A Comunhão Trinitária

Sumário

1 Deus trino nas Sagradas Escrituras

2 Breve história da doutrina trinitária

3 Perspectiva sistemática. A Trindade como comunhão

4 Referências bibliográficas

A teologia trinitária contemporânea é fruto do espírito de abertura e renovação criativa que caracterizou a reflexão teológica do séc. XX e desembocou no Concílio Vaticano II. A busca de uma explicitação da fé mais próxima à linguagem e ao imaginário dos novos tempos, mas capaz, por sua vez, de se articular harmoniosamente com a tradição eclesial, teria um impacto significativo, especialmente no modo de compreender e dar conta do mistério de Deus.

Já antes do Concílio, Karl Rahner (1961, 105-136) tinha feito críticas significativas a alguns pressupostos e perspectivas da teologia trinitária clássica. Sua motivação fundamental era de carácter pastoral: embora os cristãos façam profissão de fé na Santíssima Trindade, em sua prática espiritual e religiosa são eminentemente “monoteístas”. Isso é tão verdadeiro que, se um dia a doutrina da Trindade fosse deixada de lado, não mudaria praticamente nada para eles. As causas fundamentais deste “esquecimento trinitário” devem ser buscadas no modo como a teologia explicou o mistério trinitário. A teologia ocidental clássica baseou a afirmação da unidade de Deus na ideia de uma substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna. Deus é um só, porque é uma única substância, essência ou natureza. Só depois era explicado que nesta substância sub-sistem três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

Nesse enfoque, parecia se ignorar que Deus nos Evangelhos nunca é apresentado por Jesus como uma substância divina abstrata, mas, mais especificamente, como seu Pai, de quem ele é o Filho amado, que veio para nos salvar, entregando-se e dando ao mundo o Espírito Santo.

O “esquecimento da Trindade” teria ido lado a lado com um descuido da dimensão salvífica da revelação. Mas a Trindade não se revela para dar a conhecer um conteúdo doutrinal, ou sua essência metafísica. Deus revela-se a si mesmo para salvar e salva entregando-se como é: Pai, Filho e Espírito Santo. A revelação é a sua autodoação (Selbstmitteilung) para o mundo. Rahner propõe um axioma como novo ponto de partida: “A Trindade econômica é a Trindade imanente e vice-versa”. Ou seja, a Trindade que nos foi dada na história da salvação é Deus como ele é em si mesmo: Pai, Filho e Espírito Santo.

Para além das críticas que a teologia de Rahner possa merecer, o seu axioma fundamental teve um enorme impacto e tornou-se um dispositivo essencial para a renovação trinitária iniciada no séc. XX.

1 Deus trino nas Sagradas Escrituras

Nesta nova perspectiva, a fé cristã entende a salvação como a progressiva autodoação do Deus trino na história, como convite e abertura ao ser humano da comunhão infinita de amor do Pai, Filho e Espírito Santo. Tanto o AT quanto o NT são o testemunho desta autodoação de Deus.

O AT, mesmo que ainda não contenha uma fé expressa em Deus como trino, já é o testemunho desta maneira particular em que Deus foi se revelando a Israel: mostrando-se como um Pai amoroso, que instrui com sua Palavra e guia com a sabedoria e o poder do Espírito. Trata-se de um Deus que se compadece do povo que sofre, toma a iniciativa e se aproxima para libertá-lo e oferecer sua amizade numa aliança de amor incondicional, que se tornará definitiva e eterna com a vinda e o triunfo do seu Messias, o portador do Espírito, que Javé infundirá para sempre no coração de seu povo.

Essa experiência de Deus no Antigo Testamento tomou uma dimensão e plenitude inusitadas com a vinda de Jesus Cristo. À luz da sua ressurreição, toda sua vida e obra foram relidas como cumprimento superabundante dessas promessas. Por isso, o evento da ressurreição envolve indissoluvelmente a questão da identidade última de Jesus, confessado agora como Senhor glorioso, sentado à direita de Deus. Quem devia ser esse homem para poder ressuscitar, subir ao Céu, entregar seu Espírito para a Igreja primitiva, reinar com Deus e inaugurar, assim, o acesso aberto à vida eterna para toda a humanidade? O NT é precisamente o testemunho desta busca de responder à pergunta do próprio Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15; Mc 8,29; Lc 9,20). A partir dessa pergunta, os primeiros cristãos releram toda a vida de Jesus, sua origem, seu nascimento e o sentido de sua morte na cruz. Os vários títulos aplicados a Jesus no Novo Testamento são a expressão dessa busca para entender o mistério de sua identidade particular e de sua relação com Deus, a quem ele chamava Abbá, Pai. Se Jesus considerava a si mesmo o Filho amado, se ele entendia sua vida e sua missão como um envio da parte do Pai, era nessa relação de Filho que devia ser encontrada a chave para a sua identidade. Deus tinha comprovado essa pretensão de Jesus, ressuscitando-o dentre os mortos pelo poder do Espírito.

