Creio na Ressurreição da carne

Sumário

1 A ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição

2 Fundamentos e características da ressurreição segundo São Paulo (1Cor 15)

3 Ressurreição da carne: antecedentes histórico-dogmáticos

4 Síntese sistemática

4.1 A ressurreição da carne implica a salvação da totalidade humana

4.2 Ressurreição da carne e consumação comunitária-social

4.3 Ressurreição da carne e consumação cosmológica

5 Referências bibliográficas

 1 A ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição

 A comunidade cristã celebra e continua proclamando ao mundo que Jesus de Nazaré, o crucificado, ressuscitou. Com esta mensagem sem precedentes culminam os quatro Evangelhos do Novo Testamento (Mt 28,5-7; Mc 16,5-7; Lc 24,4-7; Jo 20,12-13). Cristo ressuscitou vencendo a morte e sua vitória é uma antecipação daqueles que morreram, ensina São Paulo quando reflete sobre a fé na ressurreição (1Cor 15,20). “E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,14). A comunidade apostólica ensina que Jesus, o Nazareno, que “andou fazendo bem” (At 10,38) e realizando vários sinais, anunciando o reinado de Deus, foi condenado à morte numa cruz, pendurado em uma árvore, e esse mesmo Jesus foi ressuscitado por Deus e constituído Kyrios e Cristo, Senhor e Messias (At 2,14-36; 3,12-26; 4,8-12; 10,34-43; 13,16-41). Jesus é o Senhor (Kyrios) e Cristo porque o próprio Deus o ressuscitou no Espírito. Pelo mesmo motivo, desde o início da fé cristã existe a convicção que Deus antecipou em uma pessoa concreta, no Nazareno, o evento escatológico fundamental: a superação definitiva e permanente da morte, o Crucificado ressuscitou. No Cristo ressuscitado, todas as promessas de Deus são cumpridas e, portanto, ele é constituído Senhor da vida e da história humana, fundamento da nossa esperança e da nossa futura ressurreição.

O que Jesus viveu é uma esperança de salvação para todos nós: “porque se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10,9). Por esta razão, celebramos e fazemos festa na  permanente liturgia e louvor da Igreja, porque a morte já não tem a última palavra. Nossa vida não é mais a crônica de uma morte anunciada, mas, pelo contrário, é uma vida na qual já experimentamos o amor de Deus e sua presença constante, e onde por sua graça se podem antecipar sinais de alegria, paz, fraternidade e justiça que um dia viveremos plenamente. A esperança de uma vida eterna, de uma felicidade ilimitada, de uma comunhão plena de vida e amor com Deus e com todos os bem-aventurados já tem seu fundamento em Jesus Cristo ressuscitado. “E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos também dará vida a vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vós” (Rm 8,11).

2 Fundamentos e características da ressurreição de acordo com São Paulo (1Cor 15)

 A exegese considera que o capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios é fundamental para entender o alcance da fé na ressurreição. Na comunidade de Corinto, se manifestavam certas dificuldades doutrinárias devido à cultura do mundo grego ou a interpretações errôneas sobre a ressurreição. O mundo grego podia admitir facilmente a ideia de uma imortalidade da alma, mas teve sérias dificuldades em admitir a ressurreição. Para Paulo, “a negação de uma ressurreição corporal desintegra os próprios fundamentos da fé e termina com a genuína esperança da salvação, que só pode ser uma salvação encarnada e escatológica” (RUIZ DE LA PEÑA, 2000, p.153).

Sublinhando sua perspectiva cristocêntrica, Paulo reitera enfaticamente que o fundamento da ressurreição dos mortos é a ressurreição do próprio Cristo; os mortos ressuscitam porque Cristo ressuscitou (vv.12-19). Na mesma linha, o Cristo ressuscitado é chamado duas vezes de “primícias”, pelo qual “vem a ressurreição dos mortos” (vv.20-28). Para responder à pergunta sobre o modo da ressurreição (como ressuscitou?), Paulo escolhe um caminho analógico. Usa a imagem da semente; Deus dará um corpo segundo sua vontade: a cada semente (semeada) seu corpo. Descreve, em seguida, a relação entre o corpo terrestre, animado (psíquico) e o corpo do homem ressuscitado, corpo espiritual (soma pneumatikon), estabelecendo quatro antíteses delineadas nos seguintes termos: “Semeia-se o corruptível, ressuscita incorruptível; semeia-se miserável, ressuscita o glorioso; semeia-se o débil, ressuscita forte; semeia-se um corpo animado, ressuscita um corpo espiritual” (1Cor 15,42-44). Longe dos modelos de oposição e exclusão entre matéria e espírito, característicos do pensamento grego, o que propõem essas antíteses é estabelecer a continuidade e a descontinuidade entre o corpo terreno da condição peregrina e o corpo dos ressuscitados. Paulo mostra e ensina que a ressurreição dos mortos só pode ter seu fundamento na ressurreição de Jesus Cristo e

