Justiça Social

Sumário

1 Status questione

2 Escolástica-tomista

3 Da justiça legal à justiça social

4 Doutrina Social da Igreja

5 Novos enfoques e perspectivas

6 Sistematização

7 Referências bibliográficas

1 Status questione

Ao se adentrar em um tema de tamanha complexidade, nos cabe indagar a possibilidade de realização da Justiça Social a partir das condições evidenciadas na realidade. As desigualdades sociais vêm aumentando. Para os defensores de um sistema capitalista neoliberal, a desigualdade não só é necessária, mas ela está na “essência” deste modelo de sociedade. A forte rejeição do capitalismo liberal à justiça social é um dado relevante. Ludwig von Mises, um expoente da Escola Austríaca de economia, justifica a desigualdade social nos seguintes termos: “A desigualdade de renda e de riqueza é uma característica essencial da economia de mercado. Sua eliminação a destruiria completamente” (MISES, 2010, p. 347-948).

Friedrich Hayek, um dos principais ícones do pensamento neoliberal, expressa toda sua aversão ao conceito de justiça social. Primeiro, desclassifica a Igreja:

Parece ter sido abraçada por amplo segmento do clero de todas as tendências do cristianismo, as quais, à medida que perderam a fé numa revelação sobrenatural, parecem ter buscado refúgio e consolo numa nova religião “social” que substitui uma promessa celeste de justiça por outra temporal, e esperam poder assim prosseguir na sua missão de fazer o bem. A Igreja Católica Romana, especialmente, fez da meta de “justiça social” parte de sua doutrina oficial (HAYEK, 1985, p. 84).

Ato seguido, desclassifica seus teóricos:

A expressão “justiça social” não é uma expressão ingênua de pessoas de boa vontade para com os menos afortunados, tendo, antes, se tornado uma insinuação desonesta. Para que o debate político seja honesto, é necessário que as pessoas reconheçam que a expressão é desonrosa do ponto de vista intelectual, símbolo de demagogia ou do jornalismo barato, que pensadores responsáveis deveriam envergonhar-se de usar (HAYEK, 1985, p. 118).

A Doutrina Social Igreja (DSI) é reconhecida até pelos seus maiores adversários como defensora da justiça social. A desigualdade social é intolerável e a humanidade vive uma grave situação de injustiça social provocada por uma economia que mata. A justiça é um conceito em torno do qual se estrutura o cristianismo (cf. verbete Fé e Justiça). Não se trata apenas de distribuição de renda.

Além das formas tradicionais de justiça herdadas do pensamento clássico (legal/geral, distributiva, corretiva), a DSI apresenta a categoria de justiça social:

 O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: a comutativa, a distributiva, a legal. Um relevo cada vez maior no Magistério tem adquirido a justiça social, que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da justiça geral, reguladora das relações sociais com base no critério da observância da lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções. (CDSI, 2005, n. 201)

 2 Escolástica-tomista

O conceito aristotélico-bíblico-patrístico de justiça foi reinterpretado na escolástica. Santo Tomás de Aquino, no Tratado Da Iustitia, introduziu o termo na teologia e o inseriu no quadro das virtudes, reformulando assim a justiça legal de Aristóteles (ST II-II qq. 58-122). Seu estudo é imprescindível para compreender o conteúdo da justiça social. A justiça é a disposição de caráter que faz as pessoas agirem justamente e desejarem o que é justo. É a virtude que rege as relações humanas. O homem justo (dikaios) é aquele que respeita as leis (justiça absoluta) e a igualdade (justiça particular). Ser justo é viver dentro da legalidade e respeitar a igualdade.

Na justiça geral, um ato justo é aquele em conformidade com a lei. A lei estabelece como devidas aquelas ações necessárias para que a comunidade alcance o bem comum e a eudaimonia. O termo “geral” refere-se à sua abrangência. A justiça particular é pautada pela noção de igualdade e subdivide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. Justiça distributiva se exerce nas distribuições de honras, riquezas e tudo aquilo que pode ser repartido. Na distribuição, considera-se a qualidade pessoal do destinatário. Na oligarquia, o critério de distribuição é a riqueza; na democracia, o cidadão livre; na aristocracia, a virtude. A justiça corretiva visa o restabelecimento do equilíbrio nas relações privadas, voluntárias (contratos) e involuntárias (ilícitos civis e penais).

