Livros Proféticos

Sumário

1 O profeta

1.1 Conceito de “profeta”

1.2 Verdadeira e falsa profecia

2 A profecia escrita na Bíblia Hebraica

2.1 Da palavra oral à palavra escrita

2.2 Os livros proféticos

2.2.1 Os profetas “maiores”

2.2.2 Os profetas “menores”

2.3 A doutrina dos livros proféticos

2.4 Significado dos livros proféticos

3 Livros associados à profecia

3.1 Daniel

3.2 Lamentações

3.3. Baruc

4 Referências bibliográficas

1 O profeta

1.1 Conceito de “profeta”

O termo “profeta” provém do grego (prophétes) e deriva do verbo phemí, que significa “dizer, anunciar, proclamar”. Segundo o sentido do prefixo pró-, o termo pode significar: aquele que transmite uma mensagem a ele confiada (pró– em sentido substitutivo: em lugar de, em nome de); aquele que fala diante de alguém (pró– em sentido espacial); aquele que prediz acontecimentos futuros (pró– em sentido temporal: antes de). A acepção que mais convém ao “profeta” é a primeira: ele é antes de tudo mensageiro, que transmite a palavra a ele confiada por Deus ou pelos deuses (no caso de povos politeístas), uma palavra que não tem nele mesmo sua origem. O profeta pode também falar do futuro, mas suas palavras dirigem-se primeiramente ao presente e, mesmo quando dizem respeito a acontecimentos ainda por vir, visam seus ouvintes imediatos.

Uma pessoa é caracterizada como profeta, portanto, quando se apresenta como portador de uma palavra divina (“oráculo”), recebida por revelação. Nisso, o profeta se distingue das outras formas de se obter respostas divinas para questões humanas (adivinhação pela observação de astros, animais, por interpretação de objetos, a necromancia, êxtases, dentre outras), pois sua mensagem não deriva de técnicas para obter o conhecimento, mas unicamente da comunicação de Deus.

A Bíblia hebraica usou nomenclatura variada para se referir a figuras proféticas, sendo mais comuns termos ligados às raízes Hzh (ter visões, receber uma revelação) e r’h (ver, ter visões) bem como a expressão ’îš [hä]’élöhîmi (“homem de Deus”). A terminologia mais utilizada é ligada à raiz nB´, da qual provém o termo näbî´, traduzido na Setenta preferencialmente por prophétes.

1.2 Verdadeira e falsa profecia

O controle se a palavra que o profeta transmite provém realmente de Deus ou é imaginação ou invenção sua não é uma questão de fácil solução. Como muitas personagens bíblicas que aparecem como “profetas” reivindicam falar em nome do Senhor, houve a necessidade de serem estabelecidos critérios para discernir as características daqueles que realmente transmitem a mensagem divina:

  • julgam a realidade a partir da vontade divina (cf. Mq 2,11);
  • são obedientes à palavra recebida (cf. Jr 23,28-29; 28,1-17);
  • não usam a profecia como meio de vida (cf. Mq 3,5; Am 7,12-14);
  • sua vida está de acordo com o que anunciam (cf. Jr 23,14; Os 3,1-4);
  • são enviados por Deus para esta missão, muitas vezes contra a sua própria vontade (cf. Jr 1,4-10; 20,7-18).

O profeta enviado por Deus, no AT, é, assim, seu porta-voz fiel. A palavra que Deus lhe comunica o envolve pessoalmente. Não é somente uma informação que recebe, mas toca sua própria vida; ele a assimila e se identifica com ela antes de transmiti-la. Isso aparece em diversas narrativas simbólicas que ocorrem nos livros proféticos. Ezequiel come o rolo da Palavra (Ez 3,1-4); Isaías tem seus lábios purificados para poder anunciar (Is 6,6-7); Jeremias recebe em sua boca a palavra de Deus (Jr 1,9-10); Oseias passa por uma experiência matrimonial para expressar o amor do Senhor (Os 1,2; 3,1).

