O livro do profeta Oseias

Sumário

1 O profeta

2 Época da atividade profética e da redação do livro

3 A linguagem do livro

4 Estrutura do livro

5 Principais pontos de teologia

5.1 A imagem de Deus

5.2 O pecado do povo e o juízo de Deus

5.3 A crítica ao culto e à monarquia

5.4 Possibilidade de salvação

6 Lendo o texto hoje

Referências bibliográficas

1 O profeta

O nome “Oseias” é forma abrevida de Yehôšua‘, Yhwh é salvador, ou Hôša‘yah, Yhwh traz a salvação. Sendo em Nm 10,24; 13,8 e 1Cr 27,20 associado à tribo de Efraim, pode-se suspeitar ter o profeta Oseias pertencido a esta tribo do Reino do Norte.

Os dados biográficos são escassos. A fonte para conhecimento da vida do profeta se reduz a alguns versículos dos c. 1-3 do livro que leva o seu nome. A partir desses textos, sabemos o nome de seu pai, Beeri, e de sua esposa, Gomer, filha de Diblayîm (Os 1,3). Segundo o texto do livro, teve três filhos (Os 1,2-9). De sua vida durante o ministério profético, conhecemos apenas os dados, envoltos em imprecisões, a respeito de seu matrimônio e das vicissitudes que o cercaram.

A questão da mulher e dos filhos de Oseias é discutida. Com efeito, o livro apresenta duas narrativas sobre o tema, que não podem com facilidade ser harmonizadas. Na primeira, Os 1,2-9, um relato em terceira pessoa, o profeta recebe a ordem de casar-se com uma “mulher de prostituição”; na segunda, Os 3,1-5, um relato autobiográfico, o profeta recebe a ordem de “amar novamente uma mulher que é amada por outro e comete adultério”. Além disso, discute-se a realidade do matrimônio e a situação da mulher.

As diversas hipóteses acerca da questão do matrimônio de Oseias podem ser agrupadas pelo modo como é considerada a forma dos relatos (alegórica ou real) e a relação entre eles. A concepção alegórica do matrimônio de Oseias (como simples símbolo e não realidade) entrou na história da interpretação pelo caráter insólito da ordem de Deus ao profeta, de que ele despose uma meretriz (Os 1,2). A maior parte dos estudiosos, contudo, considera que se trata de um fato real, mesmo que denso de sentido simbólico.

Para os autores que consideram somente o sentido alegórico, os relatos seriam apenas a roupagem literária de uma mensagem de ameaça (c. 1) que entrevê uma salvação futura (c. 3). Entre os que consideram os relatos como acontecimentos reais, há diferentes interpretações acerca do que teria realmente ocorrido:

  • Em relação ao relato do c. 1, três posições se apresentam: o fato real corresponderia ao texto atual expurgado dos elementos censuráveis, ou seja, Oseias teria tido um matrimônio normal e íntegro; ou diria respeito a um casamento com uma mulher fiel, que se teria prostituído somente após o matrimônio; ou ainda ao matrimônio real com uma meretriz.
  • Quanto ao relato do c. 3, este é visto como um fato real paralelo ao c. 1, narrado, porém, pelo próprio profeta; ou como continuação da narração do c. 1. Nesse último caso, cada uma das narrações indicaria uma fase de um mesmo matrimônio, seja uma mulher que, tornando-se infiel ao casamento, teria ficado em mãos estranhas, por fuga ou expulsão, sendo depois resgatada por Oseias, seja uma mulher desposada com Oseias e que se teria submetido aos ritos dos santuários israelitas influenciados pelo culto cananeu, seja ainda como um segundo matrimônio com a mesma mulher, Gomer, ou com duas mulheres diferentes.

A partir do horizonte teológico do livro e do sentido da alegoria matrimonial (o profeta como representante de Deus e a mulher, do povo de Israel), deve-se pensar que se trata de uma única mulher (pois é um só o povo de Israel).

Parece certo que Oseias era oriundo do Reino do Norte e exerceu neste território sua missão. Pois não só seu anúncio se dirige preponderantemente a Efraim e demonstra um conhecimento minucioso da situação política, social e religiosa do Reino do Norte (ver, por exemplo, Os 5,1.3.8-14; 7,1.8-11; 8,5; 9,15-16), como também sua linguagem apresenta particularidades daquilo que seria um dialeto israelítico. Além disso, Oseias nunca menciona Jerusalém ou qualquer outra cidade de Judá. Ao contrário, cita frequentemente a cidade real de Samaria e os centros de culto de Betel e Guilgal (Os 4,15; 5,8; 7,1; 8,5-6; 9,15; 10,5; 12,2.5; 14,1).

