seguir, veremos como esses enfoques foram ganhando novos contornos e como foram se desenvolvendo no decorrer da história da fé cristã.

3 Salvação pela encarnação do Verbo divino

O pensamento gnóstico-dualista não aceitava a doutrina da encarnação. Ao postular dois princípios metafísicos absolutos – um, espiritual e celeste, que era fonte de bem, e outro, material e terreno, que era fonte do mal –, viam o mundo criado sob luz negativa. Por essa visão negativa da matéria, o divino, totalmente espiritual, não poderia habitar, muito menos assumir, o mundo material. Em reação a esse dualismo, os Padres da Igreja, apoiados em grandes linhas no evangelho de João, afirmaram claramente que o Verbo de Deus se fez realmente carne no homem de Nazaré. A crença na encarnação é o fundamento da prática sacramental, pela qual as coisas criadas podem mediar a presença de Deus. Para Irineu de Lião (†202) é claro que, se o Verbo não se fez realmente carne, não poderia ser crucificado, não poderia nos redimir com seu sangue, não poderia dar-se a nós no sacramento eucarístico do seu corpo e sangue. Para Agostinho de Hipona (†430) a encarnação é a expressão definitiva do amor de Deus, que se rebaixa para entrar no mundo de modo pessoal e assim alcançar-nos a salvação.

Ligada à encarnação está a noção de salvação por meio da educação ou iluminação (RYAN, 2020, p. 92-94). Esta noção teve seu auge com os Padres Apostólicos e os Apologistas, no final do século I e no decorrer do século II. O Verbo de Deus encarnou-se para nos transmitir a verdade sobre Deus e sobre nós mesmos. Com seus ensinamentos e exemplos, ele é o mestre por excelência, veio nos tirar da ignorância, veio trazer luz para os que jaziam nas trevas do erro e do pecado. O cristianismo é visto como uma nova filosofia, um novo modo de vida. Trata-se, pois, de seguir seus ensinamentos, cumprir sua palavra, tornar-se seu discípulo fiel, deixar-se formar por esse divino pedagogo. Esse tema da obra salvadora como educação ou iluminação começou a perder seu vigor com a crítica de Agostinho aos pelagianos, que propunham a salvação pela prática dos ensinamentos e a imitação dos exemplos de Cristo. Para Agostinho, na linha de São Paulo em sua crítica à confiança na Lei, era preciso algo mais transformador, algo que nos libertasse do poder do pecado do mundo e, assim, nos predispusesse a viver de acordo com os ensinamentos de Cristo.

Também relacionado à encarnação está o tema da divinização ou deificação (RYAN, 2020, p. 94-97). O Verbo se fez homem para que nós, humanos, nos tornemos divinos. Pela divinização, que é mais do que a justificação ou o perdão dos pecados, o ser humano compartilha da própria vida de Deus, vive em comunhão com ele, torna-se filho por adoção. Trata-se de um maravilhoso intercâmbio: Deus se diminui para compartilhar a vida humana, a fim de que nós possamos compartilhar a vida divina, que é incorruptível e imortal. Essa divinização é possível, portanto, não por causa de algum dom humano natural, mas por pura graça divina, alcançada no decorrer de um longo processo de assimilação a Cristo a partir do batismo e pela vivência dos sacramentos.

A importância da soteriologia fundamentada na encarnação de Jesus, com suas subteorias centradas na educação e na divinização, não diminui o impacto da centralidade da morte de Jesus como predominante nas explicações da ação salvífica em favor da humanidade. Em sua grande explanação da obra divina da encarnação, assim se expressa Atanásio de Alexandria (†373), apontando para a morte salvadora do Senhor:

Vendo todos os homens sujeitos à morte, ele teve piedade de nossa raça e misericórdia de nossa fraqueza; condescendeu com nossa corrupção e não suportou que a morte dominasse sobre nós, a fim de não perecer a criatura nem se inutilizar a obra realizada pelo Pai, em benefício dos homens. O Verbo tomou, por isso, um corpo igual ao nosso (…) e o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada, após ter sido inteiramente consumada no corpo do Senhor (ATANÁSIO, 2002, p. 134-135).

4 Salvação pelo ministério público do Enviado do Pai

Outro modo de apresentar a salvação em Jesus Cristo enfoca o seu ministério público, em particular a proclamação do Reino de Deus (RYAN, 2020, p. 55-59). No discurso programático do início de seu ministério (Lc 4,18-19), Jesus se apresenta como enviado do Pai dizendo a que veio: trazer a boa-nova aos pobres, libertar os prisioneiros, recuperar a vista aos cegos, proclamar o ano de graça do Senhor. Em todo o seu ministério público, Jesus cura doentes, expulsa demônios, perdoa pecadores, sacia a fome de multidões, chama homens simples e rudes para serem seus apóstolos, inclui mulheres em seu grupo de seguidores, coloca-se do lado dos pobres e excluídos da religião e da sociedade (FELLER, 1995, p. 55-74). Em Jesus de Nazaré, Deus se fez próximo e companheiro dos marginalizados e oprimidos de toda sorte. Ele não veio “para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12,47). Os excluídos da vida religiosa e social foram os prediletos de Jesus, destinatários do anúncio do Reino, escolhidos como sujeitos da construção do novo povo de Deus, caminho privilegiado da revelação de Deus a todos. Na opção de Jesus pelos pobres, se descobre a vontade divina de salvação de todos.

