Unção dos enfermos (Sacramento)

Sumário

1 O ser humano frente à enfermidade

2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura

2.1 No Antigo Testamento

2.2 No Novo Testamento

3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja

3.1 Dos séculos III ao VIII

3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento

3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II

4 Desafios pastorais

5 Referências bibliográficas

A abordagem sobre o sacramento da unção dos enfermos virá apresentada a partir dos seguintes pontos: 1) O ser humano frente à enfermidade; 2) A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura; 3) A enfermidade e a cura na prática da Igreja; 4) Desafios pastorais.

1 O ser humano frente à enfermidade

Dentre os muitos dramas enfrentados pelo ser humano está a doença. Sem marcar dia e hora ela chega, e sem previsão e duração de tempo ela se instala, trazendo consequências tanto para o paciente como para as pessoas que estão ao seu redor, sobretudo familiares e amigos. A busca da cura nem sempre é caminho fácil. Dependendo do lugar social em que o paciente se encontra, o drama pode transformar-se em pesadelo, como escassez de centros e profissionais da saúde, precária infraestrutura para atendimento dos enfermos. Nos tempos atuais, há o paradoxo do avanço da medicina e o consequente prolongamento da vida a qualquer custo. Em muitos casos, esse prolongamento tem levado pacientes e pessoas idosas ao isolamento, à marginalização, ao abandono.

É comum, no Brasil e em outros países da América Latina, o dilema dos pobres que, não tendo condições de arcar com elevadas taxas dos planos de saúde, se veem obrigados a enfrentar a dura realidade do descaso dos poderes públicos quanto à prevenção de doenças e ao atendimento médico e hospitalar. A privatização da saúde, além de seu caráter restritivo e elitista, tem se convertido em empreendimento rentável e lucrativo.

Esses e outros fenômenos têm impacto direto na comunidade de fé. Vale recordar, aqui, a clássica imagem do corpo e de seus membros descrita pelo apóstolo Paulo: “O corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos. […] Se um membro sofre, todos sofrem com ele” (1Cor 12,13.26). Em atenção a esses membros sofredores, a Igreja, desde seus primórdios, tem marcado presença e prestado assistência aos seus filhos e filhas enfermos.

2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura

Uma vez que os textos escriturísticos foram compilados em épocas e contextos bem distintos, buscar uma compreensão do sentido da doença e da cura na Bíblia é tarefa complexa. Por questão de espaço e pela brevidade deste estudo, limitar-nos-emos a apresentar apenas alguns elementos que poderão servir de base para o entendimento do sentido teológico-litúrgico do sacramento da unção dos enfermos.

2.1 No Antigo Testamento

O binômio doença-cura no Antigo Testamento deve ser compreendido a partir do contexto cultural do Oriente Antigo. Aqui, a doença aparece relacionada com as forças do mal e com o pecado. Uma forma comum de se obter a cura era a prática de exorcismos e ritos mágicos de cura. Na Bíblia, a questão da doença não é abordada de forma isolada ou mesmo do ponto de vista estrito da ciência, mas sim a partir da perspectiva religiosa, da relação do enfermo com Deus e vice-versa. A doença é tida como algo que afeta o ser humano na sua inteireza.

Mais que perguntar sobre a causa natural da doença, a Sagrada Escritura se ocupa de sua significação ou de seu porquê. Disso decorrem interpretações diversas, sendo comum a vinculação da enfermidade ao pecado, ao castigo de Deus e à possessão demoníaca. Também continuam sem respostas satisfatórias questões relacionadas com o sofrimento, sobretudo dos justos, como bem aparecem retratadas no livro de Jó.

Para a cura de enfermidades, recorre-se a meios terapêuticos extraídos da natureza, especialmente das plantas. Dentre esses produtos, destaca-se o óleo, que além de ser empregado na cura e purificação de doenças era também utilizado na consagração de objetos (altares e monumentos) ou de pessoas (sacerdotes, profetas e reis). O comportamento com os doentes consiste a dupla atitude: por um lado, aconselha-se a prática de visitá-los e dar-lhes a devida atenção (cf. Sl 40,4; Jó 2,11); por outro, a lei prescreve a exclusão da comunidade de todas as pessoas vítimas de doenças contagiosas como a lepra (cf. Lv 13-14; Nm 12,10.15). É nesse contexto que se deve compreender determinadas atitudes de Jesus para com os enfermos.

