Maria Mãe de Jesus (Mariologia)

Sumário

1 Mariologia

1.1 Mariologia na atualidade

1.2 Ecumenismo

1.3 Dogmas marianos

1.4 Mariologia popular

1.5. María nas Conferencias Episcopais Latinoamericanas

1.6 María e a mulher

2. Referências Bibliográficas

1 Mariologia

Denomina-se Mariologia aos estudos sistemáticos sobre a mãe de Jesus, a Virgem Maria, com base na Palavra de Deus, a Tradição da Igreja, os santos Padres, o Magistério, a teologia e a fé dos fiéis. Ao longo da história foi colocada a pregunta  sobre o lugar da mariologia dentro da teologia, sobre se tinha o seu próprio espaço ou se ela estava ligada com a eclesiologia, como fez o Concilio Vaticano II, que a incorporou em um capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium.

1.1 Mariologia na atualidade

O termo Mariologia surgiu para indicar um tratado diferente e separado de acordo com o método escolástico e seu uso tem variado ao longo da história. No século XX, observa-se uma fase de ascensão da mariologia representado pelo desenvolvimento de tratado de mariologia e sua introdução nas escolas de teologia. Bem como outra fase de contestação  que a coloca em crise e outra de recuperação mariológico sobre umas novas bases e uma nova abordagem. Na Mariologia atual tem aparecido um crescente interesse em investigar a vida concreta de Maria e seu significado salvífico. Também está se recuperando a sua imagem histórica, existencial, razão pela qual  foram publicadas desde o início do século XX várias “Vidas de Maria”. Através das fontes bíblicas fizeram-se incursões na sua vida histórica, referidas a Jesus, e que  ajuda a conhecer o seu lugar na vida da Igreja. Foram elaborados “retratos espirituais”, “ícones isolados da sua figura” que não são biografias, mas que nos aproximam de sua figura.

1.2 Ecumenismo

Ao longo dos séculos, a Mariologia e o culto mariano, juntamente com outras questões relacionadas com o papado e os ministérios da Igreja, foram apresentadas como dificuldades no caminho da unificação da Cristandade. Tanto é assim que as diferenças entre protestantes e postura católica frente à mãe do Senhor, podem ser consideradas insuperáveis apesar dos esforços do ecumenismo. Uma das dificuldades citadas por K. Barth e W. von Lowenich é a mediação de Maria. Para J. Daniélou, este é o coração do problema de divergência entre as duas (NAPIÓRKOWSKI, S., 2001, p. 644).

Dentro das raízes do problema se encontram metodologias teológicas incompatíveis, tais como a que afirma que,  apenas através da Escritura (sola Scriptura), a Revelação Divina é interpretada,  sem a Sagrada Tradição. Além disso, a visão antropológica que considera o ser humano cooperador de Deus (cooperatio), ou seja, que  com a ajuda da graça, pode merecer e  intermediar, levando a salvação de Jesus aos outros. Assim como a doutrina da comunhão dos santos (communio sanctorum) que une em amizade aqueles que já vivem junto de  Deus e aqueles que  peregrinam na terra. Ambas as visões são contrárias aos princípios protestantes de que somente através de Cristo (Solus Christus), unicamente pela sua graça (sola gratia) e só pela fé (sola fides), Deus salva. O princípio que afirma a Cristo como o único Mediador (Christus o unus Mediator) é considerado, em particular, como uma interpretação exclusivista e antimariológica. Ele enfatiza que Maria não exerce nenhum papel mediador e exclui a possibilidade de que os crentes podem recorrer a ela ou aos santos através da oração e intercessão. .

Quanto às dificuldades relacionadas com os conceitos mariológicos e as práticas devocionais existem várias causas, algumas são o resultado de abusos do catolicismo, que promoveu maximizar a piedade mariana. Um exemplo é a máxima de São Bernardo de Clairvaux quando afirmou que para dizer que a respeito de Maria nunca é dito o suficiente  (De Maria numquam satism).

