Ecumenismo

Sumário

1 O significado do termo “ecumenismo”

2 A história do movimento ecumênico

2.1 Associações cristãs

2.2 A missão em perspectiva ecumênica

2.3 Dois movimentos da unidade cristã

2.4 O Conselho Mundial de Igrejas

2.5 As assembleias do Conselho Mundial de Igrejas

3 As Igrejas e o movimento ecumênico

4 O ecumenismo no Concílio Vaticano II

4.1 O Decreto Unitatis redintegratio

4.2 O Diretório ecumênico

4.3 As estruturas ecumênicas

5 O ecumenismo na América Latina

6 Frutos do ecumenismo

7 Desafios para o ecumenismo na atualidade

8 Referências bibliográficas

 1 O significado do termo “ecumenismo”

O termo “ecumenismo”, tradução portuguesa do conceito grego oikoumene, é encontrado pela primeira vez em Heródoto (séc. V). Designa a “terra habitada”, no sentido geográfico. Desse sentido, passa-se ao de “habitantes da terra”, indicando toda a humanidade. Para os gregos, o elemento que unifica a oikoumene é a cultura helênica. Os romanos traduzem esse termo como ecumene, colocando como elemento unitivo a ordem jurídica, a organização política da orbis romanus.

É neste sentido profano que se encontra o termo “ecumenismo” na bíblia. Na tradução dos LXX, ele está, sobretudo, nos salmos e no livro de Isaías. No segundo testamento, oikoumene aparece 15 vezes: com o sentido de “a terra habitada” (Mt 24,14; Lc 4,5; 21,26; Rm 10,18; Hb 1,6), “os habitantes da terra” (At 17,31; 19,27; Ap 12,9), e em relação com a orbis romanus (Lc 2,1; At 24,5).

Na bíblia, “ecumenismo” ganha também um sentido religioso, indicando o mundo inteiro e que tudo o que esse possui recebeu de Deus criador e a Deus pertence: “a mim pertence o mundo e o que ele contém” (Sl 49,12; também Is 10,14). A oikoumene/mundo é onde se realiza a história da salvação, onde acontece o pecado, a ação dos profetas, a encarnação. Deus julgará o mundo (Is 10,14-23; Lc 21,6; Ap 3,10; At 17,31); envia os profetas e os apóstolos para mostrar o caminho da salvação (Sl 48,2; Mt 24,14); o mundo será salvo, enfim, por Cristo que o glorificará (Hb 2,5).

Na patrística, ecumenismo ganha sentido eclesiológico, associado com frequência à Igreja católica espalhada por toda a terra. Os termos “católico” e ecumene se justapõe: a Igreja é católica, isto é, espalhada por toda a terra (oikoumene). Orígenes entende que a doutrina e a piedade cristãs encheram a terra (De principiis, L. IV, n.5) e trata dos que habitam a oikoumene da Igreja de Deus (Ps., XXXII, 8). Para Basílio, a Igreja deve ser difundida por toda a terra e chegar a todas as pessoas, agrupando nela a diversidade das condições humanas (Homilia in Ps., 48).

Ao longo da história do cristianismo, o termo ecumenismo foi considerado como expressão de comunhão na fé pela adesão às doutrinas definidas nos “concílios ecumênicos”. Com a divisão dos cristãos, sobretudo a partir do século XVI, o ecumenismo vai ganhando o sentido de esforço para restabelecer a unidade rompida. É nesse sentido que, a partir do século XIX, surgem iniciativas de diálogo entre Igrejas separadas, dando origem ao atual “movimento ecumênico”.

2 A história do movimento ecumênico

 2.1 Associações cristãs

No final do século XVIII, surgiram na Europa fenômenos políticos, sociais e culturais como a Revolução Francesa, o racionalismo, a revolução industrial, o capitalismo e o socialismo, o liberalismo, que exigiram um posicionamento das Igrejas. Esse posicionamento foi diferenciado conforme cada igreja, entre o fechamento e a condenação da realidade social, de um lado, e a integração e diálogo com essa realidade, de outro.

