Jesus, mediador entre Deus e os homens

Sumário

1 Introdução

2 O testemunho da Escritura

3 O que é uma mediação? A mediação de Cristo

4 Algumas testemunhas na tradição

4.1 Ireneu de Lião (ca. 140-202)

4.2 De Agostinho a Tomás de Aquino

4.3 Hoje

5 Referências

1 Introdução

Os termos “mediação” e “mediador” hoje talvez não nos digam muita coisa. Eles pertencem à linguagem jurídica ou à linguagem filosófica, e não os utilizamos com frequência. Eles exigem, efetivamente, alguma explicação. Mas desde que reflitamos, descobrimos que eles estão, de modo um tanto escondido, no coração de nossa linguagem cotidiana, seja qual for. Estão também no coração de nossa fé, pois é em torno deles que se organiza toda a teologia da redenção e de nossa salvação, ou seja, do êxito definitivo de nossa vida. Tentemos, portanto, acompanhar essa linguagem, primeiro na Sagrada Escritura e, depois, na tradição da Igreja até hoje, onde a encontramos no tema importante da reconciliação e no desenvolvimento contemporâneo da ideia de sacramento[i].

2 O testemunho da Escritura

O texto mais característico do NT acerca da mediação de Cristo Jesus é bem conhecido: “Há um só Deus e um só mediador entre Deus e a humanidade: o homem Cristo Jesus, que se entregou como resgate para todos” (1Tm 2,5-6).

Este texto paulino é na realidade uma fórmula abreviada da confissão de fé, próxima daquela que se lê em 1Cor 8,6. Ela apresenta o Pai e o Filho, mas sem desenvolver estes termos como farão as confissões de fé subsequentes. Ela comporta dois artigos. O primeiro é a retomada da confissão judaica fundamental: há um só Deus. O segundo artigo associa-lhe de maneira imediata a confissão de fé de Jesus Cristo, que compartilha com Deus a característica unicidade, maneira de dizer que ele não introduz o número em Deus. O único Deus e o único mediador constituem entre si uma só unidade divina. A particularidade deste segundo artigo consiste em apelar à noção de mediador, que aqui recapitula o sentido e a finalidade da vida e da morte daquele que nos foi enviado enquanto homem. Ele constitui com Deus um só, mas ele se tornou um ser humano, e esta novidade faz dele um mediador. De fato, é como homem, isto é, enquanto Deus que se tornou homem, que ele é mediador. O fim do texto é um resumo da atividade salvadora de Jesus: ele se deu em resgate por todos nós, evocação de sua morte e ressurreição, que nos reconciliaram com Deus.

Qual é o alcance desse texto, relativamente tardio na obra paulina? Será apenas um mero detalhe do pensamento do apóstolo, ou será a retomada, por ele, de um dado maior da revelação cristã? Para responder a esta pergunta, precisamos primeiro ver no AT, em razão deste grande princípio, aplicado pelos Santos Padres, que nos ensinam a sempre procurar o acordo entre os dois Testamentos como sinal de sua verdade.

A língua hebraica não possui um termo equivalente ao grego mesites, “mediador”. Contudo, os grandes personagens do AT já cumprem uma função mediadora. Abraão é aquele em quem “serão benditas todas as nações da terra” (Gn 12,3). Moisés teve por missão libertar Israel de seu cativeiro egípcio e concluir a primeira aliança entre Deus e seu povo. Sua mediação é, portanto, também descendente. Mas ele intervém, sobretudo, diante de Deus em favor de seu povo pecador. Paulo chega a dizer que a Lei foi promulgada “pelos anjos, pela mão de um mediador”, mesmo se “este mediador não é mediador de um só” (Gl 3,19). O NT compreende, portanto, o papel de Moisés como o de uma certa mediação (Gl 3,19-29). O sacerdócio levítico é, por sua vez, uma instituição de mediação no serviço do culto e da Lei. O rei, enquanto ungido de Yhwh, é investido de uma função de representação de seu povo diante de Deus. De maneira bem diferente, o profeta recebe a vocação de ser testemunha da palavra de Deus dirigida ao povo. Sua “mediação” é mais descendente que ascendente, à diferença daquela do sacerdote e do rei. Mas, por sua vez, ele intercede em favor do povo, em razão de sua solidariedade com ele. A figura misteriosa do Servo de Deus (Is 40–55) parece representar o pequeno resto de Israel e assumir uma função de mediação entre Deus e os homens. Ele carrega o pecado da multidão, ele assume os seus sofrimentos e oferece sua vida em expiação, o que lhe valerá uma posteridade viva. Este serviço antecipa a própria missão de Jesus, missão de reconciliação e de salvação, a de nosso único mediador.

