Cristianismo antigo

Sumário

1 Primeira comunidade cristã

1.1 O que se entende por cristianismo antigo

1.2 A questão da datação cristã

1.3 Primeira comunidade cristã ou primeiras comunidades cristãs?

1.4 Querigma, conversão, fé e batismo

2 Primeira expansão cristã

2.1 O contexto da expansão cristã

2.2 Um cristianismo plural num mundo plural

2.3 Protagonistas da missão cristã

2.4 Ministérios

3 Paulo: viagens missionárias

3.1 Traços biográficos do Apóstolo Paulo

3.2 As viagens missionárias

3.3 As cartas paulinas

3.4 Paulo: verdadeiro fundador do cristianismo?

4 Cristianismo no mundo romano

4.1 Um mundo plural

4.2 Cidadãos de outra cidade

4.3 As primeiras dissensões e heresias

4.4 Os concílios e o nascimento da teologia cristã

5 As perseguições na Antiguidade

5.1 Causas das perseguições

5.2 As várias fases das perseguições

5.3 O sangue dos mártires: semente de novos cristãos

5.4 O fim das perseguições e a “guinada constantiniana”

6 Referências bibliográficas

1 Primeira Comunidade Cristã

1.1 O que se entende por cristianismo antigo

De maneira geral, por cristianismo antigo entende-se o cristianismo dos quatro primeiros séculos da Era Cristã, cujo período vai desde o nascimento da Igreja, no evento Pentecostes (cf. At 2), em que os discípulos de Jesus Cristo receberam o Espírito Santo para anunciar o seu Evangelho (c. 30 dC) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 dC). Esse período de quatro séculos e meio é dividido, por sua vez, em duas grandes etapas: da pregação apostólica (c. 30 dC) à “guinada constantiniana” (313 dC) ou até o Concílio de Niceia (325) e daí até a queda de Roma (476 dC). Nesta seção iremos considerar a primeira etapa do cristianismo antigo. Há autores que preferem falar desta primeira etapa como “cristianismo primitivo” ou “pré-niceno”, como R. Markus, J. Hill ou H. Drobner.

1.2 A questão da datação cristã  

Os cristãos, inseridos no mundo greco-romano, utilizavam, no início, a datação comum das culturas nas quais se inseriam. Havia vários calendários, baseados no ciclo lunar e no ciclo solar. Dentre os mais comuns estavam o calendário Juliano e o calendário que contava as datas a partir da fundação de Roma (c. 753 aC). No século VI, o monge Dionísio, o Pequeno, organizou os eventos da história conhecida a partir do evento central do cristianismo, a Encarnação de Cristo. Daí ser comum no Ocidente usar a terminologia “antes de Cristo” (aC), “depois de Cristo” (dC), ou ainda “Era Cristã” ou “Era Comum” (EC).Nos seus cômputos, o monge cometeu alguns erros, que viriam a ser corrigidos no século XVII. Na verdade, Jesus Cristo nasceu 5 ou 6 anos antes da data proposta por Dionísio.

1.3 Primeira comunidade cristã ou primeiras comunidades cristãs?

Jesus pregou na Galileia, Judeia, Samaria e em alguns territórios pagãos e terminou sua missão em Jerusalém. A primeira comunidade cristã, apresentada de forma idealizada nos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,42-47 e 4,32-35) espelha não apenas a comunidade de Jerusalém, mas também as demais comunidades. O acontecimento de Pentecostes (cf At 2,1-13), que deu nascimento à Igreja, com a vinda do Espírito Santo, em que se encontravam pessoas de todas as partes, provavelmente ilustra os lugares onde os cristãos já haviam constituído comunidades. Podemos assim falar, já na primeira década após o “evento pascal” (morte e ressurreição de Jesus), do surgimento de comunidades cristãs nos lugares onde ele proclamara a Boa Nova do Reino.