2 A profecia escrita na Bíblia hebraica

2.1 Da palavra oral à palavra escrita

O profeta é sobretudo aquele que “fala”. Por isso, normalmente há uma diferença temporal entre o profeta como personagem que anuncia a Palavra de Deus e o escrito que leva o seu nome. Embora haja alguns testemunhos de palavras escritas na época mesma do profeta (Jr 36; Is 8,16-17; 30,8), via de regra o profeta não escreve sua mensagem. O texto do livro profético deixa perceber que a colocação por escrito foi feita posteriormente, por aqueles que receberam essa palavra como palavra de Deus e perceberam seu valor. Essas palavras escritas são conservadas e transmitidas pelos cultores das tradições religiosas israelitas. Ao serem percebidas como permanentemente válidas, são reinterpretadas e aplicadas para outras épocas e situações, sofrendo transformações e acréscimos. Neste processo de “releitura”, feito à luz das tradições religiosas israelitas e guiado por Deus, não há um desvirtuamento da palavra inicial, mas sim um desdobramento de suas possibilidades de significado.

Desse modo, o livro profético é formado pouco a pouco, a partir da seleção e agrupamento de textos que passam por um processo de reelaboração e reorganização, até chegar a uma forma considerada concluída. Assim sendo, os profetas, enquanto personagens, estão ligados a um determinado período; o livro a eles referido, porém, não provém necessariamente de sua época, pode ter sido concluído num tempo muito posterior.

2.2 Os livros proféticos

Na Bíblia Hebraica, os profetas são a segunda parte da Escritura e compreendem:

  • os profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel e Reis;
  • os profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas (Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias).

A Bíblia Grega (Setenta) chama de livros proféticos somente os “profetas posteriores” da Bíblia Hebraica e inclui ainda outros textos: o livro de Baruc, o livro das Lamentações, a Carta de Jeremias, Daniel, com os trechos deuterocanônicos (Dn 13–14; 3,24-90). No uso atual, em geral por “livro profético” se entende o conjunto que compreende Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze profetas.

2.2.1 Os profetas “maiores”

Três livros proféticos são conhecidos como “maiores”, devido à sua dimensão: Isaías, Jeremias e Ezequiel.

a. Isaías

O livro de Isaías remonta ao profeta que, no século VIII aC, em Judá, exerceu seu ministério. Recolhe oráculos e narrações que provêm desta época, além de outros que, sob influência de seu ensinamento, foram redigidos séculos após. Desde o final do século XIX dC é grandemente aceita a distinção do  livro em três partes: o Primeiro (Proto) Isaías (que compreende os capítulos 1 a 39); o Segundo (Dêutero) Isaías (c. 40 a 55); e o Terceiro (Trito) Isaías (c. 56 a 66). A distinção é percebida por diferenças de época histórica e de cunho literário e teológico. Embora haja muitas passagens acrescentadas em épocas posteriores, no Primeiro Isaías boa parte dos textos provém do século VIII aC. O Segundo Isaías é da época do exílio babilônico adiantado (por volta de 550 aC) e anuncia para um tempo próximo o fim do cativeiro. O Terceiro Isaías é, no conjunto, situado no período pós-exílico, embora contenha textos que possam provir de épocas anteriores. O Terceiro Isaías é responsável não só pela terceira parte do escrito mas também pela forma final do livro como um todo e, por esse seu trabalho, o livro, apesar das diferentes partes, apresenta unidade.

b. Jeremias

O livro de Jeremias recolhe oráculos e ações do profeta homônimo, que exerceu seu ministério nas últimas décadas antes da queda de Jerusalém, até o início do exílio babilônico (Jr 1,1-3). Anunciando numa das épocas mais conturbadas da história de Israel, Jeremias entra em grave confronto com os reis e regentes. Prega que os pecados de Judá levarão inevitavelmente à deportação e ao exílio em Babilônia, a grande dominadora de então. Por esse motivo, muitas vezes é exposto a graves sofrimentos. Do seu livro, com isso, pode-se depreender com nitidez o que é o profeta segundo Deus e como ele experimenta em sua vida a rejeição à palavra do Senhor.

