Mística laica e secular

Sumário

1 Tensão entre mística e modernidade

2 Princípios da secularização

3 Literatura e cultura moderna

4 Etapas da secularização

Referências

1 Tensão entre mística e modernidade

Sabe-se que existe uma mística cristã. Seus grandes frutos estão localizados especialmente entre os séculos XI e XVII, isto é, o que corresponde aos períodos da historiografia de língua inglesa da High Middle Ages (XI ao XIII) e Late Middle Ages (XIII ao XV), acrescentando Renascimento e Barroco, mas é claro que tem suas fundações na Antiguidade, seu desenvolvimento na primeira mística medieval (V ao XI) e o ápice no monasticismo do século XII, como periodiza Bernard Mcginn (1996, p. ix-xvi). É possível discordar à vontade de periodizações como essa e da própria noção de mística. Há quem justifique o uso do termo, há quem implique com ele. Houve uma polêmica alemã nos anos 1980 na qual Kurt Flash nega que Eckhart seja místico (FLASCH, 1988, p. 94-110) e Alois Haas considera tal caracterização inevitável (ver o artigo de Haas, “Was ist Mystik?”, em RUH, 1986, p. 319-342, e a discussão em seguida em RUH, 1986, p. 342-346). Alain de Libera concorda com Flasch (LIBERA, 1999, p. 278, 288-290), mas a maior parte dos especialistas, como Bernard Mcginn, não viram sentido na provocação, que só levou a uma renovação dos estudos e problematizações em torno do conceito (MCGINN, 2005, p. 108, 527). Por trás dessa polêmica, há uma clara tentativa de historiadores da filosofia medieval (é o caso de Flasch e Libera) de legitimar a autoralidade de Eckhart como filósofo (ou teólogo-filósofo) negando-o enquanto místico, como se não fosse possível existir as duas coisas num mesmo autor, numa mesma obra, num mesmo pensamento. No fundo, a briga secular das faculdades de filosofia e teologia encontrou mais um episódio nessa querela em torno da herança do pensador renano.

Se mesmo a um dos autores centrais da mística cristã medieval é negado, por alguns, o pertencimento nesse espaço contraditório do saber, o que se dirá, então, da vaga hipótese da existência de uma mística na modernidade? A controvérsia em torno desse termo tão amado e odiado não é nova: ela começa no surgimento de sua substantivação, no século XVII. Ele já servia para demarcar o lugar de uma espiritualidade artificialmente separada de outras áreas da teologia, isto é, convinha ao isolamento e ao distanciamento da experiência religiosa (CERTEAU, 2015, p. 168-170). À medida que a modernidade foi se desenrolando, chamar algo de místico se tornou sinônimo de antigo, medieval, extremamente devoto. No momento do surgimento dos textos de relatos de visões, experiências inefáveis e tratados de condução da alma, a mística era vista como algo estranho, extravagante, diferente e suspeito. Passou-se o tempo e o termo adquire, para progressistas que desgostam dele, sinal de velharia, conservadorismo, arcaísmo.

É nesse ponto que identificamos as curiosas peculiaridades do conceito, que estão diretamente ligadas ao destino da própria noção de “Ocidente”: um dos maiores teóricos da poesia do século XVII, Nicolas Boileau (1636-1711), afirma: “Os místicos são modernos; não se via deles na Antiguidade” (LESCURE, 1863, p. 23; CERTEAU, 2015, p. 173), o que significa, para o juízo de valor dele, algo como desenraizados, perdidos, desprezíveis. Naquele momento, chamar alguém de moderno era, para uma maioria de conservadores, sinônimo de xingamento.

