Teologia moral

Sumário

1 Lições da História

2 Ética humana ou moral religiosa?

3 Uma dupla abordagem na moral atual

4 A urgência de uma abordagem científica

5 A busca pelo bem maior

6 Consciência  como tema central

7 Pecado e culpa

8 O pecado coletivo

9 Referências bibliográficas

1 Lições da história

Não há dúvida que a teologia moral sofreu uma forte desvalorização em nosso mundo contemporâneo. Muitas pessoas, educadas em ambiente cristão, deixaram de acreditar nos ensinamentos éticos recebidos. Durante muito tempo, no entanto, tais ensinamentos éticos tiveram forte influência entre os crentes e orientavam a vida concreta. O poder da Igreja para interpretar e aplicar estes ensinamentos éticos à diferentes situações era considerado uma expressão explícita da vontade de Deus. A promessa do Espírito dava-lhe uma garantia firme para não cometer um erro em seus ensinamentos. Os fiéis não tiveram alternativas senão a obediência e a submissão.

Ainda  que se tenha promovido o  estudo da teologia moral em boas universidades, sob o ensinamento de grandes teólogos, também é verdade que tal disciplina nunca perdeu, ao longo da história, seu interesse principal em ajudar os confessores para o ministério da reconciliação, que era seu centro. O sacerdote expressava o perdão e a misericórdia de Deus,  contudo, também como um juiz, era necessário que tivesse o conhecimento exato da seriedade e importância do ato cometido. A maioria dos textos de moral, até recentemente, tinha-se tornado verdadeiro “pecatômetros”, medindo, com precisão e imaginação, todas as possibilidades (casuística).

Esta orientação prioritária não impediu, no entanto, as muitas discussões que ocorreram ao longo da história sobre temas que se referem a certas questões éticas. Basta lembrar, por exemplo, as diferentes formas de harmonizar as exigências da lei com as decisões de consciência. Os chamados sistemas morais não se referem, como pode parecer, aos grandes fundamentos da moralidade, mas à proporção diferente defendida entre a obrigação legal e a liberdade de cada pessoa para determinar sua escolha em diferentes circunstâncias. Embora as alegações do passado pareçam superadas hoje em dia, sem dúvidas ainda são suficientemente influentes para evitar ou induzir a uma visão mais ou menos rigorista (rigorismo).

O mesmo aconteceu com o núcleo básico da moralidade. Ou seja, em relação àqueles limites fundamentais que nunca poderiam ser ultrapassados (lei natural). Sua existência tem sido evocada em muitas ocasiões para impor determinados comportamentos. Aquilo que pertence a esse âmbito possui maior consistência, contudo, o risco da ampliação de suas fronteiras tem sido, não obstante, uma realidade histórica. A questão de saber até onde vão suas exigências permanece ainda como um ponto pouco evidente. Especialmente quando se percebe que entre os autores clássicos não existe consenso ou hegemonia quanto à explicação.

Para evitar um pluralismo que poderia ser perigoso para a comunidade eclesial, a Igreja encontrou em seu magistério um apoio muito importante. A diferença clássica entre ética e moral encontrou aqui seu ponto de partida. A moral tinha sua origem na palavra de Deus que a Igreja, com a ajuda especial do Espírito, tem de interpretar e impor com sua autoridade, de acordo com as diversas situações históricas e pessoais. Por sua vez, a ética se baseava nas exigências da razão, que não oferecia maior segurança, estando sujeita a erros humanos. Indicava-se, inclusive, que até mesmo suas próprias conclusões deveriam estar subordinadas ao conteúdo da moralidade. A filosofia foi relegada, por um longo tempo, a ser não mais do que uma simples ajuda para a fé. Não em vão, passou a ser considerada como  escrava da teologia. Não havia outra opção que não fosse a obediência e submissão, pois o remorso e a ameaça de uma condenação constituíam uma fonte de extraordinária eficácia.

Surge, portanto, inevitavelmente, a abordagem de um novo problema. Como seres racionais, devemos agir com uma convicção interior que justifique o comportamento que adotamos. Um esforço de explicação racional para que nosso comportamento resultante seja sensato e compreensível. Mas, como crentes, não podemos eliminar a nossa dimensão transcendente, que nos faz encontrar em Deus a explicação fundamental de nossa vida. A escuta e a docilidade à sua palavra também faz parte do nosso horizonte ético.