Acerca do ambiente social e cultural imediato em que viveu o profeta, em razão de sua linguagem elevada, seu conhecimento do passado e clareza ao julgar a história, bem como seu conhecimento do mundo que o rodeia, ele poderia ser situado na classe dos eruditos de Israel. Nada de certo, porém, se pode afirmar quanto a isso.

2 Época da atividade profética e da redação do livro

O livro deixa perceber possíveis alusões à época histórica de atuação do profeta. O título nomeia os reis de Judá (Ozias: 781-740; Joatão: 740-736; Ezequias: 716-687) e de Israel (Jeroboão II: 783-743), localizando a atividade do profeta no século VIII. Alguns textos deixam entrever uma época de prosperidade e bem-estar (Os 2,4-5; 10,1-2.13-15), que se coadunaria com o reinado de Jeroboão II. Outros dados apontam para a segunda metade do século VIII: as numerosas alusões a distúrbios na sucessão monárquica (Os 6,7-7,2; 8,4; 7,3-7), que ocorreram, de fato, após a morte de Jeroboão II; o pagamento de tributos (Os 8,9-10; 10,6), que supõe o tempo do rei Menaém (743-738) ou do rei Oseias  (732-724); e a política externa de busca de alianças (Os 7,8-16; 9,3.6; 8,8-10; 12,2), que teve lugar na época do rei Oseias. Em 13,10, se entrevê a falta de um rei, e, em 14,1, a queda da capital, Samaria, nas mãos dos assírios, o que ocorreu em torno dos anos 722/721.

Em síntese, o período da profecia de Oseias abrange, de um lado, um tempo de prosperidade (o reinado de Jeroboão II); de outro, conhece um tempo de instabilidade na monarquia, que poderia ser identificado com o período posterior a Jeroboão II, sem que se possa indicar com precisão se ele conheceu ou não a queda da Samaria.

Muito do conteúdo do livro se enquadra dentro da época acima apontada, de modo que sua redação pode-se ter iniciado já na época do profeta ou pouco distante dela. Há, no entanto, certas passagens que demonstram ter sido o livro relido e atualizado em Judá. Com a queda da Samaria, de fato, tradições e escritos já existentes no Reino do Norte foram levados para o Reino do Sul (Judá), sendo lá retrabalhados até sua redação final. Aqui se reconhecem particularmente algumas que mencionam Judá (Os 1,1.7; 4,15; 5,5; 6,11; 8,14; 12,3), além de outros textos que não se enquadram bem seja no pensamento seja no estilo do livro, ou que apresentam perspectivas que supõem um tempo posterior (Os 2,18-25; 3,5; 4,16-19; 11,10-11; 13,1-9; 14,2-9.10). A época de finalização deste processo é controvertida e vai desde os anos próximos à queda do Reino do Sul (época de Josias, com seu florescimento) até o tempo exílico ou pós-exílico.

3 A linguagem do livro

O livro é o único escrito profético oriundo do Reino do Norte e, provavelmente por peculiaridades da linguagem desta região, com diferenças frente ao hebraico dos escritos do sul, apresenta por vezes questões que dificultam sua compreensão gramatical e sintática.

O estilo é elevado, com utilização de diversos recursos linguísticos (jogos de palavras: Os 4,14b; 8,7b; 5,15-16; 9,16; 11,3) e ainda dois casos de rimas, tão raros no hebraico bíblico (Os 2,7; 8,7b).

A mensagem é expressa com intensidade e veemência, com predominância do uso do “Eu” de Yhwh e abundante emprego de imagens que não só enriquecem o texto por sua beleza e força expressiva (Os 14,6-8), mas também servem a demonstrar, seja a situação de Israel seja a profundidade da força e santidade de Deus. A metáfora que mais caracteriza o livro é a do matrimônio entre Yhwh e Israel (Os 1,2; 2,4-17; 3,15). O povo aparece como meretriz (Os 4,11-14; 5,3-4; 9,1-6), pomba tola (Os 7,11-12), mas também como filho amado (Os 11,1) e excelentes plantas (Os 14,7-8). Deus, em contraposição, é médico (Os 5,12-14; 11,3; ainda: Os 7,1-2; 14,5), pus e traça (Os 5,12), leão, pantera, urso (Os 5,14; 13,7-8), mas também orvalho e árvore verdejante (Os 14,6.9), pastor (Os 13,6) e pai (Os 11,1).

