Mística e Espiritualidade – Espiritualidades na história do cristianismo  

 Sumário

Introdução

1 As grandes correntes da espiritualidade cristã

1.1 As espiritualidades no cristianismo antigo e medieval

1.2 As espiritualidades da missão na modernidade

1.3 As espiritualidades de comunhão na Igreja contemporânea

Conclusão

Referências bibliográficas

Introdução

Antes de percorrer as diferentes etapas e expressões da espiritualidade cristã ao longo da história, é importante se ater, primeiramente, ao que é a espiritualidade cristã.

A espiritualidade cristã é uma dinâmica vital que nos coloca em sintonia com a ação de Deus e nos faz trabalhar de acordo com o Espírito de Deus revelado na pessoa de Jesus. Portanto, a espiritualidade cristã não é algo abstrato, elevado, desencarnado. A espiritualidade é um estilo de vida que pode ser visto e verificado em obras muito concretas.

Por outro lado, as diferentes espiritualidades são manifestações do Espírito de Deus, que está sempre curando as feridas do corpo de Cristo. Os carismas e manifestações das espiritualidades são dons de Deus para edificar o corpo de Cristo, que é a Igreja. As espiritualidades, no plural, têm a missão de construir a comunhão, e a comunhão se realiza em torno das feridas. Em cada época da história, surgiram expressões da espiritualidade cristã, e todas elas têm sido respostas aos desafios de cada momento e às necessidades do corpo do Senhor ressuscitado na história.

Não é difícil entender a ação do Espírito Santo como aquela que torna possível o sair de si (ex-tasis) e o permanecer unido. O Espírito Santo torna possível que o Pai e o Filho se comuniquem e se abram, não só dentro da comunidade divina, mas frente ao homem, ao mundo e ao tempo (MOLTMANN, 1978, p.79). Deus, uno e trino, comunidade de amor, vive o mistério da interação entre as pessoas  que se necessitam em sua diferença e não se anulam em uma uniformidade nem em uma individualidade estéril. Santo Agostinho quis expressar essa função do Espírito Santo dentro da comunidade divina como o Amor. Ao falar da Trindade, afirma: “Aqui temos três coisas: o Amante, o Amado e o Amor” (AGOSTINHO, 1948, p.529-535 apud FORTE, 1996, p.36); um Pai Amante, um Filho Amado e o vínculo que os mantêm unidos, o Espírito do Amor.

A missão do Espírito, como também a missão do Filho, consiste na glorificação de Deus e na libertação do mundo. Deus é glorificado na libertação e redenção de toda a criação; Ele não quer ser glorificado sem que sua criação e a humanidade sejam liberadas ao mesmo tempo (MOLTMANN, 1978, p. 79). Deste modo, esta participação na vida de Deus a que nos referimos e o processo de comunhão que ela implica são função específica do Espírito.

Partindo dessa primeira definição da espiritualidade a partir da compreensão do mistério trinitário, apresentaremos uma aproximação trinitária às diversas formas de participação dos cristãos na vida de Deus, que é o que denominamos espiritualidade. Esta participação torna as pessoas capazes de entrar na dinâmica vital própria de Deus.

1 As grandes correntes da espiritualidade cristã

As grandes correntes da espiritualidade cristã são expressões da ação de Deus no meio de seu povo, para responder aos desafios próprios de cada momento histórico. Os carismas são presentes de Deus para a construção da comunhão. Nunca são propriedades exclusivas de pessoas ou grupos particulares. Por isso, é fundamental conhecer a história específica em que cada carisma é dado à Igreja, para saber a quais necessidades da comunidade respondeu e qual pode ser seu alcance.

A aproximação que queremos oferecer à história da espiritualidade cristã destaca três grandes dinâmicas que descobrimos na história da Igreja, cada uma delas com uma ênfase particular, mas não exclusiva nem excludente, na relação com Deus: através da oração (o Pai), na realização da missão (o Filho) e na construção da comunhão (o Espírito Santo).