2 Ética humana ou moral religiosa?

O problema metodológico que emerge é saber qual deve ser nosso ponto de partida. Se partimos da razão para construir uma ética humana, razoável, válida e universal para todos, ou se é a revelação que nos deve garantir, como crentes, a firmeza e a segurança plena de nossa conduta. Devemos evitar as opiniões extremistas, tanto daqueles que, por um lado, negam a baliza da fé em defesa da plena autonomia humana, quanto, por outro lado, a visão daqueles que desejam recorrer apenas à palavra literal das Escrituras. A ética secular seria um bom representante da primeira opção. Proclama e defende a consistência humana das regras e obrigações, sem fazer uso de justificativas externas. Na divindade se encontrava a resposta à ignorância que impedia de descobrir um fundamento racional. A hipótese de um Deus que se revela ou de uma igreja que ensina com autoridade passou para o museu da história. O progresso científico certificou sua morte definitiva.

A resposta protestante, ao contrário, defende um radicalismo antagônico. Para o cristão não existe outra opção que a de uma ética puramente religiosa. Somente se pode agir honestamente quando se faz ouvinte da palavra e se deixa dirigir pela mensagem da revelação. Qualquer outra tentativa de guiar a vida através de valores humanos conduz a um completo fracasso, já que não há capacidade no ser humano para descobrir o bem a partir de si mesmo. Nenhum moralista pode usurpar o trono de Deus para determinar o que é bom e o que é inaceitável, como se possuísse a competência que só a Deus pertence. Surge, então, uma manifesta contradição entre os imperativos éticos e as exigências religiosas. No horizonte religioso, a única categoria ética existente é a do absurdo, como a intrigante postura de Abraão que, a fim de obedecer a Deus, se vê disposto a sacrificar seu próprio filho.

Não tenho a pretensão de explicar agora as nuances existentes em ambas posturas. Quero ressaltar somente que, dentro do catolicismo, sempre se defendeu uma posição intermediária. As dimensões humanas e religiosas não são duas realidades mutuamente excludentes ou contraditórias. Entre fé e razão existe uma harmonia complementar, sem que nenhuma perca seu valor e utilidade. Busca-se pensar uma ética que seja profundamente religiosa, sobrenatural e transcendente, mas que não deixe de ser, ao mesmo tempo, verdadeiramente humana, racional e compreensível.

3 Uma dupla abordagem na moral atual

Entre os autores católicos, a similitude de pensamento sobre este pressuposto básico alcança sua unanimidade. Contudo, a insistência e a ênfase colocadas sobre cada um deles levam a uma dupla abordagem que levanta polêmicas dentro da comunidade eclesial. Trata-se da inclinação ou para uma ética autônoma, na qual se enfatiza mais a racionalidade dos conteúdos éticos, ou para uma moral da fé, que coloca mais acento nos dados da revelação. O problema não é apenas uma questão especulativa, mas deve nos preocupar por causa de suas implicações pastorais.

Em suma, poderíamos dizer que a ética autônoma possui maior confiança na capacidade da razão humana, apesar de seus limites e restrições. Busca tornar os valores éticos compreensíveis num mundo secular e adulto, que exige explicação racional para a sua própria convicção. O homem de fé sabe que esta capacidade lhe foi dada como um dom de Deus (autonomia theonomous), contudo sem  destruir sua justificação ou autonomia humana. A moral da fé manifesta certas reservas sobre essa abordagem, acreditando que é bastante ingênua e otimista, pois sem a ajuda da revelação cairíamos em muitos erros. É preciso dizer que João Paulo II foi um defensor entusiasta da primazia e da necessidade da fé sobre qualquer tentativa de fundamentação meramente racional da moral.

A questão essencial consiste em saber se é possível uma moralidade sem o auxílio da fé,  se acaso esta não nos proporciona conteúdos éticos impossíveis de serem descobertos sem a ajuda da revelação. Dito de outra forma, consiste em saber se os valores que nos humanizam podem ou não serem descobertos sem a ajuda do sobrenatural. Da decisão tomada ante esta alternativa, pode-se prever o desabrochar de uma moral especificamente cristã, cujo conteúdos não poderão ser conhecidos a partir de outra perspectiva. Ou, de outra forma, se reconhece que,  mesmo sem levar em conta a dimensão sobrenatural do crente,  podemos encontrar uma plataforma comum, patrimônio de todos os seres humanos.