1.4 Querigma, conversão, fé e batismo

O cristianismo primitivo se apresenta, desde o início, com uma grande vitalidade, ao ponto de continuamente receber novos convertidos (cf. At 2,41.47; 6,7). O entusiasmo da pregação acerca de Jesus Ressuscitado e o testemunho de vida fraterna das primeiras comunidades cristãs logo atraíram não só judeus, mas também pagãos. O anúncio do querigma, centrado na vida, morte e ressurreição de Jesus (cf.At 2,24-36; 3,13-26; 4,10-12; 5,30-32; 10,36-43; 13,17-41) constituía a pregação fundamental, que suscitava a conversão dos ouvintes. A fé na pessoa e mensagem de Jesus levava à entrada na comunidade cristã, através do batismo. Em torno da catequese batismal desenvolver-se-á uma fórmula que condensa a doutrina dos Apóstolos: o credo ou símbolo apostólico. Logo, a catequese fundamental de preparação ao batismo será organizada no catecumenato.

2 Primeira Expansão Cristã

 2.1 O contexto da expansão cristã

A maioria dos discípulos e discípulas de Jesus era constituída de judeus. A primeira expansão do cristianismo deu-se nesse ambiente, a língua, costumes, tradições, práticas judaicas foram reinterpretadas à luz da mensagem de Jesus. Desde o século II aC, os judeus encontravam-se espalhados pelo mundo helenizado (diáspora). Em Antioquia, capital da província da Síria, os seguidores de Cristo foram, pela primeira vez, chamados “cristãos” (cf. At 11, 26). A partir das sinagogas e comunidades judaicas helenizadas, expandiu-se o cristianismo fora do contexto judaico tradicional. Por fim, o cristianismo expandiu-se até Roma, alcançando as fronteiras do Império Romano, no contexto do mundo gentio ou pagão.

2.2 Um cristianismo plural num mundo plural

O eficiente sistema viário do Império, a koiné (uma espécie de grego popular), o mundo urbano da bacia do Mediterrâneo e a cultura helenizada facilitaram o anúncio cristão. Diversificado era o judaísmo no qual se inseriam Jesus e seus primeiros discípulos. Após a destruição de Jerusalém (70 dC) e a revolta de Bar Kochba (130 dC) o ramo farisaico representará o judaísmo tradicional. Muito mais diversificado era o mundo do Império Romano. O cristianismo da primeira expansão apresenta-se assim também muito plural e diversificado. Os textos do Novo Testamento, a literatura dos Padres Apostólicos e Apologistas (I e II séculos), bem como a literatura cristã heterodoxa do II e III séculos despertam um vivo interesse para o estudo do cristianismo antigo.

 2.3 Protagonistas da missão cristã

Jesus vivia cercado de seguidores: multidões o seguiam em seus deslocamentos, havia discípulos temporários e discípulos permanentes (cf. Mt 8,18-21; Lc 6,12-13.20; 8, 2-3;10,1; Jo 11,1; 12,1-11).Esses discípulos e discípulas foram os protagonistas iniciais da missão cristã. Dentre estes todos, ele escolheu Doze, constituídos como os líderes do “novo Israel” (cf. Mt 10,1-4; 20,17; Mc 3,14; Mc 6,7; 10,32.35-40; 11,11; 14,17; Lc 8,1; 22,28-30; Jo 6,67-68). O mandato de Jesus de “fazer discípulas todas as nações” (cf. Mt 28, 19) expressa a convicção de que a sua mensagem não se circunscrevia apenas à casa de Israel. A mensagem do Mestre da Galileia encontrou eco, pois, no contexto judaico, judaico helenizado e grande mundo gentio. Em cada um desses contextos surgiram novos discípulos. A tradição cristã conta que, após Pentecostes, os Doze, depois de rezarem juntos, distribuíram-se pelas várias regiões do mundo conhecido para cumprirem o mandato. Em cada lugar, acompanhados de discípulos, fundavam comunidades. No final do século I e início do século II há notícias da presença cristã para além das fronteiras do Império, como em Edessa, importante centro mercantil no reino de Osroene. Daí o cristianismo estendeu-se para a Ásia, atingindo a Pérsia e a Índia.