Tem-se dois traços bem curiosos da história do termo: primeiro, aqueles que foram caracterizados como místicos foram, em seu tempo, vistos como demasiadamente ousados, estranhos, idiossincráticos (século XII ao XVI); depois, o aparecimento do vocábulo foi ligado à primeira caracterização de temperamentos modernos. É preciso insistir que sua substantivação, significando não só indivíduos contemplativos, santos, mas personalidades apaixonadas que buscam o contato direto com Deus, é moderna? Logo, tanto o objeto quanto a origem do termo são vistos, pelo menos até o século XVIII, como modernos. O gosto pelos místicos como pertencentes a uma nostálgica Idade Média é invenção do romantismo e o desgosto por eles como algo supersticioso e ultrapassado é introduzido pelo racionalismo e iluminismo e consagrado pelo positivismo.

O adjetivo, desde o século XVI, granjeia uma tensão entre o querer saber e o querer esconder e mobiliza “uma erótica no campo do conhecimento” (CERTEAU, 2015, p. 150-151), segundo Certeau: ele se prestava a significar o lado oculto e espiritual de algo (CERTEAU, 2015, p. 148-165). Denotava já um valor sobrenatural para qualquer coisa. Por causa desse sentido, foi desde o início exagerado por uns e ridicularizado por outros. Ao longo da modernidade, a dupla convivência da atração e do descrédito só aumentou. Os defensores do valor existencial da experiência colidiam com o aborrecimento da compleição pragmática e realista ou com os psicólogos positivistas que patologizavam a experiência mística de mulheres.

A caracterização do “Ocidente” como o lugar de desenvolvimento da racionalidade científica e econômica, como execução do domínio técnico da natureza, colocou a “mística” no espaço contrário de todo êxito objetivo, logo, como antiocidental. Quem se inquieta com a mística não vê nela senão um traste, um incômodo; quem é atraído por ela encontra em seu ninho de fantasia e entusiasmo um refúgio acalentador. Daí as frequentes aproximações dela com a poesia. Octavio Paz (1982) afirma: “construiu-se o edifício das ‘ideias claras e distintas’ que, se tornou possível a história do Ocidente, também condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas de apreender o ser por caminhos que não fossem os desses princípios”. Não há nenhuma validade naquilo que não é legível, consequente e útil. O que ocorre com as práticas que não se enquadram nesse modelo cartesiano? “Mística e poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (PAZ, 1982, p. 123). Não são poucos os críticos que caracterizam a poesia ou mais especificamente a lírica como uma espécie de contemplação natural (STAIGER, 1975, p. 60-61). Ainda assim, a irritação positivista contra os místicos não deixou de influenciar boa parte da própria crítica literária. Autores que estão demasiadamente próximos de características detectadas como místicas tendem a ser vistos como antiquados, atrasados, defasados, devotos e mesmo obedientes a dogmas, logo, menores, pois o que qualifica, por excelência, um escritor moderno é a ruptura com a autoridade e a ousadia formal (que tende a se confundir com a ousadia comportamental). Contudo, deve-se recordar que, no seu surgimento, o místico fora notado como estranho, extravagante e mesmo moderno. Se examinassem a história do termo e das obras às quais ele se refere, encontrariam nos místicos exatamente o que procuram: ousadia formal e comportamental, a maior prova é que inovaram a escrita literária de sua época com novos modos de dizer. Tais críticos não se dão conta da ignorância que conservam dessa história e de como são vítimas de um típico senso comum acadêmico, estabelecido pelo positivismo, que tem sido repetido e reproduzido até hoje.