Nesse contexto surgiram várias associações cristãs, que influenciariam decisivamente no futuro movimento ecumênico. Destacam-se: a Associação Cristã de Jovens (1844) e Associação Cristã de Mulheres Jovens (1854), a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (1895). A preocupação não era, na verdade, aproximar as Igrejas mas evangelizar a sociedade e os meios universitários, buscando a “ampliação do Reino de Deus entre a juventude” (NEILL, p.327-9). Entretanto, essas associações favoreceram as relações e intercâmbios entre as Igrejas. Três elementos contribuíram para isso: 1) o internacionalismo das associações, que fundam novas sedes e isso exige um contato estreito com as Igrejas; 2) a competência para organizar eventos internacionais, que torna seus líderes peritos das futuras assembleias ecumênicas; 3) a preocupação missionária, com interesse sobretudo pelas “igrejas jovens” da Ásia e da África, ajudando as demais Igrejas a uma unidade na missão (NAVARRO, p.121).

A conferência para a paz, celebrada em Haia (1907), deu origem à Aliança Mundial para a Amizade Internacional, congregando as Igrejas para, na iminência da Guerra Mundial, atuarem na promoção da paz. Uma conferência protestante realizada em Lausanne e outra católica em Lieja, ambas em agosto de 1914,  redigiram resoluções em favor da paz. Não evitaram a guerra, mas desenvolveram a cooperação ecumênica em favor da paz e do atendimento aos atingidos.

2.2 A missão em perspectiva ecumênica

Tais iniciativas prepararam o terreno para as Igrejas realizarem debates sobre a relação entre missão e unidade (Londres, 1888; Nova Iorque, 1890). Sentia-se a necessidade da cooperação, do testemunho comum, da interação ecumênica nos projetos missionários confessionais. Chegou-se, assim, ao grande evento que marca, de fato, a origem do movimento ecumênico moderno, a Conferência Missionária Internacional, realizada em Edimburgo, em 1910. Participaram dessa Conferência 1.200 delegados de 159 sociedades missionárias. O tema da Conferência foi “Problemas que surgem no confronto entre missões cristãs e religiões não-cristãs”. Dessa Conferência surge, em 1921, o Conselho Missionário Internacional (Lake Mohonk, EUA), que se integrará ao Conselho Mundial de Igrejas na Assembleia Geral em Nova Delhi (1961).

2.3 Dois movimentos da unidade cristã

Dois outros movimentos são criados para fortalecerem a aspiração ecumênica manifestada em Edimburgo: 1) Vida e Ação, que busca unir as Igrejas em projetos de ação social. A inspiração foi do arcebispo luterano da Suécia, Nathan Soderblom (1866-1931), que buscava unir as hierarquias eclesiásticas dos países em guerra. Em 1920, Soderblom convocou uma conferência mundial com o nome de Vida e Ação, que se realizou em Estocolmo, em 1925, tratando de questões sociais como a economia, a moral, as relações internacionais, a educação cristã, os métodos de cooperação e federação. Não se tratou de questões dogmáticas, por entender-se que “a doutrina divide, a ação une”. Em 1937, foi realizada uma segunda conferência em Oxford, refletindo sobre “Igreja, Nação, Estado”, condenando o fascismo e o Estado transformado em ídolo.

2) O segundo movimento é Fé e Constituição, que surgiu por iniciativa do bispo anglicano Charles H. Brent (1862-1929), na Conferência realizada em Lausanne, em 1927, debatendo questões doutrinais como a unidade, a evangelização, a natureza da Igreja, a confissão da fé, o ministério, os sacramentos. Uma segunda conferência realizada em Edimburgo, em 1937, refletiu sobre a graça de Jesus Cristo, a Igreja de Cristo e a palavra de Deus, a comunhão dos santos, a Igreja, o ministério e os sacramentos, a unidade da Igreja na vida e no culto.

2.4 O Conselho Mundial de Igrejas

Os dois movimentos vistos acima tentaram formar um Conselho Mundial de Igrejas numa reunião em Utrecht, em 1938. Mas isso só aconteceu de fato em 1948, em Amsterdã.

O Conselho Mundial de Igrejas é o fruto mais maduro da aspiração pela superação da divisão dos cristãos. Ele é hoje composto por 349 Igrejas de todas as tradições eclesiais, exceto o catolicismo, e busca manter entre as igrejas-membros um diálogo estável e projetos de cooperação que fortaleçam as relações fraternais. A ideia de um conselho de Igrejas se manifestava com frequência desde a Conferência de Edimburgo (1910). Foi proposta pelo patriarcado de Constantinopla em 1920 como uma liga de igrejas, e pelos bispos anglicanos na Conferência de Lambeth (1920), além da tentativa dos movimentos Vida e Ação e Fé e Constituição, em Utrech (1937). Dessa última tentativa, surgiu o “Comitê dos Quatorze”, que em 1938 reuniu-se novamente em Utrech e criou um comitê provisório para pensar a criação de um Conselho de Igrejas. Após duas reuniões desse comitê (Clarens, na Suíça, em 1938 e Saint-Germain, na França, em 1939), os trabalhos foram dificultados por causa da Guerra, até 1948, quando se realizou a assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdã, com a presença de 147 Igrejas.