2.4 Ministérios

O Novo Testamento apresenta uma gama variada de ministérios, ou serviços de coordenação e organização das comunidades cristãs. No século I, em cada contexto da expansão cristã vemos surgir formas de organização desses serviços. Desde o início, o grupo dos Doze escolhidos por Jesus gozava de uma espécie de primazia de honra entre os discípulos. Não devem ser confundidos com os apóstolos; a tradição posterior, no final do séc. I,identificou-os como “doze apóstolos”. Após a traição de Judas, foi necessário escolher outro para substituí-lo e completar o número “doze” (cf. Mt, 28,16; Mc 16,14; Lc 24,9.33; Jo 20,19.24.26; 1 Cor 15,5; At 1,15-26). No contexto judaico, cujo modelo é a comunidade de Jerusalém, adotou-se o modelo do conselho de anciãos (presbíteros), presidido por um ancião (uma espécie de presbítero-bispo). No contexto do judaísmo helenizado, logo se associam aos Doze e aos presbíteros os diáconos, espécie de administradores dos bens(At 6, 1-6). Nas comunidades fundadas por Paulo, destacam-se os Apóstolos (missionários itinerantes, fundadores e responsáveis gerais das comunidades: cf. At 13,2; 14,27; 15,27; 18,22), Profetas (líderes locais e presidentes das celebrações: cf. 1 Cor 14,15-17.29-32) e Doutores (espécie de catequistas: At 13,1; 18,4; 22,3). No final do século I, quando surgem as dissensões, com os “falsos profetas” e outros pregadores (cf. At 20, 29-31), instituem-se os vigilantes da “tradição” e do “depósito da fé”, os epískopoi (bispos). Os missionários passam a ser chamados de evangelistas (Ef 4,11; 2 Tm 4,5). A evolução dos ministérios chegará, no final do século II, à estrutura que, em geral, será adotada por todas as Igrejas: bispo-presbítero-diácono.

3 Paulo: viagens Missionárias

3.1 Traços biográficos do Apóstolo Paulo

O Apóstolo Paulo é, sem dúvida, a figura mais marcante do primeiro século cristão. As duas principais fontes sobre ele, nem sempre fáceis de conciliar, são os Atos dos Apóstolos e o grupo de escritos denominados corpus paulinum. Paulo é natural de Tarso, cidade próxima a Antioquia. É da mesma época de Jesus, ainda que não o tenha encontrado. Hábil fabricante de tendas, é um típico judeu da diáspora, um autêntico fariseu, que frequentou a escola do fariseu Gamaliel, em Jerusalém. Foi um dos líderes que organizaram a perseguição aos cristãos, na tentativa de suprimir a nova religião, assistindo ao martírio de Estêvão (cf. At 9). No entanto, no caminho de Damasco, teve uma extraordinária experiência mística, na qual encontrou Jesus. Ao se converter, mudou o seu nome Saulo para Paulo. Logo após o batismo começou a pregar o Cristo, primeiro na Arábia e depois em Damasco. Após a primeira prisão, foi a Jerusalém para encontrar-se com os Apóstolos e depois dirigiu-se a Tarso, onde permaneceu por vários anos.

3.2 As viagens missionárias

Por volta de seus 40 anos, Paulo começa as famosas três “viagens missionárias”. Na verdade, essas constituem idas e vindas pelo Império Oriental, uma verdadeira jornada missionária, pregando o Evangelho, fundando comunidades, formando líderes, escrevendo cartas, elaborando sua teologia. Uma jornada que culminaria na sua prisão definitiva e morte em Roma, por volta de 64-67 dC. Na primeira viagem, Paulo foi à Anatólia, depois a Jerusalém e Antioquia. Nas outras duas, viajou pela península grega. As principais cidades por onde passou: Atenas, Corinto, Éfeso, Tessalônica e Filipos. De volta a Jerusalém, Paulo, sendo atacado por uma multidão, alegando seus direitos como cidadão romano, quis ser julgado em Roma, para onde foi levado preso. Esperava ser solto e continuar sua missão. Tradições posteriores falam que ele teria ido à Ibéria e Gália. No entanto, o mais seguro é que tenha sido executado em Roma.