Assim, verifica-se uma tensão permanente na modernidade com o conceito de mística. Há uma modernização triunfante, burguesa, ocidental, e há uma modernidade crítica, antiburguesa, intelectual e literária que às vezes adota o termo afirmativamente para defender seu potencial crítico contra a racionalidade, às vezes não encontra nele senão dogmatismo, superstição e crendice. Inclusive, a maior parte dos usuários da palavra não conhecem nem sua teoria, nem sua crítica, nem sua história, muito menos os autores e as obras dessa história, pois, de fato, por um lado, a mística não se reduz aos seus grandes escritores e pensadores (assim como a poesia não se reduz à obra dos maiores poetas), mas não conhecer nada de nenhum deles – de Teresa de Ávila, João da Cruz e Silesius – é desconsiderar não só as melhores expressões do fenômeno, como qualquer expressão qualitativa dele. Aquele que fala de filosofia sem ter lido um filósofo, ou de poesia sem ter lido um poeta, por exemplo, geralmente será motivo de zombaria nos espaços profissionais do conhecimento, no entanto, não é o caso quando o objeto em questão é a mística: a melhor prova de competência no assunto é desdenhar dele. Portanto, há um descompasso entre o fenômeno e suas expressões, entre o vago conhecimento do conceito e os sistemas filosóficos, teológicos e espirituais que deram forma a ele ao longo da história. Já que a mística não é uma área do saber como a filosofia e a teologia, ninguém tem a obrigação e poucos manifestam interesse em tomar conhecimento de algo de suas diferentes expressões ou de se demorar um bocado nas armadilhas conceituais de sua problemática, isto é, de se precaver um pouco em tomar conhecimento da sua teoria (interdisciplinar por natureza), que existe faz tempo e cuja bibliografia é numerosa. Em suma: a palavra suscita ódios e paixões; de qualquer modo, no campo acadêmico, é rejeitada por uma maioria que ignora estudos a seu respeito, acarinhada por alguns entusiastas que também não têm muita noção de sua história e examinada por uma minoria especialista, geralmente estudiosa de Idade Média e questões de espiritualidade em geral.

É inevitável constatar a rejeição e o fascínio da mística na modernidade; mais difícil é examinar as suas contradições. Uma vez posto o núcleo nervoso dos afetos que a palavra e o fenômeno suscitam, agora é preciso entender o longo percurso histórico não da mística propriamente dita (do século XII ao XVI), mas do que diferentes historiadores e teóricos chamaram de mística da modernidade, neomística ou mística secularizada, sendo o último conceito o de minha preferência, empregado por Theodor Adorno a respeito do compositor Arnold Schönberg (ADORNO, 1978, p. 460; ADORNO, 2018, p. 328).

2 Princípios da secularização

Se se reflete sobre a chamada mística vernacular, isto é, aquela que foi escrita nas línguas nascentes da Europa, chamadas vulgares, observa-se como se iniciou o próprio conflito de místicos com a Igreja a partir da interessante tese de Niklaus Largier. Os místicos em geral (como Eckhart) e as místicas beguinas em particular aspiravam se aproximar de um maior número de leitores escrevendo nas línguas que eram faladas. Fora de um vocabulário latino que já estava bem codificado, o vínculo que tais autores ostentavam com o divino, no plano espiritual, se dava, ironicamente, num plano mais concreto enquanto contato direto com o leitor comum (que não precisava, inclusive, ser alfabetizado, pois o livro podia ser lido por uma pessoa e ouvido por várias).

De um ponto de vista midiático, a comunicação vernacular é a grande prova de que mesmo o florescimento da mística hoje vista como tradicional já era secularizado, no sentido estrito de que as experiências religiosas saíam do espaço monástico para se impregnar no mundo cosmopolita nascente. Tal desejo de se comunicar com um público inexplorado era motivo de desconfiança e temor das autoridades eclesiásticas: o novo meio precisava ser controlado. Livros de místicas, como os de Marguerite Porete, foram queimados. Os críticos autorizados assinalaram que a teologia selvagem das beguinas não conhecia o seu assunto e elaboraram formas de “discernimento dos espíritos” para corrigir pregações desviantes. Tais críticos da mística vernacular (como Jean Gerson, 1363–1429) foram alguns dos primeiros antimísticos da história – e não há como entender a história da mística sem eles (ANDERSON, 2011, p. 13-16, 81-89).