As divergências inevitáveis não estão ​​baseadas apenas nestes diferentes pontos de vista. Todo o valor ético é um apelo que sentimos para nos realizarmos como pessoas. Nascemos inacabados, e não é possível atingir esse objetivo (o da humanização[1]) deixando-nos levar pelos impulsos primários que experimentamos. O ser humano, por meio das renúncias e compensações que experimenta em sua educação, tem a tarefa de descobrir qual a configuração que deseja dar a todos os elementos encontrados em sua natureza. Ética nada mais é que o estilo de vida que cada pessoa decide dar à sua existência.

É interessante notar que Santo Tomás, quando  explica em que consiste a ofensa a Deus, o faz a partir de uma perspectiva profundamente humanista: “Deus não é ofendido por nós, a não ser na medida em que agimos contra  nosso próprio bem” (Summa Contra Gentios, III, 122).

4 A urgência de uma abordagem científica

Quero dizer que tudo que é moralmente considerado inaceitável ou, do ponto de vista religioso, é classificado como um pecado, tampouco é, do ponto de vista humano, a melhor maneira de se realizar como pessoa.

Tudo isso significa que não é possível uma moral autêntica sem que se apoie em bases científicas, pois, de outro modo, suporíamos a defesa de uma  moral sem fundamentação. A dificuldade está no fato de que a ciência nem sempre possui conclusões unânimes que permitem a avaliação do comportamento. O campo da bioética é um exemplo claro dessa dificuldade. Também é digno de nota que, com o progresso e as novas descobertas da ciência, as soluções que têm sido tomadas antecipadamente devem ser repensadas ou reinterpretadas de forma diferente para que possam integrar as novas possibilidades.

Neste contexto, existe o perigo de que a moral se torne um obstáculo ao progresso, ao condenar imediatamente qualquer nova possibilidade que não se ajuste completamente às normas e ensino anterior. O conflito surge, então, entre a fidelidade a um valor, tal como apresentado na tradição, e a fidelidade a uma nova verdade que pode enriquecer a perspectiva precedente. A própria cultura, que se desenvolve ao longo do tempo, oferece perspectivas diferentes que permitem valorizar qualquer realidade. Inclusive dentro do mesmo âmbito cultural, como é o caso da Igreja, tem ocorrido mudanças significativas que afetam a formulação da ética concreta. Durante séculos, aceitou-se com naturalidade o fenômeno da escravidão; e quase ninguém ficou escandalizado com o fato de que os hereges fossem queimados na fogueira.

Finalmente, existe hoje uma dupla forma de aplicar à realidade alguns valores éticos.  Nem tudo que na teoria é apresentado como princípio válido e aceitável pode ser aplicado em situações concretas. Valores evidentes e aceitáveis como não mentir, respeitar a vida, pagar a cada um conforme seu merecimento etc., devem ser analisados verificando se vale a pena cumpri-los na eventual possibilidade de que sua execução provoque uma mal maior. A mesma moral tradicional afirma que quando uma ação implica consequências boas e negativas, no caso de perplexidade, todos devem escolher o mal que parece menor. O chamado princípio do duplo efeito, a lei da gradualidade, a distinção entre a cooperação formal e material e a virtude da epiqueia indicam que não se pode julgar uma ação enquanto não se considere especificamente como ela se realiza concretamente.

5 A busca por um bem maior

Devemos descobrir, portanto, qual é o valor mais elevado que precisamos buscar e situar acima de tudo. Ou se, a fim de evitar consequências negativas piores, devemos optar pela eliminação de algum bem. Essa moralidade concreta busca-se hoje a partir de um duplo caminho, através de uma argumentação deontológica, ou através de um raciocínio teleológico. A diferença entre as duas posições pode ser sintetizada como se segue. Uma teoria normativa será deontológica quando a moralidade de um determinado comportamento for deduzida através da análise de sua natureza, sem dar qualquer importância às consequências ou efeitos negativos que podem resultar de tal comportamento (deontologia). Já uma teoria normativa na dimensão teleológica, pelo contrário, mesmo que  também considere a natureza da ação,  não se atreve a valorizá-la sem antes considerar as consequências que possa produzir (teleologia).