 3.3 As cartas paulinas

Em suas viagens, Paulo contou com vários companheiros, entre os quais Timóteo, Tito, Barnabé, Lucas. Treze cartas ou epístolas do Novo Testamento trazem o nome de Paulo. Os modernos estudiosos consideram como de sua autoria as seguintes: a carta aos Romanos, a 1ª e 2ª cartas aos Coríntios, uma aos Filipenses, uma aos Gálatas, a 1ª aos Tessalonicenses e a mais curta, uma espécie de bilhete a Filêmon. As cartas revelam suas experiências missionárias e testemunham suas preocupações teológicas. Muitas de suas ideias foram usadas como respostas aos problemas pastorais de suas comunidades. O papel de Cristo crucificado e ressuscitado na história da salvação ocupa um lugar central na teologia paulina.

3.4 Paulo: verdadeiro fundador do cristianismo?

Algumas vezes se afirmou que Paulo foi “o verdadeiro fundador do cristianismo”, chegando a ofuscar a mensagem original de Jesus e o papel dos Apóstolos, como se tivesse fundado uma “nova religião”. Paulo ocupa, sem dúvida, um lugar excepcional na difusão do cristianismo primitivo. No entanto, ele mesmo fala que teve dificuldades em ser aceito como Apóstolo (cf. Gl 1,15-24; 1 Cor 15,8;Ef 3,1-9). Uma das questões fundamentais levantadas por Paulo é se, para ser um autêntico seguidor de Cristo, era necessário aceitar todas as prescrições da tradição judaica. O conflito encontrou uma solução na reunião com os Apóstolos em Jerusalém, na qual se chegou a um consenso sobre os pontos fundamentais da vida e doutrina cristãs (cf. At 15; Gl 2,1-10). Esse acordo reconheceu a legitimidade da missão entre os gentios, garantindo a expansão do cristianismo e estabelecendo critérios para a resolução de conflitos e a unidade entre as Igrejas.

4 Cristianismo no Mundo Romano

4.1 Um mundo plural

O mundo no qual o cristianismo antigo se expandiu, apesar de sinais de decadência, era um mundo vigoroso. No século I da era cristã, a civilização romana, herdeira da civilização helenística, tinha alcançado sua plena expansão. Estamos sob o império de Augusto (30 aC) e Tibério (14-37dC). Roma estende seu domínio civilizador, com a pax augusta, uma paz militarizada, aos confins do Oriente. No século II, com os imperadores Antoninos, ainda temos a ordem, o direito e uma administração eficaz, dentro de um Estado relativamente liberal. Mesmo com a grande crise do século III, sob Diocleciano (284-305) sua história ganha um novo impulso: em seu governo instaura-se uma monarquia absoluta, apoiada em um poderoso aparelho administrativo.

Muitas culturas, muitos povos, muitos deuses. O Império romano tinha grande tolerância pela religião dos povos dominados. Tinham até em Roma um “panteão”, um templo para todas as divindades do Império. Os romanos exigiam apenas que se observasse o culto imperial, de caráter cívico, com suas cerimônias públicas, das quais todos os cidadãos do Império deveriam participar, para oferecer sacrifícios e rezar pelo Imperador: dominus ac divus (senhor e deus). A religião oficial era a base da unidade imperial. Atentar contra ela era crime. Os cristãos, ao afirmaram que seu único Senhor era o Cristo, serão considerados suspeitos, estranhos e inimigos do Estado.

Num mundo marcado por muitas inseguranças, miséria, opressão e escravidão, proliferavam muitas religiões vindas do Oriente e que se tornaram muito populares. Eram os cultos de Hórus, Ísis e Osíris (Egito); Mitra (Pérsia); Asclépio e Esculápio estavam entre os deuses “salvadores” mais populares. Essas religiões tinham um caráter iniciático: exigiam conversão ou uma passagem, um novo nascimento, um período de iniciação nos “mistérios” e uma cerimônia de iniciação. Os “iniciados” ingressavam na “fraternidade”, tornavam-se irmãos, associados à divindade, sua vida ganhava um novo sentido, era-lhes prometida a eternidade. O Império tratava-as como superstitio, religio nova, e considerava-as ilícitas. O cristianismo foi classificado como uma dessas religiões.