Na base dessas diferenças encontramos a falta de conhecimento e compreensão mútua entre católicos e não-católicos que impossibilita alcançar acordos. Cometeram-se erros em ambos os lados e, ao longo dos anos, tem havido reuniões e diálogos ecumênicos que deixaram espaços abertos para continuar a discussão mariológica.

O decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio 11 recorda que “há uma ordem ou” hierarquia “de verdades na doutrina católica, por ser diversa sua conexão com o fundamento da fé.” Esta frase refere-se a situações de desconhecimento dos fiéis das verdades da fé que possam ser reinterpretadas em suas ações, tais como a oração em frente dos altares laterais da Virgem e dos santos e não diante do Santíssimo Sacramento em sua tabernáculo.

 As atitudes polémicas continuam em ambos os lados. O retorno às fontes bíblicas para a interpretação da mariologia tem ajudado no diálogo ecumênico. Devemos mencionar o grupo ecumênico de Dombes (1936), pioneiro na busca da unidade eclesial entre protestantes e católicos. O documento sobre “Maria no plano de Deus e a comunhão dos santos”, (1998) de sua autoria, foi uma contribuição positiva em uma das questões mais controversas, abrindo o caminho para o diálogo ecumênico.

Os avanços na reinterpretação dos dogmas são espaços que se abrem na busca da unidade, tal como expresso nas conclusões de congressos mariológicos internacionais com participação de protestantes e ortodoxos: “A declaração ecumênica sobre o papel de Maria na obra de redenção “, Roma 16 de maio de 1975, e ” declaração ecumênica sobre a veneração de Maria”, , Zaragosa, 9 de outubro de 1979. Nos EUA, o diálogo ecuménico teve início em 1965 com o patrocínio do comitê nacional da Federação Luterana mundial e a conferência dos Bispos dos EUA.

Para resolver a situação da Mariologia e procurar a unidade desejada no ecumenismo, os problemas a serem resolvidos de acordo com o mariólogo Napíorkowski,(cfr. (NAPIÓRKOWSKI, S., 2001, pp. 652-653), seriam:

– Admitir a existência do pluralismo teológico nas igrejas e assim também, através das várias estruturas de pensamento, é difícil, se não impossível um pleno acordo. Aproximações podem ser  alcançadas, mas não se consegue uma identificação completa como, por exemplo, com os dogmas da imaculada ou da assunção.

– É necessário uma correção do modelo de  mediação de Maria, uma vez que o modelo por Maria a Cristo tem dificuldades teológicas, pastorais e ecumênicas.

– É necessário evitar qualquer falso exagero como expressa LG 67 ” Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros.”

– A necessidade de realizar estudos aprofundados sobre a religiosidade popular, porque nela estão as maiores reservas de fé mariana.

 1.3 Dogmas marianos

Toda a vida de Maria está referenciada a Jesus e à Igreja através dos dogmas da Imaculada Conceição, Maternidade divina (Theotókos), Virgindade perpétua e Assunção ao Céu, que continuam afirmando o mistério de Deus operado em Maria. Paulo VI afirma que “a verdadeira piedade cristã nunca deixou de destacar o vínculo indissolúvel e referência essencial da Virgem ao Divino Salvador” (MC 25). Segundo são João Damasceno, Maria é o compêndio de todos os dogmas: “O único nome Theotókos, Mãe de Deus, contém todo o mistério da” economia “(DAMASCENO, Joao, La fe ortodoxa III, 12: PG 94, 1029c9). Esta definição dogmática teve lugar no Concilio de Éfeso, em 431. Cirilo de Alexandria debateu com Nestório, patriarca de Constantinopla, quem manteve a tese de chamá-la  Christotokos, que significa “Mãe de Cristo”, para restringir seu papel como mãe só da natureza humana de Cristo e não da sua natureza divina. O termo Theotókos (Deipara, Mater Dei), que significa “portadora de Deus”, foi o que melhor descreveu a união inseparável e perfeita da natureza humana e divina de Jesus. Podemos dizer que “Deus é revelado não como uma idéia desencarnada, um ideal de santidade extra-mundana , uma eternidade separada da história, mas como a Vida originaria que é encarnada por Maria na  carne concreta da história. Portanto, buscar a Deus é descobrir sua presença na mesma história e realidade humana,  nos eventos que vão se realizando  dentro da história. Isto é o que manifesta o Concílio de Éfeso com o dogma cristão da Theotókos, dogma que nos leva além de qualquer tentativa espíritualista “(TEMPORELLI, M. C., 2008, p.57).