Não me parece que esta última perspectiva, à qual a maioria dos atuais moralistas se inclina, seja contra os ensinamentos fundamentais da Igreja, embora a doutrina oficial faça críticas a muitas de suas formulações. Tampouco penso que com essa abordagem estejamos entrando em uma moral de pura eficácia ou de benefícios imediatos. Também não se nega a existência das chamadas ações intrinsecamente pecaminosas, quando não existe nenhuma razão ou motivo que pudesse justificar a sua não observância. Contudo, é verdade que nem sempre coincidem na mesma valoração.

6 Consciência como tema central

A partir da sua compreensão como o nucleus secretissimus atque sacrarium hominis, in quo solus est cum Deo (Santo Agostinho), o Concílio Vaticano II define a doutrina da consciência: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (Gaudium et spes n.16).

Chamado à comunhão com Deus, o ser humano está em escuta contínua de sua Palavra e a conserva no coração (Jr 17,1; 31,31-34; Ez 14,1-5; 36,26), cujo único habitante é Deus (Jr 11,20). O Evangelho de Jesus, manso e humilde de coração (Mt 11,28-30), germina no mais íntimo da pessoa (Mt 13,19). Deste núcleo brotam as palavras, atitudes e comportamentos humanos (Mc 7,18-23). O apóstolo Paulo interpreta a tradição semítica do coração e a traduz na noção grega de consciência (syneidesis) como expressão íntima da nova criatura e de seu existir em Cristo (Hb 9,12).

A chave de compreensão da moral cristã é o discernimento (dokimázein): capacidade de tomar, em determinada situação, a decisão moral conforme o Evangelho e com conhecimento das implicações da história da salvação. O discernimento aponta para o caráter pneumatológico da consciência. O conteúdo primário do discernimento cristão é a vontade de Deus em Jesus Cristo (Rm 12,2; Ef 5,17). O discernimento é o próprio exercício da consciência, é a consciência moral adulta em ação (Hb 5,14). A Igreja se apresenta como uma comunidade de discernimento: “que possais discernir o que é melhor ou o que é bom, o que é mais importante ou o que mais convém e agrada a Deus” ( Rm 2,18; 12,2; Fl 1,10; Ef 5,10). Essa perspectiva é o fundamento do sensus fidelium. “Os fiéis leigos devem ter consciência não só de pertencer à Igreja, mas de ser Igreja” (Catecismo da Igreja Católica n.899). Todo batizado tem o direito, em razão de seu próprio conhecimento, competência e reconhecimento, de manifestar à comunidade eclesial sua opinião sobre aquilo que pertence ao bem da Igreja.

A liberdade de consciência tem a última palavra a respeito das prescrições morais concretas da Igreja. Cada fiel, deixando interpelar-se pela sua consciência, pela Palavra de Deus e pela Tradição está chamado a assumir-se fazendo a escolha ética de forma responsável. Ninguém pode ser forçado a agir contra a própria consciência nem sequer em assuntos de religião (Código de Direito Canônico, 748, 2): “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (Catecismo da Igreja Católica, 1778 – citação do Cardeal Neumann). A decisão pessoal adquire, portanto, um relevo extraordinário (decisão moral). Somente a própria (consciência) possui a última e definitiva palavra para a moralidade de nossas ações, mas sem esquecer a validade e obrigatoriedade das normas éticas(norma moral).

Pode-se dizer que, para o legalista, a regra conserva sempre sua validez, como o caminho mais seguro para evitar erros. O antinomista, pelo contrário, anula sua validez a fim de seguir os ditames de sua decisão pessoal (ética situacional). Já a pessoa madura aceita, por um lado, a obrigatoriedade das exigências éticas, mas sabe também relativizá-las quando se encontra diante de outros valores importantes, desde que tais ações não sejam consideradas intrinsecamente pecaminosa, como já dissemos.

Esta visão personalista da consciência integra harmoniosamente a dialética entre a dupla dimensão objetiva e subjetiva da moral, sem cair nos extremos de uma moral legalista ou  de uma ética subjetivista. Uma pedagogia da moral deveria consistir em despertar consciências livres e responsáveis​​,  que se deixem conduzir sempre pelo  chamado ou apelo a um bem maior.