Quando houve a Reforma, a impressão de panfletos (Flugschriften) possibilitou o advento de uma grande revolução. Martinho Lutero (1483-1546) se beneficiou da disseminação midiática de suas ideias. Quando, porém, observou que os místicos entusiastas se aproveitavam dos mesmos meios para divulgarem sua interpretação livre das Escrituras, resolveu controlá-los. A argumentação de Lutero levou a substituir a prática medieval de discernimento dos espíritos pela institucionalização de uma ordem secular (weltliche oberkeit; LUTHER, 2016, p. 211) absolutamente dissociada da religiosa, em que a expressão da fé deve ser regularizada pelo uso correto da lei e da razão. Nesse sentido, a exegese inspirada dos “entusiastas” passou a ser coibida (LUTHER, 2016, p. 74-76, 169, 282). A ordem secular se tornou uma instituição pedagógica que controla as formas pelas quais a Bíblia pode ser lida. Ela possuía um caráter normativo que limitava a comunicação religiosa (LARGIER, 2009, p. 38-42).

O modo como novos entusiastas burlaram essa proibição foi sair, paulatinamente, do domínio religioso e perscrutar outro: a natureza, empregando os mesmos “tropos místicos” num discurso poético. Foi basicamente esse o deslocamento de Silesius (1624-1677). Se a escrita das beguinas utilizava um paradigma visionário num ambiente litúrgico, os pensadores e poetas do século XVI e XVII buscaram relações entre o mundo material e o mundo espiritual. Agora a experiência do mundo é o palco dos tropos místicos – unidade, amor, sofrimento, delicadeza. A partir dos saberes de tradições alquímicas, a imaginação passa a ganhar o primeiro plano ao produzir toda uma cosmopoiesis (MAZZOTTA, 2001, p. 74) e ensinar uma pedagogia da percepção (LARGIER, 2009, p. 48-52).

É nesse domínio da percepção da natureza que um livro seminal do romantismo, Os discípulos de Sais (escrito entre 1798-1799, publicado postumamente em 1802), de Novalis (1772-1801), quer intervir. A filosofia hermética renascentista construiu babéis de sistemas analógicos, demonstrando minuciosamente que a semelhança entre as coisas (entre plantas, pedras, animais, deuses, planetas) segredava uma semelhança mais fundamental com regiões espirituais. A grande tarefa era encontrar a assinatura das coisas, isto é, a marca divina essencial que dá sentido aos objetos. Novalis, grande leitor de Paracelso (1493-1541) e Jakob Böhme (1575–1624), busca nesse mundo mágico das semelhanças o reflexo narcísico de um eu infinito, romântico, e quer chegar a uma síntese entre o saber medieval, hermético e iluminista. Quem vai produzir tal síntese é o poeta e filósofo erudito alemão (NOVALIS, 1991, p. 39-44; NOVALIS, 1989, p. 39; BÖHME, 1988, p. 25).

Dificilmente se entende os anseios espirituais do romantismo, isto é, do início da literatura moderna, sem examinar a ligação intrínseca dele com o hermetismo. Se Novalis desenvolveu tal nexo umbilical com Paracelso e Böhme, William Blake (1757-1827), Honoré de Balzac (1799-1850) e Charles Baudelaire (1821-1867) preferiram um outro autor. Não é exagero afirmar que não há pensador mais influente para a literatura imaginativa do século XIX do que o controverso “iluminado” chamado Emmanuel Swedenborg (1688-1772). Sua teoria das correspondências não é original: na verdade, não passa de uma versão oitocentista da doutrina da semelhança renascentista. Porém, foi especialmente lendo-o que a maior parte dos nomes mais importantes da poesia moderna nascente a conheceu e foi especialmente por causa dele que ficaram fascinados por ela e a incorporaram em suas poéticas. Aqui tem-se um ponto intrincado a observar: assim como muitos se referem à mística sem conhecer, especialmente quando propõem ou recusam uma relação entre mística e modernidade, de fato não é fácil localizar com precisão nem qual a influência de fundo que uma corrente literária moderna está mobilizando nem que tipo de relação de transmissão já existia dentro daquilo que está sendo periodizado em algum momento da mística anterior à modernidade e que vai ser relevante para ela.