Quando voltamos ao NT, encontramos raramente o tema da mediação de Cristo expresso de maneira formal, mas ele se encontra em afirmações categóricas e solenes e pertence à própria estrutura da revelação. Encontramo-lo na carta aos Hebreus, expresso de maneira bem determinada, referente à primeira aliança e aos diversos anúncios proféticos: “Cristo recebeu um ministério que é tanto superior quanto é melhor a aliança da qual ele é o mediador e fundada em promessas melhores” (Hb 8,6). O mesmo tema é desenvolvido com a linguagem do “Sumo Sacerdote”, do qual Jesus não atrai a glória a si mesmo, mas a recebe do Pai (Hb 5,5), enquanto responde a esse apelo dizendo com o próprio corpo: “Eis que eu venho” (Hb 10,5-7). A oferta do corpo de Cristo suprime os sacrifícios e as oblações da primeira Lei. Essa aliança é eterna, pois o Cristo “vive sempre para interceder por nós” (Hb 7,25). “Por isso ele é o mediador de uma nova aliança: sua morte redimiu as transgressões da primeira aliança, e assim os que são chamados recebem a herança eterna prometida” (Hb 9,15). Essa é a “nova aliança” prometida por Jeremias e inscrita nos corações (Jr 31,31-34). A expressão é retomada pela mesma epístola: “Jesus, o mediador da nova aliança e da aspersão com sangue mais eloquente que o de Abel” (Hb 12,24).

A grande novidade da mediação sacerdotal de Cristo é que ela é, antes de tudo, descendente. Os sumos sacerdotes da antiga Lei exerciam seu ministério num movimento principalmente ascendente e que nunca alcançava totalmente seu objetivo: restabelecer a comunhão do povo com seu Deus. Jesus se engaja num movimento gratuito e definidamente descendente, que o conduz ao rebaixamento e à morte. Exatamente porque ele vem de Deus e veio até nós rebaixando-se, ele pode “estabelecer realmente uma comunicação perfeita e definitiva entre o ser humano e Deus” (VANHOYE, 1980, p. 48). Enquanto os sumos sacerdotes faziam tudo para se separar do povo pecador, Jesus, o santo por excelência, faz tudo o que pode para assumir uma solidariedade plena com os pecadores. Assim, podemos encontrar nele um “Sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança” (Hb 2,17).

A Escritura exprime, ainda, a mediação do Cristo apelando ao tema do intercâmbio. Na pessoa de Jesus produz-se um misterioso intercâmbio entre Deus e os homens. Escreve Paulo: “Conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era tornou-se pobre por causa de vós, para vos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9). É também a troca de sua força por nossa fraqueza: “Decerto, ele foi crucificado na fraqueza, mas ele vive pela força de Deus. E nós também somos fracos nele, mas também viveremos com ele pelo poder de Deus em relação a nós” (2Cor 13,4). Este intercâmbio vai até o fim, pois torna-se o da santidade e do pecado: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21). Este versículo tem sido amiúde mal compreendido. Evidentemente, Jesus não foi feito pecador, mas carregou sobre si todas as consequências de nosso pecado, como nos mostra a imagem de seu corpo torturado. Na carta aos Gálatas, o intercâmbio é o da maldição e da bênção: “Cristo pagou para nos libertar da maldição da Lei, tornando-se ele próprio maldição em nosso favor, pois está escrito: “Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro” (Gl 3,13). Na cruz, Jesus tornou-se por sua vez alvo da maldição proclamada pela Lei, no exato momento em que ele nos justificava a todos nós. Até lá foi o seu amor.