Os filósofos consideravam o politeísmo uma “alegoria” das realidades superiores, que eles tinham superado através do exercício da ascese e da razão, em busca da verdadeira doutrina ou filosofia. Muitos sistemas filosóficos procuravam responder às grandes questões das origens e finalidade do universo, de todas as coisas, dos problemas ligados ao homem e suas relações na polis e com o mundo divino, do significado da justiça, da felicidade, da imortalidade. Normalmente postulavam a existência de um Deus, princípio ou causa transcendente, com um mundo superior, imaterial. Não poucas pessoas vindas desse universo cultural buscarão a “verdadeira filosofia”, que encontrarão no cristianismo.

Nesse universo plural, despertou no século I um movimento de caráter sincrético, que amalgamou elementos de muitas tradições culturais, religiosas e filosóficas. Era o gnosticismo: através da gnose, um conhecimento superior, revelado aos capazes desse conhecimento, os gnósticos, o homem podia conhecer os mistérios do mundo divino e salvar-se. No século II e III há uma explosão de seitas e grupos gnósticos, existentes tanto entre os pagãos, como entre os judeus e cristãos.

4.2 Cidadãos de outra cidade

As primeiras gerações cristãs, apesar de oporem-se radicalmente ao “mundo”, à civilização circunstante, não eram insensíveis aos seus valores. Condenavam os limites e vícios dessa civilização pagã: as crueldades (combate dos gladiadores, abandono dos recém nascidos e idosos); a imoralidade dos costumes (devassidões, luxúria, orgias: cf. Rom 1, 2-32) e a idolatria e apego a este mundo passageiro.

A Igreja acolheu no princípio os humildes, os pobres, as mulheres, os escravos. Mas logo também os comerciantes, os soldados, funcionários do Império e depois membros da aristocracia e da própria casa imperial se converterão à religião do Nazareno. Todos habitavam esse mundo, mas sentiam-se cidadãos de uma cidade imperecível (cf. Carta a Diogneto).

4.3 As primeiras dissensões e heresias

Jesus anunciou e inaugurou a Boa Nova do Reino num contexto plural. Sua mensagem difundiu-se num mundo plural. Sua mensagem e sua pessoa, sua vida foram transmitidas, primeiramente, numa mentalidade semítica, tendo depois de buscar uma linguagem helenizada para se fazer compreender e daí, sucessivamente, germânica, céltica etc. É natural que houvesse diferentes interpretações de sua pessoa e sua obra. Já no Novo Testamento encontramos várias “teologias” e advertências contra os anticristos, falsos profetas. Dentre as primeiras “escolhas” parciais (“heresias”), que não davam conta de compreender corretamente Jesus Cristo e sua mensagem ou que extrapolavam seu conteúdo, encontramos os docetas (Jesus tinha “aparência” de homem, negavam portanto sua “humanidade”) e os ebionitas (era o Messias, um homem vindo de Deus, mas não o Filho de Deus, negavam sua “divindade”). Em torno dessas duas verdades proclamadas e da maneira de viver e praticar a mensagem de Jesus, surgiram, nos três primeiros séculos, muitas heresias e dissensões ou cismas: gnosticismo (vários ramos), montanismo, milenarismo, subordinacionismo, adocionismo, modalismo, maniqueísmo, entre tantas outras.

 4.4 Os concílios e o nascimento da teologia cristã

Para enfrentar esses desafios, já no final do século II e durante todo o século III, as Igrejas realizam reuniões com seus dirigentes, para buscar resolver os problemas e encontrar a unidade nas coisas essenciais. São os sínodos ou concílios. Nesse sentido, o encontro ocorrido em Jerusalém, por volta do ano 49dC, é considerado, simbolicamente, o primeiro concílio do cristianismo. Esses concílios tratavam de questões doutrinais e questões da vida prática. No final, davam determinações sobre os aspectos tratados, através dos cânones dogmáticos e disciplinares, com uma “carta sinodal” a ser enviada às Igrejas irmãs. Baseado nessa feliz experiência, o Imperador Constantino convocará, em 325, o 1º Concílio Ecumênico, para enfrentar o problema do Arianismo.