2.2 No Novo Testamento

No Novo Testamento, há inúmeras referências sobre diferentes tipos de doença (febre, hemorragia, hidropisia…), bem como sobre pessoas deficientes (coxos, cegos, surdos, mudos, paralíticos…). Os meios empregados para a cura são: óleo (Mc 6,13; Lc 3,18; Tg 5,14), vinho (Lc 10,34), colírio para os olhos (Ap 3,18), águas termais (Jo 5,2ss.), saliva (Mc 7,33; Jo 9,6), barro (Jo 9,6ss.). Jesus se utiliza desses meios terapêuticos para dar novo sentido ao mistério do sofrimento humano. Longe do curandeirismo, as curas realizadas por Jesus são, na verdade, sinais messiânicos da salvação acontecendo aqui e agora e apontam para a escatologia plena do Reino do Pai, onde não haverá sofrimento, nem choro, nem dor. Tais curas realizadas são sinais simbólico-sacramentais do poder libertador de Jesus em favor do ser humano integral, a saber: a cura da enfermidade do corpo e a libertação da pessoa do pecado e da morte.

Jesus, por um lado, desvincula a concepção de que a doença é consequência do pecado ou castigo de Deus. Por outro, procura incutir na mente de seus contemporâneos que a enfermidade pode ser enfrentada no âmbito da fé, como algo relacionado ao plano de Deus: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jo 9,3). Aliás, Jesus deu novo sentido ao sofrimento e à morte, graças à sua entrega incondicional nas mãos do Pai, assumindo e redimindo a dor da humanidade. Desde então,

a dor, a enfermidade e a morte não são obstáculos para o plano salvífico que Deus manifestou em Jesus Cristo. O caminho libertador de Cristo, e agora da Igreja, passa pelo acontecimento da Páscoa, em sua dupla vertente de morte e ressurreição. E como Cristo, também a Igreja luta e vence o mal, a enfermidade e a morte (ALDAZÁBAL, 1999, p.865).

Os discípulos de Jesus deram continuidade ao exemplo do Mestre. Curar os enfermos era tarefa primordial da missão evangelizadora da comunidade apostólica: “Eles saíram para proclamar que o povo se convertesse. Expulsavam muitos demônios, ungiam com óleo numerosos doentes e os curavam” (Mc 6,12-13). O livro dos Atos dos Apóstolos, especialmente nos capítulos 2 e 3, descreve como a comunidade dos fiéis crescia mediante a pregação, a conversão, o batismo, a eucaristia e outras ações extraordinárias realizadas em nome de Cristo, como, por exemplo, a “cura do paralítico” (At 3,1-26). Essas ações são como uma repetição daquelas que Jesus realizou e têm as mesmas sequências do que vem narrado nos evangelhos.

3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja

As comunidades cristãs, desde cedo, buscaram pôr em prática os gestos (rituais) de cura realizados por Jesus. O texto da Carta de Tiago é um importante testemunho disso. Esse texto serviu de base para a reflexão teológica posterior sobre o que chamamos hoje de “Sacramento da unção dos enfermos”. Ei-lo:

Alguém de vós está sofrendo? Recorra à oração. Alguém está alegre? Entoe hinos. Alguém de vós está doente? Mande chamar os presbíteros da igreja, para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará. E se tiver cometido pecados, receberá o perdão (Tg 5,13-16).

O apóstolo Tiago, além de apresentar uma prática em vias de institucionalização, utiliza termos que expressam a complexidade existencial da situação do doente e a ação pastoral da comunidade: oração, unção, conforto e alívio, cura, perdão dos pecados. Diferente das demais referências neotestamentárias sobre a enfermidade e a cura, o texto de Tiago apresenta, de forma mais explícita, a intenção sacramental do gesto, unido à palavra de oração que a comunidade eleva a Deus em favor do enfermo. Ao falar do sofrimento e da alegria, o Apóstolo deixa entrever que, seja qual for a circunstância vital, tudo deve ser visto a partir de Deus e para Deus (oração e canto). Em seguida, fala da enfermidade como tal, e é quando se chama os presbíteros da comunidade. Esses agem com um gesto simbólico, a unção com óleo e uma oração feita com fé. O efeito dessa dupla ação será a salvação, o reerguimento e o perdão dos pecados.