4 Estrutura do livro

Considerando a repetição do termo “processo” (rîb) em Os 2,4; 4,1 e 12,3, ao lado de palavras de salvação que ocorrem nos três primeiros capítulos e ainda em Os 11,10-11 e 14,2-9, alguns estudiosos dividem o livro em três partes, respectivamente: capítulos 1-3; 4-11 e 12-14. No entanto, a finalização promissora em 11,10-11 refere-se propriamente aos versículos anteriores (Os 11,1-9), enquanto que a de Os 14,2-9 retoma temas e terminologia de todo o livro. Por isso, embora em Os 12,3 também se anuncie um processo (rîb) contra Israel, este anúncio não é um indicador unívoco para distinguir os capítulos 12 a 14 dos que os precedem. Além disso, os capítulos 4 a 14 podem ser considerados um bloco na medida em que o chamado inicial a ouvir (Os 4,1), que proclama o processo entre Deus e os “habitantes da terra”, chega a sua grande conclusão somente no oráculo final (Os 14,2-9). Em outras palavras, o livro encontra-se organizado em duas partes: capítulos 1-3 e 4-14.

Esta distinção é confirmada pela temática. Enquanto os três primeiros capítulos são fortemente marcados pela metáfora matrimonial, nos restantes, embora possam ser entrevistos alguns ecos desta metáfora, ela já não retorna com a mesma força. Nos três capítulos iniciais há uma alternância entre palavras de juízo e de salvação, que já de início está a indicar ao leitor a linha mestra de interpretação da totalidade da profecia de Oseias: a condenação não é a última palavra de Deus; o Senhor está pronto a perdoar e prepara para o povo um futuro favorável.

No segundo grande bloco do livro, podem ser distinguidas algumas seções, sobretudo pelo tema que é abordado. O primeiro tema diz respeito às faltas cultuais e à responsabilidade dos sacerdotes, com duas seções paralelas entre si (Os 4,4-19 e 5,1-7). A partir de 5,8 há duas subseções que tratam da fraqueza da monarquia na condução da nação, apresentando este tema em forma paralela (Os 5,8-7,16 e 8,1-14), finalizadas pela síntese de Os 9,1-9, que aponta questões cultuais e aspectos políticos. Têm lugar, a seguir, palavras que aludem a fatos passados da história de Israel, para, a partir deles, mostrar aonde pode levar a conduta do povo, de seus sacerdotes e governantes. Em toda essa parte, desde Os 4,1, há somente acusações e ameaças, com uma breve pausa no capítulo 11 (Os 11,10-11). O livro, no entanto, termina com uma grandiosa perspectiva de futuro (Os 14,2-9), que transforma as palavras de condenação anteriores em fase provisória do agir divino com vistas a fazer Israel retornar à fidelidade ao seu Deus e, com isso, aos seus bens salvíficos.

A sentença sapiencial final (Os 14,10: “quem é sábio, que compreenda estas coisas…”) faz o leitor pensar sobre tudo o que foi anunciado, refletindo sobre os caminhos de Deus para com seu povo e, finalmente, sobre quem é este Deus que com tanto amor se debruça sobre Israel e, apesar da infidelidade do povo, busca sempre de novo abrir-lhe a porta da salvação.

5 Principais pontos de teologia

5.1 A imagem de Deus

O ponto central da teologia do livro reside na imagem de Deus que ele apresenta. Ela pode ser mais bem compreendida a partir do panorama religioso da época do profeta, no qual ao lado, talvez, propriamente de um culto referido a baal, é praticado um culto israelita seja misturado a elementos cananeus (sincretismo: Os 4,17) seja celebrado sem comunhão com Deus (Os 5,6; 8,5; 10,5).

Oseias conhece o nome próprio do Deus de Israel, Yhwh (Os 12,10), mas chama-o também “Deus”, ’Elōhîm, sobretudo ligado a um sufixo possessivo: “teu Deus” (Os 4,6; 9,1; 12,7.10; 13,4; 14,2), “vosso Deus” (Os 3,5; 4,12; 5,4; 7,10; 14,1), “nosso Deus” (Os 14,4). Esta maneira de falar estabelece uma estreita relação entre Yhwh e o povo de Israel. Em algumas passagens, a designação de Deus como ’El está ligada à ênfase em sua santidade e poder (Os 11,9; 2,1; 8,6). No final do livro, apresenta-se a prerrogativa de Yhwh como único Deus de Israel (Os 13,4; 14,4).