O anúncio do Reino de Deus por Jesus indica que algo não está bem na história humana: há pessoas em situação de não salvação, há poderes ativos na obra da criação divina que são opostos a Deus, há agentes humanos que, embora criados por Deus e para Deus, agem contra o ser e o agir de Deus. No anúncio do Reino de Deus, que se liga intrinsecamente à sua pessoa, Jesus está indicando que Deus vem para salvar. É certo que “a mensagem de Jesus se focalizava em um futuro advento de Deus para reinar, um tempo em que ele se manifestaria em toda a sua glória e força transcendentes para reunir e salvar seu povo de Israel, pecador, porém arrependido” (MEIER, 1997, p. 91). Mas o Reino de Deus não tinha só uma dimensão futura; ele já estava acontecendo, já se fazia presente na própria pessoa, nas palavras e ações salvíficas de Jesus, que

aponta para o poder soberano de Deus, revelado de forma clara nos exorcismos (e em outras obras salvíficas) que ele realiza e que mostram cabalmente que o Reino de Deus já chegou, ao menos para os que experimentaram na própria carne a poderosa manifestação de Deus derrotando o mal (MEIER, 1997, p. 256).

Para maior clareza, poderíamos dizer que o Reino de Deus pregado por Jesus é a realização dos sonhos divinos, transformados em sonhos humanos, em três grandes condições que expressam a realidade de salvação. Três condições que não se excluem, não se escalonam, mas se exigem mutuamente. Há uma condição mínima, que se manifesta no cuidado com a vida física, na saúde e bem-estar do corpo, na posse dos bens materiais necessários à integridade da existência: comida, casa, saúde, trabalho, segurança etc. Grande parte das obras de Jesus concentrou-se na solução-salvação de problemas físicos, materiais: cura de doenças, multiplicação dos pães, exorcismos. De fato, sem essa condição mínima, o Reino de Deus fica sem base, sem chão. Como ser feliz sem as condições mínimas de vida digna? Mas, isso não é suficiente. A felicidade humana aponta para uma expressão mais densa de salvação. Há uma condição média, que se mostra no cultivo do espírito, no acesso à educação, na liberdade de locomoção e de comunicação, nas expressões artísticas, esportivas, culturais, na promoção dos direitos humanos, pessoais e sociais, na construção da cidadania, na organização democrática, na segurança e na paz. Também aqui vemos a pregação e a ação de Jesus: as bem-aventuranças, o mandamento do amor ao próximo, as parábolas, a acolhida e o perdão aos pecadores, a vida de oração. De fato, de que adianta ter comida, se não há tranquilidade e paz, se não há comunhão? Mas, a posse de bens materiais e espirituais ainda é pouco para a felicidade humana. O ser humano tem dentro de si um desejo de absoluto, de salvação eterna, um vazio que só será preenchido no encontro definitivo com Deus. Há, por isso, uma condição máxima e última para a realização do Reino de Deus, que Jesus indicava sem deixar ambiguidades: a ressurreição final, a posse dos bens eternos, a vida eterna, a convivência feliz no céu.

O Reino de Deus é o próprio Jesus, no seu modo de ser e de agir. Ele é a mediação suprema da felicidade humana, das salvações históricas e da salvação eterna. É o Reino de Deus no meio de nós (Lc 17,21). Em sua pessoa e práxis, o Reino foi anunciado e iniciado, a salvação foi realizada, ainda que embrionariamente, em favor dos últimos e, a partir deles, em favor de todos.

5 Salvação pela morte e ressurreição do Redentor

Jesus não morreu por acaso, nem por doença, nem por acidente. Embora a comunidade cristã vá dizer que sua cruz se explica pelos desígnios da presciência de Deus (At 2,23; 4,28), é preciso, contudo, considerar os fatores históricos. Jesus foi levado à morte por causa do anúncio do Reino de Deus, o que implicava também o anúncio de outra imagem de Deus. Seja o anúncio do Reino de inclusão e igualdade, de perdão e liberdade, seja o anúncio de Deus como Pai de ternura, compaixão e misericórdia, isso incomodou os chefes religiosos.