se esta não puder ser conceitualizada ou explicada adequadamente (…) tampouco aquela. No entanto, podemos falar de nossa ressurreição, em analogia com a de Cristo – como o faz Paulo – e proclamá-la como obra do poder de Deus efetuada através do Espírito vivificante (…) Por isso, podemos esperar que vivamos “sempre com o Senhor” e também com os demais ressuscitados. (KREMER, 1970, p.85)

 Para Paulo, é inimaginável a vida futura sem soma. Nas palavras de J. Gnilka “nesta totalidade (soma) sentimentos, pensamentos, experiências e ações não são separados um dos outros (…) Para Paulo, o corpo é absolutamente inseparável do eu humano” (1970, p.133). De qualquer forma, é um corpo que se transforma (1Cor 15,51) pela ação do Espírito, que “dá origem a um ‘corpo espiritual’, cheio de ‘poder’ e sem fraqueza, incorruptível e imortal”, explicita A. Puig i Tarrech (2014, p. 278).

Segundo J. Ratzinger, de acordo com o pensamento de Paulo, o modelo de interpretação para entender a corporeidade do homem ressuscitado surge da experiência do Cristo ressuscitado e da sua nova corporeidade. “Ao realismo fisicista não se contrapõe um espiritualismo, mas um realismo pneumático” (2007, p.185). O próprio teólogo faz ver que:

 Quanto à materialidade da ressurreição, praticamente tudo permanece aberto. Sua condição do totalmente diferente é afirmada. Não se pode dizer com certeza o que significa positivamente o seu realismo pneumático, que se contrapõe às espiritualizações. A ideia que, no final e, em todo caso, a totalidade da criação de Deus entra na salvação, é tão clara que qualquer sistematização reflexiva do material bíblico deve levar essa ideia em consideração (cf. especialmente 1Cor 15,20-28). (RATZINGER, 2007, p.187)

 Por sua vez, B. Sesboüé, também reiterando que a ressurreição de Jesus é modelo exemplar e causa da ressurreição dos mortos, acrescenta: “A afirmação da ressurreição geral dos mortos está em estreita correspondência com o interesse que Jesus mostra continuamente durante todo o seu ministério pelo corpo humano” (2000, p.612). O que a exegese bíblica quer enfatizar sobre o pensamento de Paulo é que

 [ele] não postula uma corporeidade imaterial ou uma espiritualidade separada do corpo. É uma unidade em que o material e o espiritual convergem. O pneuma é a força que informa o corpo. Soma não designa em Paulo uma parte do homem, mas todo o homem, sua própria realidade ontológica. “Corpo espiritual”, portanto, não significa um corpo de matéria etérea, mas o homem totalmente divinizado pelo Espírito do Senhor. (NOEMI, 1996, p.91-92).

 De fato, “o corpo não é dado somente de modo adâmico, de ‘corpo animado’, mas também ao modo cristológico devido à ressurreição de Jesus Cristo, enquanto corporeidade graças ao Espírito Santo” (RATZINGER, 2007, p.185).

Em resumo, São Paulo quer superar dois extremos possíveis em seu tempo: 1) o espiritualismo grego fundado exclusivamente na imortalidade da alma, e 2) a ideia judaica de identidade quase física do corpo ressuscitado com o mortal. Nada sugere que o corpo ressuscitado seja entendido como reanimação ou recuperação do cadáver. Mas tampouco pode ser entendido sem o soma transformado. Em suma, existe, entre o corpo do ser humano histórico-peregrino e o ressuscitado, descontinuidade e também continuidade (PUIG I TARRECH, 2014, p.276-278; SESBOÜÉ, 2000, p.610-612; KREMER, 1970, p.76-87; GNILKA, 1970, p.127-135; NOCKE, 1984, p.80-83).

