Bíblia e Liturgia, uma simbiose

Sumário

Introdução

1 A simbiose esquecida

2 A liturgia na Bíblia

2.1 A liturgia de Israel

2.1.1 Lugares

2.1.2 Atividades cultuais

2.1.3 Festas e celebrações

2.1.4 O calendário religioso

2.1.5 O sábado

2.2 A liturgia no NT

2.2.1 Continuidade e ruptura em relação à liturgia de Israel

2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do Senhor

2.2.3 Orações e hinos

3 A Bíblia na Liturgia

3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica

3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)

4 A formação bíblico-litúrgica

Referências

Introdução

Releva-se aqui a intrínseca ligação entre Liturgia e Bíblia, numa abordagem principalmente histórica. A reflexão teológica, sobretudo da parte da Igreja Católica, pode ser encontrada nas constituições Sacrosanctum Concilium (SC) e Dei Verbum (DV) do Concílio Vaticano II, nas exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi (EN) de Paulo VI e Verbum Domini (VD) de Bento XVI e na encíclica Evangelii Gaudium (EG) do papa Francisco.

Desde suas origens, a Bíblia e a tradição litúrgica judaica e cristã estão intimamente interligadas, e o reconhecimento dessa “simbiose” fornece a chave de interpretação tanto de alguns episódios bíblicos como dos grandes atos litúrgicos. Não só no Novo Testamento (NT), mas também no Antigo (AT) a liturgia é “lugar de cristalização” das tradições bíblicas (no NT, cf. BASURKA; GOENAGA, 1990, p.41). Isso tem consequências para a leitura e o estudo da Bíblia e para a formação dos fiéis e dos agentes de pastoral.

Salvo exceções, usamos o termo “Bíblia” para significar os escritos registrados no cânon católico do AT e do NT, assinalando, quando necessário, o uso de outras igrejas cristãs e do judaísmo. Quanto ao AT, lembramos a distinção entre a Bíblia hebraica (BH) ou Tanakh, normativa para o judaísmo, e a tradução grega, a Septuaginta (LXX), que é mais extensa que a BH e às vezes considerada como “cristã” por causa de seu uso nas Igrejas Orientais.

Ao falar de “liturgia”, olhamos em direção à liturgia católica renovada depois do Concílio Vaticano II, mas, no decorrer do estudo, recorreremos com frequência a conceitos ou figuras do culto religioso em geral, particularmente no mundo bíblico. No contexto bíblico, antes que “culto” preferimos o termo “liturgia”, no sentido de ação (érgon) do “povo” (laós)[1], no caso, o povo de Deus reunido na Aliança, da qual o evento do Sinai (Ex 19,1–24,11) é a “referência memorável” e que encontra sua plenitude na Nova Aliança do “evento Jesus Cristo”.

1 A simbiose esquecida

Apesar da origem profana de alguns de seus componentes, a Bíblia como tal pertence ao espaço-tempo sagrado. A coleção e organização dos livros bíblicos no judaísmo começou a partir do século V aC, nos círculos sacerdotais, em função das celebrações no “Segundo Templo” e nas sinagogas, as quais fizeram da prática da leitura o centro do culto. Durante a Antiguidade e a Idade Média, era evidente a simbiose de liturgia e Bíblia, tanto nos ambientes judaicos como cristãos. A Modernidade, porém, “autonomizou” a Bíblia. Fez dela uma autoridade religiosa autônoma e um objeto de investigação histórica, literária etc. Segundo sua constituição íntima, porém, a Bíblia não é uma instituição autônoma, nem um fim em si, mas um testemunho da comunidade que celebra sua vida diante da face de Deus, Senhor da vida e da história. Livro da vida aberto na presença de Deus, a Bíblia tem seu Sitz im Leben na liturgia. Arrancando a Bíblia da celebração da vida na comunidade dos fiéis condenamo-la à esterilidade.

2 A liturgia na Bíblia

2.1 A liturgia de Israel[2]

2.1.1 Lugares

Podemos iniciar a descoberta do culto do antigo Israel a partir dos territórios/lugares sagrados, dedicados à divindade protetora da coletividade, a casa patriarcal ou tribo.[3] No tempo dos patriarcas, são mencionados sobretudo: Siquém (Gn 12,6-7), Betel (Gn 12,8), Mambré (Gn 13,18), Beersheba (Gn 21,22-31; 26,33).

No tempo do Êxodo, o lugar santo por excelência será a Tenda, o santuário do deserto, chamado Tenda do Encontro ou da Reunião (’ohel mo‘ed), lugar do encontro do povo, mas logo visto como lugar de encontro com Deus, onde, inclusive, Deus fala com Moisés face a face (Ex 33,11) (DE VAUX, 1973, p. 294-295). Ali, Moisés funciona como intermediário entre Deus e povo. É o lugar dos oráculos. Outro nome é mishkan, morada (como as tendas dos hebreus nômades), sugerindo a presença de Deus no meio das tendas de seu povo, acompanhando-o pelo deserto. A presença de Deus é reconhecida pela nuvem escura que desce sobre a Tenda.[4]

Conflui com a tradição da Tenda a veneração da Arca, baú no qual Moisés guardou as tábuas da Lei (Ex 31,18; 25,16; 40,20). A tradição deuteronomista (Dt 10,1-5) guarda ainda a memória da pequena arca original, contendo somente as tábuas da Lei e chamada Arca da Aliança, berît (na tradição sacerdotal: Arca do Documento, edut) (DE VAUX, 1973, p. 301). Mais tarde ela é associada à Tenda, pela tradição sacerdotal que tem diante dos olhos o templo de Salomão e o Segundo Templo depois do exílio. Por causa da associação à Arca, a Tenda é também chamada Tenda do Testemunho (Nm 9,15; 17,22; 18,2). Conforme a historiografia deuteronomista, a Arca foi posta no Debir, a “capela” ou cella do Templo (o “Santo dos Santos” da tradição sacerdotal), onde ela se encontrava coberta com uma bandeja para o sangue sacrifical, ladeada de dois querubins.[5]