O Conselho Mundial de Igrejas não é uma “super Igreja”, nem a Igreja universal, nem a Una Sancta. Ele não toma decisões em nome das Igrejas e a sua teologia não expressa uma concepção particular de igreja confessional, como também as Igrejas não consideram relativas suas eclesiologias por causa de sua pertença ao Conselho (Wisser´t Hooft, p.278). Para ser membro do Conselho é necessário aceitar a base doutrinal aprovada na Assembleia em Nova Delhi (1961):

(…) o Conselho Mundial de Igrejas é uma associação fraternal de Igrejas que creem em Nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador segundo as Escrituras e se esforçam por responder conjuntamente à sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo (Nouvelle-Delhi, 1961, Rapport de la Troisième  Assemblée – Delaxaus et Niestlé, Neuchâtel, 1962, 147-148).

2.5 As assembleias do Conselho Mundial de Igrejas

 O Conselho Mundial de Igrejas desenvolve suas atividades por muitas formas e através de diferentes meios, como o Instituto Ecumênico de Bossey, o escritório do Conselho em Nova Iorque, o departamento de comunicações, com seus boletins, revistas, livros e gravações em diferentes línguas, bem como a biblioteca que possui em sua sede em Genebra. Mas o trabalho de articulação maior entre as Igrejas acontece nas Assembleias Gerais, dez já realizadas ao longo de sua história. A saber:

1) Amsterdã, 1948participam 147 Igrejas de 44 países. O tema geral foi “A desordem do homem e o desígnio de Deus”; 2) Evanston, 1954 participaram 162 Igrejas, tendo como tema geral “Cristo, única esperança do mundo”; 3) New Delhi, 1961, com a presença de 198 Igrejas cristãs e o tema geral “Cristo, luz do mundo”; 4) Upsala, 1968 – o tema foi “Eu torno novas todas as coisas”; 5) Nairóbi, 1975contou com 286 Igrejas-membros e refletiu sobre o tema “Jesus Cristo liberta e une”; 6) Vancouver, 1983teve como tema geral “Jesus Cristo, vida do mundos”; 7) Camberra, 1991 –  participaram 317 Igrejas e o tema geral foi “Vem, Espírito Santo, renova toda a criação”;  8) Harare (Zimbabwe), 1998, com o tema “Buscar a Deus com a alegria da esperança”; 9) Porto Alegre, 2006, com o tema “Deus, em tua graça transforma o mundo”; 10) Busan (Coreia do Sul), 2013, com o tema: “Senhor da vida, conduz-nos à justiça e à paz”.

3 As Igrejas e o movimento ecumênico

As diferentes tradições cristãs logo se integraram no movimento ecumênico, desde suas origens. Nas associações e no movimento missionário, havia representantes de praticamente todas as Igrejas do protestantismo, do anglicanismo e das tradições ortodoxas. Os cristãos protestantes são pioneiros das iniciativas ecumênicas. Dentre eles destacam-se o metodista John Mott (1865-1955), o luterano Nathan Soderblon (1866-1931), o reformado holandês Willem Adolf Visser’t Hooft (1901-1985), os metodistas Philip Potter (1921) e Emílio Castro (1927-2013). Esses, entre muitos outros, contribuíram significativamente para que as Igrejas luteranas, reformadas e metodistas aderissem ao movimento ecumênico desde suas origens.

Os anglicanos foram impulsionados ao diálogo ecumênico pelo Movimento de Oxford (1833-1845), que buscava recuperar as tradições primitivas do cristianismo, que muito favoreceu para o diálogo com a Igreja católica, sobretudo pelos esforços de Henry Newmann (1801-1890). Esse diálogo foi fortalecido pelas Conversações de Malinas (1921- 1926), junto com o padre Portal e o cardeal Mercier.  A Conferência de Lambeth, em 1920, apresentou quatro elementos fundamentais para a reconstituição da unidade da Igreja: as Escrituras, o Símbolo de Niceia e dos Apóstolos, os sacramentos e os ministérios. Com relação aos ortodoxos, ainda em 1902, o patriarca Joaquim III de Constantinopla publicou uma encíclica que muito incentiva o ecumenismo. Em 1920, os doze metropolitas do Sínodo de Constantinopla também publicaram uma carta encíclica propondo a criação de uma liga das igrejas e apresentando elementos pastorais para isso.