Tropos místicos saíram do contexto de uma mística vernacular – mas ela ainda estava diretamente ligada à tradição, seja seguindo o modelo litúrgico, seja o modelo ascensional do tratado – para entrar numa cosmologia da semelhança. Quando tal esquematização do universo chega ao século XVIII, com Swedenborg, ele cria sua própria ordo rerum cretarum (ordem das coisas criadas – por exemplo, a forma do céu descrito por ele obedece ao corpo humano) dentro desse modelo, sem disputar uma possível reforma da Igreja, ao contrário, ele é totalmente ridicularizado pela teologia e pela academia, mas se torna um best seller, circulando inclusive na aristocracia da época (SWEDENBORG, 2008, p. 9-24). Isso parece lembrar a literatura de autoajuda atual, mas é um caso muito diferente, pois é considerado pelos melhores autores do século XIX e XX como um ótimo escritor (ver a enorme admiração que Jorge Luis Borges (1899-1986) tem por ele, por exemplo; BORGES, 1985, p. 185). Swedenborg inspira a poética de muitos poetas e, no caso de Baudelaire, especialmente, o poema “Correspondances” vai se tornar a ponta de lança de todo o simbolismo.

Logo, há uma rede complexa de transmissões de motivos nupciais, analógicos e apofáticos que vão mudando de natureza e função em cada momento histórico, mas, ao mesmo tempo, vão delineando grandes condutos simbólicos que atravessam os séculos. Tanto uma abordagem filológica ultrapassada quanto uma historiografia muito restrita não saberiam examinar o emaranhado denso, movente, variável, mas que também contém certas invariantes (daí Claudio Willer, um dos maiores pesquisadores do assunto, advogar o exame das continuidades; WILLER, 2010, p. 30-32). Não é fácil entender nem perscrutar tais ligações íntimas entre neoplatonismo, mística, hermetismo, romantismo, simbolismo e modernismo; inversamente, é sempre mais simples negá-las como se não existissem. O fato é que tais nexos são patentes, gritantes, ao mesmo tempo que são muito menos examinados do que se deveria, pois, justamente, como a mística e, mais ainda, o esoterismo são marcados pela rejeição acadêmica, pouca gente se dispõe a examiná-los. Há tanto o desleixo, muito comum, em ignorá-los e menosprezá-los quanto o perigo, também, de projetar neles uma tradição perene que contém a verdade eterna e está por trás dos grandes gênios da humanidade, o que é igualmente falso. Logo, o bom pesquisador deve ser um equilibrista diante de dois lados do abismo: nem subestimar, nem superestimar, devendo, contudo, deixar claro que, se não se pode supervalorar ontologicamente como o fazem os perenialistas, é preciso apontar a força filosófica e estética real que tal pensamento analógico teve em diferentes épocas, e não menos em tempos seculares, modernos; por conseguinte, é preciso dar o valor que ela merece, isto é, estimá-la.

3 Literatura e cultura moderna

Nesse caso, o movimento literário que de fato incorporou, em toda a sua poética, a teoria das correspondências foi o simbolismo. A prática da musicalidade verbal, das sutilezas, sugestões, sinestesias, o anseio pelo ambiente vivido na superestesia, em outras palavras, uma busca espiritual feita da pompa dionisíaca de estímulos sensoriais harmônicos e melódicos encontrou no simbolismo um ponto de convergência. A alternância baudelairiana entre spleen e ideal, ou a mallarmiana entre vontade de nada e vontade de eternidade (MICHAUD, 1961, p. 190) foi traduzida entre a primeira fase decadentista, pessimista, e a segunda propriamente espiritualista, positiva. É no período do nascimento do simbolismo propriamente dito que a mística da modernidade toma de fato consciência de si mesma: “o momento privilegiado onde todas as relações se descobrem, onde todas as coisas se revelam como solidárias, como unidas num universo infinito que as ordena” (MICHAUD, 1961, p. 412 – a tradução de todos os textos citados de outras línguas é minha). Tal compreensão é exposta precisamente no livro manifesto de Charles Morice, La littérature de Tout à l’heure:

Até que a ciência tenha decidido alcançar o Misticismo (Mysticisme), as intuições do Sonho superam a Ciência e celebram esta aliança ainda futura e já definitiva do Sentido religioso e do Sentido científico em uma festa estética onde se exalta o desejo muito humano de uma reunião de todos os poderes humanos, retornando à simplicidade original. (MORICE, 1889, p. 287)

É a poesia que chega a uma síntese das contradições entre ciência e religião, ao reconhecer no sonho e na mística a superioridade da intuição em face da objetividade e da razão. Tal intuição analógica desvenda a solidariedade fundamental de todas as coisas. “A arte é a reconstrução do real segundo as correspondências secretas e a harmonia soberana da criação” (MICHAUD, 1961, p. 418).

Assim como Henri Bremond detectou, entre o século XVI e XVII, um despontar de interesse por guias de espiritualidade mística (uma vague ou invasion mystique, BREMOND, 1923, p. 582-584), no período de explosão do simbolismo, depois das preliminares decadentistas, se inicia o que Jules Sageret chamou de “onda mística” (vague mystique, SAGERET, 1920, p. 7-21), quer dizer, a geração de nostálgicos foi seguida da geração de buscadores do ideal, sendo que estes ficaram especialmente fascinados pelo esoterismo (MICHAUD, 1961, p. 466). A magia invadiu os salões, várias revistas ocultistas e simbolistas surgiram e os poetas reconhecem um irmão em Joséphin Péladan, poeta e filósofo esotérico que foi organizador das famosas exposições  dos Salões da Rosa-Cruz, entre 1892 e 1897 (MERCIER, 1969; sobre os salões, ver p. 188 e 200; sobre os encontros que Catulle Mendès e sua filha Judith organizaram entre o mago Eliphas Levi e o meio literário em 1873, especialmente apresentando-o a Victor Hugo, ver p. 70; sobre a influência de Josephin Peladan no meio poético e artístico, ver p. 222-225). O que eles fizeram nessa linha na França ocorreu pouco tempo depois, no engajamento maçônico e pitagórico de um dos maiores poetas brasileiros do fim do século: Dario Vellozo, editor de várias revistas simbolistas e esotéricas entre as décadas de 1890 e 1900 (BEGA, 2013, p. 213-251).

Tais movimentos eram anticlericais e buscavam uma espécie de renovação do gnosticismo. A trajetória de Joris-Karl Huysmans (1848-1907) acompanha precisamente o destino de parte significativa do movimento: começou satanista (decadentista), atravessou o ocultismo e terminou se convertendo ao catolicismo (MICHAUD, 1961, p. 266, 469-470). Charles Péguy (1873-1914) também se iniciou anticlerical e depois de converteu (MICHAUD, 1961, p. 584-588). Parte da fase final do simbolismo foi, surpreendentemente, católica, especialmente no caso de Paul Claudel (1868-1955) (MICHAUD, 1961, p. 595-629). No Brasil, não houve conversão da primeira (dos anos 1890) e da segunda geração simbolista (dos anos 1900), quase todos anticlericais, mas a geração da revista Festa, de Tasso da Silveira e Andrade Muricy, tornou-se católica (BEGA, 2013, p. 212 e 478). Sabe-se que no fin de siècle houve um forte movimento republicano de defesa do Estado laico, que atingiu boa parte dos intelectuais. Em seguida, houve uma reação católica de retomada desses espaços culturais. No Brasil, ela se traduziu na militância de Jackson de Figueiredo (1891-1928), fundador do Centro Dom Vital, e na conversão que ele conseguiu produzir em Alceu Amoroso Lima (1893-1983), que se tornou o seu presidente (DIAS, 1996, p. 69-85). No Brasil, a renovação literária católica esteve no auge do modernismo e produziu dois dos maiores poetas nacionais: Murilo Mendes (1901-1975) e Jorge de Lima (1893-1953). Cecília Meireles (1901-1964) estava do lado da Escola Nova e distante do ativismo de núcleos católicos, mas suas leituras da mística cristã, especialmente de João de Cruz e Teresa de Ávila, foram intensas (ver GOUVÊA, 2004, p. 124 e GOUVÊA, 2008, p. 48-49).