3 Ressurreição da carne; antecedentes histórico-dogmáticos

Fica evidente, a partir dos antecedentes bíblicos, que o essencial é que a ressurreição de Jesus não é apenas o fundamento da nossa fé na ressurreição corporal, mas, de fato, torna possível e implica a ressurreição de todos os mortos no final da história. Os primeiros símbolos da fé refletem essa convicção fundamental de maneiras diferentes. Sobre isso, B. Sesboüé, mostra que

os dois credos cristãos usam, a esse respeito, uma linguagem algo diferente: Oriente (Niceia-Constantinopla) menciona “a ressurreição dos mortos e a vida do mundo futuro”; O Ocidente, por outro lado, fala da “ressurreição da carne e da vida eterna”. Por este termo “carne” é necessário compreender não a totalidade de nossos músculos, mas o “corpo” humano, enquanto humano e, como foi analisado aqui, de acordo com sua condição histórica, limitada e frágil. A linguagem de São João não hesita diante deste termo bastante “cru” de “carne”. É por isso que ele diz: “A Palavra se tornou carne” (Jo 1,14), isto é, assumiu verdadeiramente nossa condição humana corporal e carnal. (2000, p.611)

 Para refutar e se distanciar das reduções espiritualizantes da categoria “corpo espiritual”, que surgiram com os cristãos do segundo século sob influência gnóstica, começou-se a usar a expressão “ressurreição da carne”. Os especialistas mostram que, por esta razão, teria sido incluída no antigo símbolo romano para neutralizar as interpretações espiritualistas de tipo dualista e a mesma razão explica que a fórmula tenha sido transferida e mantida em muitos credos. C. Pozo observa que “inclusive deve se reconhecer uma progressiva acentuação do realismo nas fórmulas da fé: da fórmula ‘ressurreição da carne’, se começa posteriormente a sublinhar que a ressurreição se fará ‘nesta carne em que vivemos agora’ (Fides Damasi, DH 72)” (1993, p.42).

J. Ratzinger, em seu livro Escatologia, e depois de estudar o uso da fórmula “ressurreição da carne” nos três primeiros séculos (recolhendo as contribuições de Irineu de Lyon e Justino em polêmica com o gnosticismo de Valentin), conclui que “no final, ficou claro que a ‘ressurreição da carne’ significa a ressurreição das criaturas apenas na suposição que também signifique a ressurreição do corpo” (RATZINGER, 2007, p.191). Diante do risco de gnosticismo e dualismo, a defesa e valorização da “carne”, como uma expressão irrenunciável da corporeidade e integridade do ser humano, tornou-se, nos primeiros séculos, uma questão crucial.

Entre os Padres, Irineu de Lyon e Tertuliano destacam-se por sua manifesta opção nesse esforço e valorizam a salvação da carne como central para a fé e a esperança cristãs[1]. Comentando o mesmo texto Sobre a ressurreição da carne, de Tertuliano[2], que em outro lugar se refere à carne como “a irmã de Cristo” e ressalta que Deus “ama a carne”, Sesboüé observa que este escrito:

traz a marca dos acentos cordiais de um cristão do início do terceiro século: nossa “carne” é a irmã de Cristo. Se salvará na ressurreição, como na de Cristo, com o mesmo direito que tudo o que faz parte da nossa condição concreta, e com a mesma continuidade e a mesma descontinuidade entre nosso estado atual e nosso estado futuro (2000, p.613).