Desde o início de seu ministério público e no decorrer de sua missão de anunciar o Reino e denunciar as práticas idolátricas do antirreino propagadas pelos chefes religiosos, Jesus foi perseguido. Foi ficando cada vez mais clara, para Jesus, a percepção de que a realização da vontade do Pai teria que passar pela entrega de sua vida. Mesmo que os evangelhos reflitam a interpretação das comunidades cristãs, há sólidas evidências de que o Jesus terreno revelou ter consciência do significado salvífico de sua morte (RYAN, 2020, p. 60-64). É o que se pode notar na indicação de que não veio para ser servido mas para servir (Mc 10,45), nos anúncios da paixão (Mc 8,31; 9,31; 10,32-34), nos relatos da instituição da eucaristia, em que ele manifesta a confiança de que sua morte servirá para a restauração de Israel e a renovação da aliança divina (Mt 26,26-30; Mc 14,22-26; Lc 22,14-20), e na oração no Getsêmani, na qual ele entrega sua vida àquele a quem chamava de Abbá (Mt 26,36-45; Mc 14,32-42; Lc 22,39-46). O próprio Jesus – e não apenas a comunidade cristã – deve ter lido sua morte à luz de textos proféticos: o martírio de um judeu fiel poderia expiar os pecados do povo (2Mc 7,37-38), o suplício do servo sofredor exerce o papel de sofrimento vicário no plano de Deus (Is 52,13–53,12). A confissão de fé dos primeiros cristãos de que a morte de Jesus tem poder salvífico (1Ts 5,10; Rm 4,25; 1Cor 15,3) certamente se fundamenta em atitudes e palavras do próprio Jesus.

5.1 A morte como oferta sacrificial

Ligada à morte, a ideia de sacrifício foi bastante útil para os Santos Padres explicarem o modo como se dá a salvação do gênero humano por Jesus Cristo (RYAN, 2020, p. 97-100). Clemente de Roma ensinava que o sangue de Cristo foi precioso para o Pai, já que foi derramado para a expiação do pecado humano e trouxe a graça do arrependimento. Atanásio ensinava que Jesus, oferecendo-se a si mesmo como sacrifício sem mancha, entregou-se à morte no lugar de todos os seres humanos, para acertar as contas com a morte e libertá-los das consequências da primeira transgressão. Segundo Ambrósio, por sua auto-oferenda, Jesus redimiu a carne humana, que era sujeita ao pecado. João Crisóstomo, nas homilias sobre a Carta aos Hebreus, se refere à morte de Cristo como sacrifício de propiciação para comprar o fim da raiva de Deus. De modo diverso, Agostinho afirma que o sacrifício de Cristo não foi para aplacar a ira de um Deus furioso, mas consequência de sua encarnação, que implicava a manifestação de sua solidariedade plena, até a morte na cruz, com a humanidade ferida e perdida.

Como o sacrifício de Cristo, também a comunidade cristã se oferece em sacrifício na eucaristia, por meio do sumo sacerdote Jesus Cristo, que se ofereceu a Deus em sua paixão por nós, na forma de servo, para que pudéssemos participar de sua cabeça gloriosa e, assim, praticar as boas obras que são o verdadeiro sacrifício a ser oferecido a Deus.

5.2 A morte como expiação dos pecados

Como único, verdadeiro, sumo e eterno sacerdote, Cristo oferece-se a si mesmo como vítima pascal. Assim, ele supera a instituição cultual do Antigo Testamento, ligada ao Templo e aos sacrifícios, indicando que, como a Lei, tampouco o culto salva. O único ato salvador a assegurar, de uma vez por todas (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10), o perdão dos pecados e a comunhão com Deus é a morte sacrificial de Jesus, que veio para servir e dar a sua vida por nós (Mt 20,28), para derramar o seu sangue e nos purificar do pecado (1Jo 1,7), para nos resgatar a todos do poder do mal (1Tm 2,6). Em lugar de uma ação sagrada realizada no recinto do Templo e com rituais precisos (Lv 1-15) que mediassem o desejo humano de expiação (Hb 9,1-10), o sacrifício de Jesus acontece fora do Templo e da cidade santa, como assassinato de um malfeitor (Hb 13,12). Este é o verdadeiro culto a Deus, que responde plenamente aos anseios de expiação, pois abre o caminho para o repouso divino e a herança eterna. O grande ritual de expiação, que visava libertar Israel de seus pecados e restabelecer a aliança do povo com Deus (Lv 16), realiza-se definitivamente em Jesus Cristo, que carregou o pecado do mundo e o expiou com seu próprio sangue (Hb 9,6-14). Substitui-se a prática sacrificial de animais pela oferta de um único mediador entre Deus e os seres humanos (Hb 9,1-15), o único santuário, o único sacerdote, o único sacrifício realmente agradável a Deus, não o sacrifício simbólico celebrado com ritos religiosos, mas o sacrifício real da vida inteira doada em favor dos irmãos. Com sua morte sacrificial na cruz, Cristo supera todos os ritos e sacrifícios da antiga aliança (Hb 10,1-10). “Assim, ele suprime o primeiro para estabelecer o segundo” (Hb 10,9). Por isso, a cidade nova – a Igreja, o céu – não precisa de santuário, “pois o seu santuário é o próprio Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21,22).