7 Pecado e culpa

Como também aconteceu com outras questões, a imagem do pecado sofreu uma profunda mudança em nossa sociedade. A própria Igreja, em alguns de seus documentos, expressou sua preocupação. Também aqui são muitos os fatores que causaram esta situação, como nos aponta, na Exortação Apostólica sobre a Reconciliação e Penitência, o Papa João Paulo II. Cito, brevemente, três aspectos que considero importantes.

O primeiro, sem dúvidas, é a perda da visão sobrenatural. O terrível de um acidente não reside no fato de que o carro tenha ficado destruído, mas a vida que se perdeu entre seus destroços. Pecar não é simplesmente quebrar uma lei ou não cumprir uma obrigação, mas implica a ruptura de uma amizade com o Deus que nos salva. Quando esta dimensão transcendente se esvai, como acontece em nossas sociedades secularizadas, a imagem  do pecado também desaparece.

São muitos os que não querem reconhecer a sua própria sua culpa, como se fosse uma decisão que brota dela própria. O erro e o equívoco fazem parte do nosso patrimônio, como uma consequência inevitável de nossa finitude. A falta, no entanto, não se deve à liberdade de quem assim atua, mas constitui um fracasso pelo qual ninguém pode sentir-se responsável. É um evento que nos deixa chateado e magoado, que nos comove, pois afeta as fibras mais íntimas da personalidade, mas sobre o ser humano, mesmo que ele cometa o mal, não se pode lançar qualquer condenação acusatória. Ninguém escolhe algo contra si e, por isso, quando rejeita Deus ou recusa um valor ético, é porque encontrou outra atração pela qual se sente inevitavelmente seduzido sem outra possibilidade de eleição.

Ainda que pareça estranho, não é fácil uma prova evidente de nossa liberdade. Aquele que insiste em negá-la verá, por detrás de cada escolha, um mundo de certas experiências, pressões, lembranças, interesses, expectativas etc., que inclinam a balança para um lado de uma forma inevitável. A hipótese de sua existência, no entanto, não é um dado anticientífico. Os múltiplos mecanismos que a ameaçam não tem porque destruir a capacidade básica da  autodeterminação. Contudo, não devemos defendê-la com uma ingenuidade excessiva. São muitos fatores que a condicionem, embora não a eliminem. É possível que, às vezes, queiramos e não possamos, contudo, mais frequente é a situação na qual podemos e não queremos. A liberdade é também uma conquista que cada pessoa deve realizar com o seu esforço.

É lógico que a pessoa que não quis responder ao chamado de um valor que o desumaniza, ou como crente encontra-se fechado para a amizade com Deus, experimente internamente algum desconforto. O fracasso de um projeto humano ou religioso, embora não absoluto e definitivo, deve produzir determinadas reações internas que não nos deixem tranquilos e imutáveis, como se nada tivesse acontecido. A culpa, como a dor ou  a febre nos mecanismos biológicos,  faz sentir o mau funcionamento da pessoa e o desejo de uma cura eficaz.

Este sentimento de culpa poderia ser causado por diferentes fatores. Uma sensação de angústia por medo de uma perda, ou por medo de uma punição. O que dói não é o mal praticado, mas as más consequências dele decorrentes. Em outras ocasiões, é a ferida que causa o próprio narcisismo. É um fato que destrói o Eu ideal, que humilha e corrói, com um remorso que se faz companheiro constante de caminhada. Quando, em sua natureza mais profunda, radica na vergonha de haver atentado contra o meu próprio bem, causado danos aos outros e, sobretudo, ter quebrado a minha amizade com Deus.

8 O pecado coletivo

Sempre se analisou o conceito de pecado a partir de uma visão demasiado individualista. O importante era não sentir-se culpado com o desempenho individual. Se  apesar da própria honestidade ainda continua existindo o pecado, semelhante situação será, então, produto de outras pessoas que colaboram com o mal existente. Uma abordagem como essa se faz completamente incompreensível em nossa cultura atual, na qual a dimensão política possui  uma extraordinária relevância.