Confrontado com o dualismo, o Magistério sempre ensinou que os mortos ressuscitarão com seus próprios corpos. Ainda ecoam as palavras do XI Conselho de Toledo no ano 675: “acreditamos que ressuscitaremos, não em uma carne aérea ou de qualquer outro tipo como alguns deliram, mas nesta em que vivemos, subsistimos e trabalhamos” (DH 540). Ou seja, ressuscita um corpo humano e o mesmo corpo humano (identidade específica e numérica) transfigurado, corpo glorioso. Pela mesma convicção de unicidade da pessoa humana e do valor próprio do corpo, criatura de Deus, desde os primeiros séculos ouviram-se vozes críticas que não aceitaram a doutrina da transmigração de almas, entre outras razões, por causa de seu desprezo pela corporeidade. Além de Irineu e Tertuliano, destacam-se as opiniões de Justino, Minucio Felix, Teófilo de Antioquia e Santo Agostinho, que em diferentes momentos culturais manifestam a sua rejeição às teorias reencarnacionistas entre os séculos II e V (POZO, 1993, p.165-185). No ano 561, também o II Concílio de Braga rejeita ideias semelhantes defendidas pelas tendências maniqueístas dos seguidores de Prisciliano (DH 456). Na Idade Média, o IV Concílio de Latrão, XII ecumênico, realizado em 1215, em sua definição contra o dualismo radical dos cátaros, que também rejeitaram o corpo por o considerarem perverso, lembra que Jesus Cristo “deve vir no final dos tempos, há de julgar os vivos e os mortos e dará a cada um de acordo com suas obras, tanto aos réprobos quanto aos eleitos: os quais ressuscitarão todos com os próprios corpos que agora possuem” (DH 801).

Diante do desafio dualista em suas várias expressões, a teologia cristã sustenta a bondade da criação e das criaturas, da matéria e do espírito e, portanto, combina argumentos criacionais e escatológicos para afirmar tanto a bondade original quanto o destino eterno e glorioso do corpo humano.

Tanto o corpo como o espírito têm um futuro de plenitude pelo dom de Deus Criador e Consumador da história. O cristianismo acredita em um Deus Criador de tudo o que é visível e invisível, em um Deus que se define como Amor e que criou por amor a existência do outro, do diferente de si mesmo, em sua diversidade e pluralidade. Tanto matéria quanto espírito retornam a um único desígnio criador de Deus. O corpo é, portanto, tão digno, tão autêntico e completo como a alma. O ser humano, homem/mulher, é alma encarnada, síntese de matéria e espírito (PARRA, 2011, p.249).

Como ensina – nos tempos atuais – o Concílio Vaticano II:

Em sua unidade de corpo e alma, o homem, por sua mesma condição corporal, é uma síntese do universo material, o qual alcança, por meio do homem, sua mais alta elevação e levanta a voz para o livre louvor do Criador. Não deve, portanto, desprezar a vida corporal, mas, ao contrário, deve honrar e considerar bom seu corpo, como criatura de Deus há de ressuscitar no último dia. (GS, n.14)

 4 Síntese sistemática

1 A ressurreição da carne implica a salvação da totalidade humana

Com sua fé na ressurreição da carne, o cristianismo expressa sua esperança que toda a pessoa e todas as pessoas tenham um futuro que vá além da morte e que possam confiar que Deus cumprirá sua promessa de consumação. “Não há esperança apenas para uma parte da pessoa. À totalidade do ser humano pertencem sua corporeidade, sua sociabilidade e historicidade em relação à natureza” (PARRA, 2011, p.251).

É todo o ser humano, corpo e alma, que alcança – pela graça de Deus – sua plenitude. Com razão, Hans Urs Von Balthasar afirma que a ressurreição da carne seria melhor descrita como “ressurreição do homem” em sua totalidade “(2008, p.37-38). O que os teólogos querem enfatizar é que a corporeidade humana tem valor em si mesma, juntamente com todas as dimensões do humano. Nas palavras de J. Moltmann, “a esperança na ‘ressurreição da carne’ nos permite não menosprezar nem degradar a vida corporal nem as experiências dos sentidos, mas as afirma profundamente e concede sua suprema honra à ‘carne’ menosprezada” (2004, p.100).

Em analogia com a ressurreição do Crucificado e sua glorificação corporal (Fl 3,21),

os crentes também consideram sua morte como parte do processo em que toda esta criação mortal será glorificada e renascerá para o reino da glória. Pela “ressurreição da carne” entende-se a metamorfose dessa criação perecível que se tornará o reino eterno de Deus, e dessa vida mortal que se tornará vida eterna: vita mutatur, non tollitur[3] (MOLTMANN, 2004, p.112-113).

Gesché, com razão, observa que “é esse corpo aqui que ressuscitará (…_ Este corpo aqui é aquele que, como o grão de trigo, germinará na vida realizada, porque é a sua semente (…) O segredo do corpo (…) é ter um germe do corpo da glória” (1997, p.306). Lembremos que, de acordo com o pensamento de Paulo, o corpo semeado é aquele que ressuscita. Por esta razão, Gesché pode afirmar que “o corpo desta terra tem uma estrutura de ressurreição” (1997, p.306). Desde Cristo, o crucificado ressuscitado, “a ressurreição é agora o ato do Pai, em Jesus, pelo poder do Espírito, pelo qual ele remodela precisamente a criação” (GESCHÉ, 2002, p.203).