Daí o convite a que os cristãos superem a negligência (Hb 2,1), a incredulidade (Hb 3,12-13), a imaturidade espiritual (Hb 5,11-12) e saiam do recinto sagrado (Hb 13,13) para entrar em contato com o mundo onde se encontra o Cristo humilhado, que não se envergonha de ser nosso irmão (Hb 2,11) e continua a carregar a sua cruz no meio dos pobres. Assim, os fiéis alcançam a salvação em assemelhar-se a Jesus, em sua prática de amor ao próximo, no amar até o fim, até a doação da própria vida.

5.3 A morte como pagamento do resgate do cativeiro

Além da ideia de sacrifício, também a noção de resgate serviu para os Santos Padres apresentarem sua explicação soteriológica. Servindo-se da passagem de Mc 10,45 (“o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”), alguns Padres da Igreja ensinam que, com sua morte e ressurreição, Jesus triunfa sobre o mal e resgata a humanidade que estava cativa, sob o poder do diabo. Gregório de Nissa afirma que a humanidade, com o pecado, havia se vendido a Satanás, o qual passou a ter direito sobre nós. Por questão de justiça, portanto, Deus precisava dar ao diabo, senhor da humanidade, a oportunidade de pedir o que quisesse como preço pelo resgate do ser humano. O diabo pediu o que era mais valioso do que a raça humana: o sangue do Nazareno, nascido de uma virgem e realizador de tantos milagres. Mas enganou-se porque não enxergara a divindade escondida dentro da humanidade do Senhor. Ao ressuscitar dos mortos, Jesus engana o diabo e o vence, e, unindo ao seu corpo toda a raça humana, a resgata do cativeiro diabólico. Para Agostinho, o diabo adquiriu direitos sobre a humanidade com o pecado dos primeiros pais. Por um ato de justiça e não de poder, Deus liberta a raça humana com a humildade de Cristo na encarnação, quando este não só se torna semelhante a nós, mas, embora inocente, assume também nosso sofrimento. Por ter matado um homem inocente, o diabo perdeu os direitos sobre a humanidade.

Todavia, essa ideia do resgate não foi assimilada por todos. Gregório Nazianzeno considera um ultraje chocante imaginar que o sangue de Cristo fosse o pagamento dado ao diabo pela libertação do ser humano; de modo diverso, ele entendia que o Pai aceitou a oferenda livre de Cristo não por exigência do diabo, mas porque, na economia da salvação, a humanidade deveria ser santificada pela humanidade de Deus, para que pudesse nos libertar vencendo o poder do tirano e nos conduzindo a si pela mediação do Filho.

5.4 A morte como prestação de satisfação a Deus

Com Anselmo da Cantuária, temos a passagem do uso de imagens ou metáforas para a elaboração de uma teoria soteriológica da satisfação (RYAN, 2020, p. 109-121). Ele quer oferecer uma elucidação racional dos mistérios da fé e responder a pensadores judeus que julgavam ofensiva à dignidade e à impassibilidade de Deus a ideia de encarnação. Daí o título de sua obra principal: Cur Deus homo? (Por que Deus se fez homem?). Seu argumento soteriológico se contextualiza na época feudal, em que a submissão à vontade da autoridade superior era essencial para a manutenção da ordem social e, portanto, em caso de ofensa à autoridade era exigida satisfação correspondente ao status social do ofendido. Situa-se ainda no contexto do sistema penitencial, em que havia penitências prescritas para pecados específicos em vista da satisfação para a reparação dos pecados. A satisfação oferecida pelo ofensor à autoridade e pelo pecador a Deus passou a ser uma analogia natural para explicar o sacrifício de Cristo em favor da redenção da humanidade.

Anselmo pressupõe a crença cristã de que Deus criou a humanidade para a felicidade eterna, o que requer a submissão completa da vontade humana aos planos divinos. Ao pecar, todos recusaram essa submissão, desonrando Deus e, em consequência, perturbando a ordem do universo. A superação do pecado envolve, portanto, a restauração da honra divina e o restabelecimento da harmonia do universo. Para isso há dois caminhos, o castigo divino ou a prestação de satisfação a Deus. O castigo é uma ideia inconcebível, pois contraria o desejo divino de que todos alcancem a bem-aventurança eterna. A prestação de satisfação por parte do ser humano é impossível, pois sendo infinita a dignidade de Deus é também infinita a ofensa contra ele e, portanto, a humanidade é incapaz de cobrir a distância entre o pecado cometido e a honra ofendida.