3 O que é uma mediação? A mediação de Cristo

Podemos ser mais exatos no tocante à definição da mediação, que nos foi evocada na Escritura sob múltiplos aspectos. Trata-se, de fato, de um termo que utilizamos também na vida cotidiana, que está na base de nossa linguagem e funciona, sobretudo, na matemática. Façamos de imediato a distinção entre o intermediário e o mediador. O intermediário é um terceiro figurante externo às duas pessoas que, por exemplo, deveriam ser reconciliadas. Ele será o “homem do bom serviço”. Ele tem sua consistência própria, presente antes e depois do serviço prestado. O mediador é interno a cada um dos protagonistas e constitui uma unidade com cada um deles. O intermediário só pode, em parte, tornar-se intermediário se, por real solidariedade com um e outro, pode sentir-se sendo ele mesmo nos dois lados do conflito. Tomemos por exemplo um empregador em oposição a uma empregada imigrante. Nosso suposto mediador é, por uma parte, um empregador, amigo do acima mencionado, e de outra parte ele mesmo imigrante originário do mesmo país de onde vem a empregada. Ele sente em si mesmo a humilhação e um tratamento injusto que arrisca cair sobre ela. Ele participa do estatuto de mediador porque se identifica naturalmente com cada um dos dois parceiros. Mas, na medida em que sua mediação tem êxito, ela desvanece, assim como ele mesmo enquanto mediador.

A instância mediadora por excelência da comunicação entre as pessoas é a linguagem: ser é falar. Não por nada as modernas técnicas audiovisuais são chamadas media, ou mídia. A mídia está a serviço da comunicação entre as pessoas. Mas para que a linguagem possa funcionar, determinadas condições devem ser respeitadas. A mesma linguagem – a mesma língua – deve ser adquirida pelos dois interlocutores. Essa linguagem permitirá, então, que o mesmo pensamento ou a mesma informação esteja presente em cada um deles. A comunidade da linguagem permite a comunicação, talvez até a comunhão. Mas a linguagem desvanece constantemente, como o rolo de um filme ao ser projetado, permitindo assim que continue viva e possa criar uma comunhão de vida.

Além disso, toda argumentação em nossa linguagem apoia-se no funcionamento de “termos intermediários”, termos que são comuns a dois outros termos diferentes e permitem fazer passar nosso pensamento de um a outro. O silogismo pode ser extremamente simples, como aquele que vai nos servir de exemplo. Mas ele está presente também em argumentações extremamente complexas. Assim, por exemplo, o silogismo que desde séculos se repete nas escolas:

Todo homem é mortal. Sócrates é um homem. Portanto, Sócrates é mortal.

O problema consiste em poder justificar uma relação fundadora entre Sócrates e seu caráter mortal. Por que ele é mortal? Porque é homem! E este é o termo que nos vai servir de termo intermediário segundo uma proposição geral que vale para todos os homens. “Todo homem é mortal”, isso é certo porque evidente; portanto vale para o caso particular de Sócrates que é um homem. O termo homem serviu aqui como mediador entre a afirmação A e a afirmação B. Não lhe resta mais nada senão desaparecer. Este silogismo elementar, que não nos ensina nada, decompõe em todos os seus elementos uma afirmação que já conhecemos bem, porque ele repousa, para nós, de maneira inconsciente, sobre raciocínios desse gênero. A linguagem funciona porque ela é ao mesmo tempo nós mesmos e o outro: é ela que nos permite, de alguma maneira, passar de um ao outro. Ela é mediadora. Assim compreendemos por que a linguagem está no coração da reflexão filosófica.

Tomemos agora o exemplo da  matemática, na qual o sinal = funciona em qualquer teorema. Um teorema progride a partir de uma sucessão de equações. Mas em cada progresso da argumentação, os elementos da equação mudam, de um e do outro lado. O sinal = é o termo intermediário necessário para o progresso da argumentação. Mas em si mesmo ele não é nada: ele desvanece desde que tenha provado a perfeita equivalência dos dois lados da equação. Se em determinado momento a perfeita equação não foi respeitada, todo o raciocínio cai em ruínas.