Introduzindo o relato de um nascimento milagroso, os evangelhos sinópticos tentaram explicar que esta vinculação única de Jesus com Deus pelo Espírito, manifestada na ressurreição, implicava a confissão de que ele vinha de Deus. As cartas de Paulo expressam a mesma convicção que a salvação é inseparável da ação de Jesus Cristo, como Filho de Deus, constituído como Senhor, pelo poder do Espírito Santo. As fórmulas e saudações triádicas de tipo litúrgico e doxológico dos escritos paulinos (como 2Cor 13,13) testemunham, desde muito cedo, a incipiente intuição trinitária da fé da Igreja (Rm 1,3-7; 1Cor 12,4-6; Gal 4,4-7; Ef 1,3-14). Em escritos posteriores, como o Evangelho de João, já começam a aparecer formulações cada vez mais explícitas da filiação divina de Jesus como Logos de Deus (Jo 1,1-18), que na sua ressurreição leva o discípulo a confessá-lo “meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).

Mesmo antes do desenvolvimento de uma doutrina propriamente trinitária, a comunidade de fé já proclamava sua fé em fórmulas triádicas e praticava o batismo como inserção e participação na vida divina, “em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19). Com esta indissolúvel vinculação entre Pai, Filho e Espírito Santo, a teologia do NT proclamava o Deus que se revelou de maneira definitiva no destino de Jesus, mostrando-se assim, também para nós, como o Deus fiel da vida, o Deus que é amor (1 Jo 4,8), que se entrega pelos humanos em Jesus, identificando-se com os pobres, os pequenos e as vítimas da história. Um aspecto que se tornaria um foco central da teologia latino-americana.

2 Breve história da doutrina trinitária

Era esta salvação de Deus Pai, Filho e Espírito Santo que a Igreja das origens tinha que comunicar ao mundo. Essa evangelização devia realizar-se num contexto cultural dominado basicamente por dois horizontes de compreensão: por um lado, o estrito monoteísmo hebraico; por outro lado, o pensamento grego e sua busca de um único princípio racional organizador do cosmos. A fé num Deus Trino era difícil de ser conciliada com esses modelos de uma divindade concebida como unicidade monolítica, absoluta e imutável. Além do mais, parecia loucura (1Cor 1,23) mitológica pretender que Deus pudesse despojar-se kenoticamente de sua condição divina, assumir a carne mortal do homem e sofrer, por amor ao ser humano, a tortura e morte na cruz. No entanto, o desafio da evangelização implicava justamente expressar a fé em uma linguagem conceitual e simbólica, compreensível em cada novo cenário histórico e cultural. Nesse contexto, as primeiras disputas trinitárias ocorreram no intento de mostrar que a fé não ameaçava, mas resguardava a unidade de Deus, e isso mesmo à custa de enfraquecer sua confissão no Pai, Filho e Espírito Santo. Esta tendência monarquianista (mono-arkhé) adquiriu na história duas modalidades básicas: modalismo e subordinacionismo. O modalismo consistia em afirmar que Pai, Filho e Espírito Santo são apenas modos em que o único Deus se manifesta na história, ou seja, diferentes formas que o único Deus transcendente (unipessoal) adota no momento de se tornar presente no mundo. O subordinacionismo, por sua vez, aceita a existência do Filho e do Espírito, como diferentes do Pai, mas atribuindo-lhes uma categoria ontológica inferior, negando-lhes uma natureza divina igual à do Pai. Só o Pai é propriamente Deus. Alguns, no entanto, consideravam o Logos como uma entidade junto de Deus, como a primeira e mais perfeita das suas obras. Outros, os adocionistas, acreditavam que Jesus era apenas um homem de santidade irrepreensível, escolhido pelo Pai para adotá-lo como Filho pela unção do Espírito no batismo.