Por questão de justiça e por respeito à liberdade e à responsabilidade humanas, Deus não pode desconsiderar a ofensa e, portanto, a exigência de satisfação. Por misericórdia, Deus quer levar adiante o seu plano de ter todos consigo na felicidade eterna. A saída do impasse encontra-se na encarnação de Deus. A prestação da satisfação será feita por alguém que é ao mesmo tempo Deus perfeito e homem perfeito. A dívida é paga por alguém da raça humana, que sendo Deus apresenta-se como oferenda correspondente ao status divino daquele cuja honra foi ofendida. Como a morte é efeito do pecado, o Filho eterno de Deus não precisava morrer, mas livremente quis entregar-se à morte para satisfazer a honra divina; por este ato extremo de liberdade pessoal e de obediência ao Pai, sua auto-oferenda tem valor infinito, maior do que todo o pecado da humanidade. Sua morte presta satisfação apropriada para Deus e produz a redenção de toda a raça humana.

Com leves nuances de diferença, Tomás de Aquino acolhe a teoria de satisfação, enquanto considera que

sofrendo por amor e por obediência, Cristo ofereceu a Deus mais do que exigia a compensação de todas as ofensas do gênero humano. (…) Portanto, a paixão de Cristo foi uma satisfação pelos pecados humanos não só suficiente, mas superabundante. (TOMÁS DE AQUINO, 2002, p. 693)

Essas explicações da salvação pela morte – sacrifício, expiação, resgate, satisfação – sempre se correlacionam com a ressurreição. Se Cristo não tivesse ressuscitado, sua morte não teria poder salvífico. O primeiro efeito salvífico da morte e ressurreição do Senhor manifestou-se nos discípulos. A experiência pascal do encontro com o Cristo ressuscitado fez os discípulos vivenciarem, também eles, sua Páscoa particular: de medrosos e trancados em casa tornaram-se corajosos e ousados no anúncio da ressurreição do Senhor. Passaram a professar a inauguração, ainda que provisória, do Reino de Deus pregado por Jesus. A morte do mestre foi aceita pelo Pai, que se vingou dos mandantes e assassinos libertando a vítima do poder da morte e dando-lhe um novo modo de viver. Assim, a ressurreição de Jesus revela o significado universal da pessoa, da mensagem e da obra salvadora de Jesus.

Como não é possível entender o ministério público do anúncio do Reino sem o destino de morte, também não dá para separar a morte e a ressurreição. Surgiu muito cedo na comunidade uma interpretação soteriológica da morte e da ressurreição de Jesus, como dois eventos que se explicam mutuamente: em Jesus não há morte sem ressurreição, não há ressurreição sem morte. Sua morte não é vista apenas como acontecimento histórico, mas como evento salvífico: ele morreu por nossos pecados, como parte integrante da vontade salvadora de Deus. Sua ressureição, em conexão com a morte, é vista como intrínseca à revelação do desígnio salvador de Deus.

6 Salvação pela recapitulação do Cristo Cabeça

A renovação da humanidade e do mundo é um dos conceitos soteriológicos centrais do Novo Testamento. Os primeiros cristãos estavam convencidos de que em Cristo a humanidade e a história ganharam um novo começo. No hino cristológico da Carta aos Efésios (3,1-10), Paulo bendiz a Deus porque em Cristo todas as coisas são recapituladas. Essa doutrina está biblicamente fundamentada no ensinamento paulino do novo Adão (Rm 5,12-21; 1Cor 15,20-28.45-49), o qual supera em graça e salvação os efeitos nocivos do pecado do primeiro Adão.

A doutrina da recapitulação é especialmente desenvolvida por Irineu de Lião. (RYAN, 2020, p. 90-92). Contra o pensamento gnóstico, a recapitulação carrega a intenção de unir criação e redenção: a ação salvadora de Deus em Cristo inicia-se com a criação, continua com a redenção e realiza-se plenamente na recapitulação. Segundo Irineu, ao fazer-se carne o Verbo divino uniu-se a toda a humanidade, santificou todos os estágios da vida humana e inaugurou, assim, uma raça redimida. Como cabeça da Igreja e da humanidade, por sua obediência ele desfez os laços que nos prendiam à desobediência e reorientou todas as coisas a si. Agora, todos os seres humanos e, mesmo, todas as coisas, estão orientados para Cristo, encontram em Cristo seu sentido, foram recapitulados, reencabeçados em Cristo (IRINEU, 1995, p 349-351). Por sua obediência, Cristo restaura na humanidade a semelhança divina que havia sido perdida pela desobediência, incorporando a si toda a história humana. Se a desobediência do primeiro Adão teve abrangência universal, a obediência do novo Adão tem alcance ainda maior e abraça todos, tornando-se o ponto máximo da história humana. Ele perfez todo o caminho da história, assumindo a condição humana em todas as suas dimensões, mas não as contaminando com o pecado (Hb 4,15). Mesmo que nele não houvesse pecado (1Jo 3,5; 1Pd 2,22), ele fez-se pecado por nós para que fôssemos justificados (2Cor 5,21). Assim, Jesus Cristo imprime na humanidade sua vitória sobre o mal, o pecado e a morte.