Todas essas reflexões sobre a linguagem recebem um sentido extremamente forte para o cristão quando ele descobre que o evangelho de João chama a pessoa de Jesus de Verbo, ou seja, de Palavra. Nele, a palavra divina tornou-se palavra humana, o Verbo feito carne. Isso era indispensável para estabelecer uma comunicação plena entre a linguagem de Deus e a linguagem do ser humano. Em Jesus, Deus aprendeu nossa língua. Nele realiza-se a plena revelação e comunicação de Deus aos homens e a perfeita resposta do homem a Deus, na obediência e no amor. Em Jesus mediador, a comunhão imediata entre Deus e o homem se realiza num movimento constante de intercâmbio entre a revelação de Deus e a oração do homem. Este intercâmbio se realiza nele por nós, para nos colocar, por nossa vez, em comunhão imediata com o Pai. Mas a Palavra que é Jesus é divina: ela não desvanece como uma simples palavra humana. Convém dizer, simultaneamente, que ela se desvanece e que ela não se desvanece. Ela se desvanece, e ela manifestou esse desvanecimento na morte – a kénosis – na cruz, pois de outro modo ela não teria cumprido até o fim a mediação que permite nossa passagem até Deus. Ela não se desvanece, pois esse movimento do duplo “sim” de Deus ao homem e do homem a Deus é, doravante, eterno. Dele depende nossa comunhão com Deus de sempre para sempre.

O Cristo não estabelece competição entre Deus e o homem: ele é totalmente um e o outro. Todos os caminhos que vão de Deus ao homem e do homem a Deus cruzam-se nele. Nele, o inteiro mistério da Trindade entra em comunhão com a humanidade inteira. Aí está a origem e a realização dos dois movimentos do intercâmbio mediador, o movimento descendente que vai de Deus ao homem e o movimento ascendente que vai do homem a Deus. As grandes categorias da Bíblia e da Tradição acerca da redenção hão de se inserir espontaneamente neste duplo movimento. Apresentemos, pois, alguns exemplos.

4 Algumas testemunhas na tradição

Na Escritura, os testemunhos dados privilegiam claramente o movimento descendente da mediação, sem, contudo, esquecer o movimento ascendente. O Cristo nos salva, em primeiro lugar, porque é o revelador do conhecimento de Deus. O tema mais frequente é o da redenção, no sentido de resgate, ou seja, da liberação, e também o da libertação, realizada pelo combate vitorioso do Cristo contra as potências do mal. O Cristo é também aquele que nos traz a participação na divindade, o divinizador, do mesmo modo como ele realiza nossa salvação, simultaneamente como Deus e como homem, pois ele veio até os seus – e isso se refere a nós – em uma transmissão “de homem a homem”. Mas Jesus realiza também o dom sem retribuição do homem a Deus, pois do dom de Deus ao homem pode por ser acolhido e recebido. Assim como Deus se deu a si mesmo a nós, a retribuição não se pode realizar sem o dom de si do homem a Deus, dom que efetiva sua passagem em Deus. O dom de si é o sacrifício, que está ligado aos termos de propiciação, de satisfação (esta, amiúde demais mal-entendida, como se devesse provir de uma compensação) e de representação. Hoje, dá-se mais atenção ao tema da solidariedade assumida pelo único mediador com a humanidade.