Uma primeira dinâmica, que acentua a busca de Deus na oração, na solidão, no encontro íntimo e pessoal, pode ser vista de modo mais claro, mas não exclusivo, nas origens da espiritualidade cristã e nas escolas da Igreja Antiga e Medieval. Uma segunda dinâmica espiritual, que procura Deus sobretudo na missão e no serviço aos mais fracos e mais necessitados de nossa sociedade, é mais típica das expressões da espiritualidade moderna. E, finalmente, uma dinâmica que procura Deus sobretudo na construção da comunhão com os outros seres humanos e com toda a criação, mais característica do período pós-Concílio Vaticano II.

Assim, estas três expressões da espiritualidade cristã não podem ser entendidas a partir da exclusão mútua, especialmente quando correspondem à dinâmica existente entre as pessoas divinas e à forma como nós podemos participar da vida de Deus. A partir dessa tripla compreensão das expressões da espiritualidade cristã, vamos propor um caminho pela história da espiritualidade cristã.

1.1 As espiritualidades no cristianismo antigo e medieval

A primeira expressão da vida espiritual cristã tem uma relação muito estreita com a pregação dos apóstolos e o que poderíamos chamar de espiritualidade evangélica ou apostólica, que foi se desenvolvendo em meio às perseguições da segunda metade do primeiro século. O fruto dessa experiência espiritual e da vida cristã dessas comunidades primitivas foram os escritos do Novo Testamento. Esse primeiro desenvolvimento da  espiritualidade cristã propunha as interpretações iniciais do que significa seguir o Senhor e as implicações para a vida das comunidades.

Mais tarde, no segundo e terceiro séculos, os padres apostólicos e apologistas tinham a tarefa de explicar a fé cristã e a forma como o evangelho deveria ser incorporado às culturas grega e romana, no meio das quais o cristianismo nasceu. Essa época também foi marcada pelas perseguições e pelo martírio. Além disso, deve-se ter em mente que se tratava de uma proposta de vida de fé que estava lentamente abrindo caminho em meio a comunidades simples no contexto do mundo mediterrâneo. No entanto, o crescimento contínuo do cristianismo nesses anos deveu-se, sem a menor dúvida, às radicais exigências que supunha o seguimento. Esta realidade paradoxal foi reconhecida no ditado popular que afirma: “Sangue dos mártires, semente de cristãos”.

Depois dos longos anos de perseguição e martírio, sobretudo após o Edito de Milão (313), promulgado pelo Imperador Constantino, e a consequente integração progressiva dos cristãos nas estruturas do Império romano, muitos cristãos buscaram, na solidão dos desertos, novas formas de viver a fé de acordo com as exigências evangélicas. Primeiro de modo individual, com uma vida eremítica, e mais tarde com uma vida em comum. Os Pais e as Mães do Deserto acompanharam o caminho de muitos crentes e reuniram suas práticas em regras que estabeleciam condições e modos de encontrar com Deus na oração e na vida comum.

Pode-se dizer que a era constantiniana não é simplesmente um tempo determinado da história, mas também um modo de ser Igreja no mundo; se desenvolveu uma forma de ser Igreja que se confundia com o poder do Estado; cristão passou a ser sobrenome para a economia, a cultura, a política, a filosofia e para a sociedade.

Depois de 313 se iniciam as conversões em massa; das pessoas, especialmente das altas classes econômicas e intelectuais, e das famílias de relevância política; foi um tempo de heresias; o espírito mundano foi abrindo espaço na Igreja, tanto entre os fiéis como no meio da hierarquia.

“A partir do século IV em diante, abre-se espaço para um tremendo contraste em relação à etapa anterior da Igreja: durante as perseguições, se batizavam somente os convertidos; a partir de agora a Igreja terá de converter os batizados” (GOMEZ, 1987, p.168).

Vale a pena recordar, aqui, um texto de Hilário de Poitiers (c. 315-367), escrito na época do imperador Constâncio, filho de Constantino, que indica a armadilha que o Império colocou para a vida cristã:

Oh Deus todo poderoso, quem me dera que o Senhor tivesse me concedido viver nos tempos de Nero ou de Décio…! Pela misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho, eu não teria medo dos tormentos, sabendo que Isaías havia sido mutilado… Eu teria me considerado feliz ao lutar contra seus inimigos declarados, já que em tais casos não haveria dúvida sobre aqueles que incitaram a renegar… Mas agora temos que combater um perseguidor insidioso, contra um inimigo enganador, contra o anticristo Constâncio. Este nos apunhala pelas costas, mas nos acaricia o ventre. Não confisca nossos bens, dando-nos assim a vida, mas nos enriquece para a morte. Não nos joga na cadeia, mas nos honra em seu palácio para sermos escravizados. Não rasga nossa carne, mas destrói nossa alma com seu ouro. Não nos ameaça publicamente com a fogueira, mas nos prepara sutilmente para o fogo do inferno. Não luta, pois tem medo de ser vencido. Ao contrário, bajula para poder reinar. Confessa Cristo para negá-lo. Ele trabalha a unidade para sabotar a paz. Reprime as heresias para destruir os cristãos. Honra os sacerdotes para que não haja bispos. Ele constrói igrejas para demolir a fé. Em todos os lugares ele carrega o seu nome nos lábios e em seus discursos, mas ele faz absolutamente tudo o que pode para que ninguém acredite que Você é Deus. (…)  Seu gênio supera o do diabo, com um triunfo novo e inédito: consegue ser perseguidor sem fazer mártires. (DE POITIERS, PL 10, p. 580-581, apud GÓMEZ, 1987, p. 170)

Neste contexto, acontece o movimento de fuga mundi, que levou milhares de cristãos aos desertos. Este modo de vida foi sistematizado a partir da Vita Antonii (c. 360), escrita por Santo Atanásio e, em seguida, por figuras como Santo Agostinho (354-430), Cassiano (c. 360-435), o pseudo Dionísio (séculos V e VI) e São Gregório Magno (540-604). Mas talvez a síntese mais completa da proposta monástica seja a de São Bento (480-547), autor de uma regra para os seus monges, que se espalhou por toda a Europa como um modo de vida e como um caminho espiritual que tem o único propósito da busca de Deus (SÃO BENTO, 2006).

O momento exato que indica a passagem da Antiguidade para a Idade Média é uma discussão que não foi definitivamente resolvida, comumente entendida como um processo que ocorreu desde a segunda metade do século V e o início do VI, particularmente a partir da queda do último imperador romano do Ocidente, Rômulo Augusto, deposto pelos alemães no ano 476. Esta transição política da Europa, que seguiu à queda do Império Romano no Ocidente, foi acompanhada por processos culturais, sociais e religiosos que foram interpretados como o início da Idade Média.

As expressões da espiritualidade cristã nesse período foram uma continuidade do caminho da vida monástica. Manteve-se a tradição segundo a qual homens e mulheres buscavam um encontro cada vez mais profundo com Deus através da convivência, do trabalho, da vida austera e, acima de tudo, da oração em comum. Consequentemente, ao longo deste período, que para alguns se estende até o século XV, houve muitos destaques na espiritualidade cristã, mas vale a pena mencionar os processos missionários na Irlanda (séc. V) e Inglaterra (séc. VI), e os movimentos de renovação do monacato, como o que aconteceu em Cluny (século X).

Mais tarde, aparecem a figura de Bernardo de Claraval (1091-1153) e a reforma cisterciense, que buscava um novo rigor na vivência da Regra de São Bento, dando mais força à segregação do mundo, à solidão, ao silêncio, à austeridade na vida pessoal e comunitária e ao trabalho simples. Um século depois (XII), veio a fundação da Cartuxa e um renascimento do eremitismo na Europa, insistindo mais na oração e ascese pessoais e na pobreza.

Ainda que em termos históricos não se tenha concluído o ciclo da Baixa Idade Média, há um fenômeno que faz pensar em uma nova etapa do caminho espiritual cristão. Até aqui, o destaque, ainda que não de modo exclusivo, esteve orientado à busca de Deus através da oração e de outras práticas ascéticas e espirituais, incluindo a vida em comum. A partir do século XII, com o surgimento dos cônegos regulares e, logo depois, com a criação das ordens mendicantes, no século XIII, aparece um elemento que vai ocupar o centro da espiritualidade cristã: a missão.