O dogma da virgindade perpétua antes do parto, durante o parto e após o parto, “ virginitas ante partum, in partu et post partum ” (cfr. DS 251) pertence à fé cristã desde as origens da Igreja. A definição  “virgindade antes do nascimento”, virginitas ante partum , é  entendida a partir da fé baseada na Escritura especialmente dos Evangelhos de Mateus (1,18 a 25) e Lucas (1,26-38). Esta referência trata sobre o aspecto físico, isto é, que Jesus não foi fruto de uma relação marital com José, mas o fruto do Espírito Santo no seu seio virginal.

Para entender a definição de “virgindade no parto”, virginitas in partu, deve-se distinguir entre as representações sensíveis que foram dadas da mesma e a afirmação da fé. É uma verdade de fé a afirmação de que Maria permaneceu virgem física e moralmente durante o parto, o que foi definido no ano 649 pelo Concílio de Latrão (DS 503).

A definição  virgindade após o parto, , virginitas post partum perdura desde tempos imemoriais reconhecendo que Maria após o nascimento de Jesus  não teve mais filhos nem consumou seu casamento com José. A Palavra de Deus não expressa especificamente esta situação, mas tornou-se uma verdade de fé como evidencia teológica de que a vida de Maria foi orientada para a maternidade de Jesus. Mesmo quando o evangelho nomeia os irmãos de Jesus (cf. Mt 12: 46-50;. Lc.8 19-20, Mc.3, 31-35), sabemos pela exegese que são seus primos em diversos  graus.

Em suma, a virgindade de Maria nos fala de uma maneira de ser, de existir, de realizar-se, de fazer. É a assimilação do modo de vida que Jesus tinha. É a forma radical de pensar, sentir e agir a partir de critérios evangélicos que vêm a permear toda a pessoa, (cfr. TEMPORELLI, M. C., 2008, p.105).

O dogma da Imaculada Conceição, proclamado por Pio XI em 08 de dezembro de 1854:

“A bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, foi preservada de toda mancha de pecado original, por singular graça e privilégio do Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador dos homens, e que esta doutrina está contida na Revelação Divina, devendo, portanto, ser crida firme e para sempre por todos os fiéis” (DS 2803).

 A interpretação desta definição dogmática leva em conta que Maria, através dos méritos de Cristo, foi preservada do pecado original por decisão divina ao ser escolhido como a mãe de seu filho, sem ser mencionadas as consequências desse pecado original. “O mistério da” cheia de graça “que começa no momento da sua concepção, se desdobra ao longo de toda sua história, e sentiu-se no âmbito da aliança que envolve a escuta e a resposta como pessoas que se realiza livremente na história. (…) A Imaculada traz uma visão positiva sobre o surgimento humano e as nossas origens, superando a ligação geração-pecado, e nos permite recuperar o sentido positivo da corporeidade e da sexualidade. Afirma a nossa confiança no valor da vida em geral e das pessoas. “(Cfr. TEMPORELLI, M. C., 2008, p.145).

O dogma da Assunção de Maria, proclamada pelo Papa Pio XII em 1950: “É um dogma divinamente revelado que Maria, a mãe de Deus, imaculada e sempre virgem, após o término do curso terreno de sua vida, foi levada em corpo e alma à glória celestial “(DS 2803). Esta fórmula não aborda o problema da morte de Maria, não diz explicitamente se ela morreu. Esta questão fica na interpretação livre da discussão teológica. A palavra assunção é um conceito teológico que não expressa a ideia de mudança de lugar, mas de estado. Podemos dizer que a Assunção significa uma integração das condições mortais do ser humano nas suas aspirações à felicidade e, ao mesmo tempo, o esforço da libertação de toda a vitalidade humana, de modo que, sem negar a verdade da dor, o sofrimento e a morte, o ser humano pode interpretar seu próprio fim, sem dar â morte a última palavra “, (TEMPORELLI, MC, 2008, p. 194).

