A riqueza espiritual das religiões. O que nos ensinam as outras religiões a respeito da espiritualidade?

Sumário

1 Introdução

2 O diálogo da experiência religiosa

2.1 O olhar contemplativo

2.2 O reconhecimento da transcendência

2.3 A dádiva e a sacralidade da vida

2.4 A conexão humanidade/natureza

2.5 O hábito da oração

2.6 A prática das virtudes

2.7 A iniciação e o discipulado progressivo

3 Conclusão

4 Referências bibliográficas

1 Introdução

As religiões preservam um patrimônio espiritual valioso e plural, pois registram um conjunto significativo de experiências, valores, métodos e itinerários espirituais que, no curso dos séculos, têm inspirado milhares de pessoas e comunidades. Ao lado do cristianismo, esse patrimônio compõe o tesouro milenar da experiência religiosa humana, objeto não só de estudo, mas também de diálogo entre os seguidores das diferentes religiões. Com efeito, o diálogo da experiência religiosa é uma via específica do diálogo inter-religioso que tem promovido o encontro, a compreensão recíproca e a convergência das religiões em aspectos comuns, como a valorização da transcendência, a visão sagrada do tempo e do cosmos, o respeito pela pessoa humana, a promoção da justiça, o cuidado ecológico e a paz.

Considerando a abrangência do tema para a História das Religiões, a Teologia e a Espiritualidade Cristã, buscou-se apresentar, aqui, uma seleção de elementos que nos permita perceber e apreciar a riqueza espiritual das religiões, tendo presente nossa identidade cristã. Assim, foram elencados os elementos espirituais que respondam a dois critérios: de um lado, que sejam característicos de um determinado credo, pertencendo à sua herança própria; de outro, que sejam significativos à fé cristã, porque dialogam com as perspectivas teológicas do cristianismo e favorecem o aprofundamento da própria espiritualidade cristã.

Há quem admita que certos elementos da experiência mística das religiões possam ser assumidos seletivamente pela fé cristã, à medida que – respeitado o dado revelado – contribuem para o aprimoramento de métodos e percepções da espiritualidade cristã, como a postura apofática diante do Absoluto (budismo), os métodos de concentração no ato de meditar (hinduísmo), o vínculo com a natureza criada (culto de Orixás) ou o abandono confiante de si mesmo a Deus (Islã Sufi). Outros se posicionam mais no campo da observação que da assunção: estudam e apreciam positivamente os elementos espirituais das religiões, mas assumem somente aqueles típicos da tradição judaica já presentes nas Escrituras, na Liturgia e/ou na tradição Patrística.

Trata-se de um debate em curso, que envolve fenomenólogos, teólogos e missionários cristãos (cf. CUTTAT, 1996; BASSET, 1996; NATALE TERRIN, 2003; DUPUIS, 2004). No passado, os ritos sacramentais assumiram material simbólico dos cultos mediterrâneos, sem perder o sentido pascal; os hesicastas aplicavam disciplina mental e controle da respiração, ao modo oriental, para orar com a mente e o coração; e Santo Agostinho integrou a perspectiva personalista do platonismo em seu caminho de conversão ao Evangelho (cf. CUTTAT, 1996, p.763-73).

Recentemente, tanto o magistério da Igreja quanto a reflexão teológica têm discernido essas questões à luz das seguintes afirmações de fé: a vontade salvífica de Deus é universal e há um só plano redentor para toda a humanidade (Ef 1,9-10; 1Tm 2,4-6); a mediação salvadora de Jesus – o Verbo de Deus – é objetivamente universal, até mesmo para quem não o conhece, nem o professa como Salvador (Jo 1,3-4; Col 1,15-17); o Espírito Santo ilumina a inteligência e suscita a oração autêntica de todos os que buscam Deus com sinceridade, em qualquer cultura e credo (Sab 1,6-7; At 17,27-28); toda pessoa humana é “imago Dei” (imagem e semelhança de Deus) enquanto criatura, já antes do batismo, destinada a conhecer e amar o Criador que a ela se revela (At 17,28; Col 1,15-16); enfim, que há uma Revelação geral de Deus a todos os povos, além da tradição judaico-cristã, pela qual o Verbo se manifesta e estabelece com a humanidade um diálogo de salvação (Mt 2,1-2; Rm 1,19-20); pois “Deus não faz discriminação entre pessoas: pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).