Essa perspectiva da salvação pela recapitulação, que, tendo sua origem no Oriente cristão, percorreu o subterrâneo da teologia e da espiritualidade do Ocidente, é reassumida nos tempos modernos por grande número de teólogos. Foi adotada em suas grandes linhas pela Gaudium et Spes, onde ganhou foros de oficialidade em documento conciliar. Ela se reflete, por exemplo, nos quatro capítulos da parte doutrinal do documento. Com efeito, quase que como luz no fim do túnel, que esclarece todo o caminho anteriormente percorrido, Cristo, homem novo (GS 22), ilumina a doutrina sobre a dignidade da pessoa humana (GS 12-21); o Verbo encarnado (GS 32) elucida a doutrina sobre a comunidade humana (GS 23-31); o Cristo recapitulador do novo céu e da nova terra (GS 39) explica o sentido da atividade humana no mundo (GS 33-38); o Cristo, alfa e ômega (GS 45), interpreta a função da Igreja no mundo (GS 40-44). A perspectiva da recapitulação vê o sentido da encarnação de Cristo não apenas na libertação do mal, mas sobretudo no aperfeiçoamento do bem que está presente em toda a criação. Incluindo evidentemente a redenção como libertação do mal, a perspectiva da recapitulação de tudo em Cristo tem maior abrangência, é mais otimista, oferece maior respiro místico para uma teologia que dialoga com as demais igrejas, com as religiões e culturas, e está atenta aos grandes desafios da história.

7 O anúncio da salvação em Cristo no contexto atual

No anúncio da salvação em Cristo no atual contexto de pobreza crescente, de desmonte da democracia e das políticas públicas, de pluralismo religioso e de uso abusivo da religião para a manipulação das consciências para justificar a violência, a corrupção, a matança de inocentes, é preciso ter em conta o pressuposto básico da singularidade de Jesus no contexto de suas relações (TAVARES, 2004, p. 515-147), isto é, o retorno ao humano de Jesus de Nazaré (TORRES QUEIRUGA, 1999, p. 305-310), à humanidade de Jesus como caminho para nossa realização pessoal e para a construção de um novo mundo. Essa concretude histórica é, na verdade, alguém situado no tempo e no espaço, um homem de conflitos, com causas e opções bem definidas, com relações diferenciadas diante dos pobres e dos poderosos, com crises, renúncias e enigmas[1], com práticas provocadoras que o levaram a ser condenado à morte. Somente a partir da humanidade de Jesus haverá sentido afirmar o “mistério da graça” do cristianismo, “o ponto essencial onde o cristianismo se diferencia das outras religiões”, porque é no homem de Nazaré que se revela a vinda de Deus, que se cumpre “o anélito presente em todas as religiões da humanidade”; nele “o homem (vivens homo) é epifania da glória de Deus, chamado a viver da plenitude da vida em Deus” (JOÃO PAULO II, 1994, p. 11-12).

A partir do retorno à humanidade histórica de Jesus, pode-se captar melhor a relação entre a salvação cristã e a opção pelos pobres (FELLER, 2005, p. 56-78). É preciso colher a humanidade de Jesus naquilo em que ela se revelou mais dramática, a ponto de se poder afirmar que esse homem seja Deus e, portanto, o salvador da humanidade. O Deus do judeu-cristianismo é um Deus que busca o ser humano, que vem ao encontro de cada ser humano e da humanidade em geral. Até o ponto de tornar-se um de nós. A fé cristã confessa que, para conhecê-lo, o ser humano precisa do auxílio especial de uma revelação. Não foi com a sabedoria do mundo, com o poder do dinheiro e a força do mando que o cristianismo conseguiu chegar a todos os povos. Também hoje, não será com o poder da razão, da lei, do triunfo, que sempre aninham pretensões de exclusividade, que o cristianismo conseguirá propor a salvação de Cristo aos pobres, aos membros de outras religiões, à sociedade secular. Mas, sim, desde a pequenez, a pobreza e o martírio. Estas atitudes nos recordam que “o serviço da missão é o gozo de uma Igreja que anuncia ao ser humano de hoje, que é um filho de Deus em Cristo, que se compromete na libertação de todo homem e de todos os homens” (MARADIAGA, 2004, p. 57).

A teologia da libertação, inspirada na história multissecular da caridade cristã, nas ações pastorais das comunidades eclesiais de base e nos ensinamentos do episcopado latino-americano, enfocou sua reflexão na opção pelos pobres. Sistematizou, assim, a mensagem do cristianismo ao redor do lugar central que ocupam os pobres, como prediletos da mensagem e da prática de Jesus de Nazaré. Também a mensagem da salvação em Jesus Cristo se compreende a partir da opção pelos pobres. A centralidade dos pobres como destinatários e, a partir daí, também sujeitos do Reino de Deus, torna-se chave de leitura para compreender a amplitude desse mesmo Reino, em favor da inclusão, em seu interior, de gente de todos os povos, culturas e religiões (AQUINO JÚNIOR, 2004, p. 515-554). Para o entendimento desta centralidade vale a citação do exegeta alemão J. Jeremias:

Com a constatação de que Jesus proclamou a aurora da consumação do mundo não descrevemos ainda completamente sua pregação da basileia. Pelo contrário, não mencionamos ainda o traço essencial (…) a oferta de salvação que Jesus faz aos pobres (…). O Reino pertence unicamente aos pobres. (JEREMIAS apud SOBRINO, 1994, p. 124)

Os pobres são, com efeito, os primeiros e únicos destinatários da mensagem de Jesus, ungido pelo Espírito “para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18). Sinal de que Jesus é o Messias é: “aos pobres se anuncia a Boa-Nova” (Lc 7,22; Mt 11,5). A primeira bem-aventurança de Jesus é: “felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20).