No séc. IV desencadeou-se uma das mais graves dessas crises doutrinais. Ário, discípulo de Orígenes e herdeiro de uma visão de mundo fortemente neoplatônica, partia da ideia de Deus como o não originado. “Tudo o que é causado é criado”, afirmava. Então, somente o Pai é o Deus único, eterno e sem origem. O Filho, por sua vez, vem de Deus como a primeira e mais perfeita de todas as suas criaturas. É superior e anterior a toda a criação. Através dele, Deus fez todas as coisas. Trata-se, portanto, de uma instância intermediária entre Deus e o mundo. Podemos chamá-lo “Deus” porque o é em relação a nós, num sentido funcional, mas não em sentido propriamente ontológico, em si mesmo e por si mesmo. O arianismo teve como consequência a convocação do Concílio de Niceia (325). Nele, foi elaborada uma confissão trinitária na forma de credo que tentava formular conceitualmente, da maneira mais precisa possível, a correta interpretação da fé. Para isso se recorreu à terminologia utilizada nas discussões e foi definido que o Filho é “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma natureza (consubstancial) que o Pai” (homoousios) (DzH 125). A confissão terminava afirmando, também, a fé no Espírito Santo.

O Concílio, no entanto, não conseguiu resolver definitivamente as discussões. A expressão “da mesma substância” ainda podia ser lida em sentido subordinacionista ou modalista. A dificuldade provinha muitas vezes dos conceitos utilizados. Uma mesma palavra podia ser interpretada de forma diferente no Oriente e no Ocidente. A palavra sub-stância (usada para falar da essência divina) poderia ser compreendida por um grego como sinônimo de hypo-stasis (que geralmente se aplicava às pessoas). O arianismo ressurgiria logo depois do Concílio, como negação da divindade do Espírito Santo. Liderados pelo bispo Macedônio, os pneumatômacos (como Santo Atanásio os chamava) entendiam que o Espírito Santo era na realidade um dom e, portanto, não poderia ser igual ao doador. Ele não poderia ser uma hipóstase propriamente divina. A teologia dos Padres Capadócios foi decisiva para o Primeiro Concílio de Constantinopla (381), que assumiu totalmente o Credo de Niceia e apenas o completou, desenvolvendo mais um pouco a fé no Espírito Santo: “E [acreditamos] no Espírito Santo, Senhor e doador de vida, que procede do Pai; e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e glória” (DzH 150). Não recorreu desta vez à discutida fórmula do homoousios. Preferiu voltar a expressões de tipo mais bíblico e litúrgico para estabelecer a fé na plena divindade do Espírito Santo.

Pode-se dizer que com o símbolo nicenoconstantinopolitano o dogma trinitário ficou definido nos seus aspectos fundamentais. O Concílio de Constantinopla II (553) utilizaria já como fórmula definitiva a expressão dos Capadócios “uma physis ou ousia”, “três hypostasis ou pessoas” (DzH 421).

Contudo, a teologia trinitária continuou buscando um maior aprofundamento e uma melhor articulação entre unidade e diferença no seio do Deus trino. Nem todos os problemas desapareceram. Vimos que o Primeiro Concílio de Constantinopla tinha afirmado que o Espírito Santo “procede do Pai” (DzH 150). No entanto, em algumas traduções latinas, logo começou a circular a versão que acrescentou “que procede do Pai e do Filho”. As fórmulas conciliares ainda não tinham tematizado explicitamente a relação entre o Filho e o Espírito Santo. Era essa ausência que a tradução latina parecia querer resolver, propondo que o Espírito procede conjuntamente do Pai e do Filho. Para a teologia do Oriente, que fundamentava a unidade do Deus trino, na pessoa do Pai como único princípio e origem fontal (e não tanto na ideia de uma substância ou uma essência divina), essa doutrina poderia significar a introdução do Filho como um novo princípio na Divindade, que ameaçava a sua unidade. Por motivos mais políticos do que propriamente teológicos, as discussões sobre esta questão do filioque se prolongaram durante séculos e desembocaram, finalmente, num cisma. Liderada pelo Patriarca Cerulário, a Igreja Oriental separou-se da Igreja Romana em 1054. Embora, desde então, tenha sido proposta reiteradamente como mais correta a fórmula segundo a qual o Espírito Santo “procede do Pai pelo Filho”, a questão do filioque nunca foi definitivamente resolvida.