Tomás de Aquino dá continuidade à tradição aristotélica, acrescentando-lhe elementos do Direito Romano, da Patrística e da Sagrada Escritura. Para designar a justiça geral, Tomás utiliza o termo justiça legal, uma vez que os atos devidos à comunidade para que alcance o bem comum estão dispostos em lei. Esta justiça diz respeito àquilo que é devido ao outro em comunidade. O objeto da justiça legal é o bem de todos. A justiça distributiva é aquela que reparte proporcionalmente o que é comum, trate-se de bens ou encargos, e visa garantir a igualdade na distribuição dos deveres e direitos. A justiça corretiva aristotélica é denominada comutativa em Tomás.

 3 Da justiça legal à justiça social

No século XIX os neotomistas recuperam o conceito de justiça legal em nova perspectiva. A Ilustração, o estado de direito e o liberalismo exigem repensar o conceito de justa distribuição. Seguindo Charles Taylor (TAYLOR, 2000, p. 242), a base de identificação social nas sociedades hierárquicas é a noção de honra. A honra é um pré-conceito de cada pessoa em sua condição que define privilégios e distinções por ocupar uma determinada posição (status). Em sociedades hierarquizadas, a justiça distributiva será o princípio ordenador da vida social. A regra de distribuição será: a cada um segundo sua posição social. Na sociedade democrática, na qual todos possuem a mesma “relevância”, substitui-se a noção de honra pela “noção de dignidade usada em sentido universalista e igualitário que permite falar de dignidade inerente aos seres humanos (…). A premissa é que todos partilham desta dignidade” (TAYLOR, 2000, p. 242). Ora, se a igualdade fundamental não é proporcional, mas absoluta, a justiça distributiva não pode ser o princípio ordenador da sociedade, mas sim a justiça legal, fundada na igualdade fundamental de todos os seres humanos. Como todos os membros de uma sociedade são iguais perante a lei, a justiça legal converte-se em justiça social, aquela em que todos têm o mesmo valor, e todo ato em conformidade com a lei beneficia a todos. O meio utilizado para alcançar o bem comum é o sujeito do bem comum – a sociedade em seus membros – justificando a mudança de denominação, de justiça legal para justiça social.

Neste contexto de transição, Louis Taparelli d’Azeglio (1793-1862), teólogo neotomista da Universidade Gregoriana, foi o primeiro a utilizar a expressão “justiça social” na obra Saggio teoretico di diritto naturale. Preocupado com as consequências do liberalismo, da rápida expansão do capitalismo, através da Revolução Industrial, este autor buscou uma base teológica que sustentasse a doutrina moral da Igreja. E conseguiu, pois seu pensamento influenciou a elaboração da Rerum Novarum. Porém, a expressão justiça social suscitou controvérsias entre setores conservadores da hierarquia e o “catolicismo social europeu”, pois se suspeitava de certa influência socialista. Esta parece ser a razão pela qual não foi adotada por Leão XIII.

Taparelli parte do pressuposto da existência de dois direitos. O direito individual refere-se a Deus e a si mesmo. O direito social especifica as relações humanas e deve fundamentar a justiça social. “A justiça social é a justiça entre homem e homem”. Entre os homens considerados somente em sua humanidade, sua racionalidade e liberdade, existem “relações de perfeita igualdade, por que homem e homem aqui não significa senão a humanidade reproduzida duas vezes” (TAPARELLI d’AZEGLIO, 1840-1843). A justiça social, portanto, em uma sociedade na qual as posições ocupadas por cada um são consideradas secundárias em matéria de justiça, tem por objeto aquilo que é devido ao individuo somente pela sua condição humana.