Na busca de compreender o Cristo e sua mensagem, a salvação, o significado da Igreja, dando respostas às heresias e dissensões, aprofundando a fé cristã, desenvolve-se a teologia cristã. Nesse sentido, o processo de elaboração da doutrina cristã usará dos recursos culturais da civilização greco-romana: a língua grega e latina, a retórica, a filosofia, o direito, práticas, costumes, instituições. A esse apropriar-se da cultura, utilizando o que ela tem de melhor para expressar a mensagem de Cristo, desde dentro, comumente chama-se inculturação. Esse fenômeno será uma característica constante da expansão cristã. A próxima etapa dar-se-á no mundo germânico.

5 As perseguições na Antiguidade

5.1 Causas das perseguições

Durante os três primeiros séculos da era cristã, o cristianismo foi perseguido, primeiro pelos judeus e depois pelos romanos. Até o incêndio de Roma, sob o governo de Nero (c. 64), os cristãos praticamente passaram despercebidos, confundidos com uma seita do judaísmo, que gozava de certa liberdade e alguns privilégios. Possivelmente tenham sido os judeus a denunciarem a Nero os cristãos como causadores do incêndio.

Somaram-se a isso os preconceitos populares, que viam os cristãos como gente que odiava o gênero humano, ateus, ímpios, sacrílegos e acusados de praticarem abominações e infâmias. Na verdade, os cristãos não eram “separatistas”, mas não seguiam os costumes idolátricos e pagãos, como certas festas públicas, a frequência ao teatro, não aprovavam a luta de gladiadores, a prostituição, adoração de estátuas ou a divinização do imperador.

Corriam no meio do povo boatos de que, em suas reuniões secretas, os cristãos adorariam a cabeça de um asno, com sacrifício de crianças, seguido de canibalismo, com uniões incestuosas e orgias (todos se chamavam “irmãos” e praticavam o “ósculo da paz”!).

Os intelectuais e as autoridades classificavam a religião dos cristãos como superstitio, sendo posteriormente condenada pelo Estado como associatioillicita, religio nova e religioillicita, por atentar contra a unidade e a sacralidade do Império. A legislação evoluiu, no primeiro século, de certa tolerância com o fato de ser cristão até a condenação pelo simples fato de ser cristão. Ser cristão acabava sendo um crime de lesa majestade.

5.2 As várias fases das perseguições

As perseguições dos dois primeiros séculos foram esporádicas, locais ou regionais, intermitentes, motivadas por denúncias ou ações pontuais. Já as perseguições do terceiro século e início do quarto foram desencadeadas pela autoridade imperial, através de decretos, de caráter geral, com o objetivo de exterminar o cristianismo.

Na primeira fase aconteciam por incitamento popular, submetidas posteriormente à apreciação dos magistrados. As autoridades visavam controlar a fúria popular e as desordens públicas. No entanto, o cristianismo já era considerado ilegal. Mas ainda são de caráter intermitente, seguindo-se longos períodos de tolerância e de paz.

Com Sétimo Severo, em 202, inicia-se uma nova prática: em certas ocasiões a própria autoridade promove as perseguições. Neste momento o alvo são os catecúmenos (os que se preparavam para o batismo), os neófitos (os recém-batizados) e os catequistas (que os preparavam). O objetivo era impedir que alguém se tornasse cristão.

Em meados do século III, iniciam-se as perseguições sistemáticas, com o objetivo de exterminar efetivamente o cristianismo. Décio foi o primeiro a decretar uma perseguição geral (250-251). Apesar de curta, atingiu tal intensidade e extensão nunca dantes vistas. O objetivo, mais do que fazer mártires, era fazer apóstatas. De fato, muitos sucumbiram e traíram sua fé ou comunidade (os lapsi), abrindo-se um problema no interior da Igreja. Em 257, Valeriano desencadeou nova perseguição: visava principalmente o clero e as propriedades da Igreja, mas também afetava o povo, com uma série de interdições que colocavam em risco sua segurança, confisco de bens, exílio, prisões. A última perseguição violenta foi a de Diocleciano (303-313).