Mesmo se numerosos textos do livro podem provir da época do profeta, o escrito foi retrabalhado em épocas posteriores e tem particular relação com a teologia deuteronomista.

c. Ezequiel

O profeta Ezequiel exerceu seu ministério em Babilônia, entre os anos 593 e 571 aC (Ez 1,1-3; 29,17). Sacerdote, foi levado para Babilônia na primeira deportação (598) e anunciou para breve o fim do Reino de Judá. Após a queda de Jerusalém nas mãos do exército babilônico (587/6), o profeta procura velar pela vida religiosa do povo, a fim de que mantenha a fidelidade ao Senhor. A origem sacerdotal do profeta evidencia-se por sua preocupação com o templo e o culto e com sua concepção de Deus particularmente sob a ideia da “glória” (Ez 1).

Embora haja acréscimos aos textos do livro, atualmente aceita-se que ele, em seu núcleo, pode ser referido ao Ezequiel dos séculos VII-VI, sem ser necessário recorrer a uma ficção.

2.2.2 Os profetas “menores”

São assim denominados por serem de menor extensão, se comparados aos outros três livros proféticos. Atualmente, discute-se se os profetas menores são independentes ou estão unidos em um só livro, o “Livro dos Doze”. Se de um lado há elementos que unem alguns desses escritos, há também características próprias a cada um. Não é claro, portanto, se eles formam uma unidade e, caso isso ocorra, em que sentido e em que medida estariam unidos.

a. Oseias

Oseias é o único profeta dos Doze oriundo do Reino do Norte. Seu ministério é datado de meados do século VIII até os últimos anos antes da queda de Samaria (por volta de 722/721 aC). Com a imagem do matrimônio e dos filhos, Oseias aponta para a grave infidelidade de Israel para com Deus. Através da punição, Deus purifica seu povo e então lhe oferece a salvação (Os 2,16-25; 3,1-5; 14,2-9)

b. Joel

O livro traz muitas referências a Jerusalém. Jerusalém possui muros (Jl 2,7-9) e o culto parece estar organizado no Templo (Jl 2,12-17). A partir daí, supõe-se que o livro tenha sido composto após Esdras e Neemias (entre os séculos V e IV aC). Mas há muita controvérsia quanto à sua datação. Sua temática está centrada na vinda do Dia do Senhor, que, no final do livro, se tornará juízo para os pagãos e salvação para Judá (Jl 4,15-17.18-21).

c. Amós

Amós é o mais antigo profeta que tem seus oráculos recolhidos num livro. Oriundo do Reino de Judá (Am 7,10-17), anunciou a Palavra de Deus no Reino de Israel, no século VIII aC, provavelmente pouco antes de 750 (Am 1,1). Ponto central de sua mensagem é a forte crítica ao povo e a seus dirigentes, em virtude do desprezo do direito e da justiça (Am 2,6; 6,1-7; 5,7-27; 8,4-8).

d. Abdias

O profeta é desconhecido. O livro, de apenas um capítulo, apresenta poucos indícios para uma datação exata. Como traz o julgamento contra Edom, parece dever ser colocado após a queda de Jerusalém (587/6 aC). Edom aproveitou-se da ruína de Judá para ocupar alguns territórios e saquear a região (Ab 10-14), o que teria dado ensejo ao livro.

e. Jonas

O livro de Jonas não é um livro profético. Foi acrescentado aos “pequenos profetas” provavelmente para completar o número de doze, considerado perfeito. É uma narração fictícia, de autor desconhecido, entre os séculos IV e III aC. Seu tema central é a reflexão sobre o sentido do profetismo e o desígnio salvífico de Deus, que ultrapassa as fronteiras de Israel. O profeta Jonas referido em 2Rs 14,25 não é o mesmo Jonas do livro.