1.2 As espiritualidades da missão na modernidade

A reforma gregoriana iniciada na passagem do milênio produziu, entre outras coisas, um processo de renovação da vida do clero e da vida monástica, que já destacamos. Esse processo teve como efeito uma transformação na vida da Igreja e dos cânones regulares que conjugaram, de forma inédita, a vida monástica e o ministério clerical, buscando a presença de uma fé mais aberta no mundo. Junto a essa novidade no caminho espiritual cristão está o nascimento das ordens mendicantes, que são um desenvolvimento desta dinâmica espiritual que busca sair da clausura do monastério para viver em meio à sociedade, atendendo suas necessidades mais urgentes. As ordens mendicantes têm como características uma vida de pobreza pessoal e comunitária, uma atividade apostólica ou missionária, uma vida fraterna menos estruturada e uma maior mobilidade, o que contrasta com a estabilidade da vida monástica.

As escolas franciscana, dominicana e carmelita são as mais conhecidas e representam uma novidade que modifica a dinâmica espiritual cristã. Não se pode perder de vista que o nascimento dessas ordens religiosas ocorreu sem que as formas de vida monástica e as espiritualidades que as alimentavam deixassem de existir. As novas formas de vida e de busca de Deus, agora mais centradas na missão, abrem caminho em meio a um mundo que também foi se modificando, em direção a uma sociedade menos rural e mais centrada nas aldeias que foram surgindo.

Nessa fase da história surgiram também as ordens militares, os Cavaleiros de Malta, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, a Ordem dos Templários e dos Cavaleiros do Santo Sepulcro. Da mesma forma, surgiram ordens hospitalares, como a da Santíssima Trindade e a dos Mercedários. Todas elas, com a intenção de responder às necessidades de sua época, para as quais não havia resposta dentro da Igreja a partir da perspectiva da espiritualidade.

A dinâmica de transformação social, política, econômica e cultural deste período propiciou uma maior comunicação entre as pessoas, criando propagação maior das devoções populares e das associações de crentes, em torno de projetos comuns, ordens terceiras, irmandades, grêmios, associações e movimentos espirituais com maior autonomia frente às grandes instituições eclesiásticas. Os leigos se tornaram independentes dos mosteiros, paróquias e conventos e buscaram novas fontes de alimento espiritual. Nesse tempo, movimentos como os begardos, as beguinas, os Irmãos do Espírito Livre e outras formas de vida espiritual floresceram sob a proteção dos religiosos das novas ordens mendicantes. Pelo seu espírito independente e seu afastamento de fontes clássicas da vida espiritual, alguns destes movimentos se tornaram suspeitos de heresia e foram condenados pela Igreja.

Deve-se notar, nesse período, a contribuição da escola renano-flamenga, com figuras como os dominicanos Eckhart (c. 1260-1327), Taulero (c. 1300-1361) e Suso (c. 1295-1365), que viveram e sistematizaram experiências espirituais muito profundas que serviram de guia para a busca de um povo simples. Essa escola, unida à figura de João de Ruysbroek (1293-1382), deu origem ao que se conhece como a Devotio Moderna, que é “uma reinterpretação de toda a vida cristã no meio desse contexto de rupturas com tudo o que havia constituído a estrutura da cristandade medieval” (GÓMEZ, 1987, p.28-29). Essa corrente renovadora da espiritualidade propunha ênfase maior na prática das virtudes, chegando a apresentar uma ruptura entre a vida de piedade e a teologia. O caminho em direção a Deus não era a reflexão teórica, mas a vida de penitência e caridade prática.

Podemos destacar como características da Devotio Moderna a grande importância que é dada à interioridade, que faz com que se desenvolva uma piedade mais privada e subjetiva e se rechace o sacramental e o litúrgico; a solidão, o silêncio e o desprezo do mundo são mais importantes. Frente a uma tendência mais racional e especulativa, a Devotio Moderna desenvolve o aspecto afetivo e dá mais relevância ao que vem do “coração”. Ao buscar a proximidade com Deus, leva-se em consideração a vontade, o coração e a devoção, e menos a reflexão e a razão. Neste sentido, a ascese é fundamental; valoriza-se mais o esforço da vontade do que a ação direta da graça, que faz com que a Devotio Moderna desenvolva um moralismo prático. Por outro lado, concentram-se na meditação das virtudes e exemplos de Jesus, tal como se encontram em uma leitura simples (e sensível) dos Evangelhos. Daí a importância e centralidade da “imitação de Cristo” como um modelo da vida do crente.