A partir desta centralidade dos pobres para a compreensão e a prática do Reino de Deus, há de se compreender a parcialidade do próprio Reino de Deus (SOBRINO, 1994, p. 128-131). Como realidade escatológica, o projeto salvífico de Deus em favor da humanidade e de toda a criação, o Reino é universal, aberto a todas as pessoas e a todos os povos. Revelado ao povo judeu, o Reino abriu-se, depois, a todas as nações, a toda criatura (Mc 16,15). Essa abertura deu-se, no entanto, pela mediação dos pobres. Não foram os chefes religiosos e os líderes políticos que aceitaram e propagaram o movimento de Jesus. Ao contrário, se dependesse deles, o Reino de Deus teria sido sufocado como foi rejeitado e morto o seu pregador. Se o Reino de Deus teve continuidade na história, sua abertura aos povos, com a possibilidade de inserção em todas as culturas e de diálogo com todas as religiões, isso se deve, no que depende da ação humana, aos pobres de Israel. Da parcialidade em favor dos pobres, o Reino foi aberto à totalidade dos povos (AQUINO JÚNIOR, 2004, p. 518; FRAIJO, 2002).

Essa totalidade, portanto, não será devidamente entendida fora da parcialidade dos pobres, pois neles, como no servo sofredor Jesus de Nazaré, Deus continua a se revelar a nós.

Nesses pobres aparece o rosto de Deus, a divindade escarnecida. Que nós seres humanos possamos ver algo de Deus neles não é programável, mas acontece. Alguns só parecem exprimir o não ter figura humana, o não entesourar sua condição divina, que lhes vem com a criação. Esses pobres, como o Filho amado, fazem Deus presente, silencioso e escondido, mas enfim Deus. (SOBRINO, 2000, p. 290)

 Já no Antigo Testamento, Javé havia se revelado como Deus de um povo oprimido. Essa parcialidade não só não é negada como é corroborada no Novo Testamento. Encontramos nas Escrituras uma série de preferências de Deus, que revela sua parcialidade em favor de uns, precisamente ao revelar sua contrariedade diante de outros.

Essa parcialidade é mediação essencial de sua própria revelação. Deus não se revela, primeiro, como ele é e, depois, se mostra parcial para com os oprimidos. É antes em e através de sua parcialidade para com os oprimidos que Deus revela sua própria realidade. (SOBRINO, 1994, p. 129)

Deus revela seu ser – quem ele é e como ele é – através de seu agir. Se o seu agir se concentra na libertação dos pobres, há que se concluir, então, que o ser de Deus está marcado pela simplicidade e pela pobreza. Se “Deus é Amor” (1Jo 4,8.16), em sua comunhão de amor não há lugar para o orgulho e a prepotência.

Vivida em Deus, a história humana se torna uma só caminhada, um só devir humano, assumido irreversivelmente por Cristo, cuja obra salvadora passa a abranger todas as dimensões do existir humano, mas sempre a partir das situações em que a vida se encontra mais fragilizada. Por isso,

as mediações históricas e políticas atuais, valorizadas por si mesmas, mudam a vivência e a reflexão sobre o mistério escondido todo o tempo e agora revelado, sobre o amor do Pai e a fraternidade humana, sobre a salvação que opera no tempo e dá sua unidade profunda à história humana. (GUTIERREZ, 1981, p. 96)

O próprio Deus, que se revela na história do pobre de Nazaré em particular e dos pobres em geral, quer que os acontecimentos da história sejam sinais de sua presença salvadora e mediações para o encontro com ele.

Essa opção do próprio Deus nos faz ver que é embaixo que se situam não só as ânsias de liberdade, mas também as práticas de libertação, experimentadas na comunhão e no diálogo entre as pessoas e povos.