Os católicos sociais franceses do final do século XIX, principais responsáveis pela difusão do termo “justiça social” na Europa, também a vincularam à justiça legal. Antoine, em Cours d’économie sociale (1899), desenvolve uma teoria da justiça, em que reitera os significados de justiça legal, justiça distributiva e justiça comutativa. A justiça legal é a vontade constante dos cidadãos de dar à sociedade o que lhe é devido, a disposição habitual para contribuir, sob a direção da autoridade suprema, ao bem comum, eis o que nós chamamos de justiça legal. Portanto, ela se identifica com a justiça social, uma vez que há identidade de objeto, o bem comum. A justiça social consiste na observância de todo o direito, tem o bem comum por objeto e a sociedade civil como sujeito. A sociedade civil só existe na totalidade dos seus membros e todos eles devem colaborar na obtenção do bem comum (sujeito da justiça social) e todos devem participar do bem comum (termo da justiça social).

Em âmbito alemão, onde também há um retorno ao neotomismo, os editores da importante revista Stimmen aus Maria-Laach, Pesch, Gundlach, Messner, Nell-Breuning e Tischleder adotaram a expressão justiça social. Este fato foi decisivo para que o termo fosse acolhido pelo Magistério, pois tais autores colaboraram de forma decisiva na elaboração da encíclica Quadragesimo anno (1931), de Pio XI. Antes, somente Pio X, na encíclica Iucunda sane (1904), que comemorava São Gregório Magno, utilizou o termo ao qualificar o santo como defensor da justiça social. O conceito aparece na encíclica Studiorum Ducem (29 junho 1923), por ocasião do sexto centenário de canonização de Tomás de Aquino. Nela, Pio XI afirma que nos escritos do Aquinate encontram-se as refutações das teorias liberais da moral, do direito e da sociologia.

 4 Doutrina social da Igreja

O desenvolvimento do conceito de justiça social a partir da tradição aristotélico-tomista recebe impulso nas Encíclicas Sociais. O conceito foi introduzido por Pio XI na Quadragesimo Anno (1931). O termo é citado sete vezes e sempre acompanhado dos adjetivos comutativa, legal/geral. Trata-se de um conceito que traz exigências precisas, tendo como critério a dignidade humana, tal como definiu Taparelli.

A economia é seu campo de aplicação mais imediato. Para Pio XI, existe uma lei de justiça social que deveria reger qualquer modelo econômico:

 É necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros. (Q A 57)

Aplica-se à esfera econômica com a mesma universalidade da justiça legal. Portanto, “cada um deve, pois, ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social” (Q A 58). Também em Santo Tomás de Aquino a justiça legal ordena o homem imediatamente ao bem comum.

A justiça social considera o ser humano na sua condição de pessoa humana, seus direitos e deveres como membro da sociedade. Assim como todos têm obrigações, todos têm benefícios, uma vez que o bem comum realiza-se somente “quando todos e cada um tiverem todos os bens que as riquezas naturais, a arte técnica, e a boa administração econômica podem proporcionar.” (Q A 75). Na ordem econômica, a fórmula da justiça social seria: todos os bens necessários para todos.

Ainda na esfera da economia, o mundo do trabalho é o campo principal de aplicação da lei da justiça social. O salário é um dos seus instrumentos principais. Para valorizar com justiça o trabalho, deve-se considerar sua dimensão pessoal e social (QA 69). O bem comum exige que se promovam postos de trabalho como condição de segurança e bem estar. O desemprego é um reflexo de uma economia injusta. A justiça social deve regular e determinar o salário do operário e de sua família, dispensando a exploração do trabalho infantil e da mulher (Q A 71).

A justiça social não se aplica somente ao campo econômico. Também “as instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça social” (Q A 110). Os seres humanos, considerados como pessoas, são iguais e, portanto, toda desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, como é o caso das suas necessidades materiais básicas, deve ser eliminada. Não basta apelar à moralidade nas relações entre empresários e trabalhadores, pois o sistema de produção se desenvolve no interior de uma estrutura social. A justiça social inspira a reforma das instituições. O Estado tem um papel insubstituível na aplicação desta lei (Q A 79), sempre em colaboração entre Estado, empresa e sociedade: “É preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública” (Q A 88).

O Concílio Vaticano, na Gaudium et spes, confere duas fundamentações teológicas decisivas. A primeira é a dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus:

 A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião (…) Com efeito, as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional (GS 29).