Enfim, Tiago fala de ritos destinados a quem está doente, não necessariamente moribundo. Trata-se de uma ação de caráter eclesial e comunitário, uma vez que é ministrada pelos presbíteros da Igreja. A eficácia está relacionada à oração de fé no Senhor. Os efeitos se referem ao ser humano, na sua totalidade, embora não excluam a cura corporal e não se restrinjam a ela. Todavia, o texto em questão, para ser entendido no sentido do sacramento da unção dos enfermos, deve ser lido à luz da Tradição da Igreja e não isoladamente dessa, como veremos a seguir.

A história da prática e da teologia desse sacramento pode ser dividida em três períodos, a saber: a) Dos séculos III ao VIII, b) Do século VIII ao Concílio de Trento, c) De Trento ao Concílio Vaticano II (cf. SCICOLONE, 1989, p.235-64).

3.1 Dos séculos III ao VIII

Nos três primeiros séculos da era cristã, tidos como tempo de “improvisação” das fórmulas litúrgico-sacramentais, encontramos poucos registros de textos eucológicos para a celebração da unção. O texto mais eloquente desse período é a “bênção do óleo”, contido na Tradição Apostólica e atribuído a Hipólito de Roma (ano 215):

Assim como, santificando este óleo, com o qual ungistes reis, sacerdotes e profetas, concedei, ó Deus, a santidade aos que com ele são ungidos e aos que o recebem, assim também ele dê alívio àqueles que vierem a prová-lo e saúde aos que dele se servirem (ANTOLOGIA LITÚRGICA, 2003, p.231).

Essa bênção aparece enxertada na prece eucarística, com a cláusula: “Se alguém oferece óleo”. Nela, o bispo rende graças a Deus e pede santidade, alívio e saúde para quem se servisse daquele óleo. Ao se referir à unção de reis, sacerdotes e profetas, é possível que esse óleo abençoado também fosse usado para outros fins, não se restringindo aos enfermos. O texto nada diz sobre o ministro da unção.

Um importante documento pontifício que gozou de notável influência também sobre autores posteriores é a carta de Inocêncio I a Decêncio, bispo de Gúbio (ano 416). À pergunta de Decêncio – se o bispo pode dar a unção aos doentes, pois Tiago fala apenas de presbíteros –, Inocêncio responde:

Tua caridade mencionou o que está escrito na carta do bem-aventurado Apóstolo Tiago: “Se há um enfermo entre vós, chame os presbíteros, e rezem sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor, e a oração da fé salvará aquele que sofre, e que o Senhor o levantará; e, se cometeu algum pecado, lhe perdoará”. Não há dúvida de que isto deva ser recebido e entendido a respeito dos fiéis enfermos, os quais podem ser ungidos com o santo óleo do crisma, que, consagrado pelo bispo, pode ser usado para unção não somente pelos sacerdotes, mas também por todos os cristãos para necessidade própria ou dos parentes.

De resto, consideramos supérfluo o acréscimo que pergunta se é lícito ao bispo o que certamente o é aos presbíteros. Pois nesta matéria são mencionados os presbíteros porque os bispos, empenhados em outros afazeres, não podem visitar cada doente. Mas se um bispo pode ou julga digno visitar alguém, pode também, já que lhe compete a consagração do crisma, sem dúvida, tanto benzer como ungir com o crisma. Ora, não pode ser derramado sobre quem é penitente, pois é do gênero do sacramento. Como pensar que àqueles aos quais são negados outros sacramentos possa ser concedido um gênero “de Sacramento”? (DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.216).

Como se vê, não somente o bispo, mas também presbíteros e todos os cristãos (com exceção dos penitentes) podem ministrar o sacramento. No entanto, a “confecção” do óleo destinado a este sacramento (à semelhança da eucaristia) compete ao bispo.

No século VI, merecem destaque os sermões de Cesário de Arles (503-543). Neles, Cesário fala da unção no contexto da luta contra os ritos mágicos pagãos de cura. Além de apresentar a unção como remédio mais seguro contra as forças diabólicas, o bispo de Arles acena para o perdão dos pecados, especialmente daqueles cometidos em práticas pagãs.

As principais conclusões que compreendem o arco entre séculos III e VIII da história do sacramento da unção dos enfermos são:

a) A continuidade da prática das primeiras comunidades, sobretudo no que tange à visita e atenção aos doentes. Consciente de que devia prolongar o ministério de Cristo e dos apóstolos, a Igreja se serve do testemunho e do sinal: a unção com óleo.

b) A documentação de fórmulas eucológicas (bênçãos do óleo) para os enfermos, a partir do século III. Nessas fórmulas se suplica a efusão do Espírito Santo para que cure os doentes das doenças e lhes restitua a saúde do corpo, da alma e do espírito.

c) O ministro da bênção do óleo é o bispo, que a faz durante a oração eucarística (na eucaristia da quinta-feira santa).

d) Os destinatários da unção são todos os cristãos enfermos, exceto os penitentes, uma vez que o óleo pertence ao gênero dos sacramentos.

e) O efeito esperado da unção é, sobretudo, a restituição da saúde corporal. Só a partir do século VIII é que se começa a acentuar o efeito espiritual, ou seja, a remissão dos pecados.