Entretanto, devemos lembrar que havia santuários em todo o território das tribos: Guilgal (Js 4,19 etc.), Silo (onde Deus é chamado YHWH Sabaot; segundo Js 18, o lugar de encontro das tribos), Mispa (Masfa) em Benjamim (Jz 20–21), Guibeon (Gabaon), que será o lugar de oração de Salomão (1Rs 1,4-15), Ofra, Dã; e Jebus-Jerusalém, conquistado por Davi (2Sm 6) e lugar do futuro templo construído por seu filho Salomão (1Rs 6,37-38; cf. 6,1). Desde o tempo de Salomão, o Templo comportava três espaços principais: o átrio/pátio (’ulâm), o Santo (hekal) e o Santo dos Santos (debir).

O templo de Salomão tornou-se o centro religioso de Israel apesar do prestígio dos antigos santuários e apesar do templo rival construído por Jeroboão (Ierobeam) em Betel (1Rs 12,29). O Templo era a sede da presença divina, e também o sinal de eleição, o lugar escolhido por Deus (já antes de sua construção, cf. 2Sm 24,16). Tornou-se até um símbolo cósmico em Ezequiel e na literatura apocalíptica. Existiu, porém, sempre certa relativização do Templo, como na profecia de Natã (2Sm 7,5-7), nos recabitas (Jr 35), e mesmo na visão pós-exílica de Is 66,1: “O céu é meu trono e a terra o estrado dos meus pés; que casa construireis para mim?” – que chega ao cúmulo na visão da nova Jerusalém que dispensa o Templo (Ap 21,22). Essa relatividade do Templo foi certamente decisiva para que o judaísmo sobrevivesse sem o Templo, tanto na sinagoga rabínica como no cristianismo (cf. Jo 2,21).

2.1.2 Atividades cultuais

Lembramos per transennam os ministros do culto – sacerdotes e levitas – em vista da ressignificação do sacerdócio no NT (DE VAUX, 1973, p. 345-414). Eles estão em função das ações cultuais, sacrifícios e preces, que deixaram profunda marca na liturgia cristã.

A. Sacrifícios

“O sacrifício era o ato principal do culto de Israel” (DE VAUX, 1973, p. 414). Realizava-se no altar (mizbêaḥ, derivado de zabaḥ, imolar/oferecer sacrifício), que era uma plataforma, de pedra natural ou construída, inclusive com uma grelha para os sacrifícios queimados e um rego por onde escorria o sangue. O nome mais comum para os sacrifícios é ‘olah, “aquilo que sobe” – a vítima que sobe ao altar ou o “presente” (minḥah) que sobe até Deus. A tradução grega holokauston visa principalmente os sacrifícios consumidos pelo fogo do altar. O caráter de doação livre a Deus, portanto não mágica, é bem acentuado no rito levítico. Muitas vezes é entendido como uma retribuição a Deus por seus dons. Isto se mostra especialmente na efusão do sangue sobre o altar, porque o sangue é vida e a vida pertence a Deus (DE VAUX, 1973, p. 417). Nos rituais mais tardios é muito acentuada a minḥah, o “presente”, um alimento ou libação acompanhando a ‘olah (DE VAUX, 1973, p. 417). Outro termo para diversos tipos de sacrifícios é qorban, que significa “aproximação”, oferta.[6]

Outro tipo, importante para a ulterior liturgia cristã, é o sacrifício de paz, zebaḥ shelamim, no qual o acento está na comunhão entre o(s) oferente(s), o sacerdote e Deus, e que, por isso, é chamado sacrifício de comunhão (DE VAUX, 1973, p. 417). Há três tipos: o sacrifício de louvor, o sacrifício voluntário e o sacrifício votivo (obrigado por um voto).

Além disso, temos o sacrifício expiatório, chamado sacrifício pelo pecado (ḥaṭṭat) ou de reparação da culpa (’asham). Este tipo ocupa quase a metade do código sacrifical do Segundo Templo (no Lv) e é importantíssimo para a teologia do NT, que fica incompreensível quando se cede a certa tendência a depreciar o sacrifício de expiação.

Da oferta vegetal (minḥah, traduzido por “presente” ou “manjar”), é queimada sobre o altar uma parte chamada ’azkarah (em grego zikkaron), que significa “memorial” e é vista como um meio para que Deus se lembre do oferente. Uma variante desse simbolismo consiste nos “pães da proposição”, oferta exposta na mesa juntamente com incenso, que (pela fumaça e pelo “suave odor”) cumpre a função de ’azkarah, memorial. Os pães de proposição eram reservados aos sacerdotes (cf. Mc 2,26), que os consumiam ao final da semana.

B. Atividades secundárias

a. Culto, oração e canto

Celebrações que consistiam exclusivamente de oração e canto são mencionadas apenas em Ne 9 e Jl 1-2, ambos ritos penitenciais, mas a literatura sapiencial, sobretudo Sirácida, insistem no sacrifício de louvor ou “dos lábios”.

No contexto dos sacrifícios, são mencionadas fórmulas de bênção (Nm 6,22-27) e de maldição (Nm 5,21-22; Dt 27,14-26). O Deuteronômio formula orações para a oferta das primícias (26,1-10) e do dízimo trienal (26,13-15) e para a Páscoa (6,20-25; cf. Ex 12,26-27), bem como para o caso de não localização do homicida (Dt 27,1-8). Am 5,23 menciona os hinos acompanhando os sacrifícios. No livro das Crônicas, encontramos toda a organização dos cantores que acompanhavam os sacrifícios e procissões.