4.1 Ireneu de Lião (de 140-202)

Ireneu de Lião tem meditado com atenção sobre os textos da Escritura que evocam a mediação de Cristo e até fez deles a teoria:

Ele então misturou e uniu o homem a Deus. Pois se se não fosse um homem que tivesse vencido o adversário do homem, o inimigo não teria sido vencido em toda justiça. Por outro lado, se não fosse Deus que nos tivesse outorgado a salvação, nós não a teríamos recebido de modo estável. E se o homem não tivesse sido unido a Deus, ele não teria podido receber em participação a incorruptibilidade. Pois era necessário que “o mediador de Deus e dos homens”, por seu parentesco com cada uma das duas partes, as conduzisse uma e outra à amizade e à concórdia, de modo que ao mesmo tempo Deus acolheu o homem e que o homem se ofereceu a Deus. Como poderíamos nós, de fato, ter parte à filiação adotiva, se não tivéssemos recebido, pelo filho, a comunhão com Deus? E como teríamos recebido a comunhão com Deus, se seu verbo não tivesse entrado em comunhão conosco tornando-se carne? (IRENEE DE LYON – III, 18,7, reed. 1984, p. 365-366).

Este belo texto de Ireneu nos explica com toda a clareza a mediação de Cristo. Ela tem por fundamento o duplo parentesco do Verbo encarnado com Deus e com o homem. É graças a isso que o mediador pode reconduzir as duas partes à amizade e à concórdia (ponto de vista redentor) e dar ao homem a filiação adotiva e a comunhão com Deus (ponto de vista divinizador). Mas há um outro traço que recebe a atenção de Ireneu. Para ele, a vitória do demônio sobre a humanidade foi profundamente injusta. Para que a justiça seja plenamente realizada, “é preciso” que o próprio vencido, isto é, o ser humano, consiga a vitória sobre o inimigo. Não se trata de modo algum de fazer justiça a Deus, mas ao homem, que injustamente foi feito pecador. Para Ireneu, há dois aspectos da mediação: “ela é redentora enquanto nos livra do pecado; ela é divinizadora enquanto nos dá a filiação adotiva:

“Pois esta é a razão pela qual o Verbo se fez homem e o Filho de Deus filho do homem: para que o homem, ao me misturar com o Verbo e ao receber assim a filiação adotiva se torne filho de Deus” (IRENEE DE LYON – III, 19,1, reed. 1984, p. 368).

Conforme as passagens, Ireneu realça uma dominante mais divinizadora ou mais “reconciliadora”:

É porque nos últimos tempos, o Senhor nos restabeleceu na amizade por meio de sua encarnação : tornado “mediador de Deus e dos homens” ele inclinou a nosso favor seu Pai contra quem tínhamos pecado e ele o consolou de nossa desobediência por sua obediência, e ele nos acordou a graça da conversão e da submissão a nosso criador. (IRENEE DE LYON – III, 17,1, reed. 1984, p. 619)

Cristo “inclinou” e “consolou” o Pai depois de nosso pecado: expressões antropomórficas, porém muito mais eloquentes e justas do que a ideia de “punição vingadora” e “compensação”.

Jesus é o mediador de nossa redenção porque antes foi mediador de nossa criação. “O Filho de Deus, que já se encontrava impresso em forma de cruz no universo” (IRENEE DE LYON, Démonstration (…) SC 406, p.131-133), “veio de modo visível no seu próprio domínio, se fez carne e foi suspenso no madeiro, a fim de recapitular todas as coisas em si mesmo” (IRENEE DE LYON – V, 18,3, reed. 1984, p. 625). Assim a humanidade de Cristo é a “placa giratória” da comunicação dos dons de Deus à nossa humanidade. Tertuliano retomará a mesma ideia, dizendo que “Cristo é a dobradiça da salvação” (TERTULLIEN, La résurrection (…) VIII ; PL 2, 806, ab).

4.2 De Agostinho a Tomás de Aquino

Entre Ireneu e Agostinho, Orígenes voltou à temática da mediação. Nos séculos IV e V os grandes debates sobre a Trindade e a cristologia encontraram seu argumento soteriológico principal na afirmação das condições que permitam ao Cristo ser um autêntico mediador entre Deus e os homens. Se não é verdadeiramente Deus, igual e “consubstancial” ao Pai, ele não pode divinizar-nos (Atanásio contra Ário). Se não é verdadeiramente homem, tendo participado plenamente em nossa condição comum, então não é a nós que ele assumiu, e nós ficamos fora da salvação que ele trouxe (Gregório Nazianzeno). Se ele não é um só e o mesmo como Deus e como homem, o ligame que ele quer constituir entre Deus e nós é rompido e não há mais mediação nem salvação. “É preciso que ele possua o que é nosso para que possuamos o que é dele” (CYRILLE, Le Christ (…) 722 a-b ;  S.C 97, reed. 1964, p. 327-329), diz Cirilo de Alexandria no seu debate com Nestório. Mas olhemos antes o testemunho de Agostinho, para o qual a mediação de Cristo não é somente uma afirmação doutrinal essencial, mas também o lugar de uma experiência pessoal, particularmente libertadora.

