Mística, justiça e opção pelos pobres

Sumário

1 João XXIII e a Igreja dos pobres

2 A América Latina e a Igreja dos pobres

3 O Deus justo e misericordioso é o Deus dos pobres

4 Jesus e os pobres: a mística da opção pelos pobres

5 O desenvolvimento da opção pelos pobres no magistério do papa Francisco

6 Referências bibliográficas

1 João XXIII e a Igreja dos pobres

Pouco antes do início do Concílio Vaticano II, João XXIII pronunciou uma histórica mensagem radiofônica na qual afirmava: “Com relação aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e quer ser: a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres”. Era o dia 11 de setembro de 1962 e, deste modo, fazia irrupção na Igreja no século XX o tema da Igreja dos pobres.

Desde o fim da Segunda Grande Guerra o mundo passava por um acelerado processo de decolonização que fez emergir um novo sujeito e ator internacional: o Terceiro Mundo. A pobreza no mundo no século XX tomava uma nova forma. Se antes a pobreza era relativamente distribuída por todos os continentes, agora se configura uma nova realidade, onde a região Norte do planeta atinge um alto grau de desenvolvimento e o Sul passa a concentrar altos níveis de desigualdade e escassez, frente ao Norte desenvolvido. Uma parte do mundo encontra-se também ligada à experiência do Coletivismo Marxista. Nos anos 1950, o geógrafo francês Alfredo Sauvy cunhará uma expressão-conceito que se tornará de uso comum. Frente ao Norte desenvolvido, Primeiro Mundo, e aos países socialistas, Segundo Mundo, os países pobres do Sul constituem um Terceiro Mundo, subdesenvolvido.

A Conferência de Bandung, em abril de 1955, reuniu 29 países da Ásia, do Oriente Médio e da África Subsaariana, marcando o início de uma coalizão dos países do Terceiro Mundo e a afirmação de novas lideranças terceiro mundistas, como Nasser, do Egito, Sukarmato, da Indonésia, Chu Em-Lai, da China, Kwame Nkrumah, de Gana, Ahmed Sékou Touré, da Guiné, Patrice Lumumba, do ex-Congo Belga, Hailé Selassié, da Etiópia. A esta reunião seguiu-se outra, em 1961 em Belgrado, onde participaram também países latino-americanos. Os compromissos assumidos em Belgrado, no contexto decolonial e de afirmação do pensamento e agir terceiro-mundista, foram: oposição sistemática ao imperialismo e ao colonialismo, participação conjunta, como bloco, em assuntos econômicos e de política internacional, construção de um mundo baseado na justiça e na paz e o não alinhamento a nenhum dos dois blocos da Guerra Fria. Neste período, surgem como expressão política de relevo tanto o pan-africanismo quanto o pan-arabismo e as experiências do socialismo árabe que, entre os anos 1950 e 1960 foram implementadas, de diferentes modos, no Egito, Síria, Argélia, Iraque, Líbia e Iêmen do Sul. O socialismo árabe, não relacionado diretamente ao marxismo, mantinha referência ao Islã, sem ter cunho religioso teocrático, dando lugar à constituição de estados laicos, socialistas, na região. Na América Latina, a Revolução Cubana abre caminho para uma série de processos e lutas revolucionárias no Continente, ao mesmo tempo que outras forças progressistas afirmavam a necessidade da superação da situação de dependência econômica e cultural do Primeiro Mundo, assim como a necessidade de se estabelecerem reformas profundas que levassem à superação da imensa desigualdade econômica e social, combatendo a exploração das massas pobres e a exclusão de enorme parcela da população do acesso à educação, saúde e bem-estar.

Foi diante deste quadro que se colocou, para a Igreja, a necessidade de se fazer presente junto aos processos de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Não poderia repetir a Igreja o imobilismo que a fez afastar-se da massa trabalhadora europeia no decorrer do século XIX. Neste novo mundo que surgia, dos processos e lutas decoloniais, a Igreja deveria ser a Igreja dos pobres.