f. Miqueias

Miqueias exerce seu ministério sob os reis Joatão (740-736 aC), Acaz (736-716 aC) e Ezequias (716-686 aC) (Mq 1,1). Embora profetize em Judá, refere-se também ao Reino do Norte (Mq 1,5-6). Condena fortemente os desmandos sociais e políticos de sua época (Mq 1,2-16). Os pecados do povo acarretarão o juízo de Deus, concretizado na invasão e no domínio assírio. Mas Deus prepara um futuro de salvação (Mq 4,1–5,8; 7,8-20).

g. Naum

O livro versa sobre a ruína de Nínive, capital da Assíria (Na 2,4–3,19). Deus é justo e punirá os opressores (Na 1,11-13; 2,1). Com esse tema, o livro se situa provavelmente entre a tomada de Tebas pelos assírios (entre 668 e 663 aC; a cidade é citada em Na 3,8) e a queda de Nínive (612).

h. Habacuc

Como Hab 1,5-11 fala da ameaça dos babilônios, a época de seu anúncio é possivelmente anterior às deportações para a Babilônia (598/7 e 587/6 aC). O problema central do livro é a questão do mal: por que Deus permite que um povo estrangeiro, pecador, avance e ameace Judá? A resposta é que Deus governa a história e, através do que ocorre, prepara a salvação final para o povo eleito. Para isso é exigida a fidelidade a Deus (Hab 2,4).

i. Sofonias

Segundo o título do livro (Sf 1,1), o profeta exerceu sua atividade no Reino do Sul, nos dias de Josias (640-609 aC), no tempo dos assírios (Sf 2,13-15). Sofonias aponta os desvios do povo: a injustiça e a idolatria (Sf 1,4-6.8-13; 3,1-8). Mas acentua que no meio de Jerusalém/Judá está a presença de Deus (Sf 3,5), que, em última instância, vencerá: Deus eliminará todo o pecado (Sf 3,14-18). O profeta anuncia o Dia do Senhor, quando tanto Jerusalém como os pagãos serão punidos (Sf 1,14-18).

j. Ageu

Profetizou no pós-exílio imediato, na época de Dario I, por volta do ano 520 aC (Ag 1,1; 2,1.10.20). Incentiva o povo a reconstruir o templo. Dessa empresa derivará a prosperidade no país (Ag 1,6-10) e a bênção (Ag 2,19). Ageu anuncia a esperança de, na pessoa de Zorobabel, ser restaurada a dinastia davídica (Ag 2,23).

l. Zacarias

O livro apresenta duas partes distintas. O Proto-Zacarias (c. 1 a 8) contém visões e oráculos; o Dêutero-Zacarias (c. 9 a 14), oráculos escatológicos (ð escatologia).

O Proto-Zacarias remonta ao final do século VI, a partir de 520 aC (Zc 1,7), embora algumas partes possam ser posteriores (Zc 3,1-10, entre outros). O profeta anuncia a proximidade da era salvífica para Jerusalém (Zc 1,14-17; 8,1-8).

O Dêutero-Zacarias anuncia a realização da salvação, com a vinda de um rei messiânico (Zc 9,1-17), e os grandes acontecimentos que então terão lugar (Zc 12,1-14). O povo será purificado da idolatria e dos profetas que anunciam falsamente (Zc 13,1-6). A datação desta parte é muito discutida; pode ser do final do século III aC.

m. Malaquias

A época de anúncio é provavelmente posterior à dedicação do templo (515 aC), antes da reforma de Esdras e Neemias: a metade do século V. Critica, sobretudo, o culto e os sacerdotes, chamando a atenção para o louvor que se deve dar a Deus (Ml 1,6-14) e a fiel observância das normas rituais (Ml 2,6; 3,9). Os pecadores podem progredir na vida cotidiana, mas Deus fará justiça ao fiel (Ml 2,17; 3,14.18). Após a purificação, o povo será reunido e participará da salvação (Ml 3,3-4.17.20). O profeta anuncia o Dia do Senhor, antes do qual enviará seu mensageiro (Ml 3,1).