A segunda fundamentação encontra-se na referência “à criação de algum organismo da Igreja incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações” (GS 90). A justiça social como exigência da dignidade humana tem alcance global e encontra sua fundamentação teológica no principio do destino universal dos bens: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade” (GS 69). Paulo VI, seguindo esta orientação do Concílio, cria a Comissão de Justiça e Paz (Motu próprio Catholicam Christi Ecclesiam, 6 janeiro1967).

João Paulo II mantém a justiça social como um eixo da doutrina social da Igreja. Para ele, a “questão social” é identificada como questão de justiça social em cuja origem se encontram as estruturas de pecado e os mecanismos perversos (Sollicitudo rei socialis). Ao situar o trabalho humano como chave da questão social, o compromisso com a justiça se concretiza, em primeiro lugar na luta pelos direitos trabalhistas (Laborem exercens). A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das exigências de justiça social e os sindicatos são os expoentes desta luta (LE 8). Bento XVI, em Caritas in veritate, recorda que a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que têm a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza (CiV 35).

Caberá ao papa Francisco ampliar o conceito de justiça social (TORNIELLI e GALEAZZI, 2016; FRANCISCO, 2016). Na Evangelii Gaudium, o pontífice recorda que “ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, pois ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (EG 201). E destaca que a justiça social deve estar na pauta do diálogo entre as religiões: o diálogo inter-religioso, fundado na atitude de abertura na verdade e no amor, deve procurar a paz e a justiça social, é um compromisso ético que cria novas condições sociais (cf. EG 250).

Na Laudato sí, o pontífice insere a justiça social no paradigma do cuidado da casa comum:

muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas (…) Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (LS 49).

O cuidado da casa comum aponta para a justiça intergeracional:

 Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que virão (LS 159).

 5 Novos enfoques e perspectivas

Na Conferência de Medellín (1968), o CELAM dedicou um documento inteiro ao tema da justiça. Nele, se denuncia que “a miséria marginaliza grandes grupos humanos em nossos povos. Essa miséria, como fato coletivo, é qualificada de injustiça que clama aos céus”. E proclamava a força libertadora do cristianismo: “Cremos que o amor a Cristo e a nossos irmãos será não somente a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social” (DM, Justiça, 1).

Em Puebla (1979), os bispos contemplaram a justiça social como um direito social que integra o processo de evangelização. “Os povos deste continente têm direito à educação, à associação, ao trabalho, à moradia, à saúde, ao lazer, ao desenvolvimento, ao bom governo, à liberdade e justiça social, à participação nas decisões que concernem ao povo e às nações” (DP 1272).

Em Aparecida, o conceito foi ampliado de forma notável. “Reino de Deus, justiça social e caridade cristã” é o título do primeiro item do capítulo 8. A justiça social se insere no amplo contexto do anúncio do Reino de Deus e da promoção da dignidade humana. Primeiramente, recorda que as obras de misericórdia estejam acompanhadas pela busca de uma verdadeira justiça social (DAp 385).

Em seguida, destaca que os novos pobres que emergem na atualidade transcendem a dimensão socioeconômica da justiça social:

 os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados (as), os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros. (DAp 402).

A justiça social não se reduz a políticas de distribuição mais equitativa da renda e riqueza. Um novo tipo de demanda articula a equidade econômica ao reconhecimento de grupos discriminados. A Igreja reconhece a partir da fé as sementes do Verbo presentes nas tradições e culturas dos povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias (cf. DAp 529-530). Também apoia “o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social” (DAp 533).

Entidades e movimentos organizados em torno da etnia, do povo, do gênero e da sexualidade, da profissão lutam para que suas identidades sejam reconhecidas. A reivindicação é ser “reconhecido” como ser humano em sua constituição plena” (HONNETH, 2003). A injustiça social também se expressa em formas de  discriminação cultural. As injustiças de natureza simbólica decorrente de modelos sociais de representação excluem o “outro” através de seus códigos de interpretação e de valores morais. Em muitos casos, a injustiça econômica é ampliada por este tipo de injustiça. As duas formas se reforçam. O pobre não é apenas pobre econômico, mas também é negro, é indígena, é mulher, é gay, é transexual etc. A superação da injustiça cultural está no reconhecimento das diversidades das identidades e seus modelos sociais de representação. Política de reconhecimento e política de redistribuição integram o conceito de justiça social. Ao combate à desigualdade socioeconômica somam-se as lutas pelo fim das discriminações. Uma ampla justiça social visa responder às duas reivindicações. O campo da justiça social é, simultaneamente, a redistribuição e o reconhecimento (FRASER, 2001).