Encontramos nele uma análise bem exata daquilo que é a mediação salvífica de Cristo: a presença coexistente nele da divindade humana e da humanidade divina.

Ele é mediador de Deus e dos homens, porque ele é Deus com o Pai e homem com os homens. O homem não poderia ser mediador, separadamente de sua divindade ; Deus não poderia ser mediador, separadamente de sua humanidade. Eis o mediador: a divindade sem a humanidade não é mediadora; a humanidade sem a divindade não é mediadora; mas entre a divindade sozinha e a humanidade sozinha se apresenta como mediadora a divindade humana e a humanidade divina do Cristo (AUGUSTIN, Sermon 47, 21; PL 38, 310; Vivès 16, p. 307).

Mas Agostinho não para neste ponto; nos meandros de sua própria conversão ele fez uma experiência desta afirmação doutrinal. Ele não podia chegar ao verdadeiro conhecimento de Deus porque se recusava a reconhecer Jesus Cristo, o único mediador.

Eu buscava a via, para adquirir o vigor que me tornaria capaz de gozar de ti; e não encontrava, enquanto eu não tivesse abraçado “o mediador entre Deus e os homens, o Homem Jesus Cristo, que está acima de tudo, Deus bendido para sempre” (1Tm 2,5); ele chama e ele diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); e a comida que por fraqueza eu não podia tomar, ela se mistura à carne, pois “ o Verbo se fez carne” (Jo 1,14), a fim de que por nossa infância tua sabedoria se tornasse leite, ela por quem tu cristes todas as coisas.

É que eu não era suficientemente humilde, para possuir, meu Deus, o humilde Jesus, e eu não sabia qual ensinamento dá sua fraqueza. (AUGUSTIN, Confessions, VII, 18,24;  p. 631)

É realmente admirável esta última fórmula. Para Agostinho, o que levou Cristo à aniquilação (a kénosis) da cruz foi sua humildade. E esta é também a grande originalidade do cristianismo. Decerto, Agostinho tinha lido nos platônicos que no princípio havia o Verbo, mas “Quanto a isto: ‘Ele veio no seu próprio domínio e os seus não o receberam, mas aos que o receberam ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus crendo em seu nome (Jo 1,11-12), isso eu não li” (AUGUSTIN, Confessions, VII, 9,13; p. 609).

Agostinho, enfim, fez a experiência de toda a sua fraqueza e aceitou ir até a humildade que lhe permitia entrar em comunhão com a humildade do único mediador. Este, então, o liberava de suas amarras e o colocava em comunhão com Deus mesmo. Deus veio a nós para que nós pudéssemos ir até ele.

Agostinho passou do termo “mediação” para o de sacramento, que em seu texto não tem exatamente o sentido preciso que nós lhe damos hoje, mas dele se aproxima bastante. Para Agostinho, o sacramento é um mistério, ou seja, uma realidade que associa um gesto humano que tem sentido em nosso mundo a um dom propriamente divino que o transcende. O batismo é um rito exterior de ablução e de purificação. Mas o batismo, objeto de um mandamento de Jesus a seus discípulos, é rico do dom transcendente de Cristo que nos lava de todo pecado e nos faz participar de sua vida divina. O gesto humano é o signo exterior do dom divino que o ultrapassa infinitamente. O primeiro nos revela o mistério do segundo, o visível é o signo do invisível. O sacramento é, assim, o mediador visível de um mistério divino invisível. Por trás deste sacramento está a humanidade do próprio Cristo, que pode ser considerado como o sacramento primeiro e fundador da Igreja, que por sua vez se tornou sacramento, e também dos sete sacramentos:

a humanidade de Cristo é o sacramento da presença e da atividade do Verbo; a morte na cruz é o sacramento da misericórdia de Deus, do ato pelo qual ele nos comunica a vida divina. Vê-se e não se vê. Vê-se o Cristo morrer, mas essa morte é comunicação da vida divina à humanidade, eficácia em e através de um acontecimento na história e um evento sensível e corpóreo (AGAËSSE, 1980, p. 59).