A Igreja católica teve duas posições frente ao movimento ecumênico: a) resistência ao diálogo – reiteradas vezes as autoridades católicas recusaram o convite para participarem das iniciativas ecumênicas. Entre outras: em 1910, pela ocasião da Conferência de Edimburgo; em 1925, na criação do Movimento Vida e Ação; em 1927, na criação do Movimento Fé e Constituição; em 1948, na assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas. A primeira vez que a Igreja romana enviou delegados oficiais em um encontro ecumênico foi em 1961, na assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, em Nova Delhi.  b) integração na caminhada ecumênica: a abertura para o ecumenismo na Igreja católica surge apenas em meados do século XX, com a instrução do Santo Ofício Ecclesia Catholica (conhecida como De motione oecumenica), de 20 de dezembro de 1949, reconhecendo a importância do movimento ecumênico e apresentando os critérios para os católicos dele participarem. Trata-se do primeiro pronunciamento oficial da Igreja Católica Romana que valoriza o movimento ecumênico, entendendo-o como uma “inspiração da graça do Espírito Santo”.

O caminho da Igreja católica para o ecumenismo foi aberto em cinco direções:

1) na teologia – as primeiras intuições ecumênicas no meio católico são encontradas em teólogos do século XIX, sobretudo Johann Adam Möhler (1796-1838) e John Henry Newmann (1801-1890), que propunham uma concepção de unidade eclesial que supera a perspectiva institucionalista, juridicista e visibilista, própria da eclesiologia da “sociedade perfeita” de então. Mas os esforços mais consequentes surgem mesmo no século  XX, tendo como marco a obra de Y. M. J. Congar, Chrétiens Désunis. Principes d´un oecuménisme catholique (1937). Na mesma direção estão K. Rahner, H. Urs Von Balthasar e J. Danielou, apenas para citar os que mais influência tiveram no Concílio Vaticano II.

2) na espiritualidade – o Papa Leão XIII, no seu Breve Providae Matris (1865),  recomendou uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na primeira semana de Pentecostes. Em 1867, escreve, na Carta Encíclica Divinum illud múnus, sobre o valor da oração em que se pede que o bem da unidade dos cristãos possa amadurecer. A Semana de Oração ganha força originalmente no meio protestante e anglicano, a partir de 1908. Quando a Society of the Atonement se tornou corporativamente membro da Igreja católica, o Papa Pio X concedeu, em 1909, a sua bênção oficial à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos no mês de janeiro. Mas foi Bento XV que a introduziu de maneira definitiva na Igreja católica. Em 1937, o padre Paul Couturier (1881-1953), junto com Paul Wattson (1863-1940), fortaleceram ainda mais a Semana de Oração pela Unidade, integrando decididamente as comunidades católicas. É significativo o fato de o papa João XXIII ter anunciado a realização do Concílio Vaticano II no dia 25 de janeiro de 1959, encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos.

3) na criação de organismos ecumênicos – o monge beneditino Lambert Beauduin (1873-1960) fundou, em 1925, os “monges da união”, na Bélgica, e, em 1939, a revista Irenikon, ainda hoje uma das principais nos meios ecumênicos. Uma série de outros organismos ecumênicos vão surgindo pela iniciativa de católicos romanos, como o Centro Istina (Paris), o movimento Una Sancta (Alemanha), o Centro Pro Unione (Roma).

4) na busca do diálogo estável – entre os anos 1921 e 1925, um grupo de teólogos anglicanos e católicos romanos desenvolveram conversações doutrinais (Malines) de fundamental importância para a unidade das duas Igrejas.

5) na ação social – cristãos de diferentes igrejas solidarizaram-se nos esforços pela promoção humana, sobretudo durante os dois grandes conflitos mundiais.

4 O ecumenismo no Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II (1962-1965) teve como um dos seus principais objetivos promover a unidade dos cristãos (Unitatis redintegratio, n.1). Na intenção do papa João XXIII, o ecumenismo não era um tema de segunda importância, mas um dos elementos que configuram a Igreja conciliar, em seu ser e em seu agir. E para se fortalecer como um objetivo do Vaticano II, o ecumenismo perpassa a teologia, a espiritualidade, a eclesiologia, a missiologia do concílio. Tornou-se uma perspectiva da discussão dos padres conciliares em praticamente todos os 16 documentos conclusivos do concílio, tendo como passagens mais significativas: LG 8.13.15; CD 16; OT 16; DV 22; AA 27; GS 92; PO 9; AG 6.15.29.36.39.