Já o Concílio Vaticano II,  na Constituição sobre a Igreja no mundo moderno, havia desmascarado claramente essa abordagem: “A profunda e rápida transformação da vida exige com suma urgência que não haja ninguém que, por despreocupação frente à realidade ou por pura inércia, conforme-se com uma ética meramente individualista” (n1 30). O pecado coletivo é uma realidade evidente, como apontaram os  bispos latino-americanos, nas assembleias de Medellín e Puebla.

A reflexão fundamental poder-se-ia concentrar em torno dessa questão básica: qual deve ser a atitude ética e cristã da pessoa consciente de seu compromisso, frente às injustiças e pecados sociais que não dependem dela nem que ela poderá eliminar?

Eduardo Lopez Azpitarte, SJ – Facultad Teologica de Granada, España. Texto original en espanhol. Tradução: José Sebastião Gonçalves

9 Referências bibliográficas

Aa.Vv. Que todo sea para edificación (1 Cor, 14,25. Leer el magisterio y la tradición. Sal Terrae, v.97, p.781-879. 2009.

BRACKLEY, D.  Tendencias actuales de la Teología moral en América Latina. Revista Latinoamericana de Teología, v.19, p.95-120. 2002.

BARCELÓ, Eduardo Bonnín. Pecado social y estructuras de pecado en la Teología latinoamericana. Efemérides Mexicana, v.23,  p.41-9. 2005.

DEMMER, Klaus. Introdução à teologia moral. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2007.

GUARDINI, Romano. La coscienza. 4.ed. Brescia: Morcelliana, 1977.

JOSAPHAT, C. Todos serão teodidatas (Jo 6,45): docilidade ao espírito, autenticidade da consciência. Perspectiva. Teológica, v.44, p.373-98. 2012.

JUNGES, José Roque. Evento Cristo e ação humana: temas fundamentais de ética teológica. São Leopoldo: UNISINOS, 2001.

LÓPEZ AZPITARTE, E. Hacia una nuevavisión de la ética cristiana. Santander: Sal Terrae, 2003.

______.  Retos para larenovación de la moral católica. Revista Iberoamericana de Teología, v.4,  p.65-93. 2008.

______. Conflictos éticos e magistério da Igreja. Perspectiva. Teológica, v.44, p.353-72. 2012.

______. Fundamentação da ética cristã. São Paulo: Paulus, 1995.

LONERGAN, Bernard J. F. La formazione della coscienza. Brescia: La Scuola, 2010.

MARTÍNEZ, J. L.; CAMAÑO, J. M. Moral Fundamental. Bases teológicas para el discernimiento ético. Santander: Sal Terrae, 2014.

MIER, S. Desafíos y esperanzas para una teología moral desde América Latina. Revista Iberoamericana de Teología, n.4, p.85-98. 2007.

MUÑOZ, J.   Aportes de la la teología de la liberación a la reflexión sobre la experiencia del pecado. Theologica Xaveriana, n.52 p.277-90. 2002.

SESBOÜE, B.  El magisterio a examen. Autoridad, verdad y magisterio en la Iglesia. Bilbao: Mensajero, 2004.

______.  Magistério e consciencia. Perspectiva. Teológica, n.44, p.399-413. 2012.

THEVENOT, Xavier. Contar com Deus: estudos de teologia moral. São Paulo: Loyola, 2008.

TRIGO, T. El debate sobre la especificidad de la moral cristiana. Pamplona: Eunsa, 2003.

VALADIER, Paul. Elogio da consciência. São Leopoldo: Unisinos, 2000.

______. La condición cristiana: en el mundo sin ser del mundo. Santander: Sal Terrae, 2006.

VIDAL, M.  Orientaciones éticas para tiempos inciertos. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2007.

______.  Nueva Nueva Moral Fundamental. El hogar teológico de la ética. Madrid: Perpetuo Socorro, 2014. (Trad. port: Nova moral fundamental: o lar teológico da ética. São Paulo: Paulinas/Santuário, 2003.)

VITALI, D. Universitas fidelium in credendo falli nequit (LG 12). Il ‘sensusfidelium’ al Concilio Vaticano II. Gregorianum, v.86, p.607-28. 2005.

ZUCCARO, Cataldo. Cristologia e moral: história, intepretação, perspectivas. São Paulo: Ave Maria, 2007.

[1] Elucidação do tradutor.