Seguindo os passos desta proposta de espiritualidade popular, espalhada por toda a Europa, acontece na Espanha um período de grandes reformas, lideradas inicialmente por membros das ordens mendicantes, mas dando lugar, mais tarde, a grandes figuras como Inácio de Loyola (1491-1556), Juan de Ávila (1499-1569), Teresa de Jesus (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591). Este período significou um fortalecimento da experiência espiritual a partir de uma perspectiva eclesial e missionária em um contexto europeu que vivia o rompimento da Reforma protestante.

No século XVII, o dinamismo da espiritualidade cristã esteve centrado na França, onde floresceram propostas como a de Francisco Sales (1567-1662), conhecida como o “humanismo devoto”, ou a do cardeal Bérulle (1575-1629) e alguns de seus seguidores –  João Jacobo Olier (1608-1657), João Eudes (1601-1680) e Vicente de Paula –, reconhecidos também como representantes da “Escola francesa”.

Um capítulo à parte poderia ser escrito com o desenvolvimento, durante os séculos XVI e XVII, da espiritualidade da Reforma protestante, que tinha sua própria dinâmica sob a liderança de Martinho Lutero, João Calvino e da escola Anglicana, para mencionar apenas os autores mais proeminentes.

Os séculos XVIII e XIX permitiram o nascimento de uma espiritualidade iluminista, desenvolvida no ritmo das transformações desses séculos. Surgiram escolas espirituais que responderam às necessidades da juventude, como a de João Bosco (1815-1888); da pastoral paroquial, com figuras como João Maria Vianney (1786-1859) e Antonio Maria Claret (1807-1870); de fortalecimento dos leigos com uma proposta de contemplação ativa, como a de Charles de Foucauld (1858-1916); e de um sentido cósmico de salvação, como proposto por Teilhard de Chardin (1881-1955).

Poderíamos sintetizar a dinâmica da espiritualidade cristã desde o final da Idade Média até o fim da era Moderna como uma infinidade de buscas para realizar a missão de Cristo no mundo. A busca por Deus através da oração continuou sendo base de todas as propostas, mas a missão de Cristo no meio do mundo tornou-se o centro das buscas espirituais.

É impossível apontar datas exatas ou momentos específicos de mudanças históricas, nem é possível dividir os momentos na história da espiritualidade cristã com precisão. Mas, com o Concílio Ecumênico Vaticano II, vemos o nascimento de uma nova etapa no desenvolvimento da espiritualidade cristã, que tentaremos caracterizar para encerrar a síntese proposta neste texto.

1.3 As espiritualidades de comunhão na Igreja contemporânea

O Vaticano II centrou seu trabalho na recuperação das fontes originais da fé e, portanto, também da espiritualidade. Essas fontes, Palavra de Deus (Dei Verbum), a Igreja (Lumen Gentium), a liturgia (Sacrosanctum Concilium) e a história (Gaudium et Spes), foram definitivas na configuração de uma proposta nova no âmbito espiritual. Poderíamos dizer que o termo que melhor caracteriza esse momento vivido pela espiritualidade cristã, muito coerente com a dinâmica trinitária que queríamos seguir nesta escrita, é “comunhão”, um termo amplamente utilizado no Novo Testamento como expressão própria das primeiras comunidades cristãs. Nos documentos do Concílio Vaticano II, a palavra “comunhão” aparece 112 vezes e o termo “comunidade”, 183 vezes.

Comunhão e comunidade se destacam, pois, como conceitos-chave nos ensinamentos do Concílio, termos que não se referem a um problema de estrutura da Igreja, nem a uma questão administrativa, ainda que isso não seja descartado. O que o Concílio quer salientar é a natureza da Igreja, ou, como diz o próprio Concílio, o mysterium da Igreja. Muda a ênfase de uma eclesiologia mais preocupada com as formas externas da organização eclesial para uma concepção mais voltada para seu interior, para a sua constituição fundamental.

Esta característica da eclesiologia conciliar, que determina uma nova forma de compreender e viver a espiritualidade, convida a orientar o olhar em três direções: a comunhão com Deus, a comunhão na Igreja e a comunhão com toda a criação. Por esta razão, as novas expressões de espiritualidade buscam a participação na vida de Deus, condição que possibilita a fraternidade entre os homens e com a criação.