A partir daí, a ressurreição pertence à capacidade teologal do homem criado, Homo capax Dei, restituído assim à sua vocação de destino proposta na criação e remodelada na ressurreição, Homo capax resurrectionis. (…) A partir daí, o homem alcançará a salvação, isto é, o caminho do seu destino, sabendo dizer “sim” a sua natureza de ressurreição (GESCHÉ, 2002, p.204).

 Se a ressurreição da carne implica a ressurreição do homem em sua totalidade, isso significa que existe uma identidade pessoal entre o ser humano que se desenvolveu na história terrena e aquele que será ressuscitado. Para J. L. Ruiz de la Peña:

ressuscitar “com o mesmo corpo” significará (…) ressuscitar com um corpo próprio, isto é, um corpo que revela a própria e definitiva mesmidade, sem nenhum equívoco; um corpo que é mais meu que nunca, enquanto supremamente comunicativo do meu eu. O corpo glorioso (soma pneumatikon) de que Paulo fala é o eu que irradia a vida do Espírito, livre de todo automatismo inconsciente, o repositório de uma plenitude integral que vem do núcleo mais íntimo da pessoa e atinge e transfigura sua corporeidade. (2000, p.173-174)

 No mesmo sentido, o teólogo F. J. Nocke afirma que

 o corpo futuro, à diferença do presente, será imperecível; mas nosso corpo atual não será substituído por outro, mas transformado em outro (…) A esperança cristã não pretende que a existência atual seja simplesmente encurralada, jogada fora, esquecida em favor de outra existência totalmente distinta, mas que, em sua totalidade, seja elevada e transformada em uma existência indestrutível (1984, p.82).

 De acordo com o teólogo brasileiro L. C. Susin, “a ‘carne’ significa exatamente esse modo terreno, mortal, finito e frágil, marcado por lágrimas, alegrias, amores e trabalhos: esta carne, marcada pela história terrena, será transfigurada” (1995, p.127). Em suma,  ressurreição do corpo ou da carne significa que todo o ser humano – com a história de sua vida, com suas relações com os outros e com a natureza – tem um futuro e é redimido por Deus. Em uma palavra, ressuscita  a pessoa. Contra todo dualismo, que rejeita a carne ou o corpo, “a fé cristã defende a radical unicidade da pessoa humana: unicidade em sua origem, unicidade em seu destino final; e de uma pessoa que se desenvolve e cresce num mundo radicalmente bom por desígnio e graça de um Deus Criador e Consumador” (PARRA, 2011, p.249-250) do mundo e da história.

 4.2 Ressurreição da carne e consumação comunitária-social

O dom da plenitude consumada que traz consigo a ressurreição da carne não é um presente que receberá o indivíduo isolado do ambiente social e comunitário. Pelo contrário, a ressurreição da carne desejada e esperada será um evento comunitário e social, e que, portanto, integra a rede de relações humanas espaço-temporais que acompanhou sempre e historicamente o desenvolvimento de cada pessoa. Em suma, ressuscitamos não só porque Cristo ressuscitou dentre os mortos e a imagem do Cristo ressuscitado é causa exemplar nossa, mas também como membros participantes do corpo de Cristo. Com razão J. L. Ruiz de la Peña comenta sobre este último ponto: “a carne que ressuscita é, portanto, feita de proximidade, foi amassada no molde da sociabilidade. A ressurreição não será o resgate do náufrago solitário, mas a reconstituição da unidade original de toda a família humana” (2000, p.170).

Por ser precisamente uma esperança comunitária inseparável tanto da vida em comum como da comunhão, bem como do desejo de uma sociedade inclusiva e do bem comum na história, na esperança da ressurreição não pode estar ausente a questão da reconciliação final e da justiça. Refletindo sobre a necessidade de justiça e da reparação final de todo sofrimento injusto, Bento XVI declara que

Sim, existe a ressurreição da carne[4]. Existe uma justiça[5]. Existe a “revogação” do sofrimento passado, a reparação que restaura o direito. É por isso que a fé no Juízo Final é antes de tudo e sobretudo esperança, essa esperança cuja necessidade tornou-se evidente precisamente nas convulsões dos últimos séculos. (Spe Salvi, n.43)

A tradição cristã ensina que, finalmente, haverá justiça e que a verdade oculta de cada um será conhecida no momento da morte. A fé da Igreja sustenta que, imediatamente após a morte, pode haver comunhão com Deus e os bem-aventurados ou purificação escatológica, assim como também pode haver perdição ou autoexclusão eterna[6].