O Vaticano II foi um fato ecumênico. Mostram isso o seu objetivo, a explicitação da dimensão ecumênica das diferentes temáticas do concílio, a presença dos observadores cristãos não católicos romanos na Assembleia dos padres conciliares.[1] A publicação do Decreto sobre o Ecumenismo, Unitatis Redintegratio, em 21 de novembro de 1964, foi a expressão maior da convicção ecumênica da Igreja conciliar.

4.1 O Decreto Unitatis redintegratio 

O Decreto sobre o De oecumenismo foi tratado nos três períodos do concílio. Isso serviu como atualização ecumênica aos padres conciliares, o que possibilitou o documento final, em três capítulos: princípios do ecumenismo (cap. I), a prática do ecumenismo (cap. II) e a relação com as tradições eclesiais do Oriente e do Ocidente, considerando as especificidades de cada uma (cap. III).

O Decreto entende que a divisão dos cristãos “contradiz abertamente a vontade de Cristo”, é “escândalo” e prejudica a pregação do Evangelho (UR n.1). Para mudar essa realidade surge o movimento ecumênico, por moção do Espírito Santo, como uma “divina vocação” e “graça” a todos os cristãos. Dentre os princípios que orientam a ação ecumênica, o concílio destaca: o entendimento que a Igreja de Cristo é una e única, pois sendo Cristo um só, uma só é a comunidade que Ele quer para todos seus discípulos (Jo 17,21); a unidade cristã é significada e realizada na Eucaristia; tem como princípio o Espírito Santo e como modelo a Trindade; é vivida em uma só fé, num mesmo culto e na fraterna concórdia; e se organiza na história em fidelidade aos Doze, tendo Pedro à sua frente (UR n.2). É reconhecida a eclesialidade das Igrejas oriundas das reformas dos séculos XVI-XVIII, conferida pelos elementos ou bens da Igreja de Cristo nelas presente, como a Palavra de Deus, a vida da graça, a fé, a esperança e a caridade (UR n.3; LG n.15). Por esses elementos, “o Espírito de Cristo não recusa a servir-se delas como meios de salvação” (UR n.3).   

Nas orientações práticas para a ação ecumênica, o Decreto destaca: os esforços por eliminar palavras, juízos e ações que separam os cristãos (UR n.4). E enfatiza: o ecumenismo deve interessar a todos, fiéis e pastores (UR n.5); ele possibilita a renovação da Igreja e a fidelidade à sua própria vocação (UR n.6); exige a conversão do coração e da mente, a humildade e a generosidade para com os outros (UR n.7); se fortalece na oração comum, “alma de todo o movimento ecumênico” (UR n.8); é fundamental o conhecimento mútuo, pelo estudo das doutrinas, espiritualidades e costumes das tradições eclesiais (UR n.9), bem como a formação ecumênica (UR n.10); propõe um método na exposição da doutrina que considere a hierarquia das verdades (UR n.11); incentiva a  cooperação das Igrejas na ação social (UR n.12).

4.2 O Diretório ecumênico               

A partir das orientações ecumênicas do Concílio Vaticano II, o então Secretariado para a Unidade dos Cristãos emanou normas e critérios para a atuação ecumênica dos cristãos católicos. O principal documento é o Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, publicado em etapas: em 1967, tratando das comissões ecumênicas diocesanas e nacionais, o mútuo reconhecimento do batismo, e a comunhão nas coisas espirituais; em 1970, apresentando os princípios e a prática ecumênica na formação em colégios, universidades e seminários; e em 1993, atualizando as mudanças ocorridas no Código de Direito Canônico (1983).

O Diretório ecumênico visa “fornecer normas gerais universalmente aplicáveis para orientar a participação católica na atividade ecumênica” (n.7). É composto por cinco capítulos: as razões da busca da unidade dos cristãos; a organização do serviço da unidade no interior da Igreja romana; a formação para o ecumenismo; a comunhão de vida e de atividade espiritual entre os batizados; e a cooperação ecumênica, o diálogo e o testemunho comum. Esses temas são apresentados à luz do Concílio, buscando “reforçar as estruturas que foram já preparadas para manter e orientar a atividade ecumênica a todos os níveis da Igreja” (n.6).