3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento

Do séc. VIII ao séc. XI, encontramos diversos rituais de unção dos enfermos. Nesses rituais aparecem, além de formulários para a oração de bênção sobre o óleo, outros ritos com especificações bem precisas. Nesse período, além da proliferação de rituais, acontecem mudanças significativas na teologia e na prática pastoral do sacramento da unção dos enfermos, como: a) clericalização e consequente monopólio do clero na administração do sacramento; b) espiritualização dos efeitos do sacramento, ficando à margem o efeito corporal de cura; c) penitencialização do sacramento, ou seja: para recebê-lo, é necessário o perdão dos pecados pela penitência; d) extremização dos sujeitos: a unção passou a ser considerada como sacramento de preparação para a morte. O sujeito passa a ser de simples enfermo a doente que se encontra em perigo de morte. Daí, o nome que prevaleceu até o século XX: “Extrema Unção”.

Em geral, esses ritos da extrema unção obedecem à seguinte ordem: entrada na casa, bênção e aspersão da água, confissão e ritos penitenciais (salmos e orações), unções (em geral, dos cinco sentidos), comunhão como viático. Na realidade, a partir do séc. XIII, por influência da crescente “escatologização”, muda-se a sequência: penitência – unção – viático, para: penitência – eucaristia – unção (esta deve ser o último sacramento, pois prepara imediatamente para a glória do céu, apagando os últimos resquícios do pecado). Essa sequência permanecerá nos rituais até a reforma litúrgica do Vaticano II, quando se voltará à tradição mais antiga.

Do séc. XI ao Concílio de Trento (séc. XVI), a celebração e a prática da extrema unção não sofrem mudanças significativas. Contudo, nesse período dá-se a “sistematização escolástica” desse sacramento. Os teólogos escolásticos (Pedro Lombardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, João Duns Scotus etc) desenvolvem uma teologia da unção que, de certa forma, se distancia da tradição primitiva. Insistem no efeito espiritual do sacramento, no sujeito em perigo de morte e no caráter secundário da cura.

O Concílio de Trento, preocupado em rebater as contestações dos reformadores, toma como base de argumentação da legitimidade e eficácia do sacramento da unção a teologia escolástica, especialmente a de Tomás de Aquino. Apoiando-se nos textos neotestamentários de Mc 6,13 e de Tiago 5,14-16, Trento ensina, dentre outras coisas, que a unção é sacramento que remonta, em última instância, à vontade de Cristo, como se vê na missão dos doze e em seu comportamento com os doentes. O conteúdo do sacramento é a graça do Espírito Santo, cuja unção (efeito) apaga os delitos e as sequelas do pecado, consola e confirma a alma do doente, excitando nele uma grande confiança na misericórdia divina e, eventualmente, obtém a saúde do corpo quando for conveniente à salvação da alma. O ministro da sagrada unção é o presbítero, e o momento da administração do sacramento é, de preferência, quando o enfermo estiver correndo risco iminente de morte (cf. DENZINGER-HÜNERMANN, 2007, n.1695-1697).

3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II

Ao longo dos quatro séculos que separam o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II, não se pode dizer que tenha havido grandes progressos na teologia e na prática da unção. Aliás, o estudo desse sacramento praticamente ficou vinculado ao tratado sobre a penitência. Com o Movimento Litúrgico, especialmente a partir da década de 1940, é que se desencadeou uma renovação teológica. Isso graças ao estudo das fontes da genuína Tradição e ao desejo de superar a concepção mágica dos sacramentos. Duas linhas de renovação merecem destaque: a escola alemã e a escola francesa.

Os teólogos alemães acentuam a dimensão escatológica do sacramento, relacionando a última unção com a unção batismal. A unção é tida como “consagração para a última luta”, como “sacramento da ressurreição”, como lugar da autorrealização da esperança escatológica da Igreja no momento definitivo. Os franceses, por sua vez, enveredam por uma teologia de cunho mais existencial. Seguem de perto a teologia subjacente da Igreja primitiva, acentuam a destinação da unção dos enfermos (não necessariamente em perigo de morte) em seu caráter curativo e terapêutico para o ser humano integral. Nesse entendimento, só o viático deve ser “sacramento na perspectiva da morte” (cf. BOROBIO, 1993, p.557-8).