 1.4 Mariologia popular

 A mariologia popular refere-se à maneira como o povo vive a sua fé e amor à Virgem Maria, tornando vivido o que recebeu através da formação católica e do lugar que Maria tem no conjunto da religião do povo. Se expressa nas manifestações de fé à Virgem Maria, através das quais o povo fórmula a sua compreensão popular de Maria, identidade que, naturalmente, o povo lhe dá a partir da imagem que tem dela.

A religião popular é um assunto de pesquisa multidisciplinar, portanto, precisa incorporar no estudo a contribuição de outras ciências e disciplinas que se relacionam com o ser humano como a história, a antropologia, a sociologia, a teologia, a filosofia, a psicologia, entre outras. É uma questão complexa, requerendo uma metodologia adequada para ser entendido corretamente e não estar sujeito a análise que distorça a sua riqueza original. (Cfr. SILVEIRA, M. P. 2013).

1.5. Maria nas Conferencias Episcopais Latino-americanas

Nos documentos das Conferências Episcopais da América Latina, desde a primeira conferência no Rio de Janeiro ate Aparecida (1955-2007), se encontram referências à Virgem Maria (cfr. DE FIORES, S. 2008, p. 65-76). A Igreja da América Latina, ao difundi-las, colaborou na formação da imagem da Virgem e que o povo da América Latina assumiu como própria.

O documento do Rio de Janeiro (1955) cita Maria esporadicamente e sem relevância teológica. Fala-se dela pela primeira vez em um parágrafo que diz: “confiado no Santíssimo  Coração de Jesus e na Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, Rainha da América”. A segunda citação é criticada porque visa difundir a “Obra do Apostolado do Mar, sob o  patrocínio da Virgem Maria, Stella Maris” (CELAM, 1955).

O documento de Medellín (1968) refere-se apenas à sua proteção na apresentação do documento e, em seguida, há um “silêncio inexplicável” sobre sua figura (CELAM, 1968). No documento de Puebla (1979) é apresentada como “mãe e modelo da Igreja”, destacando sua figura da “mulher e mãe,” que desperta “o coração filial que dorme em cada homem” (DP 295). É a “pedagoga do Evangelho na América Latina” (DP 290). O documento reconhece à “Igreja família cuja mãe é a Mãe de Deus” (DP 285). Se esboça sua  figura de “crente e discípula perfeita que se abre para a palavra e se deixa penetrar pelo seu dinamismo” (DP 296). Também se afirma que é um modelo de comunhão, “entretecendo uma história de amor com Cristo, íntima y santa, verdadeiramente única culminando na glória” (DP 292). Afirma que em Maria e em Cristo todos obtém “os grandes traços da verdadeira imagem do homem e da mulher” (DP 330) .E na “hora da nova evangelização” e do novo Pentecostes, citando Paulo VI, pede “que  Maria seja neste caminho Estrela da Evangelização sempre renovada” “(EN 81) (DP 303).

O documento Santo Domingo (1992) apresenta Maria como modelo de evangelização da cultura. Afirma que ela “pertence à identidade cristã dos nossos povos latino-americanos,” sendo “modelo de vida para os consagrados e apoios seguros da sua fidelidade” (SD 283 e 85). Coloca-a no papel de “protagonista da história pela sua cooperação livre, elevada à máxima participação com Cristo.” Esta é a “primeira redimida e crente,” está presente na piedade popular (SD 15 e 53). No final do documento, há uma profissão de fé, pedindo “a proteção de Nossa Senhora de Guadalupe” (SD 104 e 289).