Em resposta à radio-mensagem do papa, nas vésperas do Concílio, em outubro de 1962 reuniu-se no Colégio Belga, em Roma, um grupo informal que será posteriormente chamado de Igreja dos pobres. A primeira reunião ocorre em 26 de outubro, sob a liderança do arcebispo melquita de Akka-Nazaré, D. Georges Hakim (que havia solicitado a Pe. P. Gauthier escrever um primeiro texto convocatório), e do bispo de Tornei (Bélgica), D. Himmer. Na ocasião, doze bispos se reuniram sob a presidência do cardeal Gerlier de Lion (França). Entre estes bispos encontravam-se dois latino-americanos de grande expressão: o brasileiro D. Hélder Câmara e o chileno Manuel Larraín. Já na segunda reunião, sob a presidência do patriarca melquita de Jerusalém, D. Máximo IV, o grupo contava com 50 bispos participantes. Reunindo bispos de diferentes regiões, o Grupo Igreja dos pobres, possuía um amplo leque de visões sobre a questão. Estas diferentes perspectivas abrangiam tanto uma posição mais pastoral, no sentido de estabelecer como prioridade uma pastoral operária orgânica, quanto uma visão mais emotiva e outra mais doutrinal e terceiro mundista. Nessa última perspectiva, a pobreza era vista como sendo fruto de uma injustiça e a Igreja deveria se comprometer com os processos de libertação, acompanhando os pobres e suas lutas. A Igreja deveria se fazer pobre com os pobres e se identificar com o Cristo pobre.

O grupo não obteve sucesso na tentativa de tornar a questão dos pobres um eixo do Concílio. Conseguiu, entretanto, introduzir um importante parágrafo na Constituição Dogmática Lumen Gentium:

Mas, assim como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação. Cristo Jesus “que era de condição divina… despojou-se de si próprio tomando a condição de escravo” (Fl 2,6-7) e por nós, “sendo rico, fez-se pobre” (2 Cor 8,9): assim também a Igreja, embora necessite dos meios humanos para o prosseguimento da sua missão, não foi constituída para alcançar a glória terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegação, também com o seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai “a evangelizar os pobres… a sarar os contritos de coração” (Lc 4,18), “a procurar e salvar o que perecera” (Lc 19,10). De igual modo, a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo. (LG n.8)

 Ao final do Concílio, cerca de 40 bispos participantes deste movimento assinaram, na Catacumba de Santa Domitila, um importante documento que se tornou conhecido como o Pacto das Catacumbas, no qual se comprometiam a promover um modelo de Igreja pobre com os pobres. Entre os compromissos assumidos, incluía-se a renúncia a títulos que expressem grandeza ou poder, o uso de vestes suntuosas, bem como o uso de carros e residências que não sejam populares, e comprometiam-se também a dedicar um tempo privilegiado para o cuidado dos pobres e dos menos favorecidos.

O papa Paulo VI, influenciado pelas posições do Grupo Igreja dos pobres fez dois gestos importantes: renunciou ao uso da tiara papal, que ofertou para os pobres da África, e consignou a cada um dos bispos conciliares um anel simples que deveriam usar como anel episcopal. Após o Concílio, o papa promulgou, em março de 1967, a Encíclica Populorum Progressio, recolhendo parte dos temas desenvolvidos pelos bispos do movimento Igreja dos pobres. Inspirados pela Encíclica e liderados por D. Hélder Câmara, em agosto do mesmo ano, dezessete bispos de diferentes países e continentes lançam o Manifesto dos Bispos do Terceiro Mundo. O Manifesto, com tons fortes, defende a igualdade de classes sociais e reconhece a necessidade histórica dos processos revolucionários populares libertadores, que devem contar com a vizinhança da Igreja.