A comunhão com os outros, esta igualdade que Cristo quer que nós vivamos, se descobre por via da carne e não pela do espírito. É por meio da carne que Cristo é nosso irmão, nosso consanguíneo, igual a nós. E essa fraternidade, nós a podemos descobrir no nível mais baixo, no nível ínfimo. Enquanto existir alguém mais baixo do que nós, enquanto existir uma cota de “profundidade” que não tenhamos alcançado, isto significa que não realizamos toda a fraternidade. (PAOLI, 1983, p. 16)

No empenho pelo anúncio da salvação universal em Jesus Cristo, não se pode menosprezar a memória e a prática da fé do povo pobre, que, mesmo em sua pobreza e fraqueza, subverte a ordem do mundo para criar uma nova ordem cultural e religiosa (GUTIERREZ, 1981, p. 78-85; 133-139; 245-313; SCANNONE, 1976, p. 217-252), para sonhar com a globalização da solidariedade, para garantir no horizonte da história que um outro mundo é possível. No mesmo espírito do seguimento de Jesus e da opção pelos pobres, como critérios básicos para verificar a salvação universal e eterna, entende-se ainda o decálogo, também proposto pelo CELAM (2003, p. 213-229), para viver neste mundo globalizado a experiência da ação salvífica de Deus em nossa história: descobrir um ethos comum, uma força que vincule moralmente pessoas e grupos, no meio do relativismo ético ou da ausência total de ética; apostar na caridade, expressa por uma real opção pelos pobres contra a exclusão; reconstruir o tecido social, a partir da importância da família e da comunidade política; promover uma cultura do acolhimento, da hospitalidade, da gratuidade; dialogar com as ciências, com as culturas e com as religiões, buscando e valorizando um horizonte de crescimento mútuo; democratizar a comunicação, sobretudo no referente ao intercâmbio de sentido; fortalecer a globalização a partir de baixo, destacando e oferecendo alternativas de promoção e defesa da vida para os excluídos; acompanhar iniciativas de integração entre os países pobres, em vista de um destino mundial comum; replanejar a educação, como compromisso com as novas gerações; promover um novo modelo de desenvolvimento social e ecologicamente sustentável. Em tudo isso são expressas salvações históricas que são, por sua vez, sinais da salvação escatológica.

Conclusão

O ser humano nunca está feliz com o que é nem com o que tem. Busca sempre algo mais. Quer livrar-se de situações insuportáveis, luta por uma vida mais confortável. Desde Medellín, a teologia latino-americana entende que a salvação cristã abrange todos esses sonhos humanos e aponta para sua realização plena na eternidade. Deus está presente ativamente na história e faz com que as lutas humanas de libertação social, política e econômica tenham significado teológico. A salvação eterna passa pelas libertações históricas, embora não se fixe nelas.

Desde o início do cristianismo, como se pode perceber nos escritos do Novo Testamento, Jesus é apontado como o salvador da humanidade. A salvação em Jesus Cristo constitui-se ponto nuclear da fé cristã. Já no Novo Testamento e, a partir daí, nas teologias desses vinte séculos, surgiram diversas imagens soteriológicas que tentaram explicar como se dá a salvação da humanidade em Cristo. Com enfoque na encarnação do Verbo eterno, aponta-se para a educação ou iluminação dos fiéis e para sua divinização. O ministério público de Jesus e seu anúncio do Reino, embora pouco refletido nesses dois milênios, vem sendo retomado nos últimos tempos como lugar explícito da obra salvífica de Jesus. A morte redentora, vista como sacrifício, resgate, satisfação, ganhou tanto realce na explicação da ação salvífica de Cristo que, embora sempre fosse lembrada, na realidade ficou na sombra, como que atrelada à morte servindo-lhe de significado último. A recapitulação, que teve bastante impacto nos dois primeiros milênios, volta a fazer-se presente na teologia atual, ganhando espaço na teologia do Concílio Vaticano II.

A teologia latino-americana, com sua centralidade na opção pelos pobres, anuncia que a salvação universal e eterna tem como ponto de partida a concretude histórica de Jesus de Nazaré, em suas palavras e ações libertadoras em favor das multidões marginalizadas. É a partir da parcialidade dos pobres que a salvação alcança a totalidade dos povos. É a partir da historicidade dos gestos libertadores de Jesus, da Igreja e dos pobres que se aponta para a salvação eterna.

Vitor Galdino Feller. ITESC/FACASC. Texto original em português. Submissão: 22/05/2021. Aprovação: 22/10/2021; Publicação: 24/10/2021.

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[1] Ao perguntar-se sobre “o que é um falso deus, senão aquele que nos remete a nossas ideias míticas todo-poderosas e portentosas, totalmente transparentes?”, A. Gesché refere-se a Cristo como aquele que “não quis esvaziar seus próprios enigmas”. “Ele gritou numa cruz […] o enigma de um abandono; ele desceu a um inferno, ao seu inferno de morte, e é somente porque aí entrou, porque não recusou o enigma, que ele ressuscitou e recebeu resposta […]; ele renunciou à magia da onipotência […] e do milagre […] Foi porque ele viveu até o fim certa agonia do sentido e da evidência […] que ele ganhou. Ele nos ensina que o enigma salva, constrói, pode ser salutar […] Todos nós temos lutos a trabalhar e que não podemos evitar”. (GESCHÉ, A. Deus para pensar 2 – O ser humano, p. 20-21)