Com a doutrina básica já consolidada, a Idade Média não assistiu a grandes disputas trinitárias. Se houve alguns Concílios dignos de menção, como o XI de Toledo no ano 675 (DzH 525 et seq.) e o IV de Latrão, no ano 1215 (DzH 800 et seq.), são importantes mais pela clareza de sua síntese do que por inovações doutrinais. Os termos ousia/essência, physis/natureza e substância foram fixados como expressões da unidade do único Deus, enquanto os termos hipóstase, prosopon e pessoa ficaram como os termos técnicos aptos para se referir a Deus como trino, Pai, Filho e Espírito Santo.

Esse processo de definição e síntese foi coroado com a Summa Theologiae de Tomás de Aquino († 1274). Sua obra foi baseada em seu extenso conhecimento da tradição e sua reelaboração não mais se baseou nos usuais moldes de cunho platônico, mas a partir do rigor da filosofia aristotélica. Tomás partia do De Deo Uno, referido à essência divina, sua unidade e seus atributos, e logo passava ao De Deo Trino, dedicado a explicar a diferença das pessoas divinas e sua unidade nessa única essência. As pessoas divinas são entendidas por ele como constitutivas da divindade, não meros acidentes, como relações subsistentes fruto das processões. A única essência divina só subsiste nas três pessoas e as três pessoas só subsistem relacionalmente nessa única substância. A substância divina não é, então, uma unidade imóvel, mas o ato de existir em si mesmo (subsistir) como plenitude, como ato de pleno conhecimento de si que gera o Logos e amor de si que espira o Espírito.

Esta síntese cimeira da escolástica estaria chamada a permanecer como doutrina oficial da igreja até meados do séc. XX.

3 Perspectiva sistemática. A Trindade como comunhão

Rahner observou que essa teologia, em seu esforço por esclarecer as fórmulas precisas da fé trinitária, tinha se afastado de suas fontes bíblicas e históricas, tornando-se cada vez mais formal e abstrata. Propunha por isso um retorno à Escritura e à tradição trinitária mais oriental, que parte da pessoa do Pai como a origem e fonte da divindade e não uma essência ou substância espiritual suprema.

No entanto, tanto a teologia que pensa Deus a partir da ideia de substância como a que funda a unidade divina apenas na pessoa do Pai como a fonte e a origem causal da Divindade podem levar ao perigo de partir da unidade como anterior à diferença, de um Deus uno quase prévio ao Deus Trino.

Com a filosofia moderna do sujeito, essa tendência se agravou. Deus não era pensado como substância, mas como Sujeito ou Espírito absoluto, que existe através do desdobramento ad extra de suas propriedades internas. Voltava-se assim a priorizar novamente a unidade sobre a pluralidade. A teologia contemporânea reagiu, então, com um retorno à história da salvação, ao evento da revelação de Deus em Jesus Cristo. Deus se dá a conhecer tal como ele é apenas na relação de Jesus com seu Pai no Espírito. O CV II reflete já a virada de uma perspectiva metafísica a uma teologia que prioriza uma compreensão mais histórica, fenomenológica, hermenêutica e existencial da realidade, mais em sintonia com a cosmovisão e a cultura atual. Conceitos como substância e hipóstase parecem não mais poder expressar, em um mundo cultural impregnado por outros valores e imaginários cosmológicos, o mistério divino que antes transmitiam. Obviamente, não se trata de mudar o confessado por aquelas fórmulas e conceitos, mas de expressar essa mesma fé em perspectivas e categorias mais compreensíveis e significativas para o homem de hoje. A ideia de uma substância suprema, um sujeito absoluto ou uma origem única, solitária e autárquica, não parecem já modelos aptos para transmitir o Deus do amor trino que se abaixou kenoticamente em Jesus Cristo, assumindo nossa condição humana, para tornar-nos capazes de receber seu espírito e participar, como filhos e filhas, do reino do seu amor. Daí que importantes teólogos do século XX (von Balthasar, Moltmann, Kasper, Pannenberg, Greshake), embora por caminhos muito diferentes, coincidiram na necessidade de buscar uma nova sistematização da teologia trinitária capaz de apresentar o Deus uno em sua constitutiva relacionalidade interpessoal.