2 A América Latina e a Igreja dos pobres

Após o Concílio, respondendo a uma solicitação dos bispos D. Hélder Câmara e D. Manuel Larraín, Paulo VI convocou uma nova Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, com o objetivo de aplicar o Concílio à realidade do continente. A reunião se deu em 1968 na cidade de Medellín, Colômbia. Nesta reunião ocorre não só a recepção latino-americana do Concílio, mas também do Movimento Igreja pobre e dos pobres, em uma perspectiva terceiro-mundista e na linha do Pacto das Catacumbas, cujo texto foi praticamente acolhido no Documento 14 das Conclusões Gerais de Medellín. Ali a questão do pobre não aparece como um tema, mas como uma perspectiva, um horizonte estruturador da Igreja toda e de toda a vida cristã. No imediato pós-Medellín, as experiências de uma verdadeira eclesiogênese levada adiante pela constituição das Comunidades Eclesiais de Base e o desenvolvimento de uma pastoral popular articulada com os movimentos de organização e luta popular levaram à criação da Teologia da Libertação e à formulação teológica daquilo que se constituirá na marca decisiva da Igreja latino-americana: a opção pelos pobres. A expressão “opção pelos pobres” não se encontra ainda em Medellín. Ela se afirma a partir de 1972 e contém em si dois pontos centrais. O primeiro é o imperativo de se mudar de lugar social, isto é, de assumir o olhar do pobre, “ver o mundo com os olhos dos pobres”. Isto exige a convivência com os pobres e a criação de fortes laços empáticos, assim como exige que se dê voz aos pobres, colocando-se em posição de escuta. Não só permitir que a voz dos pobres se faça sentir, mas também amplificá-la, privilegiar o lugar de fala dos pobres e das vítimas. Não pretender ser a voz dos que não têm voz, mas sim dar voz aos que sofrem a opressão e são continuamente silenciados, e assumir suas perspectivas. O segundo imperativo, estreitamente ligado ao primeiro, é o de reconhecer a necessária centralidade das vítimas como sujeitos sociais e eclesiais. Trata-se de apoiar toda ação que possa fazer emergir os pobres e as vítimas como sujeitos das transformações sociais, econômicas e ambientais, que levem à superação das diversas formas de opressão e de destruição da obra da criação. Deste modo, os pobres devem ser reconhecidos como portadores de uma situação evangélica privilegiada, assumindo um novo protagonismo na Igreja, tornando-se sujeitos da evangelização e de transformação da Igreja.

Ao longo da história recente da Igreja na América Latina e no Caribe, a opção pelos pobres foi reafirmada initerruptamente nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).

3 O Deus justo e misericordioso é o Deus dos pobres

Iahweh vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno; o que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Portanto, amarás o estrangeiro, porque fostes estrangeiro na terra do Egito (Dt 10, 17-19).

Israel conhece o nome de Deus em meio ao evento da libertação do cativeiro do Egito. (Ex, 3,10; 6,2-6). O Deus que ouve os clamores de seu povo e o liberta é o mesmo Deus dos patriarcas Dt 7,7-8), o Deus da Aliança, o Deus Criador (Gen 1), o único e verdadeiro Deus. Senhor dos senhores, todo poderoso, este Deus não faz acepção de pessoas, mas toma incondicionalmente a defesa dos pobres, normalmente representados nas Escrituras hebraicas pelas figuras do órfão, da viúva e do estrangeiro. O conceito de justiça das Escrituras não é o mesmo do direito greco-romano. Ser justo não é ser imparcial, mas sim ser fiel ao plano original da criação, opondo-se a toda forma de opressão e dominação que a desfiguram e restabelecer a ordem originária, protegendo e defendendo todas as vítimas. Quando se instaura a monarquia em Israel, a figura do rei ideal, expressa nos Salmos, é a de um rei que deve ser uma imagem de Iahweh, um instrumento de sua justiça, sendo um defensor e libertador dos pobres, dos indigentes e desvalidos:

“Ó Deus, concede ao rei teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei; que ele governe teu povo com justiça e teus pobres conforme o direito (…) com justiça ele julgue os pobres do povo, salve os filhos dos indigentes e esmague os opressores” (Sl 72,1-4).

A superioridade do rei de Israel sobre os outros reis e nações se deve a este exercício de justiça, seu poder se ancora em ser justo como Iahweh, um instrumento de sua justiça “pois ele liberta o indigente que clama e o pobre que não tem protetor; tem compaixão do fraco e do indigente e salva a vida dos indigentes” (Sl 72,9-13). Os profetas alertam: os reis serão julgados segundo tenham sido, ou não, como Iahweh, um defensor dos pobres, das viúvas e do estrangeiro (Jr 22,1-5). Ao se afastarem da justiça, trazem a ruína sobre sua casa e seu povo, mas Iahweh não abandona a Aliança e assim os profetas também anunciam o rei justo que virá (Is 11,1-9).