O lugar de maior consideração para a oração era o Templo (cf. a parábola de Jesus em Lc 18,10), mas é evidente que não era exclusivo. Inspirou o costume de orar em direção do Templo (Sl 5,8; 28,2; 138,2) ou de Jerusalém (1Rs 8,44.48; Dn 6,11). Podia-se orar em qualquer lugar e tempo, mas alguns momentos eram especiais, como a oração à noite (Sl 4) e pela manhã (Sl 5), em horas e dias fixos (Jt 9,1; Dn 6,11). Orava-se em pé, inclinado ou ajoelhado.

Importante é que a oração no AT é dirigida diretamente a Deus, sem divindades intercessoras (monoteísmo!), embora depois do exílio, aos poucos, apareçam os anjos mediadores (p.ex. Tb 12,12). Em 2Mc 15,14 é dito que Jeremias ora pelo povo e a Cidade Santa.

b. Os salmos

Merecem consideração especial os Salmos, que constituem praticamente 1/10 do volume do Tanakh. O saltério, cujos trechos mais antigos remontam até o tempo do nomadismo, é concebido em função do culto. Especialmente os salmos “graduais” ou “de subida” acompanhavam as peregrinações ao Templo (Sl 120–134). Mesmo os salmos individuais são muitas vezes individuais apenas na sua formulação, mas com índole coletiva e litúrgica. Os cabeçalhos dos Salmos nos informam sobre o uso litúrgico. Reunindo diversos gêneros literários, foram subdivididos em cinco livros (como os cinco livros de Moisés). Os salmos, como diz Tomás de Aquino, contêm a Bíblia toda: eles lembram orando o que os outros textos bíblicos expõem narrando ou exortando.

c. Ritos de purificação e de dessacralização

Um senso primordial que vem à tona no culto de Israel é o horror ao que é intocável, seja pelo “excesso” de santidade (o santo), seja pelo caráter de mistura perturbadora (o impuro): a Arca da Aliança, as vestes do sacerdote, os fluidos do corpo, o sangue do parto… Tratava-se de impureza cultual, não moral. Depois de um contato assim era preciso uma purificação para voltar ao estado normal. De modo que o rito de purificação podia também significar a neutralização do contato com o santo, portanto, dessacralização.

Para essa finalidade existiam sacrifícios e abluções, e é preciso perceber a hermenêutica da pureza nesta matéria. A purificação depois do parto era “tabelada” como holocausto e sacrifício ḥaṭṭat (= pelo pecado) (Lv 14,10-32), embora não houvesse falta moral alguma, pois um parto era coisa abençoada por Deus! Para um nazireu, no término de sua consagração, a tarifa pela “dessacralização” consistia num sacrifício pelo pecado e outro, de reparação (Nm 6,13-20; cf. At 21,23-24). Na mesma linha, temos os múltiplos ritos de purificação de objetos, vasilhas, roupas etc. (cf. DE VAUX, 1973, p. 460-461). Havia até um rito especial para preparar água purificadora, a água lustral, com as cinzas de uma novilha vermelha (Nm 19,1-10).

Um tabu forte era a lepra. Lv 13–14 se esgota em descrever o diagnóstico e os ritos purificatórios para os “intocáveis” que eram os leprosos. A constatação era feita pelo sacerdote (Lv 14,3; cf. Mt 8,4 par.; Lc 17,14).[7]

Observa De Vaux que, depois do exílio,

os judeus se tornaram sempre mais conscientes da necessidade de pureza, e o medo da impureza podia se tornar uma obsessão. Daí, os autores do Código Sacerdotal multiplicaram os casos de impureza e prescreveram todos os remédios necessários […]. O judaísmo pós-bíblico enveredou ainda mais longe na mesma direção. (1973, p. 464)

E apesar da crítica de Jesus e de Paulo, não poucos cristãos continuaram na mesma linha…

d. Ritos de consagração

Purificação tinha a ver com a santidade, que se procurava seja neutralizando o contato com o santo ou numinoso (cf. supra), seja dispondo-se para receber a santidade (cf. a seguir), de modo que os termos purificar e santificar/consagrar às vezes se tornam sinônimos (cf. Jo 11,55).

Santificação ou consagração é a separação de algo ou alguém para o santo ou sagrado. Nem sempre se precisava de um rito para isso; um contato ou situação podia ser o suficiente. Os soldados para a guerra santa eram santificados e os despojos conquistados também. Mas ritos de consagração havia, e muitos. Embora os sacerdotes fossem consagrados pela própria ação do sacrifício, havia também a consagração dos sacerdotes amplamente descrita em Lv 8–10. Aqui entra a unção com óleo especial (crisma), aplicada ao sumo sacerdote, ao santuário, ao altar, aos utensílios (Ex 30,26-29; 40,9-11; Lv 8,10). A unção era essencial para o rito de entronização do rei, o “ungido” por excelência, caracterizado pelo nezer, a parte não raspada do cabelo (Sl 89,39).[8]

Uma forma muito explícita de consagração é o voto, pelo qual se “devota” algo a Deus: um dízimo (Gn 28,22); uma pessoa (Jz 11,30-31; 1Sm 1,11) etc. A intenção do voto é estreitar o laço com Deus. Como os votos eram constringentes (Dt 22,22-24), melhor era não fazer quando não se tinha certeza (Ecl 5,3-5). Certas circunstâncias tornavam o voto automaticamente inválido (Dt 23,19; Nm 30,4-17), e sempre podia ser comutado por uma doação em dinheiro (Lv 27,1-25). O rito do voto de nazireato é descrito explicitamente, no AT, só para Sansão (Jz 13,4-5.7.13-14), mas mencionado no NT (At 18,18).