Já o pendor anticlerical gnóstico, ocultista ou orientalista teve seus desdobramentos em vários movimentos de vanguarda em geral e em especial no surrealismo nos anos 1920 a 1950. Sua tendência libertária (ora anarquista, ora socialista, ver LÖWY, 2002, p. 31-36) se desdobrou nos beats americanos nos anos 1950 a 1970. Eles foram os precursores do modo de vida contracultural, hippie, dos anos 1960 e 1970, que conseguiu a proeza de atingir toda a juventude da época e produzir a grande revolução comportamental do século XX (WILLER, 2014, p. 165, 189-190). Os experimentos com ácido de Timothy Leary (1920-1996) e Ram Dass (1931-2020) não existiriam sem leituras do Livro tibetano dos mortos e a busca de gurus indianos.

Pode-se dizer que se o romantismo foi o início da modernidade analógica, o simbolismo foi a primeira grande onda, as vanguardas e os beats foram o desenvolvimento e a contracultura foi o ápice político e histórico, em que as leituras da filosofia perene de Aldous Huxley (1894-1963), de Timothy Leary, Ram Dass e Alan Watts (1915-1973) vão dar no best seller de Carlos Castaneda (1925-1998), no rock psicodélico e progressivo. A moda da Nova Era dos anos 1980 e 1990, embora tenha sido um enorme sucesso lucrativo, dando inclusive impulso às leituras de clássicos esotéricos e mesmo místicos, já pode ser considerada um sinal de decadência.

4 Etapas da secularização

Ao sumarizar o percurso feito aqui, pode-se, por fim, ponderar sobre as etapas históricas do processo de secularização da mística. Primeiro, a novidade da escrita vernacular mística se expõe para leitores comuns e incomoda as autoridades, que a proíbem e a corrigem estipulando a retificação do discernimento dos espíritos. Segundo, Lutero estabelece a conquista do espaço secular vernacular e público de leitura, propondo um controle racional e autorizado dos entusiastas espirituais mesmo dentro dele, motivo pelo qual a expressão da espiritualidade encontra uma recusa dentro da institucionalização do espaço público. Terceiro, a filosofia e a poesia renascentistas se deslocam das disputas doutrinais teológicas, utilizam os tropos místicos na observação da natureza e propõem sistemas cosmopoéticos de leitura do mundo que buscam a transformação da percepção.

Quarto, o pré-romantismo alemão de Novalis emprega a poética analógica renascentista da assinatura das coisas deslocando a própria magia natural para o reino da linguagem, que, a partir daí, serve para expressão de um eu infinito refletido narcisicamente no universo. A secularização chega ao cerne da subjetividade moderna. Quinto, o simbolismo toma consciência privilegiada do emprego da analogia na linguagem literária agora sem o centro dominante do eu. A centralidade do símbolo busca uma ambiência vaga e sugestiva de relações sinestésicas e oníricas dentro de uma linguagem poética imantada de musicalidade harmônica e melódica. A teoria das correspondências de Swedenborg se torna base da poética literária que cria uma busca espiritual no núcleo da técnica formal poética e de uma vida plenamente artística. A secularização chega ao cerne da linguagem poética analógica. Neste momento, explicita-se um conflito entre ocultistas anticlericais e conservadores católicos, de modo que só numa geração posterior o simbolismo tenha se tornado também uma poética apropriada para a reação de um movimento modernista intelectual católico. A secularização da mística se torna parte tanto de uma associação entre meio literário e ocultismo quanto de reação renovadora católica modernista. Ela se torna ainda mais consciente de sua vocação antiburguesa, mesmo entre católicos, mas especialmente entre os anticlericais.