As fortes imagens utilizadas pelo profeta (Os 5,12.14; 13,7.8) servem muitas vezes para veicular a ideia de santidade, exclusividade e poder do Senhor. Mas é sobretudo a imagem matrimonial utilizada nos capítulos iniciais do livro (c. 1-3) e que deixa ainda traços nos capítulos sucessivos (Os 4,12-16; 5,3-4; 6,10; 9,1 etc.) que distingue a apresentação de Deus com a característica do amor e da fidelidade. Yhwh é como um esposo fiel traído e esquecido pela esposa (Israel) (Os 2,15). Mas é também o pai negligenciado, que se inclinara para o filho e dele cuidara com todo amor (Os 11,1-4).

Por isso, Ele, que é o Deus de Israel (ver os possessivos no nome de Deus), ameaça quebrar a relação com seu povo.  O texto de Os 1,9 expressa esta ideia de maneira profunda ao explicar o nome dado ao terceiro filho (“Não [sois] meu povo”): “porque vós não sois meu povo e Eu não sou para vós”. Com a formulação “Eu não sou”, nega-se o nome divino (“Eu sou”) revelado em Ex 3,14 e, com isso, a fundamental relação salvífica de Deus para com Israel, retirando-o da escravidão do Egito, dando-lhe a Lei (aliança) e introduzindo-o em sua terra.

5.2 O pecado do povo e o juízo de Deus

A partir desta imagem de Deus, o pecado de Israel é tematizado, como em nenhum outro profeta, diretamente a partir da relação de amor. O pecado não é para Oseias somente transgressão dos mandamentos (também o é: Os 4,1-2). O profeta vai mais longe, decifrando as raízes do agir pecaminoso e, com isso, chegando então à concepção de pecado como uma ruptura do amor (Os 2,7). É a partir daí que se entende o tom de lamentação presente em diversos momentos do livro: por ver seu amor traído, Yhwh se lamenta por aquela que ele ama e que desejaria que lhe fosse fiel (Os 2,10; 13,5-6), recorda seu agir cheio de ternura para com o filho que, todavia, o abandona (Os 11,3-4). Ligada à metáfora nupcial, a pecaminosidade de Israel é caracterizada como “prostituição” (Os 2,4; 5,4). Israel traiu seu esposo, andou atrás de “amantes” (os baals; Os 2,7.9; 3,1; 4,18), afastando-se de Deus (Os 1,2; 7,13).

Nesse contexto, o pecado é também tematizado como “esquecimento” de Deus (Os 2,15; 8,14; 13,6), ou seja, por uma desatenção e negligência frente a um amor fortemente manifestado. É algo que fere, portanto, a íntima relação de amor. Atinge alguém concreto: é “contra Mim” (Os 7,13-15; 14,1; 2,15).

Neste contexto, é ponto central na teologia do profeta o conceito de conhecimento de Deus. Trata-se não só de um conhecimento intelectual da vontade de Deus, de seus preceitos, mas inclui a íntima comunhão de vida, a confiança total. Principais acusados são os sacerdotes, que negligenciam sua tarefa de instruir o povo, conduzindo-o na relação com Deus. Oseias os acusa de rejeitarem o “conhecimento”, o que trará consequências negativas também para o povo (Os 4,6). Deixam de instruir o povo no conhecimento da vontade divina, que, por isso, não recebe os elementos necessários para viver a fé e a comunhão com Deus. A partir daí, o livro pode afirmar, num veredito global, que “não há conhecimento de Deus no país” (Os 4,1). Tal ausência se reflete numa vida em que predominam os delitos de toda espécie (Os 4,2).

Diante da busca de aproximação de Deus com a oferta de sacrifícios (Os 5,6; 8,13), o profeta anuncia o grande princípio: de nada valem os sacrifícios se não há real comunhão com Deus. O Senhor deseja o “conhecimento” mais do que gestos sacrificiais que se reduzam a atos exteriores (Os 6,6).