2.1.3 Festas e celebrações

Israel gostava de festas e a vida da natureza as provocava: desmame de uma criança (Gn 21,8), casamento (Gn 29,22-23), enterro (Gn 23,2), tosa do rebanho (1Sm 25,2-38) etc. Ocasiões públicas: coroação do rei, vitória na guerra (com canto e dança: Ex 15!). Até o jejum tinha caráter festivo (Zc 7,1-3; Jl 1–2; Lm). Havia as peregrinações a Betel (Gn 35,1-4), a Silo (Jz 21,19-21; 1Sm 1,3-4), mais tarde incorporadas no culto único no templo de Jerusalém.

Os serviços ordinários no Templo:

 – o holocausto diário de dois cordeiros, um pela manhã e outro ao entardecer (Ex 29,38-42; Nm 28,2-8), chamado de ”sacrifício perpétuo” (Ex 19,42; Nm 28 etc.), interrompido durante a perseguição de Antíoco (Dan 11,13 etc.) e restabelecido por Judas Macabeu (1Mc 4,36-58). No tempo do NT, o sacrifício é celebrado em plena tarde (Mt 27,46-30 par.).

– no sábado, havia uma oferenda suplementar de mais dois cordeiros, um manjar e uma libação (Nm 28,9-10), mas Ezequiel prevê isso muito maior (Ez 46,1-5).

– o sacrifício da lua-nova (Nm 28,11-15), ou neomênia, iniciava cada novo mês do calendário lunar. Essa festa é muito arcaica, mencionada juntamente com o sábado em Os 2,13. Como o sábado, é dia de repouso (Am 8,5), dia de consultar o “homem de Deus” (2Rs 4,23), dia de festa para o rei Saul (1S, 20,5 etc.), mas objeto de indiferença para Paulo em Cl 2,16. Só o repouso da lua-nova do sétimo mês ganhou uma lei própria em Lv 23,24-24; Nm 29,1-6 (Dia da Aclamação, preparando o Yom Kippur).

2.1.4 O calendário religioso

Ao lado dos sábados e neomênias, Israel tem reuniões (mo‘ed) em diversas oportunidades, principalmente nas três grandes festas anuais de peregrinação, com procissão e danças (ḥag). São elas: 1) Ázimos (maṣṣot), em Dt combinado com Páscoa (pésaḥ), ambas lembrando a saída do Egito; 2) Sega/Ceifa (qaṣîr), no Javista e em Dt chamada Semanas (shabuot); 3) Colheita (’asiph), em Dt chamada Sukkot, Tendas. Em Dt o caráter agropastoril fica diluído e a celebração da Páscoa fixada num lugar único, Jerusalém (reforma de Josias, cf. 2Rs 23,21-23).

tradições:

Eloísta

Ex 23,14-17

Javista

Ex 34,18-23

Deuteron.

Dt 16,1-17

definições:
comparecer 3 vezes ao ano +
no mês de abib – memória da saída do Egito + + +
ázimos (maṣṣot ) no mês de abib, 7 dias + + +
páscoa (pésaḥ) de YHWH – memória da saída do Egito +
no lugar que Deus tiver escolhido (Jerusalém) +
oferta dos primogênitos +
sega/ceifa (qaṣîr) depois de 7 semanas + + (>shabuot, semanas) + (>sete semanas)
colheita (’asiph) na saída/ no fim do ano + + + (>sukkot, tendas)
presença de todos os masculinos + + +

Muito mais detalhado é o código sacerdotal, na Lei da Santidade, Lv 23, seguido pelo judaísmo até hoje.[9] Adota o ano babilônio, considerando abib o primeiro mês (primavera, março-abril) (23,5). A primeira festa é a Páscoa, combinada com Ázimos, no dia 15 de abib (iniciando 14 à noite; 23,5-6), com “santa convocação” no primeiro e no sétimo dias (23,7-8). A segunda, sem nome próprio, é no quinquagésimo dia (de onde, em grego, Pentecostes). A terceira, com o nome de Sukkot, Tendas, é no dia 15 do “sétimo mês”, mas o calendário inclui, antes disso, na lua-nova (primeiro dia) do mês de tishrî (set-out), a festa do chofar (dia da Aclamação, ou Ano Novo, Rosh Hashaná) e, no dia 10, o Yom Kippur (Expiação, descrito em Lv 16).

O calendário utópico de Ez 45,18-25 nem menciona a festa das Semanas e transforma a Páscoa e Tendas em celebrações penitenciais. A legislação abrangente de Nm 28–29, porém, desconsidera o projeto de Ezequiel e completa com outros ritos aqueles de Lv 23, apresentando a lista completa dos sacrifícios no tempo de Esdras.

Houve ainda outras festas, mas conservam-se somente Purim (Sortes, cf. Est 10,3k), 14 de adar (fev-mar), e Dedicação (do Templo por Judas Macabeu, cf. 1Mc 4,56), 25 de kisleu (nov-dez).