Como se percebe, a explanação desses pontos supera as linhas deste verbete. Para um estudo mais detalhado, leiam-se os documentos: “Diálogo e anúncio” (Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso), “O cristianismo e as religiões” (Comissão Teológica Internacional) e “Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã” (Congregação para a Doutrina da Fé).

 2 O diálogo da experiência religiosa

 Ao lado da convivência cotidiana, da promoção conjunta do bem comum e do intercâmbio teológico, o diálogo inter-religioso se dá também no nível da “experiência religiosa, onde pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto” (Diálogo e anúncio n.42d). É neste nível que se pode indagar, como cristãos, o que as outras religiões podem ensinar a respeito da espiritualidade, no sentido aproximativo esclarecido acima (cf. Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16). Em resposta a isso, propomos aqui sete tópicos de aprendizado dialógico, em que a vivência da espiritualidade cristã se vê positivamente interpelada a desenvolver-se e aprofundar-se, com ênfases distintas e/ou complementares, em face das demais religiões:

 2.1 O olhar contemplativo

Nas diversas culturas, as religiões cultivaram o olhar contemplativo sobre o universo, o devir do tempo, as demais pessoas e as criaturas em geral. Desenvolveu-se, assim, uma abordagem da vida, do tempo e do espaço não restrita ao que se pode medir e explicar por cálculo, mas que descortina uma episteme (modo de conhecer) de estilo conjuntivo e simbólico. O ser humano se percebe pequeno diante da imensidão dos céus, mas intimamente conexo com o mundo, o qual contempla com curiosidade e reverência. Ao observar o céu, intui-se o infinito; ao seguir o fluxo das estações, percebe-se o impulso vital da natureza; ao celebrar nascimentos e mortes, indaga-se sobre o além. A vida revela-se muito mais fluente e complexa do que poderiam explicar as equações da química e da mecânica.

O olhar contemplativo educa-nos a procurar as causas primeiras, o tempo antes do tempo, o começo primordial de todas as coisas, a partir de onde podemos interpretar o presente e vislumbrar o futuro. Assim, as religiões sugerem emblemas do mundo, em símbolos e narrativas que comunicam sentido e educam à contemplação (cf. MAÇANEIRO, 2011, p.111-25). O Hinduísmo entrevê a unidade de todas as coisas por trás da multiplicidade dos fenômenos; o budismo fala da provisoriedade do tempo e do espaço, cuja consistência está além do que podemos enxergar; a cabala judaica descobre uma “cadeia de esferas” (sephirot) interligadas, contendo centelhas divinas que se combinam para criar os corpos, da pequena célula às grandes estrelas; o Islã reverencia a potência criadora da Palavra divina, que fez o mundo visível e o invisível; o culto de Orixás diz que tudo se mantém pela energia (axé), que se direciona ao propósito de manter o equilíbrio humano e cósmico (obá).

Considerando que nós, cristãos, vivemos predominantemente no Ocidente, dominado pela racionalidade analítica e instrumental, aprendemos – com as demais religiões – a preservar e atualizar nosso olhar contemplativo: intuitivo, mas não ingênuo; buscador das causas e aberto ao futuro; em diálogo com as ciências, mas não reduzido à parcela evidente da matéria, capaz de desvendar o sentido profundo dos fenômenos à luz do querer benevolente do Criador (cf. Ef 1,3-10).

 2.2 O reconhecimento da transcendência

As religiões declaram que a realidade vai além do quanto podemos medir, explicar e reproduzir. De fato, mesmo no campo científico, constatam-se ondas magnéticas e variações de energia invisíveis ao olho humano, presentes no arranjo geral do cosmo e da vida planetária. Além disso, as religiões entendem a transcendência como o Todo que contém a parte, ou o sentido último da existência: a ciência mostra o como; as religiões decifram os porquês. Surgem noções como o Tao:

Olha-se e não se vê: chama-se invisível.