4.3 As estruturas ecumênicas

A realização do ideal da unidade exige condições estruturais que possibilitem sua concretude, destacando-se:

a) Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos

No dia 5 de junho de 1960, o papa João XXIII instituiu o Secretariado para a Unidade dos Cristãos para ajudar a Igreja católica a melhor integrar-se no movimento ecumênico, contribuindo para que todos os cristãos encontrem “mais facilmente a estrada para alcançar aquela unidade pela qual Cristo rezou”. A atuação do Secretariado foi fundamental para colocar o ecumenismo em foco no Concílio. Ele foi responsável pelas conversações com as Igrejas para que enviassem seus representantes no Concílio e para que enviassem também suas observações sobre os temas a serem estudados.  A ele coube a responsabilidade dos documentos promulgados pelo Concílio sobre ecumenismo, liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), relações da Igreja com as religiões (Nostra Aetate) e divina revelação (Dei Verbum), este último preparado conjuntamente com a comissão teológica. O Secretariado foi também responsável pelas relações religiosas da Santa Sé com os hebreus, criando o comitê internacional de relações entre católicos e hebreus. Após o Concílio, em 3 de janeiro de 1966, o papa Paulo VI confirmou o Secretariado como instituição permanente da Cúria Romana, especificando sua estrutura e competências. Esse organismo continua como o responsável, no âmbito universal, pela orientação ecumênica dos cristãos católicos e a articulação do  diálogo da Igreja católica com as outras Igrejas e organizações ecumênicas. Em 1989, o papa João Paulo II reestruturou o Secretariado dando-lhe o nome de Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

b) As comissões de diálogo bilateral e multilateral

A partir das relações oficiais estabelecidas com as Igrejas, formaram-se comissões (bilaterais e multilaterais) de diálogo com organismos representantes das mais diferentes tradições eclesiais. Em nossos dias, consolidou-se, no nível nacional e internacional, uma vasta rede de diálogos bilaterais e multilaterais, envolvendo quase todas as Igrejas. Esses diálogos são oficiais, porque autorizados pelas respectivas autoridades eclesiásticas, que nomeiam delegados para tratarem de questões doutrinais, buscando superar as divergências na compreensão e vivência da fé no Evangelho e na Igreja. Atualmente, a Igreja católica participa de 70 dos 120 Conselhos de Igrejas existentes no mundo; em 14 Conselhos Nacionais e em 3 dos 7 Conselhos Regionais. Além disso, ela compõe 16 comissões de diálogo bilateral tratando das mais variadas questões, como autoridade na Igreja, Eucaristia, ministérios, eclesiologia, etc.[2]

c) As comissões nacionais e diocesanas para o ecumenismo

Para que as orientações ecumênicas do Vaticano II cheguem às igrejas diocesanas e às comunidades paroquiais, o Concílio Vaticano II confiou o trabalho ecumênico especialmente “aos Bispos de todo o mundo, para que o promovam e orientem com discernimento”. Esta diretiva, muitas vezes aplicada individualmente por Bispos, por Sínodos das Igrejas Orientais Católicas ou por Conferências Episcopais, foi incluída nos Códigos de Direito Canônico (can.755). Mais, orienta-se que em cada conferência episcopal exista alguma organização, comissão ou setor, que motive a recepção e vivência das orientações ecumênicas do Concílio. A eles cabe incentivar para que também nas dioceses exista alguma estrutura que motive a ação ecumênica da igreja local, função desenvolvida pelo delegado e uma comissão diocesana para o ecumenismo (Diretório, n. 44).