Junto com o “conhecimento”, falta ao povo também o “amor”, expresso em Oseias, por seis vezes, com o termo ḥesed (Os 2,21; 4,1; 6,4.6; 10,12; 12,7). Trata-se do amor em seu caráter espontâneo, que surge não a partir de uma exigência que alguém pudesse fazer, mas somente a partir da decisão daquele que ama e não daquele que recebe amor. Mesmo no caso de haver expectativa de um comportamento conforme o ḥesed, este não é derivado de uma relação de dever. O conceito de ḥesed está ligado também à ideia de superlativo, de algo que ultrapassa todas as medidas. É um comportamento para além das medidas esperadas ou exigidas: uma relação de bondade magnânima, que ultrapassa a simples obrigação e as medidas impostas por uma relação de dever. Como tal, pode referir-se tanto ao amor de Deus para com Israel e de Israel para com Deus como à relação dos membros do povo entre si. As duas dimensões caminham juntas: o pecado é a um tempo contra Deus e contra os irmãos (4,1-2).

Nesse sentido, o pecado de Israel, em Oseias, não se reduz a atos isolados. É uma realidade globalizante. Ao pecar, Israel identifica-se com o seu pecado, assimila-se a ele (Os 9,10), torna-se ele mesmo diferente do que era antes. Mais do que marcado pelo pecado, o povo é caracterizado pela dureza do coração, pela qual Israel rejeita admitir seu pecado e não reconhece sua culpa (Os 12,9). Com isso, sua índole pecaminosa se constitui numa força interior que impele sempre mais ao pecado. Torna-se um “espírito de prostituição” (Os 5,4). É, dessa maneira, uma força que prende Israel, uma teia que o emaranha (Os 11,7). Por isso, para o profeta, o povo, por si só, tornou-se incapaz de retornar a Deus, de se converter (Os 7,10; 10,2).

O profeta põe em relevo, nesse contexto, a índole pecadora de Israel já desde o início de sua história. Para isso serve a rememoração de eventos das tradições históricas que ocorrem a partir do capítulo 9 (Os 9,10.15; 10,9; 11,1-4; 12,3-5.13). Demonstrando que desde sempre Israel é culpado, o livro enfatiza ainda mais como o povo, mesmo em épocas posteriores, tende ao pecado. E, por outro lado, evidenciando que o amor de Deus está presente desde que o povo está no Egito (Os 11,1), também no tempo do deserto (Os 13,4-6), bem como no seu estabelecimento nele (Os 9,10), sublinha a falta de correspondência de Israel para com o seu Deus. Justifica, desse modo, a punição tantas vezes anunciada no livro.

Na base do amor divino, pode-se melhor compreender a mensagem de condenação que perpassa o livro. O juízo de Deus é o reverso do seu amor traído e expressa assim sua justa ira. Como esposo que poderia dar carta de divórcio à sua esposa infiel, Deus tem o direito de pôr fim à sua relação salvífica para com Israel. Deus ameaça o povo (Os 2,11; 9,12.16; 12,15) e chega a dizer, como que numa palavra final: “não os amarei mais” (Os 9,15). Com isso, prepara-se o fim da nação, representado pela invasão assíria, que aniquilará o país e deportará seus habitantes (Os 9,17; 13,15–14,1).

5.3 A crítica ao culto e à monarquia

As faltas que estão no centro da condenação feita por Oseias pertencem, em primeiro lugar, ao âmbito cultual. Ao menos dois aspectos são considerados: o recurso à religião cananeia, com seus baals e cultos de fertilidade (Os 2,4-15; 4,10-11.13-14; 9,1.11.14 etc.), em si mesma ou unindo-a a elementos da fé javista, numa espécie de sincretismo; e o culto a Yhwh, porém celebrado por motivo interesseiro e sem duas condições fundamentais: amor e conhecimento (Os 6,6). Nesse contexto, a crítica se dirige fortemente contra os sacerdotes: por negligenciarem o ensino da fé javista e abrirem, assim, caminho para a difusão da religião cananeia (Os 4,6.12); por se aproveitarem do culto para proveito próprio (Os 4,8; 8,13); enfim, como parte das classes dirigentes, por utilizarem a religião como meio para conseguir vantagens (Os 8,4.10).

Grande relevo ganha, no livro, também a crítica política. A monarquia é duramente acusada, seja por suas decisões em âmbito interno, na condução mesma do povo (Os 10,3.15; 13,10-11), seja, sobretudo, pela política de aliança com as potências estrangeiras (Os 5,8-14; 7,11-12; 8,8-9; 12,1-2). Esta última, feita sem considerar Yhwh e sua vontade, na prática se torna consequência da negligência para com a religião.