Escuta-se e não se ouve: chama-se inaudível.

Toca-se e não se sente: chama-se impalpável.

Essas três coisas não se podem indagar.

Por isso, mescladas, formam juntas uma só coisa.

No alto não é claro,

Abaixo não é escuro.

É inesgotável e não pode ser nomeado.

Remonta-se ao não-ser das coisas.

Chama-se forma sem forma; figura sem figura.

Não se pode compreender: é mistério.

Quem o encara, não vê seu rosto.

Quem o segue, não vê suas costas. (Tao-te-ching: Capítulo IV, 1.5.3)

 O Tao não tem definição: é uma intuição que afirma a Unidade que integra todos os seres e todos os fenômenos, anterior às distinções que percebemos. Pois para o taoísmo, bem como para o hinduísmo e o budismo, a realidade não se define pelas formas aparentes; nem mesmo a Divindade é um Ser ao modo dos demais seres: forma e figura se desfazem, apontando para um Absoluto que se mostra e se esconde ao mesmo tempo, fugindo de nossas representações. Com outra abordagem, o judaísmo e o Islã se concentram nos atributos positivos do ser, inclusive de Deus, declarando-o Santo, Justo, Onisciente e Eterno. E, contudo, Deus abarca “o manifesto e o oculto” (Alcorão 57,3).

Aprendemos, assim, a equilibrar mística e teologia, intuição e conceito, para não sermos reféns de nossas representações. Afinal, a verdade da fé professada não está apenas no termo das formulações doutrinais, mas no sentido que os conceitos preservam. Em última instância, a doutrina deve converter-se em caridade, na relação com Deus e os semelhantes (cf. Lc 10,29-37; 1Jo 3,16-18). De outro modo, Deus seria apenas uma fórmula professada, enquanto que é mais que isto: é Amor (cf. 1Jo 4,7-10). A linguagem das outras religiões nos alerta sobre o valor da analogia e do símbolo, em relação aos termos e formulações, em vista de uma espiritualidade que equilibre afeto e inteligência, saber e sabor, adoração e solidariedade. A síntese desses aspectos certamente favorece uma espiritualidade cristã mais integral, respeitosa do mistério e disposta aos novos aprendizados do Espírito Santo, o mestre interior (cf. Rm 8,26-27).

 2.3 A dádiva e a sacralidade da vida

Todos os elementos vitais são acolhidos como dádiva, pelas religiões: a água, o solo, o ar, os grãos, os fármacos, as fontes naturais de energia e a identidade genética dos organismos. Nada disso pode ser produzido pelo engenho humano de uma forma absolutamente nova: nossa ciência se limita a classificar e recombinar os componentes. Reconhecendo o valor desses bens naturais, as religiões celebram a vida como dádiva e reverenciam a Divindade que a criou e a confiou aos nossos cuidados:

Dono do mundo diante dos deuses,

Senhor de altíssima casa na corte do céu.

Arrasador que fere à direita.

Arrasador que fere à esquerda. (Hino a Ogum: Culto de Orixás)

 Que o céu se alegre! Que a terra exulte!

Estronde o mar e tudo o que ele contém!

Que o campo exulte, e o que nele existe!

As árvores da selva gritem de alegria,

diante de Adonai – pois Ele vem! (Salmo 96,11-13: Judaísmo)

 Disse o Senhor Krishna:

Eu forneço calor e retenho a chuva.

Sou a imortalidade e a morte personificada.