Talvez este aspecto eclesiológico de comunhão seja o que mais se desenvolveu, tanto nos estudos teológicos do pós-Concílio, como nas propostas espirituais desse tempo. Um espírito de corresponsabilidade foi gerado em todos os níveis da vida da Igreja: conselhos paroquiais e diocesanos; sínodos diocesanos e de bispos; conferências episcopais, conferências de superiores e religiosos; associações, movimentos e organizações de leigos que buscam um objetivo comum. Essas estruturas facilitaram a participação de todos os grupos e ministérios da Igreja na tentativa de criar laços verdadeiros de comunhão e participação. São estruturas colegiais em que se buscou uma autêntica participação dos leigos, que tinham atividade e iniciativa bastante limitadas nos modelos eclesiais anteriores.

A participação e a corresponsabilidade tornaram-se a forma mais clara de expressar a prioridade da comunidade no novo modelo eclesial que se desenvolveu a partir do Vaticano II. Tomando as palavras de Jean Marie Tillard, poderíamos dizer que nada escapa ao abraço comunitário, no qual somos introduzidos através do batismo e que tem seu ápice na eucaristia. A partir do Concílio, a comunidade, tanto como expressão como por seu conteúdo, tornou-se um elemento central da teologia e da prática da Igreja, reavivando, assim, a consciência de todo o povo de Deus como sujeito. Isso significou, como já sugerimos, uma transformação na forma de compreender a unidade da Igreja, mais preocupada com a comunidade trinitária, em que as diferenças não são eliminadas, mas entendidas como complementos necessários.

Uma expressão se sobressai, nessa terceira etapa do desenvolvimento da espiritualidade cristã contemporânea, o movimento pentecostal, que invade as igrejas cristãs com grande força e muitos elementos em comum. Este movimento  enfatiza a ação do Espírito Santo na vida do povo e das comunidades, convidando a desenvolver os carismas particulares, que devem atuar na edificação do corpo do Senhor. As curas, os exorcismos, os milagres que produzem a força libertadora do Espírito e a expressão alegre da celebração litúrgica são característicos deste movimento, que se desenvolve de modo mais perceptível nos continentes mais empobrecidos como a África, a Ásia e a América Latina.

A dinâmica espiritual dessa fase final do nosso percurso salienta a busca da comunhão com Deus, com os irmãos e com a criação. Não se trata apenas de buscar Deus, mas de participar com Ele em sua vida… não é apenas uma questão de realizar muitas ações de caridade, de continuar a missão do Filho, mas comungar com Ele em sua ação. Não é mais apenas entrar em comunhão com Deus e com os outros, mas descobrir a importância de entrar em comunhão também com a criação, tornando-nos responsáveis pelo nosso ambiente. A partir dessa perspectiva, abrem-se propostas espirituais que têm um sentido mais ecumênico, mais aberto ao diálogo com outras religiões e outras culturas, com destaque especial para os mais vulneráveis da sociedade, os mais pobres, os marginalizados e rejeitados de nossa sociedade, tornando-nos atentos ao surgimento de novas subjetividades que se convertem em chamadas de Deus para construir a comunhão.

Conclusão

Na intenção de reconstruir a história da espiritualidade cristã, objetivou-se seguir a dinâmica que se vive no interior da Trindade, entre o Deus-Pai Criador, que está sempre deixando-se buscar pelo ser humano, o Deus-Filho, que se revela na história através de sua missão, e o Deus-Espírito Santo, que constrói permanentemente a comunhão com Deus, com os outros e com a criação.

Estamos convencidos que esta dinâmica de Deus pode ajudar a entender a história da espiritualidade cristã, mas não pode encerrá-la de modo definitivo. O Deus que nos busca e que se deixa buscar esteve e estará sempre presente ao longo da história que tentamos reunir. O Deus que convida a compartilhar sua missão, especialmente atendendo de modo preferencial os membros mais feridos do corpo de Cristo, sempre necessitará de nosso apoio para continuar essa tarefa imensa de curar os mais fracos e dar vida aos que necessitam. O Deus que constrói sempre a comunidade e que nos faz seus instrumentos para realizar a comunhão no meio do mundo, com Ele mesmo, com os outros e com toda a criação, sempre estará trabalhando em nós e conosco nesta obra.

Herman Rodriguez Ozorio, SJ. Pontifícia Universidade Javeriana. Texto original em castelhano.

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