Do pecado no âmbito da justiça social, Oseias fala somente em poucos textos (Os 4,1-2; a fraude no comércio: Os 12,8). A ênfase que seu contemporâneo, Amós, dá a este âmbito pode ter influenciado os redatores do livro de Oseias a sublinharem outros aspectos não tão enfatizados em Amós. Nesse sentido, os dois livros proféticos em conjunto auxiliam a se ter uma visão mais completa da sociedade e seus problemas, bem como da religião de meados do século VIII até a queda do Reino.

5.4 Possibilidade de salvação

Sobre este panorama, Deus poderia, ainda uma vez, ter misericórdia deste povo?

O livro mostra como o povo é incapaz, por si só, de retornar a Deus. O texto de Os 6,1-3 descreve uma possível volta do povo a Deus, mas com atitudes em que a confiança no auxílio divino não é acompanhada por uma real contrição. Não há nestes versículos, de fato, nenhuma menção de arrependimento da culpa; espera-se tão somente que Deus, como que automaticamente, venha em socorro de Israel. Deus reconhece que o povo tem certo “amor”, mas este é fugaz, não preenchendo, portanto, as exigências divinas (Os 6,4). Também em Os 10,12-13 mostra-se que o povo não sabe responder às exigências divinas.

Com isso, a restauração da relação quebrada só se pode dar na base do próprio Deus, que, com seu amor fiel, abre ainda uma oportunidade (Os 11,8-9). É no mais profundo de si mesmo (“coração”, “entranhas”: Os 11,8) e em virtude de sua própria santidade (Os 11,9), que Deus não deixa que ocorra a Israel a destruição total (Os 11,6). A punição ocorre, pois, ao mencionar o retorno do estrangeiro, Os 11,10-11 mostra que houve, com efeito, o desterro. Mas guarda-se ainda uma esperança de restauração.

Esta, no entanto, deve incluir também a reestruturação mental e espiritual do povo. Yhwh deve preparar Israel, curar a dureza do coração, que o impede de ver os próprios desvios e, portanto, de converter-se (Os 14,5). Somente assim o povo terá condições de responder adequadamente ao convite: “volta, Israel, ao Senhor teu Deus” (Os 14,2).

A meta da conversão é descrita, no capítulo 2, dentro da analogia matrimonial, como a celebração de novas núpcias com Deus. Israel será conduzido a um encontro pessoal com Deus, que lhe “falará ao coração”, abrindo-o para uma relação renovada. Então a “esposa” responderá ao seu esposo como nos tempos do primeiro amor, quando, no caminho para a terra prometida, ainda não se entregara aos cultos cananeus (Os 2,16-17.19). O Senhor renova na profundidade a esposa infiel. Deus lhe oferece, como presentes do casamento, os dons necessários para que ela viva “para sempre” em amor e fidelidade (justiça e direito, amor e ternura, fidelidade: Os 2,21-22). A partir daí, ela poderá chegar a corresponder totalmente ao seu amor. Deus lhe manifestará misericórdia e retomará a aliança com Israel (Os 2,25). Neste ideal de comunhão, a se realizar no futuro, estarão presentes os elementos fundamentais da vida que faltam ao povo (amor, fidelidade, conhecimento de Deus: Os 4,2), de modo que o futuro é idealizado como a situação de total realização de todas as maiores expectativas de Israel.

Com tais perspectivas de salvação, a punição divina anunciada no livro adquire outro valor: torna-se instrumento através do qual Deus quer purificar seu povo. Recebe, assim, a função de punição pedagógica (Os 3,3-5; 2,16-17; 5,14-15).

6 Lendo o texto hoje

O ensinamento de Oseias sobre o culto relembra a exclusividade do verdadeiro Deus e exige a purificação de todos os seus elementos ilegítimos e de toda forma de idolatria e sincretismo. O culto não pode se reduzir a atos externos, mas deve ser expressão da atitude interior de abertura a Deus, que inclui a comunhão com o seu povo, a observância do amor mútuo e exclui toda forma de exploração.

Sua crítica à monarquia leva a refletir sobre os critérios para que a política seja conduzida ainda hoje: não praticada em proveito próprio e, portanto, facilmente corrupta e corruptora. A base inalienável é o respeito à vontade divina.

Em tudo isso, permanece o chamado a retornar ao Senhor, numa conversão que, se conta sempre com a benevolência divina, implica atitudes concretas de mudança de rumo (cf. Mt 9,13).

Maria de Lourdes Corrêa Lima, PUC Rio – Texto original português.

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