Sexto, o surrealismo explode o sentido verbal e explora as relações analógicas mais distantes e dissonantes entre as coisas, provocando a revolução da antiarte e do acaso objetivo, que é uma forma de secularização metropolitana da magia do destino. A secularização chega à violência da imagem inconsciente e aprofunda seu modo de vida boêmio e antiburguês. Simbolismo e surrealismo são diferentes modos de transformação da percepção a partir de uma incorporação da busca espiritual dentro de experimentos radicais de linguagem. Se a mística começou experimentando a língua vernacular empregando modos de dizer estranhos, com oxímoros, hipérboles e negações, nesse momento ela chegou ao extremo do experimento antilógico e antirracional, em que o sonho se impregna no núcleo da forma poética.

Sétimo, com os beats e a contracultura, finalmente o impulso libertário da mística literária moderna promove um modo de vida antimetropolitano (drop out, cair fora da cidade e do sistema, ver COHN, 2008, p. 138-181) que invade a cultura de massa com experimentos vanguardistas e atinge não mais só pequenas comunidades artísticas, mas todo um movimento global de mudança de comportamento juvenil. Com as drogas e a espiritualidade indiana, o rock psicodélico e progressivo, a contracultura estiliza a onda de ácido e as experiências extáticas de iluminação em best sellers e longas suítes musicais instrumentais que indistinguem, como nunca antes nem depois, o campo pop e o erudito, o retorno à natureza e o futurismo, a ecologia e as utopias eletrônicas, o protesto e o sucesso. De qualquer modo, a irritação que acadêmicos sempre sentiram diante dos gnósticos e ocultistas se renova com sua penetração na espiritualidade hippie.

Percebe-se, então, duas características centrais da secularização da mística ao longo da Era Moderna. Primeiro, o processo de imersão no mundo só se aprofundou: desde o uso da língua vernacular, passando pela imersão na natureza, a expressão do eu, a experimentação com a linguagem poética, a busca pelo sugestivo e pelo inconsciente até a conquista da juventude global e da cultura de massa, em que arte de alto nível virou fenômeno pop em prol da abertura das portas da percepção. Por outro lado, a condenação das autoridades do discernimento dos espíritos e o banimento de Lutero do espaço secular continuou, de forma homóloga, vigorando em todas as etapas de aprofundamento da secularização: os gramáticos condenaram o uso incorreto da língua feito por simbolistas e surrealistas e tanto o Estado policial quanto a universidade fizeram de tudo para controlar os hippies no auge de seu surgimento, até que as próprias gravadoras, rádios, estúdios, grandes editoras e diferentes mídias combateram suas conquistas estéticas até produzirem um retorno ao comportamento comportado e bem direcionado aos negócios do jovem yuppie dos anos 1980.

Do mesmo modo, diversos tipos de espiritualismos, em geral ingênuos, porém mesmo manifestações que talvez mostrem um nível intelectual mais elaborado, em vez de ser objeto de estudo histórico, formal e social na universidade, mantêm-se predominantemente banidos dos espaços de saber. Portanto, o processo de secularização da mística, por mais que não deixe de se estender, de se expandir e de se profanizar, está sempre marcado pelo banimento nos espaços seculares institucionais. A espiritualidade, selvagem ou informada, ingênua ou elaborada, adentra-se nos salões, na literatura de alto nível ou na cultura de massa, mas não pode ser estudada e refletida na maioria das epistemologias em vigor, por mais abertas e soltas que pretendam ser.

Eduardo Guerreiro Losso. Professor de Ciência da Literatura da UFRJ e bolsista de produtividade do CNPq. Texto original português. Enviado: 15/11/2021; aprovado: 20/12/2021; publicado: 30/12/2021

Referências

ADORNO, Theodor. Quasi una fantasia. Musikalische Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.

ADORNO, Theodor. Quasi una fantasia. São Paulo: Unesp, 2018.

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