2.3. A doutrina dos livros proféticos

Os profetas desempenham uma função de grande importância na fé do AT. São intérpretes da Torá, que confrontam com o agir de indivíduos e comunidades, desfazendo falsas esperanças, apontando desvios, exortando a um comportamento adequado às exigências divinas e anunciando o juízo devido ao fechamento do povo às interpelações divinas. Parte essencial de sua mensagem, contudo, diz respeito à expectativa por uma salvação futura, tematizada de diversas formas conforme as épocas e as perspectivas de cada escrito. No centro da mensagem profética está sempre a pessoa de Deus. A partir da imagem de Deus são tematizados os outros pontos de seu anúncio.

a. Deus

Os livros proféticos apresentam uma imagem viva de Deus. É o Deus santo (Is), que demonstra sua glória (Ez), o Deus de amor e misericórdia (Os, Jr), pronto a perdoar (Am, Jl). Mas também um Deus que exige fidelidade e que não aceita os desmandos, seja do povo eleito seja dos outros povos (Na, Hab, os oráculos contra as nações estrangeiras, em diversos livros), desmandos que são tanto a infidelidade para com o próprio Deus (culto) como as transgressões na convivência social.

Durante o exílio babilônico, aprofundou-se a concepção de Deus como Criador de todas as coisas, do que derivou o monoteísmo absoluto e a universalidade de salvação: se Deus criou tudo, então só pode ser único e, assim, todos são chamados a participar de sua salvação (Segundo e Terceiro Isaías).

b. O pecado

Diante deste Deus, que se demonstrou como Santo que acompanha, cheio de amor, a vida de Israel, sobressai, por contraste, o pecado do povo. O pecado é tematizado de diversas formas: é o contrário da santidade de Deus, é desobediência e falta de fé (Is), traição do amor (Os), oposição ao Deus justo (Am); é abominação aos olhos de Deus (Ez) e mentira (Jr). Israel é não só pecador, mas fechado à conversão e é essa atitude que o expõe ao juízo de Deus. Na vida concreta, o pecado se manifesta em três âmbitos: político, social e cultual.

c. A política

Os profetas falam contra a condução de uma política desvinculada da vontade de Deus. São criticadas as classes dirigentes, que conduzem a nação sem respeitar as exigências divinas ou que, ao procurar alianças estrangeiras, o fazem em detrimento da confiança em Deus. No Reino do Norte, Oseias acusa a sucessão monárquica através de intrigas e assassinatos. Em Judá, a questão diz respeito sobretudo à confiança nos meios bélicos e em articulações políticas, sem a fé em Deus, único que realmente pode salvar (Is).

d. Justiça social

A justiça nas relações sociais ocupa parte significativa da mensagem de numerosos livros (Am, Is, Mq, Sf, dentre outros). À honra de Deus devem corresponder as justas relações na comunidade. É apontada, sobretudo, a injustiça para com os mais desprotegidos. Recrimina-se a riqueza que convive com a penúria dos mais pobres, bem como a corrupção dos magistrados e governantes, a falta de compaixão dos credores, as fraudes no comércio e o falso testemunho no tribunal, tudo isso fruto da transgressão da Lei.

e. Crítica ao culto

No aspecto cultual, a mensagem profética segue duas grandes linhas: (a) a crítica à idolatria ou ao sincretismo; (b) a crítica ao culto israelita. Nesta última perspectiva, recrimina-se o culto ao Senhor realizado em proveito dos próprios sacerdotes e das classes dirigentes em geral (Os) ou como meio para “apaziguar” Deus em vez de se realizar uma real conversão (Os; Am). Critica-se ainda, particularmente, a prática cultual desvinculada da observância dos mandamentos, sobretudo em relação à justiça (Is; Am; Mq). Malaquias levanta-se contra o desrespeito e a falta de temor de Deus, manifestada na apresentação de animais defeituosos e ofertas ritualmente impuras (Ml 1).