O Concílio Vaticano II não teve pretensão de oferecer uma doutrina completa sobre a unção e muito menos dirimir questões ainda discutíveis. Contudo, concentrou a atenção no âmbito litúrgico-pastoral. Dentre os documentos conciliares que aludem ao sacramento da unção dos enfermos, além da Sacrosanctum Concilium, merece destaque a Constituição Lumen Gentium (n.11). Aqui, vêm sublinhadas as dimensões eclesiológica, cristológica e antropológica do sacramento.

Nos três números dedicados a esse sacramento, a Sacrosanctum Concilium determina: a) Que seu melhor nome é “unção dos enfermos” e que não se trata de um sacramento só para quem está em perigo de morte, mas para outros doentes e pessoas idosas (cf. SC n.73); b) Que, além dos ritos separados da unção dos enfermos e do viático, faça-se um rito conjunto pelo qual se administre a unção ao enfermo depois da confissão e antes da recepção do viático (cf. SC n.74). Essa ordenação penitência-unção-viático reproduz, de alguma forma, aquela dos sacramentos de iniciação: batismo-confirmação-eucaristia; c) Que o número de unções seja acomodado às circunstâncias dos enfermos e que os ritos sejam revistos para melhor corresponderem às condições dos destinatários do sacramento (cf. SC n.75). Outras orientações teológico-litúrgico-pastorais são encontradas na “Constituição apostólica sobre o sacramento da unção dos enfermos” de Paulo VI e na “Introdução” do novo ritual da unção dos enfermos, publicado em janeiro de 1973.

A “Constituição apostólica” foi oportuna pelo fato de ter havido mudanças de elementos essenciais do rito, como a matéria, a forma e as disposições sobre a reiterabilidade do sacramento. Para a matéria, ficou estabelecido que se pode utilizar outro tipo de óleo vegetal, não exclusivamente o de oliveira. A fórmula do sacramento foi alterada em função de exprimir maior clareza sobre sua natureza e seus efeitos. O texto definitivo, na tradução oficial brasileira, ficou assim: “Por esta santa unção e pela sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, ele te salve e, na sua bondade, alivie os teus sofrimentos”. O número de unções é reduzido a duas (na fronte e nas mãos), podendo ser restringido a uma só, na fronte, ou em outra parte do corpo. O sacramento pode ser administrado mais vezes, dependendo da duração da enfermidade ou de seu agravamento.

A “Introdução” do novo ritual contém cinco seções intituladas: 1) “A enfermidade humana e seu significado no mistério da salvação”. Aqui, vem apresentada uma síntese do pensamento cristão sobre o estado de doença e seu significado na história da salvação. 2) “Os sacramentos a serem conferidos aos doentes”. Nesta seção, vêm claramente expressos os dois sacramentos: a unção e o viático. 3) “Funções e ministérios em relação aos enfermos”. Aqui são contemplados os diversos ofícios e serviços em favor dos doentes. É avaliado como positivo e louvável o esforço de toda a humanidade (especialmente os profissionais da saúde e cientistas) na tarefa de aliviar os sofrimentos provocados pela doença e o consequente prolongamento da vida. Também os familiares são contemplados pela especial participação nesse “ministério de consolação”. Por fim, os ministros (presbíteros) são lembrados de seu dever de visitar pessoalmente os enfermos, de administrar-lhes os sacramentos, de cuidar da catequese tanto para os enfermos como para os fiéis em geral, tendo em vista sua participação ativa e frutuosa na celebração dos sacramentos. 4) “Adaptações que competem às conferências episcopais”. Nesta seção, são apresentadas várias possibilidades de adaptações do novo ritual, de acordo com as tradições e culturas de cada povo. 5) “Adaptações que competem ao ministro”. Cabe ao ministro, em sua solicitude pastoral, levar em conta as circunstâncias em que se encontram os enfermos e a melhor maneira de celebrar o sacramento.