 6 Justiça socioambiental

A distribuição dos bens, as taxas e responsabilidade pelo cuidado são o foco da justiça ambiental. As questões que envolvem a ecologia e a desigualdade social entrelaçam-se no conceito de justiça socioambiental. A definição clássica de justiça: “dar a cada um o que lhe corresponde” aplica-se também aos recursos naturais, não apenas aos direitos econômicos e sociais. A natureza é um bem público que todos os seres humanos devem desfrutar. A justiça social é um dos quatro tópicos da Carta da Terra: respeitar e cuidar da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social e econômica; democracia, violência e paz. As atividades e instituições econômicas em todos os níveis deveriam promover, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual. Eliminar a discriminação em todas as suas formas, como as baseadas em raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.

A quem pertencem as reservas de petróleo, os rios, as florestas, a atmosfera? Existem, em linhas gerais, os seguintes enfoques (IBANEZ, 2012): na justiça climática, os pobres são vistos como as principais vítimas da crise ambiental provocada pelos ricos. Portanto, os principais culpados pela crise devem pagar por ela; a justiça ambiental entende que o lixo tóxico e a sucata são depositados nos territórios mais pobres e nas periferias, afetando grupos específicos: afrodescendentes (racismo ambiental), pobres (classismo ambiental), mulheres (sexismo ambiental). Esta visão propõe uma distribuição mais justa dos recursos naturais de tal forma que nenhum grupo social possa ser prejudicado; os defensores da justiça ecológica incluem os animais não humanos na distribuição; a justiça socioambiental intergeracional contempla as gerações futuras como destinatárias da justiça.

7 Sistematização

O bem comum é o conteúdo da justiça social. A justiça social regula as relações do indivíduo com a comunidade na sua condição de membros da comunidade. Na justiça social, visa-se diretamente o bem comum e, indiretamente, o bem deste ou daquele individuo particular. O ser humano é considerado em comunidade.

O reconhecimento é a atividade própria da justiça social. Ela visa regular a prática social de considerar o outro como sujeito de direito (ou pessoa), como um ser que é “fim em si mesmo e possui uma dignidade” (Kant). Um sujeito de direito somente se constitui como tal se for reconhecido por outro sujeito de direito. A justiça social diz respeito a esta prática de mútuo reconhecimento no interior de uma comunidade. Ela suprime toda a sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os outros. Na medida em que os demais membros não reconhecem os direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer os direitos dos demais. O sujeito da justiça social é a alteridade.

A pessoa humana é um ser concreto existente. Tem uma natureza humana, um todo em si mesmo, não podendo ser reduzida a uma parte de um todo maior. A ela são devidos todos os bens necessários para sua realização nas dimensões concreta, individual, racional e cultural. A igualdade básica de cada pessoa é a igualdade nesta dignidade como conceito fundador da experiência jurídico-política contemporânea.

Mesmo que a justiça distributiva, aplicando critérios pertinentes, como a “cada um segundo sua contribuição” e “a cada um segundo sua necessidade”, esteja presente na partilha dos bens produzidos, ainda assim, o sistema econômico pode ser injusto do ponto de vista da justiça social, se viola a dignidade da pessoa humana (Mater et magistra 82).

Para determinar o que é devido em um caso concreto, em termos de justiça social, não basta seguir os cânones de igualdade proporcional da justiça distributiva, mas faz-se necessário atentar para os bens de que o ser humano é merecedor em virtude da sua condição humana. A justiça social contempla as seguintes dimensões: socioeconômica, jurídico-político-institucional, sociocultural, moral/subjetiva.

A justiça social é a sistematização, em termos da teoria da justiça, do valor da dignidade da pessoa humana presente no desenvolvimento da civilização: age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Kant). “Como quereis que os outros vos façam, fazei também vós a eles” (Lc 6, 31).

 Élio Gasda, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte). Texto original português.

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