Foi nesta linha que começou a utilizar-se a analogia da comunhão, frequente no CV II. Voltava-se, assim, a um termo de raízes bíblicas. 1João 4,8 diz: “Deus é amor”. Mas o amor não é nem um sujeito nem uma essência abstrata, é sempre um ato pessoal, que envolve simultaneamente relação e alteridade. O amor não existe como puro movimento de autorreflexão, mas como ato relacional, como comunicação e intercâmbio. O amor é constitutivamente ato comunicativo de doação-recepção, recepção-doação com relação aos outros.

A compreensão do ser como ato (tão própria do Aquinate) e das pessoas divinas como relação, se integram numa nova síntese que entende Deus como comunhão pericorética de amor. A teologia trinitária supera assim a aporia que forçava a escolher entre reduzir Deus a uma pura mônada primeira ou cair num imaginário de tipo social (ou triteísta) que pensa Deus a partir de três sujeitos divinos, quase autônomos, que, em seguida, se unem por amor ou consenso. Na comunhão divina, a unidade não é anterior nem posterior à Trindade. A Trindade é a koinonia perfeita do amor infinito que realiza a unidade na alteridade e a alteridade na unidade.

Aqui, Pai, Filho e Espírito Santo já não são compreendidos como sujeitos ou centros autônomos anteriores aos seus atos. Em Deus não há nada que seja anterior ao ato de existir como amor comunional tripessoal. As pessoas divinas existem em virtude do amor que elas mesmas são e o amor não é outra coisa que sua existência pessoal como intercâmbio de doação e recepção, para e a partir de umas e outras, nas outras, com as outras. O Pai é e realiza o amor como comunicação paternal fecundante, doando-se ao Filho e deixando-se por sua vez constituir por ele como seu “abbá”. O Filho ama filialmente, como recebendo-se e entregando-se sempre a partir de e para o Pai. O Espírito, no caminho iniciado por Ricardo de São Victor, exprime a abertura do amor que não pode fechar-se numa mera relação Eu-Tu, carente de um destino e direcionalidade comum. Ele é o condilectus, em quem os outros dois se encontram compartilhando o destinatário e a fecundidade gozosa e agápica do seu amor. Cada pessoa é assim mediação e consumação da relação entre as outras duas a partir de sua propriedade relacional específica.

Revela-se aqui também o profundo sentido da pessoa humana. Ela não é primariamente uma hipóstase ou um sujeito autônomo já constituído, que depois deve se realizar relacionando-se com outros. A pessoa é, antes, a existência que se sabe constitutivamente vinculada à comunidade humana, em constante abertura e intercâmbio com a realidade. Ela existe como radicalmente constituída em si desde fora de si, como recepção e relacionalidade extática, constituída por seu lugar e participação relacional e comunicativa no conjunto do real.

A mesma compreensão do ser fica afetada por este mistério da comunhão trinitária. Tudo o que é pode ser entendido fenomenologicamente como manifestação e doação extática. Tudo dado está sempre lá dando-se como doado em abertura ao conjunto vinculado e vinculante do real.

Para a teologia trinitária latino-americana que enfatiza a realidade, a história e a práxis a partir da opção pelos pobres e excluídos (referência são as obras de L. Boff e A. Gonzalez), é essencial essa compreensão do Deus da comunhão, que se identificou com eles na entrega de Jesus à morte, como excluído da comunidade, expulso da cidade, abandonado e condenado. A Páscoa de Jesus é uma expressão do Deus que resiste e se nega a deixar alguns excluídos do intercâmbio humano e social, da comunicação de identidades, bens e valores, do amor e comunhão do reino.

O Deus trino é o Deus do amor criador, que cria o mundo e o homem como expressão e destinatários da abertura de seu amor comunicativo e comunional infinito. Em um mundo que exige uma maior consideração do valor de cada pessoa para o conjunto da sociedade humana; do valor de cada grupo étnico, região ou cultura particular como expressão da riqueza do ser humano; do valor da pluralidade para o conceito mesmo de unidade; a revelação em Cristo do amor infinito, aberto e abrangente do Deus trino torna-se experiência de salvação e chamado que convoca o Espírito para construir o seu reino de comunhão.

 Gonzalo Zarazaga, SJ – Facultad de Teología del Colegio Máximo de San José, Argentina. Texto original espanhol.

 4 Referências Bibliográficas

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Para saber mais

BALTHASAR, H. U. v. El misterio Pascual. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. (eds.). Mysterium Salutis III/2. Madrid: Cristiandad. p.143-329.

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MOLTMANN, J. Trinidad y Reino de Dios. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 1986.

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