f. Esperança escatológica (ð escatologia)

Relevante na mensagem profética é também a esperança de um futuro promissor. Essa se baseia no fato que Deus domina a história e quer conduzi-la à sua plena realização. Deus restaurará seu povo, fará com que habite em paz na sua terra própria. Jerusalém será purificada (Is, Ez, Zc), novamente habitada por Deus e, assim, se tornará o centro do mundo (Is 2; Mq 4). Os que dominaram o povo eleito serão eliminados (Na, Hab, Ab, Jl) e com isso Israel viverá para sempre em segurança, em completa felicidade (Sf, Mq).

g. O rei ungido (Messias)

Sobre a promessa feita a Davi de que sua dinastia permaneceria para sempre (2Sm 7), desenvolveu-se, em alguns livros proféticos, a expectativa de um rei justo e sábio, que inauguraria uma época de completo bem-estar para Israel (Is, Jr, Mq 5). Endereçada primeiramente a futuro iminente, esta expectativa será deslocada sempre para um futuro mais distante (ð escatologia), preparando, dessa forma, a vinda definitiva de um rei Messias da parte do Senhor.

2.4. Significado dos livros proféticos

Os profetas gozavam de grande prestígio nas sociedades antigas. Eram respeitados e, quando ligados ao palácio, faziam parte das classes dirigentes, acompanhando as decisões dos governantes pela consulta a Deus. A Palavra da qual o profeta é portador julga o povo e as classes dominantes. Isto lhe confere grande autoridade: é crítico da sociedade e do indivíduo.

Em Israel, o profetismo teve particular importância. No contexto de todo o Antigo Oriente Próximo, somente nesse povo foram conservados livros proféticos. Isto significa que a palavra profética, embora proferida num determinado momento, em vista de circunstâncias precisas, foi considerada válida também para outras situações. A mensagem profética é perene, pois a Palavra do Deus de Israel não volta atrás; tem valor permanente (Is 40,8; 55,10-11).

3 Livros associados à profecia

A Septuaginta e as Bíblias cristãs associaram à profecia os livros de Daniel, Lamentações e Baruc.

3.1 Daniel

Colocado na Setenta e na Vulgata entre os livros proféticos, Daniel encontra-se, na Bíblia Hebraica, entre os “escritos”. Por seu conteúdo, de fato, o livro não se enquadra como profecia. Em sua primeira parte (c. 1–6), são narradas histórias edificantes. A segunda parte (c. 7–12) é composta por visões apocalípticas (ð apocalíptica). Da Setenta constam ainda dois capítulos que trazem narrações didáticas (c. 13–14).

Daniel aparece no livro como um personagem do tempo do exílio babilônico (século VI aC). O conteúdo do livro, porém, indica que ele foi composto em época helenista. A alusão à morte de Antíoco IV (175-164 aC), em 11,45, leva a finalização do livro para os anos em torno de 164.

O livro encontra-se redigido em três línguas: aramaico (2,4–7,28), hebraico (1,1–2,3; 8,1–12,13) e grego (3,24-90; 13,1–14,42). Esta diversidade é de difícil explicação. Supõe-se que foi composto, em parte, a partir de materiais vindos por tradição.

A finalidade do livro é sustentar a fé e a esperança diante de perseguições e adversidades (2,36-45; 3,33; 4,31; 7,14). É possível ao judeu viver sua fé com fidelidade. Deus intervém em favor dos justos e mesmo os estrangeiros reconhecerão o Deus de Israel (c. 1–6). Deus é o senhor da história e conhece seu sentido (2,28). Toda a história caminha para sua consumação, na qual os reinos da terra darão lugar ao reino de Deus (2,18.19.37.44; 4,34; 5,23; 7,9-14). Os c. 7–12, seguindo a mentalidade apocalíptica, ensinam que o inimigo será aniquilado no tempo do fim (8,17-19; 11,36-45). No reino de Deus, o poder caberá ao “Filho do Homem” (7,13-14).