4.3. Ressurreição da carne e consumação cosmológica

Tanto o corpo como o espírito têm um futuro de plenitude pelo dom de Deus Criador e Consumidor da história. “O mundo material também participará da glorificação plena do homem.” (LIBANIO e BINGEMER, 1985, p.201).

A uma humanidade ressuscitada corresponde também um mundo transfigurado. Já foi dito que a promessa da ressurreição da carne assume o ser humano em sua integridade de maneira coerente com a antropologia cristã essencialmente não dualista. O cosmos criado sempre foi parte do plano salvífico que atravessa toda a história. A fé cristã concebe o fim do mundo que a parusia traz consigo como sua consumação e plenitude. A nova Terra e o novo céu esperados implicam transfiguração, nova criação como dom do Deus Criador e Consumador de tudo.

Para L. Boff,

em Jesus Cristo ressuscitado, temos um modelo que nos permite vislumbrar a realidade futura da matéria. Seu corpo material foi transfigurado pela ressurreição. Não deixou de ser um corpo e, por isso mesmo, uma porção da matéria. Mas essa matéria está tão penetrada por Deus e pela vida eterna, que revela maximamente Deus e com isso manifesta capacidades latentes na matéria, que agora são plenamente realizadas: tudo é glória, luz e comunhão, presença, transparência, ubiquidade cósmica. A matéria não é mais um princípio de limitação, peso e opacidade, mas uma expressão total do sentido, encarnação do espírito e princípio de comunhão e presença total. (1981, p.105-106).

O teólogo J. Ratzinger pensa que, na verdade, “é o homem inteiro que alcança a salvação, e é o mundo inteiro que participa nela” (1976, p.228). Sintetizando sua visão do mundo novo e a consumação que esperamos, o teólogo alemão reitera:

Como conclusão, vamos ficar com isso: não há como imaginar o mundo novo. Nem temos quaisquer tipos de enunciados concretos que nos ajudem a imaginar, de alguma forma, como o homem se relacionará com a matéria no mundo novo e como será o “corpo ressuscitado”. Mas temos a certeza que a dinâmica do cosmos leva a uma meta, a uma situação em que a matéria e o espírito estarão entrelaçados de forma nova e definitiva. Essa certeza ainda é hoje, e precisamente hoje, o conteúdo concreto da crença na ressurreição da carne (RATZINGER, 2007, p.210).

De fato, toda a criação é chamada a se transfigurar porque também tem que “ser libertada da escravidão da corrupção para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Retomando a sabedoria de São Bernardo de Claraval, o pensador francês J. L. Chrétien observou belamente que

Não é a presença, mas a ausência do corpo que impede a alma de “sair de uma certa maneira de si mesma e entrar toda ela em Deus”[7], numa eterna embriaguez. Pois tudo deve ser glorificado; nada deve faltar ao louvor, e no hálito com que damos graças a Deus, tudo deve estar presente para que não nos joguemos em Deus somente com nossa alma, mas com nosso corpo descoberto. Com o nosso corpo, também podemos dar-lhe tudo o que em nosso corpo trouxe a sua imagem, tudo aquilo diante do qual se manteve em pé, sinal do espírito, as montanhas e os rios, as árvores e as fontes, todo o mundo material santificado pela encarnação de Deus. Nada deve faltar ao  louvor (CHRÉTIEN, 2005, p.219).

No gozo da glorificação final participam todas as criaturas criadas por Deus e todos os seres louvarão Deus, seu criador (MOLTMANN, 2004, p.427-430). A glória de Deus comporta gozo e alegria eterna para todas as criaturas.