No documento de Aparecida (2007), sua figura é de “discípula missionária, formadora de discípulos missionários.” Diante dos problemas da América Latina e do Caribe se convida, a partir de Cristo e para se identificar com ele, de acordo com o plano de salvação, emerge a figura de Maria (dA 41). O seu papel é unificar e reconciliar os povos por sua “presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos, discípulos e missionários de seu Filho” (DA 574). Sua figura se destaca sendo “a discípula mais perfeita e o primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo.” “Mulher livre e forte, conscientemente orientada ao seguimento de Cristo” (DA 266 e 269. “Esplendida imagem de configuração segundo o projeto trinitário que se realiza em Cristo” (DA 141). “Seguidora mais radical de Cristo e seu magistério”, pelo qual Bento XVI  convida a “permanecer na escola de Maria” (DA 270). Sendo discípula entre os discípulos, colabora  na recuperação da “dignidade da mulher e seu valor na Igreja.” Compromete-se com “sua realidade com voz profética” (DA 451) como no Magnificat. Quando se enfrenta o problema de dignidade e participação das mulheres na vida da comunidade, considera-se  Maria como uma referência para “ouvir o clamor silenciado das mulheres sujeitas à exclusão e à violência” (DA 454). No final do documento, os bispos pedem sua “companhia sempre perto, cheia de compaixão e ternura” para que ela “nos ensine a sair de nós mesmos em caminho sacrifício, amor e serviço” (DA 453)

1.6 Maria e a mulher

“Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (Gl 4, 4). Contemplando o dom singular que Deus fez a Maria como a Mãe do Senhor, é evidente a partir do testemunho de sua vida, o respeito que Deus tem para a mulher e sua alta estima, dando-lhe um lugar tão importante na história da humanidade. “Mas o Pai das misericórdias quis que a aceitação, por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte, também outra mulher contribuísse para a vida” (LG 56).

É interpretado aqui que tanto a mulher como o homem desobedeceram  experimentando o afastamento do Criador, e

em Maria, Deus suscitou uma personalidade feminina que supera em muito a condição normal das mulheres, como visto na criação de Eva. A excelência única de Maria no mundo da graça e sua perfeição são o resultado da particular benevolência, que quer elevar a todos, homens e mulheres, à perfeição moral e à santidade próprias dos filhos adoptivos de Deus. Maria é “bendita entre as mulheres”, no entanto, em certa medida, toda mulher participa da sua sublime dignidade no plano divino. (JOÃO PAULO II, 1998, p. 44).

Ao escolher Maria como a Mãe do Redentor, se está recriando e enriquecendo a dignidade humana frágil e limitada, uma vez que ela é o ponto de encontro “entre a riqueza da comunidade divina e a pobreza da sua condição humana.” É o que diz a teóloga Lina Boff, com base na carta de Paulo aos Coríntios: “.. a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (cf. 2 Cor 8,9 ). Os Padres da Igreja (Gregório de Nazianzo e os Padres da Capadócia), a partir dessa frase, desenvolveram a ” “teologia do intercâmbio” aplicando-a de uma maneira especial para o mistério da Encarnação, onde Maria é o lugar onde a ocorre a troca admirável. Em seu corpo, o Filho de Deus tomou corpo humano com sua carne e sangue, Jesus recebeu a experiência do seu amor cotidiano ao compartilhar a vida com as suas limitações e dificuldades por muitos anos (cfr. BOFF, Li., 2001, p. 23).

O mistério da Encarnação enriquece a dignidade humana, pois possibilita a elevação sobrenatural à união com Deus em Jesus Cristo, que determina a finalidade tão profunda da existência de cada pessoa, tanto na terra e na eternidade. Seguindo este pensamento, a mulher é a representante e o arquétipo de toda a humanidade, ou seja, representa aquela humanidade que é própria de todos os seres humanos, sejam eles homens ou mulheres (MD 4). Se perdermos  de vista este fato, surgem visões errôneas que desprezam o papel da mulher em relação ao homem, desvalorizando suas capacidades, colocando-a em uma escala inferior. E dizer, que o dualismo no pensamento,  resultado de uma concepção patriarcal, pode influenciar na compreensão da mulher idealizando ou desvalorizando sua condição real. O desafio é descrevê-la a partir de uma antropologia centrada no humano, realista, unificadora, pluridimensional, igualitária e de companheirismo (Cfr. Johnson, E., 2005, p. 94).