A ressurreição dos mortos é testemunhada em 12,1-3.13. Trata-se da ressurreição de justos e ímpios, com sortes diferentes.

Na parte final do escrito, a história de Susana (c. 13) mostra que Deus julga e faz justiça ao injustiçado; a narração de Bel e da serpente (c. 14) critica as imagens idolátricas e defende o monoteísmo.

3.2 Lamentações

O título hebraico (“Como…!”: 1,1) caracteriza um canto fúnebre. O Talmud dá ao livro o título de “Lamentação”, assim como a Setenta e a Vulgata. O “como” inicial resume o tom de todo o texto, o sentimento que perpassa toda a obra. O livro compõe-se de cinco cantos sobre a queda de Jerusalém, cada um ocupando um capítulo: os quatro primeiros são acrósticos; o quinto tem 22 versos (número de letras do alfabeto hebraico). Apresentam a destruição da cidade, a situação de seus habitantes e mostram a infidelidade do povo, especialmente de profetas e sacerdotes, como a causa da catástrofe (1,8.14-15; 2,14; 3,42; 4,5.13; 5,7.16). O Senhor é justo, mas a medida dos pecados transbordou e pôs em xeque a proteção divina (1,18; 4,12). Há, porém, esperança, em virtude da misericórdia de Deus. Importante é a fé e a conversão para que Deus intervenha e salve (3,24-26.31-33.40-42; 5,19-22).

O livro, obra compósita, pode datar da época do exílio ou pouco após. Embora atribuída a Jeremias a partir da notícia de 2Cr 35,25, não remonta ao profeta.

3.3 Baruc

Consiste numa coletânea de textos de natureza variada, sendo uma parte em prosa (1,1–3,8) e outra em poesia (3,9–5,9). Na tradução da Setenta está colocado entre Jeremias e Lamentações; na Vulgata, após Lamentações. Br 1,1-14 traz uma introdução e situa o texto penitencial que vem a seguir. Nesse (1,15–3,8), explica-se o exílio como resultado do pecado do povo (1,21-22; 3,5). O texto que segue (3,9–4,4) é um hino de louvor à sabedoria. Finalmente, tem lugar uma pregação profética (4,5–5,9) que retoma temas do Segundo Isaías e de Jeremias.

O livro usa a pseudonímia de Baruc, secretário de Jeremias (cf. Jr 36,4). É conhecido somente em grego, embora o original possa ter sido hebraico. Os muitos contatos de 1,15–3,8 com Dn 9,4-19 e de 4,5–5,9 com os Salmos de Salomão (apócrifo do século II aC) indicam para a redação final do livro o século II aC. A situação histórica pressuposta é a da crise helenista que teve lugar neste século.

O livro ensina que o caminho para o povo superar as dificuldades é confessar a culpa (1,15-20) e suplicar o perdão de Deus (2,11-18; 3,1-8). Br 3,9–4,4 trata da excelência da sabedoria, que reside em Israel (3,22-28) e é identificada com a revelação divina (3,37–4,1; cf. Sir 24,23). A última parte do escrito (4,5–5,9) abre a perspectiva da futura restauração (4,30–5,9). Deus é fiel, mesmo diante da infidelidade de Israel. Jerusalém terá de volta a alegria, a paz, a glória (5,1-4).

A Vulgata acrescentou ao livro um sexto capítulo, contendo a chamada “Carta de Jeremias”, que na Setenta figura como um livro à parte. Baseia sua pseudonímia provavelmente em Jr 29. É um tratado que condena a idolatria (6,3-5) e ironiza os ídolos (6,7-14.15-72). Sua datação deve ser do tempo helenista (final do século IV ou no século III aC).

Maria de Lourdes Corra Lima, PUC Rio

4 Referências bibliográficas

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