Tanto o espírito quanto a matéria estão em mim. (Bhagavad-Gita 9,19: Hinduísmo)

 Foi Allah quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras;

e seus desígnios se cumprem, nos céus e na terra,

para que saibais que Deus é onipotente:

Ele tudo abrange com sua onisciência. (Alcorão 65,12: Islã)

 As religiões nos falam da dádiva e do culto de louvor pela vida recebida. O hinduísmo nos recorda a dimensão cósmica da existência, maior que o pequenino planeta Terra com seus habitantes e sua tecnologia tão pretensiosa. O culto dos Orixás aponta para o poder tremendo da Divindade, percebida na energia ígnea que tudo derrete (Ogum) e na força das águas abissais (Ocum): este poder encanta e faz tremer! Assim, a dádiva é acompanhada de reverência e respeito, redimensionando nossas pretensões de domínio e exploração da Natureza. Acolhendo a sabedoria das religiões, nós cristãos festejamos o Deus Criador recitando a mesma bênção proclamada por Israel: “Bendito sejais, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pelo fruto da videira! Bendito sejais vós, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pelo fruto da terra!” (berakhá judaica, retomada na apresentação das oferendas do Rito Eucarístico). A dádiva é reconhecida, e a ação de graças se prolonga na vida preservada e partilhada.

 2.4 A conexão humanidade/natureza

Herdeiros do método científico cartesiano e afoitos em consumir, nós cristãos aderimos quase sem notar ao jogo financeiro que transforma a natureza em mercadoria. Mas no princípio não era assim, pois a Sagrada Escritura propõe o mundo como pomar a ser cultivado, declarando o ser humano guardião e jardineiro dos bens naturais (cf. Gn 2,8.15). Algo semelhante lemos no Alcorão: “Allah vos constituiu seus vice-regentes na terra” (Sura 6,165), pois “assim se comportam os servos do Misericordioso: eles pisam a terra com humildade” (Alcorão 25,63).

Tanto cientistas quanto teólogos admitem que o Ocidente tenha um déficit de espiritualidade em comparação com o Oriente, no que se refere, sobretudo, à natureza (cf. NATALE TERRIN, 2003, p.89-90). Somos mais consumidores do que cultivadores; exploramos muito e reciclamos pouco; acumulamos mais do que partilhamos. A crise de recursos naturais, as anomalias climáticas e a pouca distribuição de alimentos estão aí, alertando sobre uma espiritualidade desatenta às conexões entre humanidade e meio-ambiente.

Neste sentido, a releitura ecológica da Bíblia e a elaboração de uma Teologia da Criação mais dinâmica podem dialogar com a abordagem conectiva da cosmovisão hinduísta e africana. Para o hinduísmo, tudo está ligado a tudo na constituição do cosmos, que é movido pelos princípios de geração e degeneração, ganho e perda de energia, nascimentos e mortes, personificados pelas divindades Vishnu e Shiva, respectivamente. O ser humano não se encontra fora deste movimento, mas dentro, ao lado das demais criaturas, embora se distinga delas pela racionalidade. Já o culto de Orixás vai às raízes da vida, da saúde e da fecundidade, conectando as habilidades humanas de plantar, caçar, forjar metais e preparar remédio à sabedoria dos deuses e ancestrais.

Para o cristianismo, dialogar com estas perspectivas não significa negligenciar as fontes bíblicas, nem disfarçar algum tipo de panteísmo, mas acolher enfoques que otimizam ainda mais nossa confissão cristã no Deus Criador. Assim, nossas releituras de Teologia da Criação poderão dialogar com as ciências e também com as demais religiões, em vista da preservação da vida humana e planetária. Do ponto de vista da conexão humanidade/natureza podemos desenvolver melhor a Pneumatologia, tratando da ação do Espírito Santo na criação, como elo das criaturas entre si e destas com o Criador (cf. Gn 1,2; Sab 7,22 – 8,1; Rm 8,22-23). Do ponto de vista do cultivo, da geração e da cura, podemos valorizar o corpo como locus da experiência de Deus, integrando a dimensão terapêutica na compreensão de salvação integral do cristianismo (cf. Mt 10,1; Lc 7,24-37; Rm 8,18-25; Tg 5,13-16). “Ou acaso não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo?” (1Cor 6,19).