Mas demos a palavra ao próprio Agostinho:

Revestido de uma carne mortal, morrendo só por meio dela, ressuscitando só por meio dela, só por ela ele se pôs em uníssono conosco para a morte e para a ressurreição, tornando-se por ela sacramento para o homem interior e exemplo para o homem exterior. (AUGUSTIN. La Trinité, IV 3,6 ; BA 15, 1955, p. 351)

            A Idade Média acompanhou sem dificuldade esse passo, associando mediação e reconciliação, como mostra este texto singelo de Tomás de Aquino:

O ofício do mediador consite em unir aqueles entre os quais ele exerce esta função: pois os extremos são juntos pelo termo mediano. Ora, perfazer a união dos homem com Deus convém sem nenhuma dúvida ao Cristo, já que, por ele, os homens são reconciliados com Deus, segundo esta palavra da epístola aos Coríntios: “Deus reconciliava o mundo com ele mesmo no Criso” (2Cor 5,19). Em seguida o Cristo, enquanto que, por sua morte, ele reconciliou o gênero humano com Deus, é o único e perfeito mediador entre Deus e os homens. (SAINT THOMAS. Commentaire sur les sentences, L. IV, D. 48, Q.1, a. 2, sol.)

4.3 Hoje

O tema da mediação única de Cristo está sempre presente na teologia da época moderna e dos dias de hoje. Ele até conhece uma renovação a partir do tema da reconciliação, que é muito caro a nosso tempo. No século XIX, ele se encontra em Matthias Scheeben (1947, p. 410-419):

Jesus Cristo é, efetivamente, o mediador entre Deus e o homem, porque nele a reconciliação do homem e seu ser reconciliado com Deus se tornaram um único e mesmo acontecimento. A existência de Jesus Cristo (…) é toda inteira, ela não é outra coisa que seu ser e sua obra de mediação. Em outros termos, Jesus Cristo é o único mediador entre Deus e os homens. (BARTH, 1968, p. 129)

Do lado católico, Karl Rahner aborda a mediação de Cristo do ponto de vista da teologia transcendental que lhe é familiar. O próprio desta teologia consiste em interpretar a transcendência que habita todo ser humano, isto é, seu desejo incoercível de ultrapassar todas as coisas criadas para chegar até Deus, o único que pode fundar sua existência e lhe conferir sentido. Esta teologia se coloca sempre a pergunta das condições de possibilidade existindo no homem para que possa aderir aos diversos aspectos do mistério cristão. Onde, portanto, situa-se se no homem a pressuposição da mediação de Cristo? Ela repousa simplesmente no fato de que o homem é um ser que vive da intercomunicação de todos os seres humanos entre si. Esse dado inscreve o ser humano em uma multidão de mediações, visto que ele chega da parte deles e doando-se por sua vez a eles. Esse intercâmbio constante não é outra coisa que a circulação do amor humano; cada um só pode se realizar abrindo-se aos outros, acolhendo o dom que lhe é oferecido. Mas este intercâmbio pressupõe um amor absoluto que o fundamenta e o torna possível. Esse amor só pode ser propriamente divino. A intercomunicação dos seres humanos entre si só pode ter seu cume e seu fim na pessoa de Cristo, mediador absoluto dado por Deus.

Outros teólogos, como Yves de Montcheuil e Edward Schillebeeckx aproximaram – como anteriormente Agostinho – o tema da mediação e o do sacramento. Assim, o sacrifício de Cristo, ou seja, o dom total de sua vida até a morte na cruz que efetiva a sua passagem para Deus, é o sacramento mediador do sacrifício de toda a humanidade e da passagem para Deus de toda a humanidade.