O rito como tal (Ordo) compreende sete capítulos, a saber: 1) Visita e a comunhão dos enfermos; 2) Rito ordinário da unção (rito comum, rito durante a Missa, rito em grande concentração de fiéis); 3) O viático (dentro e fora da missa); 4) A administração dos sacramentos a enfermo em perigo de morte (rito contínuo penitência-unção-viático, unção sem viático e unção na dúvida se o enfermo ainda está vivo); 5) A confirmação em perigo de morte; 6) Rito de encomendação dos agonizantes; 7) Textos bíblicos e outras fórmulas eucológicas a serem usados nos ritos de assistência aos enfermos.

Do ponto de vista da teologia litúrgica, o “Ritual da unção dos enfermos e sua assistência pastoral” (1973) traz expressivos avanços, se comparado ao precedente (1614). Dentre as inovações, merecem destaque:

a) A centralidade do mistério pascal de Cristo que veio salvar o ser humano integral. O sacramento dos enfermos é memorial desse mistério, pois continua e atualiza a ação salvífica de Cristo em favor dos doentes, completando, assim, neles, o que falta à sua paixão (cf. Cl 1,24).

b) A redescoberta do valor pneumático do sacramento, especialmente na fórmula de bênção do óleo.

c) A dimensão eclesial e comunitária que perpassa todo o ritual. A Igreja se faz presente junto ao enfermo com solicitude pastoral permanente, pois tem consciência de que o doente é membro (sofredor) do corpo vivo de Cristo e que espera participar da sua glorificação. O enfermo, por sua vez, imerso no mistério de seu sofrimento, também edifica a Igreja. As diversas possibilidades e formas de celebração do sacramento – sobretudo com vários enfermos ao mesmo tempo e com numerosa assembleia – atestam sua índole comunitária.

Do ponto de vista antropológico, o novo ritual avança na compreensão holística do ser humano e o consequente efeito (holístico) do sacramento para quem o recebe.

4 Desafios pastorais

Conforme dito acima, o novo ritual da unção dos enfermos possui forte apelo pastoral, a começar pelo próprio nome: “Ritual da unção dos enfermos e sua assistência pastoral”. As celebrações ali previstas devem ser “cume e fonte” de uma ação pastoral da Igreja que leva a sério o drama vivido por quem enfrenta o peso da doença, da idade avançada e de toda sorte de sofrimento. Disso decorre a necessidade de formação teológico-litúrgica para toda a comunidade com os seguintes objetivos, dentre outros:

a) Romper a antiga mentalidade de que o sacramento da unção é somente para quem está à beira da morte.

b) Obter uma visão global dos efeitos do sacramento. Essa visão também livrará os fiéis do risco de se fixarem na ideia de cura da doença ou do sentido do sacramento como algo mágico.

c) Ampliar a compreensão do que constitui a pastoral da saúde. Em última instância, essa pastoral deverá abranger todas as etapas e momentos da vida humana, não apenas restringindo seu campo de ação a quem se encontra gravemente enfermo. Enfim, uma pastoral que tenha implicações no contexto familiar, comunitário, social. Mais que uma pastoral de conservação e remédio ante a doença que se impõe, é uma ação que promove a saúde e o bem-estar de todas as pessoas, à luz do Evangelho.

d) Recuperar a Tradição da Igreja Primitiva, buscando desvincular a unção dos enfermos do sacramento da penitência. Nesse caso, seria desejável que houvesse leigos instituídos ministros extraordinários da unção.

e) Incrementar a prática de celebrações comunitárias do sacramento da unção, reafirmando sua índole eclesial. Valendo o alerta de que essa prática não resulte na banalização do sacramento, ou seja, ministrando-o a qualquer pessoa, de forma indiscriminada.

Joaquim Fonseca, OFM. ISTA. Texto original Português.

5 Referências bibliográficas

ALDAZÁBAL, J. Unção dos enfermos. In: SAMANES, C. F.; TAMOYO-ACOSTA, J-J. (Ed.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p.864-9.

ANTOLOGIA LITÚRGICA. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003.

BOROBIO, D. Unção dos enfermos. In: ____. (Ed.). A celebração da Igreja II – Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993, p.539-614.

____. Antropología y pastoral de la salud. Phase, Barcelona, n. 325, p. 25-38, ene./feb. 2015.

COLOMBO, G. Unção dos enfermos. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A. (Ed.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, p.1203-13.

DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas / Loyola, 2007.

ORTEMANN, C. A força dos que sofrem; história e significação do sacramento dos enfermos. São Paulo: Paulinas, 1978.

SCICOLONE, H. Unção dos enfermos. In: NOCENT, A. et al. Os sacramentos: teologia e história da celebração. São Paulo: Paulus, 1989, p.223-64.