5 O ecumenismo na América Latina

O ponto de partida do movimento ecumênico na América Latina pode ser encontrado no descontentamento dos missionários latino-americanos sobre a forma como a Conferência Missionária, realizada em Edimburgo (1910), desconsiderou a América Latina de suas preocupações. Esses realizaram uma reunião em Nova Iorque (1913) onde criaram um Comitê de Cooperação para a América Latina. O Comitê realizou o Congresso da Ação Cristã na América Latina, no Panamá (1916) – primeiro evento ecumênico latino-americano – com o objetivo de compreender os desafios para a missão no continente e estabelecer pistas de cooperação intereclesial. Outros congressos semelhantes foram realizados, como Montevidéu (1925) e La Habana (1929), até se chegar a realização de várias Conferências Evangélicas Latino-Americanas – CELA (Argentina, 1949; Peru, 1961; Buenos Aires, 1969, entre outras). Essas conferências deixaram clara a necessidade de se dar uma expressão orgânica aos anseios de um maior intercâmbio, cooperação e coordenação das relações intereclesiais, o que deu origem à Unidade Evangélica Latino-Americana – UNELAM (Campinas, 1969). Essas iniciativas possibilitaram desenvolvimento da consciência ecumênica numa significativa parte do mundo evangélico latino-americano, e logo sentiu-se a necessidade de um novo organismo que possibilitasse a afirmação do projeto ecumênico na região, frente aos novos desafios que emergiam, tanto do interior das Igrejas quanto da realidade social a partir dos anos 70 do século XX. Surgiu, assim, o Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI (Peru, 1982), principal organismo ecumênico no âmbito evangélico no continente na atualidade, constituído por cerca de 150 Igrejas batistas, congregacionais, episcopais, evangélicas unidas, luteranas, morávias, menonitas, metodistas, nazarenas, ortodoxas, pentecostais, presbiterais, reformadas, valdenses, assim como organismos cristãos especializados em áreas de pastoral da juventude, educação teológica, educação cristã, em 21 países da América Latina e do Caribe.

O CLAI tem como objetivos principais: promover a unidade entre as Igrejas; apoiar a tarefa evangelizadora de seus membros; promover a reflexão e o diálogo sobre a missão e o testemunho cristão no continente. Assim, o CLAI se propõe como espaço de encontro, formação, diálogo, cooperação, incidência pública e articulação, em relação a processos, dentro do universo ecumênico, inter-religioso e em relação à sociedade civil e aos organismos multilaterais. Está estruturado em cinco Secretarias Regionais: México e Mesoamérica (Manágua, Nicarágua), Caribe e Grã-Colômbia (Barranquillla, Colômbia); Andina (Santiago, Chile); Rio da Prata (Buenos Aires, Argentina) e Brasil (Londrina).

Naturalmente, não são apenas as Igrejas evangélicas que realizam o ecumenismo na América Latina. As Igrejas anglicanas, ortodoxas e católica romana também têm suas organizações ecumênicas e também integram organismos ecumênicos com a presença de Igrejas evangélicas em cada nação, a exemplo do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC (1982). Situam-se aqui, por exemplo, o setor de ecumenismo nas conferências episcopais da Igreja católica em cada país e o Departamento de Comunhão Eclesial e Diálogo, do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM (1955), que tem a responsabilidade de promover o ecumenismo nos meios católicos em todo o continente.

6 Frutos do ecumenismo

Em seus 100 anos de existência, o movimento ecumênico produziu significativos frutos nos esforços de aproximação e unidade das Igrejas, nos campos da doutrina, da pastoral, da espiritualidade e da cooperação na ação social. Os cristãos separados não mais se consideram estranhos, concorrentes ou inimigos, mas irmãos e irmãs, linguagem desconhecida até bem pouco tempo. Em sua encíclica sobre o ecumenismo, Ut Unum Sint (1995), o papa João Paulo II afirma que é a “primeira vez na história que a ação em prol da unidade dos cristãos assumiu proporções tão amplas e se estendeu a um âmbito tão vasto” (UUS n.41). O mesmo papa reconhece como frutos do diálogo: a fraternidade reencontrada pelo reconhecimento do único Batismo e pela exigência que Deus seja glorificado na sua obra; a solidariedade no serviço à humanidade; convergências na palavra de Deus e no culto divino; o apreço mútuo dos bens nas diferentes tradições eclesiais; o reconhecimento de que “aquilo que une é mais forte do que o que divide” (UUS n.20.41-49).

Esses frutos permitem elencar cinco aspectos de crescimento nas relações ecumênicas: a) nas relações dos dirigentes das Igrejas, existe a localização de pontos de encontro e mútua procura de avizinhamento e diálogo; b) no nível teológico-doutrinal, chegou-se a importantes convergências e consensos sobre vários elementos da fé cristã e eclesial[3]; c) nas comunidades dos fiéis, cresce o convívio entre cristãos de diferentes confissões, vencendo-se preconceitos e hostilidades; d) no campo pastoral, a cooperação ecumênica é realidade em muitos ambientes; e) cresce a sensibilidade ecumênica na espiritualidade.