 2.5 O hábito da oração

A oração é uma constante nas religiões. Embora tenha diferentes sentidos e modalidades – como disciplina mental para o budismo zen, ou união amorosa com o divino para o Islã Sufi – todas as religiões a valorizam. Trata-se de uma prática progressiva e habitual, rumo à excelência: oração apaziguadora, transformadora e frutuosa. Enquanto o hinduísmo védico acentua a oração litúrgica acompanhada de oferendas, o hinduísmo devocional se concentra na recordação amorosa da Personalidade Divina (Krishna) através dos mantras e do afeto cordial. O budismo monástico, por sua vez, desenvolveu métodos e ritos comunitários de oração, sem descuidar da subjetividade espiritual de cada monge, cuja contemplação atinge níveis notáveis de sintonia psicossomática: a oração budista segue estrita disciplina mental, supera o nível das palavras e conceitos, pacifica as atividades mentais e desenvolve a consciência corporal, com técnicas de respiração. No judaísmo, temos a poesia dramática dos salmos (tehilim) e as orações feitas na sinagoga ou em família (kidushim).

Como ocorre no cristianismo, encontramos nas religiões diferentes graus oracionais: desde as orações mais comuns até as formas elevadas de contemplação. A cabala judaica desenvolveu a oração solidária e zelosa, pela qual o fiel (hassid) se associa à graça redentora que envolve todos os homens, ciente de que a centelha divina que nele arde o aproxima de Deus e das demais criaturas. A prece do hassid vai da alegria à compunção com lágrimas! (cf. SHOLEM, 1993, p.333-56). Já os sufis muçulmanos usam do canto e da dança para orar juntos, rodopiando em sintonia com a órbita dos astros: movem-se em círculo (sema), ouvindo músicas cadenciadas pela recordação dos Nomes de Deus (zikr), em atitude de total abandono a Allah (cf. NATALE TERRIN, 2003, p.112-22; KÜNG, 2010, p.381-93).

Desses exemplos, aprendemos a valorizar a oração e a desenvolver métodos que a façam mais habitual e frutuosa. Também nós, cristãos, concebemos a oração como exercício integrador para a pessoa, no diálogo amoroso com Deus, na forma de louvor, petição, agradecimento ou adoração. Preservadas as distinções, admitimos que a disciplina zen e a dedicação sufi à oração nos levam a avaliar a qualidade da nossa própria oração, já que temos tantos meios e itinerários para cumpri-la: invocação do Nome de Jesus, recitação dos salmos, rosário ocidental e bizantino, contemplação dos ícones, oração de quietude, contemplação dos mistérios de Jesus no Evangelho, leitura orante da Bíblia (lectio divina), via sacra e oração litúrgica. Um dos desafios, além da disciplina que gera o hábito, é integrar mente e coração numa oração menos formalista e mais cordial, que seja verdadeiramente mistagógica: enraizada na Palavra de Deus, animada pelo Espírito Santo, integrada à experiência sacramental, inserida no cotidiano de cada cristão, significativa para o sujeito e animadora da caridade fraterna.

 2.6 A prática das virtudes

As virtudes fazem do sujeito humano um forte – como ensina a raiz latina da palavra virtus (= força). Forte é o labor do solo. Forte é o amor dos genitores. Forte é a alegria dos jovens. Forte é o sacrifício oferecido. Forte é a dignidade dos anciãos. Forte é o cavar poços. Forte é a forja do metal. Forte é a paz sobre a guerra. Forte é a compreensão. Forte é a sabedoria. Forte é a palavra proferida. Forte é a piedade sobre a impiedade. Forte é o caminhar no deserto. Forte é a récita das Escrituras. Forte é a oblação. Forte é a memória celebrada. Forte é a gratidão. Forte é a compaixão. Forte é a prece. Forte é a virtude. Forte é o virtuoso” (MAÇANEIRO, 2011, p.135-6).