Calcula-se que o número de mártires variasse entre cem e duzentos mil. De toda forma, ao longo de todo este período, os cristãos viveram em permanente insegurança e sofreram hostilidades por parte do povo.

5.3 O sangue dos mártires: semente de novos cristãos

Tertuliano de Cartago (…220) observa que foi à sombra do judaísmo que o cristianismo pôde dar seus primeiros passos sem confrontar-se com o Império. Junto com Justino de Roma, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antioquia, Irineu de Lião e Orígenes de Alexandria, ele é um pensadores, filósofo e teólogo que faz a apologia do cristianismo: defesa contra os ataques vindos do povo, dos judeus, dos filósofos e das autoridades; contra-ataque da imoralidade da religião pagã, das incoerências do povo da antiga lei, absurdo das teorias sobre Deus e decadência do Império, para apresentar a beleza, a sublimidade e a honestidade da religião de Cristo.

Quanto mais os cristãos são perseguidos e martirizados, mais se multiplicam. Nesse contexto, o próprio fato de entrar para o grupo de catecúmenos ou de pedir o batismo já demonstrava a seriedade dos candidatos. Somente após as perseguições é que a instituição do catecumenato veio a se tornar mais rigorosa, já num contexto de liberdade e maior frouxidão.

O primeiro modelo de santidade que encontramos no cristianismo antigo é o martírio. O mártir é a testemunha por excelência, que imita Cristo até o derramamento de sangue. Mártires foram vários dos discípulos que conviveram com Jesus, dos apóstolos, chefes das Igrejas e gente desconhecida, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos, anciãos. Desenvolve-se desde cedo a “espiritualidade do martírio”. O túmulo dos mártires logo se transforma em lugar de peregrinações e culto.

Além de várias fontes antigas, as fontes privilegiadas para conhecer os mártires cristãos são as acta martyrum: documentos feitos pelas próprias autoridades no julgamento dos condenados e que depois eram lidos nas comunidades; as gesta: relatos escritos na época das perseguições e que misturam elementos históricos e romanceados; e as legenda, a maior parte de época posterior, com muitos motivos fantasiosos, constituindo-se uma literatura de edificação.

5.4 O fim das perseguições e a “guinada constantiniana”

Em 313, os imperadores Licínio e Constantino assinaram conjuntamente um documento, o Edito de Milão, que concedeu liberdade de culto aos cristãos e a outras religiões. Chegava ao fim a era da perseguição aos cristãos. Iniciava-se uma nova etapa, denominada por alguns historiadores como a guinada ou virada constantiniana (cf. F. Pierini, H. Matos e D. Mondoni). Constantino concedeu aos cristãos, além da liberdade de culto, uma série de isenções e privilégios, dando terras, propriedades, prestígio e poder à Igreja Católica. Em 380, o imperador Teodósio transforma o cristianismo em religião oficial do Império Romano: é a fase da “Igreja Imperial” ou “Era de Ouro da Patrística”.

Nessa nova etapa, reformula-se o catecumenato; desenvolve-se a liturgia e a disciplina eclesiástica; a teologia patrística chega ao seu ápice; é também o período de grandes cismas e heresias; os dogmas cristológicos e trinitários alcançam sua formulação mais plena; aprimora-se a organização da Igreja no território do Império, com as dioceses, paróquias e patriarcados; surge a vida religiosa, com o monacato; há um novo surto missionário em direção aos povos “bárbaros”. É a época dos concílios ecumênicos: Niceia (325), Constantinopla I (381); Éfeso (431) e Calcedônia (451).

Luiz Antônio Pinheiro, OSA. ISTA. Texto original português.

6 Referências bibliográficas

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Para saber mais

COMBY, J.; LEMONON, J.-P. Vida e religiões no império romano no tempo das primeiras comunidades cristãs. Documentos do Mundo da Bíblia 5. São Paulo: Paulinas, 1988.

COTHENET, E. São Paulo e o seu tempo. Cadernos Bíblicos 26. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1985.

DANIÉLOU, J.; MARROU, H. Dos primórdios a São Gregório Magno. Nova História da Igreja. Tomo I. 3.ed. Petrópolis: Vozes. p.23-250.

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