Os evangelhos revelam uma profunda continuidade com esta perspectiva fundamental. Na Palestina da época de Jesus, as condições de vida eram bastante modestas. Apenas uma pequena parte da população gozava de condições abastadas, e de um modo geral os habitantes da região viviam da pequena agricultura, da criação de pequenos animais, da pesca, do pequeno artesanato, ou trabalhavam empregando-se como assalariados diaristas nos serviços que encontravam a cada dia. Muitos viviam em situação de exclusão econômica e social e, devido às interpretações que surgiram no tardo judaísmo, eram vistos como pecadores, como se a pobreza, ou as graves doenças, fossem um castigo pelos seus pecados. Outros, por praticarem atividades tidas como impuras, eram também socialmente excluídos, como os publicanos. Por isto, nos sinóticos, os pobres da época de Jesus são agora resumidos nas categorias de “publicanos e pecadores”, que substituem a trilogia veterotestamentária dos órfãos, viúvas e estrangeiros. O capítulo 15 do Evangelho de São Lucas inicia-se com uma acusação feita a Jesus por fariseus e escribas, diante do fato de que “todos os publicanos e pecadores estavam se aproximando para ouvi-lo”:  “Esse homem recebe os pecadores e come com eles” – devendo aqui ser recordado que, no contexto semita, “comer com eles” significava estabelecer laços de proximidade e comunhão de vida. Jesus responde com as três parábolas da Graça: a parábola da ovelha perdida (v. 4-7), da dracma perdida (v. 8-10) e do filho pródigo (v. 11-32). Jesus, ele mesmo pobre, nascido em uma manjedoura em Belém, refugiado no Egito para sobreviver quando criança, que viveu em uma família pobre em uma cidade periférica, caminha agora com os pobres, fala para eles, convive com eles e entre eles, pois Deus é assim. Deus é como o pastor que chega a abandonar as ovelhas que estão juntas para buscar a ovelha que se perdeu e está vulnerável; Deus é como a mulher que, mesmo tendo nove dracmas, não descansa enquanto não encontra a única dracma perdida; e, por fim, Deus é como o pai da terceira parábola. Um pai tinha dois filhos. Ao mais velho cabia herdar a casa e os negócios do pai. O mais novo, cumprindo seu papel, pede a sua parte na herança paterna e sai de casa para fundar, conforme era esperado na sociedade hebraica e semita em geral, sua própria casa e fazer seus negócios. Porém, o filho não cumpre com a obrigação de honrar a herança recebida e a dissipa em uma vida devassa. Fica na miséria, deveria encontrar-se em país estrangeiro pois encontra trabalho apenas como cuidador de porcos, o que era particularmente abominável para um judeu, impedido por interdito religioso de comer tal carne. Caindo em si, resolve voltar à casa paterna, buscando trabalho, sabendo não haver nesta casa mais nenhum direito, já que havia dela se emancipado. O pai, ao vê-lo ao longe, se alegra, enche-se de compaixão e o recebe como filho, restabelecendo sua condição de antes da emancipação, abraçando-o, beijando-o, dando-lhe a melhor túnica, o anel e as sandálias, determinando aos empregados para organizarem uma refeição com o melhor novilho, em que comeriam e beberiam com ele, festejando. Explica sua alegria e sua ação: “pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido (apolōlōs / ἀπολωλὼς) e foi reencontrado (hĕurĕtē / εὑρέθη).  Nessa parábola, ao se usar os mesmos verbos (apŏllumi / ἀπόλλυμι e hĕuriscō / εὑρίσκω)  das duas parábolas anteriores, temos uma clara indicação de que o pai havia buscado ativamente o filho que tinha saído de casa  (sentido de hĕuriscō / εὑρίσκω), como o filho tinha dissipado todos os seus bens, tornando-se praticamente um mendigo, e não tinha feitos negócios, estabelecido uma nova casa, e dele o pai não tinha notícias, julgando-o morto. Ao reencontrá-lo, encheu-se de compaixão, pois ao final o filho estava vivo e ele poderia agora dele cuidar. O filho primogênito, que havia seguido em tudo o pai, sendo zeloso no cumprimento da lei e dos preceitos paternos, permanecendo fiel ao pai, é incapaz agora de segui-lo na mesma alegria, de encher-se também de compaixão, e torna-se, então, infiel no seguimento do amor. Ele recusa-se a participar da festa, exclui-se do banquete e da celebração. O comportamento de Jesus em relação aos pobres se funda na essência de Deus mesmo. Em Deus, justiça e misericórdia são duas faces de uma mesma moeda. Deus se coloca incondicionalmente do lado dos pobres, pois a situação da pobreza, em si mesma, constitui uma injustiça, fere a criação e o desígnio amoroso de Deus. A situação dos pobres clama aos céus e tem como resposta a misericórdia, o amor de Deus, que se coloca ao seu lado, fazendo justiça.