 Todas essas nuances da virtude são ensinadas pelas religiões:

Fala a verdade. Segue o caminho da retidão. Não negligencies a recitação das lições [os Vedas]. Depois de trazer a riqueza apreciada pelo teu mestre, não cortes os laços. Não negligencies a verdade. Não negligencies a religião [o Dharma]. Não negligencies o bem-estar de teu corpo. Não negligencies a fortuna e a riqueza. Não negligencies o estudo e o ensinamento dos textos sagrados. Não negligencies os rituais para honrar os deuses ancestrais. Considera tua mãe como um deus; considera teu pai como um deus; considera teu mestre como um deus; considera os hóspedes como um deus. Pratica as ações que não merecem censura, e não outras. Leva em consideração apenas o bem que vês nos outros (…). Partilha com fé; não partilhes sem fé. Dá com generosidade; dá com modéstia; dá com temor; dá com pleno conhecimento e compaixão. (Taittirya Upanishad 1. 11. 1-3: Hinduísmo)

Quem faz surgir o amor — sem medidas, cuidadoso (…) — mostrando amor a um ser vivo que seja, sem malícia, já passa com isto a ser virtuoso. Compassivo em espírito com todos os seres, alcança ricos méritos. Aqueles que, depois de vencer a terra com todas as suas multidões, se fazem sábios e reis, e oferecem sacrifícios, não possuem uma décima parte do valor de um ânimo amável e bondoso. Quem não mata, nem faz matar; quem não oprime, nem permite opressão, mostra amor a todos os seres e não teme de ninguém a inimizade. (Itivutaka, 27: Budismo)

O espírito de Adonai repousa sobre mim, porque Adonai me ungiu. Enviou-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão encarcerados; enviou-me a proclamar um ano aceitável para o Senhor. (Isaías 61,1-2: Judaísmo)

 A piedade não consiste em voltar a face ao Oriente ou ao Ocidente. Piedoso é aquele que crê em Allah, no juízo, nos anjos, no Livro e nos profetas; que, por amor a Deus, dá de seus bens aos parentes, aos órfãos, aos necessitados, aos peregrinos e aos mendigos; é aquele que resgata os escravos, recita as preces e paga o tributo dos pobres; que cumpre suas obrigações, suportando adversidades, infortúnios e perigos. Assim são os crentes e piedosos (Alcorão 2,177: Islã).

 Vê-se claramente a distinção entre pio (justo e misericordioso) e ímpio (injusto e perverso). Neste sentido, as religiões convergem nas virtudes evangélicas e reforçam a convicção cristã na caridade ativa e profética, em vista do Reino de Deus no mundo. Esta convergência de valores e atitudes consolida uma espiritualidade centrada no amor, e favorece a ação conjunta das religiões em benefício da justiça e da paz:

Pois o diálogo inter-religioso, além de seu caráter teológico, tem significado especial na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã. (Documento de Aparecida n.239)

 2.7 A iniciação e o discipulado progressivo

Quando se trata de espiritualidade, as religiões alertam sobre os riscos do individualismo e das pretensões desmedidas de quem pensa poder avançar sozinho. Daí os graus de iniciação e os estágios a serem percorridos pelo neófito (discípulo iniciante) sob a assistência de um mistagogo (mestre iniciador). O hinduísmo védico valoriza a disciplina mental e corporal, com uma série de passos: abstinências (yama), observâncias ascéticas (niyama), posições do corpo (asana), controle da respiração (pranayama), controle dos sentidos (pratyahara), treino da concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase contemplativo (samadhi). Esses passos são acompanhados pelo estudo das Escrituras (Vedas), para que o discípulo reconheça sua condição humana, supere a ignorância e os vícios, treine as virtudes e atinja o estado de libertação, imerso no Uno cósmico-divino (moksha). Já o hinduísmo devocional se concentra no conhecimento e adoração de Krishna, professado como divindade pessoal e misericordiosa: “Eu sou a meta, o sustentador, a testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente eterna” (Bhagavad-Gita 9,18). Enquanto o hinduísmo védico se volta ao Uno cósmico impessoal, o hinduísmo devocional adora Krishna como divindade pessoal, próxima e benevolente: Amado, Amigo e Companheiro. O discipulado segue um processo educativo, para aprimorar os bons hábitos, a não violência e o amor por todas as criaturas vivas (ahimsa), a veracidade de pensamentos, palavras e ações (satya), a pureza mental e corporal (shauca), a misericórdia (daya), com o estudo simultâneo das Escrituras (Bhagavad-Gita). A finalidade é superar o egocentrismo, e disciplinar a inteligência e os afetos na adoração a Krishna, mediante a via unitiva: “Não posso adorar-te em teu templo, nem invocar-te diante de teus símbolos, nem oferecer-te flores molhadas de orvalho, porque tu mesmo habitas o coração das flores. Como posso juntar minhas mãos e inclinar-me em tua honra? Tudo isto é, de fato, um culto imperfeito, porque tu, Senhor, habitas em mim” (Tayumana Swami, séc. XVII, apud ACHARUPARAMBIL, 1984, p.560).