2.1.5 O sábado

Consideração especial merece o sábado.[10] O termo shabbat ou, mais enfático, shabbatôn é provavelmente derivado do verbo shabat, cessar (o trabalho, cf. Gn 2,3), de onde, repousar. Suas origens se perdem nos tempos arcaicos, e sua obrigação é mencionada nos códigos legais eloísta e javista (Ex 23,12; 34,21), no Decálogo (Dt 5,12-14‖Ex 20,8-10) e no Código Sacerdotal (Ex 31,12-17). Era praticado desde a ocupação de Canaã (por volta de 1100 aC). Matematicamente, não cabia na divisão quádrupla do mês lunar de 29 1/2 dias; simplesmente se descansava a cada sete dias, pois sete é o número da completude… Desconsiderando os poucos casos em que outros dias eram designados para descanso festivo, o sétimo dia sustenta como um basso continuo de santidade todo o ritmo da comunidade. Por isso aparece nos textos que se referem à Aliança, e a teologia sacerdotal o associou à própria obra da criação (Gn 1,1–2,3). É o dia dedicado/consagrado a YHWH (Lv 23,3.38; Ex 31,15), consagrado por YHWH mesmo (Ex 20,11). Associado à Aliança, sua observância é vista como garantia de Salvação (Is 58, 13-14; cf. 56,2; Jr 17,19-27), e a não observância causava exclusão da comunidade (Ex 31,14; 35,2; Nm 15,32-26) e castigo de Deus (Ex 20,13; Ne 13,17-18). Depois do exílio, quando era impossível observar as outras festas, o sábado tornou-se a marca do judeu fiel. Entretanto, as regras se tornaram sempre mais estritas. No tempo dos Macabeus, os soldados preferiam morrer a combater no sábado (1Mc 2,39-41; 9,43-39). Mais severos ainda são o livro dos Jubileus e os monges de Qumran. Estava na hora de aparecer Jesus…

2.2 A liturgia no NT

Cabe mostrar aqui a continuidade e a descontinuidade da liturgia do NT com a do AT, bem como a novidade decisiva da fração do pão e do memorial da morte e ressurreição de Cristo.

O ponto de ruptura entre o AT e o NT se chama Jesus.

Na sua visão profético-apocalíptica, como porta-voz/revelador[11] de que o reino de Deus chegou, Jesus não procurava continuar, muito menos restaurar as instituições religiosas do judaísmo, e sim derramar sobre o povo o espírito da purificação e do reavivamento anunciado por Jeremias e Ezequiel, repetindo as censuras contra o culto pronunciadas por Amós, Oseias e Isaías. Isso, acompanhando suas palavras com sinais de sua autoridade (exousia), no estilo de Elias e Eliseu. Não estava preocupado em restaurar o Templo e sim a “tenda arruinada de Davi”, o reinado instaurado por Deus mesmo mediante seu servo Davi (Am 9,11-12, cf. At 15,16), em outras palavras: o povo de Deus.

Temos duas orientações para compreender a atitude de Jesus em relação ao culto e à Lei em geral (que no entendimento dos fariseus e escribas se tinha tornado uma espécie de culto):

1) a exigência profética do coração puro na observância da Lei e do culto, priorizando o amor a Deus e, portanto, ao próximo[12], realizando a justiça (ṣedeq), a fidelidade (’emet) e a misericórdia (ḥesed);

2) a crítica à falsidade em geral (hipocrisia) e, de modo especial, no culto (Mc 7, Mt 23), culminando no gesto e nas palavras proféticos (reveladores do kairós de Deus) em relação ao Templo (Mc 11,15-18; 13,1-37 e par.)  – o estopim de sua condenação por parte dos chefes religiosos.

2.2.1 Continuidade e ruptura em relação à liturgia de Israel

A principal continuidade entre a religião de Israel e a cristã consiste no caráter memorial, à diferença do caráter naturista ou cosmológico das religiões circundantes: “A religião judeu-cristã refere-se fundamentalmente a acontecimentos históricos, sendo a coluna vertebral do seu culto o conceito de memória (zikkaron)” (BAZURKO, 1990, p. 42). Porém, é uma continuidade “interpretada”: os momentos e atos do culto de Israel recebem sentido novo nas comunidades cristãs. Aliás, já em Israel os profetas e os sábios insistiram em criticar o formalismo que consistia em realizar o culto por realizá-lo, sem compromisso com o projeto de Deus: “Este povo se aproxima de mim só com a boca e me honra só com os lábios, mas o seu coração está longe de mim, e seu temor para comigo é como preceito humano, aprendido de rotina” (Is 29,13) – crítica retomada por Jesus mesmo (Mc 7,6-7 par.).

Jesus e os seus discípulos/seguidores não criaram um novo culto. Viveram os costumes de Israel, porém, seletiva e criticamente, abandonando alguns, ressignificando outros. Jesus frequenta a sinagoga aos sábados, participa do culto do Templo e das peregrinações, mas também transgride a ordem cultual, manifestando sua soberania sobre o sábado (Mc 2,23-28 par.) e sobre as leis da pureza alimentar (Mc 7,1-23 par.). Assim como reinterpreta a Lei em função da justiça e da misericórdia de Deus (Sermão da Montanha), o culto é para ele uma ocasião para revelar a misericórdia de Deus (Mc 3,1-6 par.), do mesmo modo como a revela fora do culto, nas refeições, nos encontros. Jesus prolonga a tradição crítica dos profetas (Mc 11,15-17 cf. Is 56,7 e Jr 7,3-11; Mt 9,13 cf. Os 6,6). Subordina o sacrifício ao perdão fraterno (Mt 5,23-24). Ensina a simplicidade na oração (Mt 6,7-13‖ Lc 11,1-4). Tudo isso está condensado em Jo 4,21-23: “Vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade”. O lugar do culto não tem importância. Por isso, a pregação profético-apocalíptica (= reveladora) de Jesus pode anunciar a destruição do Templo (Mc 13 par.), e o “apocalíptico de Patmos” mostra a visão da Jerusalém Celeste sem templo, pois a presença de Deus e do Cordeiro é imediata (Ap 21,22).