A obra de Leonardo Boff, O rosto materno de Deus ensaio interdisciplinar sobre as formas femininas e religiosas (BOFF, L., 1979) fornece elementos para uma análise e discussão sobre a figura de Maria-mulher, pessoa histórica e objeto fé. É uma primeira tentativa de um tratado de mariologia adaptado ao nosso tempo recuperando os dados da tradição eclesial e resgatando a importância da figura de Maria para os cristãos hoje. Foi muito discutida sua hipótese sobre uma relação hipostática entre Maria e o Espírito Santo. Essa discussão leva a interpretações que empurram à Mariologia a uma transformação radical, tanto na sua estrutura como no conteúdo, o método, a  linguagem.

A figura de Maria manifesta uma tão grande estima de Deus pelas mulheres, que qualquer forma de discriminação fica sem base teórica (…) Contemplando a Mãe do Senhor, as mulheres vão entender melhor a sua dignidade e a grandeza de sua missão. Mas os homens, à luz da Virgem Mãe, poderão ter uma visão mais completa e equilibrada da sua identidade, da família, da sociedade (JUAN PABLO II, 1998, p. 45).

O evento da Encarnação, em que o “Filho, consubstancial ao Pai,” homem “nascido de mulher” constitui o ponto culminante e definitivo da auto revelação de Deus à humanidade (…), que tem um carácter salvífico. “(MD 3). A mulher, então, está no coração deste evento salvífico, porque de uma mulher, Maria, o Filho de Deus se fez homem, com necessidade de seu corpo, de sua vida para nascer. Ela, como toda mulher tem a capacidade de gerar, acolhendo em seu corpo o novo ser. Constitutivamente seu corpo está condicionado para receber a vida e acolhê-la na  interioridade. Colabora com sua gestação, alimentando-o com o seu sangue e distinguindo sua alteridade, é um ser diferente, embora esteja “dentro” do seu corpo. Assim, o corpo da mulher é um “espaço aberto” que pode ser habitável e onde ela mantém, protege e nutre a criatura. Na formação da nova vida ela não é passivo nem autossuficiente, precisa de um homem para a sua concepção. Pode se dizer que  “o interior da  mulher é a primeira morada de cada ser humano, seja homem ou mulher” (PORCILE, T., 1995, p.188).

Em Maria, a maternidade do Filho de Deus é um dom, o fruto do Espírito Santo e sua vida, é entendida a partir desse mistério. O “espaço interior” onde a vida se gesta contém características como o calor, ternura, amor, paciência,  tempo de fecundidade,   doação de si mesma com risco de vida, capacidade de dar à luz e de sofrer. No seu  ventre vive o Deus vivo, o autor da Vida naquela mulher, criatura criada com a capacidade de gerar e ser mãe. “Desde o início da revelação a  mulher  está ligada à geração da vida, é considerada a mãe dos viventes, a mãe de vida, por isso conhece as condições de que esta exige no seu germinar lento” (TEMPORELLI, MC, 2008, p.45).

Em Puebla é dito que “Maria é mulher (…) Nela, Deus dignificou à mulher em dimensões inimagináveis. Em Maria, o Evangelho penetrou a feminilidade, a redimiu e exaltou (…). Maria é uma garantia de grandeza feminina, mostra a forma específica de ser mulher, com essa vocação de ser alma, entrega que espiritualiza a carne e encarne o espírito “(DP 299).

No ventre de Maria se inaugura uma nova aliança com a humanidade, porque graças a seu fiat, o Filho pode se tornar homem e dizer ao Pai: “um corpo me preparaste. Aqui estou, vim para fazer a tua vontade, ó Deus “(cf. Heb. 10: 5-7). A virgindade e a maternidade coexistem nela, ao igual que seu ser esposa e filha, de modo que sua figura é próxima a cada ser humano. Maria “é da nossa estirpe”, “uma verdadeira filha de Eva” e “verdadeiramente a nossa irmã, que compartilhou em tudo, como mulher humilde e pobre, a nossa condição” (cfr. MC 56).

María del Pilar Silveira, Facultad de Teología de la Universidad Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela. Texto original Español.

2 Referências Bibliográficas

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Para aprofundar mais

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