Em outras coordenadas culturais, o culto de Orixás pratica um longo período de iniciação, ritmado por semanas de aprendizado e retiro. O neófito dispõe seu tempo e sua atenção à eleição por parte dos Orixás: são eles que escolhem o iniciante para determinados ofícios religiosos, a serviço do culto e da comunidade. Treina-se o respeito, a abnegação, a atenção e o conhecimento das narrativas ancestrais. Como não há escrituras, é de suma importância executar os ritos com precisão e transmitir os conteúdos essenciais na língua litúrgica (yorubá), através da relação direta com os mestres. Após a primeira iniciação, o adepto vai da função de auxiliar de culto (ogan) até o sacerdócio ancestral, exercido por homens (babalorixás) ou mulheres (yalorixás). No culto africano original havia inclusive o ofício de mestre-iniciador (babalaô), que interpretava os oráculos e transmitia a sabedoria às novas gerações (cf. GONÇALVES DA SILVA, 1994).

No campo das religiões abraâmicas, a cabala judaica observa a iniciação tradicional com circuncisão (milá), maturidade (bar-mitzva) e banhos de purificação (mikve), acompanhada do estudo da Lei (Torá), dos Profetas (Nebiim) e dos Escritos Sapienciais (Ketuvim). Há valorização do vínculo com a comunidade, sob a guia de um mestre carinhosamente chamado de rebbe (= meu estimado mestre). Na fase adulta, abre-se novo ciclo, com o estudo das doutrinas cabalísticas sobre Deus, a Criação, a Aliança, o Messias e a Redenção, conforme as diferentes escolas de ensino. Entram em cena, então, novos textos a serem lidos e comentados, como o Sefer Yetsira (Livro da Criação) e o Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor). Na prática, a fase adulta do discipulado ultrapassa a idade de quarenta anos, num percurso contínuo de estudos e aprimoramento, com os seguintes focos: a oração em estado de união com Deus (kavana); o mistério do Messias (mashiah); a celebração semanal do sábado, compreendido em sentido místico (shabat); a santidade moral, pessoal e comunitária (tzedaká). Em suma, todas as religiões valorizam a iniciação e o discipulado, tendendo à formação continuada de seus adeptos num caminho de aprimoramento espiritual.

Temos aqui outro aspecto interessante para o cristianismo: não fixar-se em estágios passados da evangelização, mas repropor o discipulado progressivo mediante uma “nova evangelização” (cf. Documento de Aparecida, Parte VI). Neste sentido, articulam-se as seguintes fases, complementares entre si: kerigma, com anúncio do amor salvífico de Deus e diálogo interpessoal; didaché, com a instrução catequética que aprofunda o kerigma; mistagogia, com a escuta da Palavra de Deus e a experiência sacramental, em comunidade (cf. Documento de Aparecida n.286-300; Evangelii Gaudium n.160-177).