2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do Senhor

A grande novidade na liturgia cristã é a fração do pão e a Ceia do Senhor. A fração do pão tem um sinal precursor num gesto profético de Jesus, a multiplicação dos pães. Gesto profético, porque também Elias (1Rs 17,8-16) e sobretudo Eliseu (2Rs 4,42-44) realizaram sinais de sua missão da parte de Deus por gestos semelhantes. Neste tópico, convém valorizar alguns traços do relato joanino, que, embora baseado na forma marcana, talvez represente melhor a importância desta tradição no conjunto da memória cristã. Em todas as cinco versões sinópticas[13], aparecem dois detalhes que sugerem o caráter ritual da “fração do pão”, que é uma das características da primeira comunidade cristã segundo At 2,42-42: a fração do pão com ação de graças (cf. também Lc 24,30.35). Outro traço que sugere o rito da comunidade é o papel de cooperadores/distribuidores confiado aos discípulos. Alusões às doze tribos sugerem o caráter messiânico atribuído a esse fato. A versão joanina, que não contém o termo “fração” nem o papel de mediação dos discípulos, por outro lado usa esse relato como base para o discurso do “pão da vida” com nítidas alusões àquilo que Paulo chama “a ceia do Senhor” (KONINGS, 2020).

De fato, a literatura paulina deixa entrever nas reuniões das comunidades um momento para a ceia do Senhor, entendida como memorial da morte e ressurreição de Cristo. Nos evangelhos sinópticos, esta ceia é descrita de modo extenso, com indícios de diversas tradições. O conteúdo específico do memorial é a morte de Jesus, vista como prenúncio de sua volta na gloria escatológica. Este traço escatológico é claro sobretudo na versão de Lc 22,15-18 (composto de duas tradições).

Um segundo elemento da Ceia do Senhor é o caráter sacrifical. Nítida é a referência ao sacrifício da Aliança em Ex 24,1-11, pelas palavras de Jesus “este é meu sangue da (nova) Aliança”. Em Mt 26,29 lê-se “para o perdão dos pecados”. Será que isso acrescenta algo à fórmula “por vós” ou “pelos muitos” (= todos) que ocorre nas diversas tradições? A forma de Mateus parece aproximar a morte de Jesus do sacrifício pelo pecado, o que não é necessariamente o sentido original de “por vós/pelos muitos”, que pode ter o sentido da fundação da nova Aliança, um sacrifício de comunhão.

O evangelho joanino (que não traz as palavras da instituição da Ceia e liga a eucaristia à multiplicação dos pães/“pão da vida”) parece unir na morte de Jesus a referência ao cordeiro oferecido pelo pecado (Jo 1,29.36) e o cordeiro pascal (19,36). Nas cartas joaninas, Jesus é chamado de vítima de expiação (1Jo 2,2; 4,10).

É Paulo que usa a linguagem sacrifical para tornar compreensível a obra de Jesus, mas num sentido bastante geral, acessível aos gentios que constituíam parte de seu leitorado. Entretanto, a Carta aos Hebreus (que não é de Paulo!) descreve, para um público eminentemente judeu e sacerdotal, a vida e a morte de Jesus mediante uma releitura de toda a tradição sacrifical da teologia sacerdotal do AT. Observe-se, porém, que isso é tipologia e não pode servir para uma interpretação clerical do sacerdócio ministerial na comunidade cristã.

2.2.3 Orações e hinos

Eliminando toda verbosidade, Jesus deu aos simples a oração cotidiana, o Pai-nosso, que, segundo Agostinho, contém tudo o que se pode pedir a Deus. Por isso, ela ocupa o lugar matematicamente central no Sermão da Montanha (5,1–6,8|6,9-13|6,14–7,28).

As comunidades nascidas de Jesus não deixaram de continuar a tradição hinológica do AT, criando os hinos que exprimem a história da salvação e o louvor a Cristo e ao Pai. Por exemplo, Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-14; 1Pd 2,21-24; Lc 1,68-79; 1,46-55; 2,29-32; os cânticos do Apocalipse; a forma original do prólogo joanino Jo 1,1-5.9-14; entre outros (GOURGUES, 1995; MAREANO, 2018).[14]

3 A Bíblia na Liturgia

A simbiose de Bíblia e Liturgia não significa apenas que a liturgia tem um lugar permanente nos escritos bíblicos, como acabamos de descrever, mas, vice-versa, que a Bíblia tem um lugar permanente na Liturgia.

3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica

O culto do Israel Antigo conhecia ritos sacrificais, divinatórios, expiatórios, apotropaicos etc., que foram progressivamente concentrados na adoração do Deus único, YHWH, culminando na unificação do culto em torno do Templo de Jerusalém, pelo rei Josias por volta de 620 aC, pouco antes de Judá ser golpeado pelo exílio babilônico (597-538 aC). Depois do exílio, com o desenvolvimento do culto sinagogal, a liturgia judaica se transformou paulatinamente numa liturgia da Palavra. Durante o domínio persa, instaurou-se a prática da leitura pública da Lei, na liturgia do dia da Aclamação, no início do sétimo mês (hoje festa do ano novo), provavelmente em 397 aC (Ne 7,52–8,3). A Bíblia menciona também em diversas ocasiões anteriores uma leitura diante do povo ou das autoridades de um texto legislativo ulteriormente assumido na Torá:[15]  a solene leitura da Lei em Ex 24,7, a leitura da Lei em 2Rs 23,3 e a instituição da prática setenal em Dt 31,9-13.