Destacando o dom da alegria da vida eterna na Spe Salvi, Bento XVI escreve que Jesus Cristo, “verdadeiro Pastor”, vencedor da morte, nos guia além da morte (n.6 e 27) e isso nos leva à vida. A esperança da vida verdadeira e eterna, que implica a ressurreição da carne, ultrapassa amplamente toda compreensão e representação (Spe Salvi, n.12-13). No entanto, algo podemos balbuciar: “quem foi tocado pelo amor começa a intuir o que seria propriamente a vida”. A vida verdadeira e eterna que, “totalmente e sem ameaças, é simplesmente a vida em toda a sua plenitude” (Spe Salvi, n.27), na qual seremos “inundados simplesmente pela alegria” (Spe Salvi, n.12).

O Concílio Vaticano II não só exclui a ideia de uma aniquilação do mundo no último dia, no evento consumador que traz a ressurreição final, como, enfatizando que é uma plenitude e felicidade que vão além das expectativas, também ensina a continuidade entre este mundo e a bem-aventurança eterna:

Ignoramos o tempo em que se dará a consumação da terra e da humanidade. Tampouco conhecemos de que forma o universo será transformado. A figura deste mundo, desfigurada pelo pecado, passa, mas Deus nos ensina que prepara um novo lar e uma nova terra onde habita a justiça, e cuja bem-aventurança seja capaz de satisfazer e superar todos os anseios de paz que surgem no coração humano. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado sob o signo de fraqueza e corrupção será revestido de incorruptibilidade e, permanecendo a caridade e suas obras, serão livres da servidão da vaidade todas as criaturas que Deus criou pensando no homem (GS, n.39).

Finalmente, e em conclusão, ao dizer “ressurreição da carne”, falamos de plenitude e extrema alegria do ser humano, de uma salvação do homem inteiro (corpo e alma), onde todas as suas relações fundamentais são consumadas em Deus Uno e Trino no mundo dado e transfigurado: um mundo de Deus onde, como ensina o Apocalipse, “não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou” (Ap 21, 4).

Fredy Parra. Faculdade de Teologia. Pontifícia Universidade Católica de Chile. Texto original em espanhol.

5 Referências bibliográficas

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VON BALTHASAR, H. U. Escatología en nuestro tiempo. Madrid: Encuentro, 2008.

[1] Segundo Irineu  “se a carne não devesse ser salva, não teria se encarnado o Verbo de Deus” (Irineu de Lyon,  Adv. haer., 5, 14, 1, PG 7, 116). No mesmo sentido, Tertuliano, no século III, pensa que “caro salutis est cardo”, “a carne é o princípio essencial da salvação” (Tertuliano, De carnis resurrectione, 8, 3; PL 2, 806).

[2] Tertuliano, De carnis resurrectione, 9; PL 2, 807 ab.

[3] Prefácio de Defuntos I, Missal Romano: “A vida não termina, mas será transformada”.

[4] Catecismo da Igreja Católica, n.988-1004.

[5] Catecismo da Igreja Católica, n.1040.

[6] Opções livres que “se estabeleceram no curso de toda a vida” podem ter como consequência “formas provisórias” de bem-aventurança ou condenação, de acordo com a ideia do judaísmo antigo sobre a condição intermediária entre a morte e a ressurreição que está presente na parábola do rico e o pobre Lázaro (cf. Lc 16,19-31). Imediatamente após a morte, pode haver comunhão com Deus e os bem-aventurados (Catecismo, n.1023-1029), bem como a perdição definitiva, uma “autoexclusão definitiva de comunhão com Deus e os bem-aventurados”, situação designada pela palavra “inferno” (Catecismo, n.1033). Para além dessas situações extremas, acrescenta Bento XVI, o mais normal é que em grande parte dos homens permanece, “na parte mais profunda de seu ser uma última abertura interior à verdade, ao amor, a Deus”, que requer purificação, no encontro com o Senhor, Juiz e Salvador (n.48), a fim de amadurecer plenamente para a comunhão definitiva com Deus (n.47), em um “tempo do coração”, momento da “passagem” para a comunhão com Deus no Corpo de Cristo (n.47, cf. Catecismo, n.1030-1032). O Papa reitera, mais uma vez, o caráter comunitário da salvação cristã, destacando a convicção – herdada do judaísmo antigo – que o falecido pode ser ajudado em sua condição intermediária através da oração (ver, por exemplo, 2Mc 12,38-45: 1º século aC). Cf. PARRA, 2011, p.265.

[7] Bernardo de Claraval, De diligendo Deo, III, 146.