O sacrifício de Cristo é (…) o sacramento do sacrifício da humanidade (…) O sacrifício histórico realizado uma vez em um momento do tempo e em um lugar determinado é o sacramento do sacrifício realizado pelo Cristo total. Encontramos aqui a ideia (…) de que Cristo é o primeiro sacramento, o grande sacramento (MONTCHEUIL, 1951, p. 53).

A vida da humanidade através dos tempos é comparada a um único e longo sacrifício, isto é, ao dom de si mesma, que a faz passar progressivamente em Deus. O sacrifício de Jesus na cruz é ao mesmo tempo o mediador e o sacramento.

Do mesmo modo, para E. Schillebeeckx, Cristo é o sacramento ou a mediação do encontro de todos os homens em Deus. De fato, o encontro do Cristo terrestre é o sacramento do encontro com Deus. Todos os atos da vida de Jesus foram ao mesmo tempo a manifestação do amor divino à humanidade e a atuação do amor humano para com Deus. Mas este deve conservar através do tempo tal visibilidade concreta. Tal é o papel da Igreja, sacramento fundado por Cristo, que permanece o único sacramento fundador, Igreja que é o signo vivo e que assim exerce também o ministério da única mediação de Cristo.

Chamamos hoje o sacramento da penitência de sacramento da reconciliação. Vocabulário certamente mais feliz que o anterior, pois este sacramento é o encontro mediador e salvífico, realizado visivelmente na Igreja, do cristão sempre pecador com o Cristo, sacramento antigamente visível e hoje invisível de nossa salvação, e único mediador entre os homens e Deus, o eterno Deus, que aceitou tornar-se homem por nós.

Bernard Sesboüé, SJ. Centre Sèvres, Paris. Texto original francês. Tradução J. Konings.

5 Referências bibliográficas

AGAËSSE, P. L’anthropologie chrétienne selon saint Augustin. Image, liberté, péché et grâce. Paris: Centre Sèvres, 1980.

AUGUSTIN. Confessions VII, 18,24. livres I-VIII. 9. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1966 (Tradução portuguesa : Confissões. 8. ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1975)

______. Sermon, Patrologiae latinae: Sancti Aurelii Augustini Opera omnia. Paris: J. P. Migne, 1841 V. 38 Pt 5/1. (Series Latina, 38)

______. La trinité (livres I-VII). Paris: Desclee de Brouwer, 1955 613 p. V. 15. (Bibliotheque augustinienne). (Tradução portugues: A Trindade. Sao Paulo: Paulus, 1995)

BARTH, K. Dogmatique, IV, 1,1, 58; Genève : Labor et Fides, 1968, t. 17.

CYRILLE D’ALEXANDRIE. Le Christ est un. In Coll. Source Chrétienne 97, Paris: Cerf, 1964.

IRENEE DE LYON. Contre les hérésies. Dénonciation et réfutation de la gnose au nom menteur, III, 18,7 ; trad. A. Rousseau. Paris : Cerf, 1984.

______.  Démonstration de la prédication apostolique, 34. In Source Chrétienne, 406, 1995.

______. Contre les hérésies, V, Paris: Cerf, 1969 .

MONTCHEUIL, YVES DE. Mélanges théologiques. Paris : Aubier, 1951.

SAINT THOMAS. Commentaire sur les sentences, L. IV, D. 48, Q.1, a. 2, sol. (ver edição digital : http://docteurangelique.free.fr/bibliotheque/sommes/SENTENCES4.htm)

SCHEEBEN, M. Les mystères du christianisme, 62. trad. A. Kerwoorde. Paris: D.D.B. 1947.

TERTULLIEN. La résurrection de la chair, VIII; PL 2, 806, ab. (versão origianl digital : https://books.google.com.br/books?id=O5JBAAAAcAAJ&pg=PA811&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false)

VANHOYE, A. Prêtres anciens et prêtre nouveau selon le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1980.

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