À medida que os escritos bíblicos de Israel iam sendo reunidos, tornaram-se referência para a identidade confessional, como memória dos magnalia Dei e como regra de vida para a comunidade. Esse significado complexo se resume no termo hebraico torah, “instrução”, traduzido no grego como nomos, “lei” (entendida como disciplina ou educação, comparável à paideia dos gregos).

Com essa dupla finalidade de rememoração e de educação, a sinagoga adotou a leitura litúrgica dos cinco livros chamados “de Moisés” (a preleção da torah no sentido restrito), além dos trechos memoráveis dos “profetas” (a haftarah), tudo isso emoldurado pelos “louvores” (os tehillim, salmos).

Na época da atuação de Jesus de Nazaré, essa “leitura da Lei” era praticada, dependendo do costume local, num ciclo de um ou de três anos, ou também de modo mais livre (TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 141-144). Além disso havia outras celebrações que são descritas em estudos específicos sobre a liturgia da Palavra no judaísmo.

Diferentemente da liturgia sacrifical, reservada ao Templo de Jerusalém, a liturgia sinagogal (de leitura) pode ser realizada em todas as comunidades, até na diáspora, sendo sustentada pela observância do shabbat, repouso do sétimo dia, que garante espaço para a sinaxe ou reunião sinagogal – exemplo imitado pelo domingo cristão. A liturgia do Templo, depois da unificação deuteronomista, ficava longe do povo disperso, apesar da prescrição das “subidas” em Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. A liturgia de leitura na sinagoga remediava a distância do Templo. Assim, a instrução da comunidade, as festas de “todo o Israel” e a piedade cotidiana do israelita se alimentam da tradição bíblica e, por sua vez, a realimentam.

Depois da destruição do Segundo Templo, em 70 dC. o culto sabático, com a preleção da Lei e dos Profetas acompanhada de hinos e orações, tornou-se a espinha dorsal da religião judaica, ocupando praticamente o lugar do Templo. Sinal disso é que o presidente ganha o título de qohên, sacerdote. Quando o sacrifício do Templo perdeu seu lugar central, cresceu a acentuação, já no judaísmo, mas sobretudo no cristianismo, do sacrifício de louvor e do sacrifício espiritual.

3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)

A segunda parte da Dei Verbum (“Verbum in Ecclesia”, n. 52-89) oferece as principais referências para a compreensão do uso da Bíblia na liturgia católica.

Herdeira da liturgia judaica, a liturgia cristã desde os inícios dedicou amplo espaço à proclamação da Palavra de Deus encontrada na Bíblia. As celebrações cristãs incluíam desde sua a origem a leitura das Escrituras (Justino, Apol. 67), embora em alguns ambientes as leituras se limitassem ao NT (JUNGMANN, 1958, p. 337). É provável que os judeu-cristãos assistissem à leitura bíblica sinagogal no sábado e, ao pôr do sol, quando se iniciava “o primeiro dia da semana”, celebravam a ceia memorial do mistério pascal (morte e ressurreição) de Jesus. Pode-se supor que a combinação da leitura das Escrituras e da celebração da refeição fraterna, com ação de graças (eucaristia) celebrando o mistério pascal de Cristo, tenha se dado bem cedo, como sugerem também outros textos do NT (Lc 24) e os primeiros escritos patrísticos (Didaqué, Carta a Diogneto). Certamente não faltavam os louvores, os hinos cristãos e os salmos do AT, muitas vezes interpretados como profecia do evento Jesus Cristo.

“Considerando a Igreja como ‘casa da Palavra’ deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada” (VD n. 52). “Cada ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura” (VD n. 52). A leitura bíblica na Liturgia é uma forma de o Cristo estar presente (cf. VD n. 51; DV n. 8) – abrindo as Escrituras (cf. Lc 24,32). Esta expressão de Lucas e a frequente presença de alusões, aplicações, sentidos plenos das Escrituras de Israel mostra que não se pode dispensar a presença do AT na liturgia cristã.

Isso se aplica em primeiro lugar à celebração da Palavra na missa (ou sem Eucaristia) e no Divino Ofício. “Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao longo do tempo, particularmente na celebração eucarística e na Liturgia das Horas” (VD n. 52). Nessas duas formas de liturgia está presente, a princípio, a Bíblia toda do AT e do NT. O ciclo trienal das leituras dominicais apresenta o NT inteiro e, do AT, aqueles trechos que ilustram de alguma maneira as leituras do NT (principalmente os evangelhos), lembrando textos análogos ou temas proféticos que encontram no NT seu sentido pleno. Já no ciclo bienal das celebrações nos dias de semana lê-se a Bíblia integralmente. O mesmo deve ser dito do Divino Ofício (o Breviário), que inclui, além da leitura da Bíblia inteira, as exegeses dos Santos Padres e dos mestres espirituais até os dias de hoje. Além disso, o Divino Ofício tem o grande mérito de, através do dia todo, manter a Igreja em contato com os Salmos, expressão por excelência da herança espiritual de Israel, partilhada pelo próprio Jesus.

É de primeira importância o nexo entre a leitura bíblica e o sacramento da Eucaristia: os discípulos de Emaús reconheceram o Ressuscitado pela fração do pão depois que lhes havia explicado as Escrituras (Lc 24,32.35). A palavra e a ação salvífica de Jesus encontram-se unidas na mesma memória. Se as leituras bíblicas tornam presente o ensino de Jesus (inclusive suas referências ao AT), o memorial de sua morte e ressurreição traz presente a verdade desse ensinamento no dom da própria vida em amor até o fim, recebido em comunhão pelos seus fiéis.

Essa articulação da Palavra com a ação de Jesus apresenta-se, de alguma forma, também nos demais Sacramentos, agora que a reforma litúrgica do Vaticano II incluiu em todos eles uma “liturgia da Palavra”.