 4 Jesus e os pobres: a mística da opção pelos pobres

No capítulo 25 do Evangelho de Mateus, encontramos a parábola do juízo final (v. 31ss). Nessa parábola, colocam-se os critérios fundamentais pelos quais seremos julgados, tendo em vista nossa salvação ou condenação eterna. Os critérios são claros: são acolhidos por Deus aqueles que deram de comer aos famintos, deram de beber aos que tinham sede, vestiram os que estavam nus, acolheram os estrangeiros, visitaram os doentes e prisioneiros. E foram condenados os que não se solidarizaram com os pobres. Se os critérios são de algum modo desconcertantes, pois entre eles não se encontram práticas rituais religiosas, cumprimento devocionais e respeito ou desrespeito a interditos, existe um ponto ainda mais surpreendente: a identificação entre Jesus e os pobres. O Filho do Homem, no juízo final, afirma que uns foram condenados e outros foram salvos por terem, ou não, dado a Ele de comer, de beber, o terem vestido e visitado quando estava doente ou prisioneiro. Tanto os que foram salvos quanto os que foram condenados se surpreendem. Afirmam que nunca o haviam encontrado. Recebem a resposta: “Em verdade vos digo: cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (v. 40). Do mesmo modo: “Em verdade vos digo: todas as vezes que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (v. 45) E conclui: “E irão estes para o castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna” (v. 46).

Em um discurso magistral pronunciado no Líbano, em 12 de abril de 1964 (LERCARO, 2014, p.121-149), o cardeal Lercaro, comentando Mateus 25,31ss, sublinha o fato de que Cristo não afirma ali, “que aquilo que fizestes a estes pequeninos é como se a mim tivessem feito”, mas sim, que “cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”. São palavras próximas às da instituição da Eucaristia: “Isto é o meu Corpo”. Aqui existe uma identificação entre Cristo e os pobres que possui profundo significado teológico e místico. Os pobres são, ao seu modo, presença de Cristo entre nós, são sacramentos de Cristo. Revelam o rosto de Deus. Deus não assumiu uma condição humana qualquer, uma vida em abstrato. Assumiu a concretude de uma vida pobre, nasceu como pobre, viveu como pobre, foi perseguido, preso e condenado como pobre. Foi sepultado na cova de um amigo pois não tinha sepultura própria. E isto não é indiferente na economia da salvação, possuindo um profundo significado. Existe uma identificação entre Deus e os pobres que se expressa em toda Escritura hebraica e culmina na própria encarnação do Verbo. Em Jesus, pobre entre os pobres, se concretiza o processo kenótico que nos salva. O significado místico salvífico desta identificação revelada em Mateus 25 é tão profundo que podemos afirmar que nossa salvação está indissociavelmente ligada à relação que temos com os pobres. No final dos tempos seremos julgados pelo Cristo pobre, que carregou em si as injustiças do mundo e que, tendo experimentado em sua vida e morte a extrema condição de vítima, será nosso único juiz. Para o cardeal Lercaro a identificação entre Cristo e os pobres coloca claramente um imperativo para a Igreja:

e ainda nos devemos indagar sobre a extensão eclesiológica destas duas características de Jesus, Messias dos Pobres e Messias Pobre: a Igreja enquanto depositária da Missão Messiânica de Jesus, a Igreja prolongamento do Mistério da Kenosis do Verbo, não pode não ser, antes de tudo e privilegiadamente, no sentido agora claro, a Igreja dos Pobres, enviada para a Salvação dos Pobres; e de outra parte não pode não ser também Igreja que, como Cristo, não pode salvar se não aquilo que assume, isto é, não pode salvar antes de tudo os pobres, se não assume a pobreza. (LERCARO, 2014, p.149)