7 Desafios para o ecumenismo na atualidade

Mas permanecem sérios desafios a serem superados na caminhada ecumênica. Verifica-se em nossos dias pouca disponibilidade ao diálogo em muitas instâncias das Igrejas, mesmo nas que propõem o ecumenismo em seus documentos normativos. A tendência é o  recentramento identitário das Igrejas provocado, por um lado, pelo contexto plural que exige uma redefinição do seu ser e agir; por outro lado, por tensões internas que tendem a fragilizar as convicções ecumênicas. Aumenta a tensão entre o espírito de abertura e diálogo e a necessidade de salvaguardar a própria identidade. Em função disso, em alguns ambientes os fiéis sentem-se obrigados a caminhar de um jeito próprio, no ecumenismo popular, por vezes distanciando-se das orientações oficiais. E as estruturas eclesiais tendem a voltar-se para si mesmas, sentindo-se ameaçadas pelo dinamismo das iniciativas ecumênicas populares. A consequência é que as convicções ecumênicas apresentadas nos documentos e nos pronunciamentos oficiais das Igrejas não se articulam com a vida concreta das comunidades dos fiéis.

Assim, há um desencontro entre ecumenismo e Igreja, como se fossem realidades separadas ou que se tocam apenas superficialmente. Isso manifesta-se por uma setorização do compromisso ecumênico, quase exclusivo aos ambientes oficialmente vinculados às relações intereclesiais e não na comunidade eclesial como um todo; na carência de estruturas, de pessoas e de recursos destinados ao trabalho ecumênico; na pouca formação teológica e pastoral que priorize o diálogo como o jeito de ser e de agir da Igreja. Acresce-se a esses desafios a realidade social de divisão e a pluralidade do campo religioso; a intensa prática do proselitismo, o fundamentalismo e o conservadorismo; a perda de sentido da pertença eclesial; a privatização da prática de fé dos cristãos; o trânsito dos cristãos de uma confissão para outra em busca de uma experiência religiosa satisfatória; o hibridismo dos símbolos religiosos.

Enfim, o status quaestionis da divisão dos cristãos se configura atualmente em 6 principais horizontes: 1) Teologia – as Igrejas estão divididas na interpretação dos elementos que constituem a natureza e o conteúdo da fé cristã, como a doutrina da graça os sacramentos, a natureza da Igreja e os ministérios, entre outros; 2) Estruturas eclesiais – as Igrejas divergem tanto sobre os elementos estruturais da Igreja, quanto sobre a compreensão teológica que se tem deles; 3) Espiritualidade – a compreensão da fé e a vida eclesial são alimentadas por espiritualidades diferentes no interior de cada tradição eclesial. Esse fato – que poderia ser apenas manifestação da diversidade da atuação do Espírito – num contexto de divisão manifesta tensões e o distanciamento de uma tradição eclesial em relação às outras; 4) Pastoral – as divergências nos tópicos anteriores leva as Igrejas a se dividirem quanto ao conteúdo e ao método da evangelização; 5) Ética – existem também divisões no horizonte da ética e dos costumes, na sua origem, expressão e fundamentação teológica; 6) Questões sociopolíticas – não há consenso entre as Igrejas na compreensão da sociedade e no modo de situar-se nos conflitos que nela ocorrem.

Elias Wolff, PUC Paraná. Texto original português. Submetido em 20/06/2014; aprovado em 08/08/2014; publicado em 13/10/2014.

 8 Referências bibliográficas 

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______. A Unidade da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007.

______. Vaticano II – 50 Anos de ecumenismo na Igreja Católica.  São Paulo, Paulus, 2014.

[1] Delegados das Igrejas que participaram do Concílio: 1ª sessão: 49 delegados de 17 Igrejas; 2ª sessão: 66 delegados de 22 Igrejas; 3ª sessão: 76 delegados de 23 Igrejas; 4ª sessão: 103 delegados de 29 Igrejas. Cf. Bravo, Ernesto. “Aspectos históricos do ecumenismo na América Latina”. In: Congresso Ibero Americano sobre la Nueva Evangelizacion y Ecumenismo. Madrid: Gráficas Lormo, 1992. p.99-110.

[2] Os resultados dos trabalhos das comissões, no nível internacional, encontram-se em Enchiridion Oecumenicum. Bologna: EDB, vol. I, 1988; vol. III, 1995; vol. VII, 2006.

[3] Exemplos: com os ortodoxos, foi alcançado um amplo consenso na doutrina trinitária (cristologia e pneumatologia); com a Comunhão Anglicana avança o diálogo sobre a autoridade na Igreja; com os metodistas, foi alcançado um acordo sobre a tradição apostólica; com a Federação Luterana Mundial, foi alcançado um  “consenso diferenciado” sobre a doutrina da justificação. Em todas as Igrejas, atingiu-se um amplo consenso sobre a relação entre ecumenismo e missão.