Olhando esse panorama, pode-se concluir que, para o cristão católico, a fiel participação da Liturgia, desde que bem preparada e apresentada, é uma imersão bíblica, que o torna espiritualmente preparado para desfrutar plenamente a memória de Cristo que é o cerne de sua fé.

4 A formação bíblico-litúrgica

É evidente que o desfrute da riqueza bíblica em nossa cultura não se dá espontaneamente. Se o próprio Jesus depois de ter ensinado em parábolas, que deviam falar por si mesmas, se viu obrigado a dar explicações através de seus discípulos (Mc 4,33-34), essa exigência se torna mais premente em nosso tempo, tão afastado do mundo de Jesus. Desde os primeiros tempos do cristianismo conhecemos a homilia ou explicação das Escrituras que, aliás, já existia na sinagoga judaica. O próprio NT, tanto nos evangelhos como nas cartas, revela essa prática. A explicação da parábola do semeador, os discursos de revelação no Quarto Evangelho, as homilias batismais na Carta aos Efésios e na 1ª de Pedro confirmam esse costume. Consciente da necessidade de explicação, a Sacrosanctum Concilium recomenda que a leitura bíblica na Liturgia da Palavra seja acompanhada de breve explicação, se não de homilia extensa. Uma das grandes preocupações do papa Francisco é a homilia (EG n. 135-144).

A formação bíblico-litúrgica dos ministros e dos agentes de pastoral é uma prioridade urgente, mas não pode ser concebida como mero enriquecimento pessoal para a vida espiritual ou, como às vezes acontece, para a mera erudição. Ela deve ser “ministerial”, isto é, voltada para o serviço ao Povo de Deus. Exorta o papa Bento XVI:

Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido profundo da Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando os mistérios fundamentais da nossa fé. Também disto depende a correta abordagem da Sagrada Escritura. (VD n. 52).

Os grupos de estudo e de leitura bíblica com o povo em torno de temas ou livros específicos podem completar oportunamente a grande pedagogia bíblica que é a Liturgia, desde que não a suplantem. Foi graças a este tipo de atividades que nas décadas recentes, no Brasil e na América Latina, como também em outras partes do mundo, a Bíblia foi, por assim dizer, retirada das mãos dos especialistas ou clérigos e devolvida ao povo.

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).

Johan Konings, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado em dezembro de 2020.

Referências

BASURKA, Xabier; GOENAGA, J. A. A vida litúrgico-sacramental em sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio (org.). A Celebração na Igreja. I: Liturgia e Sacramentologia Fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p. 37-160.

BÍBLIA TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2020.

DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its Life and Institutions. London: Darton, 1973.

GOURGUES, Michel. Os hinos do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1995.

JUNGMANN, Josef. A. Bibel. II. Gebrauch in der Kirche. In: Lexikon für Theologie und Kirche, Bd. 2. Freiburg: Herder, 1958. p. 337.

KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. Introdução ao estudo da Bíblia. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

KONINGS, Johan. A Palavra que é Pão: a Eucaristia no Quarto Evangelho. Fronteiras, Recife, v. 3, n. 2, p. 478-499, jul/dez 2020.

MAREANO, Marcus Aurélio Alves. Os hinos do Apocalipse: Mysterium tremendum et fascinans. Tese Doutorado, FAJE. Belo Horizonte, 2018.

TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia. Petrópolis: Vozes,1996.

[1] No contexto grego, “liturgia” significa simplesmente culto ou evento público.

[2] Esta parte se baseia principalmente nas informações de DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its Life and Institutions. London: Darton, 1973. p. 271-515 (= Part IV: Religious Institutions).

[3] Os lugares altos (“altares”) mencionados no AT muitas vezes são relacionados com teofanias, águas ou árvores sagradas, pirâmides (zigurates) ou, a partir de certo momento, templos. O templo de Jerusalém começou como templo privado da casa de Davi/Salomão.

[4] Sobre algumas diferenças na descrição da tradição eloísta e da sacerdotal, ver DE VAUX, 1973, p. 295.

[5] Que ela era considerada pedestal ou trono do Deus invisível é um significado ulterior, que não aparece nas antigas tradições narrativas. Móveis semelhantes aparecem também nas religiões vizinhas (DE VAUX, 1973, p. 300).

[6] Uma descrição bastante clara encontra-se na introdução ao Levítico da BÍBLIA TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia.

[7] Lv 14 combina dois ritos: um arcaico, que vê a contaminação como obra do demônio, exigindo, portanto, um exorcismo; e um mais recente, equiparado aos ritos de purificação levítica (DE VAUX, 1973, p. 463).

[8] Em 2Sm 1,10 a tradução correta de nezer (do verbo nazar, separar) não é coroa, mas sinal de consagração (DE VAUX, 1973, p. 465).

[9] A crítica literária constata que Lv 23 é uma conflação de duas tradições, daí o texto ser um tanto complexo (DE VAUX, 1973, p. 473).

[10] Resumimos aqui DE VAUX, 1973, p. 481-483.

[11] É de lembrar que Jesus se apresenta como mediador da revelação em Mt 11,25-27‖Lc 10,21-22, e é nesse papel que aparece em Ap 1,1.

[12] O sentido da junção do amor a Deus e ao próximo (seja quem for) é que o amor a Deus se realiza no amor leal, generoso e justo para com o próximo do qual ele é o protetor; cf. Mc 12,28-34 par.

[13] Marcos e Mateus trazem duas formas do relato, Lucas e João uma só.

[14] Nem sempre os hinos se deixam delinear com certeza no NT.

[15] Casos do que se chama “a Bíblia antes da Bíblia” (KONINGS, 2014, p. 61-62).