 Podemos dizer que os pobres possuem um lugar singular na economia e no mistério da salvação: constituem uma mediação necessária e inevitável para o encontro com Cristo e para nossa salvação, não por serem puros ou sem pecado, mas por sua situação de vítimas com quem Deus se identifica.

5 O desenvolvimento da opção pelos pobres no magistério do papa Francisco

O papa João Paulo II quis recordar e celebrar a Encíclica de Paulo VI, Populorum Progressio, promulgando no vigésimo aniversário dessa Encíclica a sua segunda encíclica social, Sollicitudo Rei Socialis. Nela, pela primeira vez em uma encíclica social, é recepcionada a expressão e o conceito latino-americano da opção pelos pobres (SRS n.42). Em 1991, o papa João Paulo II retoma este conceito em sua terceira encíclica social, a Centesimus Annus (CA n.11; 57). A opção pelos pobres ganhou, deste modo, cidadania no Magistério Pontifício. O pontífice reconheceu nestas encíclicas que “o amor da Igreja pelos pobres (…) é decisivo e pertence à sua constante tradição”, o que significou um grande avanço neste momento, frente a algumas posições conservadoras que negavam o privilégio dos pobres (CA n.57). Esta realidade foi reafirmada pelo papa Bento XVI quando, em 13 de maio de 2007, pronunciou as seguintes palavras em seu discurso inaugural da V Conferencia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, ocorrida em Aparecida: “Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)”.

A eleição do papa Francisco fez com que a questão da Igreja dos pobres irrompesse com novo vigor no Magistério Supremo da Igreja. Francisco reafirma a opção pelos pobres e a temática da Igreja pobre e para os pobres em seu sentido originário, tanto do Grupo Igreja dos pobres do Concílio Vaticano II, quanto latino-americano. Francisco, logo no início de seu pontificado, no discurso pronunciado no dia 16 de março durante o encontro que manteve com os representantes dos meios de comunicação social, afirmou, ao explicar a adoção do nome Francisco: “como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!”. Expressão depois retomada outras vezes, e explicitada na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: “Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG n.198). Nesse mesmo documento, o pontífice afirma:

Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! (EG n.48)

 O chamado para ser instrumento de Deus “a serviço da libertação e promoção dos pobres” é dirigido a todos, sem exclusão, e a falta de solidariedade concreta com os pobres influi diretamente na nossa relação com Deus (EG n.187). Afirma ainda o papa:

Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. (EG n.188)

A questão dos pobres torna-se central em seu pontificado. O papa Francisco adota um estilo simples de vida, em continuidade com o modo como vivia como arcebispo de Buenos Aires, que nos torna sempre presente seja o Pacto das Catacumbas, seja o Documento 14 das Conclusões de Medellín.

Na Encíclica Laudato Sí, o papa Francisco dá uma nova contribuição à Doutrina Social da Igreja unindo a questão social à ecológica, afirmando de modo claro que hoje não vivemos duas crises, uma social e outra ambiental, mas uma única crise, socioambiental, de vastas proporções e terríveis consequências, que tem sua origem em uma economia que mata, exclui e destrói a mãe Terra (FRANCISCO, 2015, n.3,1).  O papa Francisco elevou ao nível de Magistério Universal o Magistério Episcopal Latino-Americano que, de Medellín a Aparecida, afirmou enfaticamente a centralidade evangélica dos pobres, o papel que devem possuir de sujeitos ativos na sociedade e na Igreja e fez da opção pelos pobres um critério fundamental para o ser e o agir dos cristãos e da Igreja, em continuidade com as escrituras, a patrística e uma rica e firme tradição da Igreja.

Paulo Fernando Carneiro de Andrade, PUC Rio – texto original português.

 Referências bibliográficas

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_____. Evangelii gaudium. A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

_____. Laudato si’. Louvado sejas. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

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