 3 Conclusão

 Os tópicos de aprendizado dialógico (acima) mostram que cristãos e não cristãos

podem cooperar para a promoção dos valores humanos e espirituais; poderiam, por fim, levar também ao diálogo da experiência religiosa, em resposta às grandes questões suscitadas no espírito humano pelas circunstâncias da vida. Os intercâmbios em nível da experiência religiosa podem tornar as discussões teológicas mais vivas. E estas, por sua vez, podem iluminar as experiências e encorajar relações mais estreitas. (Diálogo e anúncio n.43)

 O “diálogo da experiência religiosa” nos possibilita reconhecer e discernir os valores espirituais das religiões, pontuando as diferenças e também as convergências, já que “a maior parte das grandes religiões têm procurado a união com Deus na oração e também indicado os caminhos para obtê-la” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16). Cientes de que “a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo” (Nostra aetate n.2), não convém “desprezar, sem prévia consideração, tais indicações, só por não serem de origem cristã. Poder-se-á, ao contrário, colher nelas o que contêm de útil, tendo o cuidado de nunca perder de vista a concepção cristã da oração, sua lógica e suas exigências, porque só dentro desta totalidade, esses fragmentos poderão ser reformados e incluídos” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).

Uma sugestão importante para os cristãos “é a aceitação humilde de um mestre experimentado na vida de oração que conheça suas normas; desse aspecto sempre se teve consciência na experiência cristã, desde os tempos antigos, particularmente à época dos Padres do deserto. O mestre – experimentado no sentire cum ecclesia [sentir com a Igreja] – não deve somente guiar e chamar a atenção sobre certos perigos, mas, como pai espiritual, introduzir de maneira viva, de coração a coração, na vida de oração, que é dom do Espírito Santo” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).

De fato, o acompanhamento pessoal e comunitário dos processos de educação da fé e da espiritualidade em geral tem sido uma necessidade, ainda mais nos nossos dias.

A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta arte do acompanhamento, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que, ao mesmo tempo, cure, liberte a anime os irmãos a amadurecer na vida cristã. (Evangelii Gaudium n.169)

 Outro resultado valioso do diálogo das experiências religiosas são as solicitações de releitura e aprofundamento de nossa fé cristã, em face da outra religião. No encontro e diálogo sobre os diferentes caminhos espirituais, as religiões pedem de nós o esclarecimento de pontos tradicionais do cristianismo, a respeito da Palavra de Deus, da Trindade, da comunicação/encarnação do Verbo e da mediação sacramental da Igreja. Além desses pontos tradicionais, há casos em que o diálogo inter-religioso solicita de nós o desenvolvimento de novas perspectivas do dado revelado. Afinal,

a plenitude da verdade recebida em Jesus Cristo não dá aos cristãos, individualmente, a garantia de terem assimilado de modo pleno esta mesma verdade. Em última análise, a verdade não é algo que possuímos, mas uma Pessoa por quem nos devemos deixar possuir. Trata-se, portanto, de um processo sem fim. Embora mantendo intacta a sua identidade, os cristãos devem estar dispostos a aprender e a receber dos outros e por intermédio deles os valores positivos de suas tradições. (Diálogo e anúncio n.49)

Dentre essas perspectivas, elencamos oito:

  1. a) Pneumatologia: desenvolver a Teologia do Espírito Santo a partir da Palavra de Deus e da Teologia da Graça, considerando a ação universal do Pneuma nos sujeitos, culturas e credos, inclusive seus indícios na exemplaridade dos mestres de outras religiões (cf. CTI, 1997, 50-52 e 82-84).
  2. b) Antropologia da “imago Dei”: examinar os dados da fenomenologia e teologia das religiões, com foco na humanidade em geral e na pessoa humana, em particular, como creatura Verbi e capax Dei, interlocutora do diálogo de salvação aberto pela Trindade e, portanto, intérprete da Revelação universal (cf. CTI, 1997, 48, 51, 88-92 e 110-112).
  3. c) Cristologia do Verbo: esclarecer a dimensão cósmica e trans-histórica da presença do Verbo no universo e na humanidade, em cotejo com a cosmovisão das demais religiões, particularmente o hinduísmo e o budismo (cf. CTI, 1997, n.36 e 41-47).
  4. d) Teologia da Criação: ampliar e tematizar a teologia bíblica da Criação, do Primeiro e do Novo testamentos, em diálogo com as narrativas criacionais/cosmogônicas das religiões, individuando as distinções e as convergências.
  5. e) Teologia da Revelação: pontuar os elementos de Revelação presentes nas narrativas, ritos e escrituras das religiões não cristãs, à luz da dogmática cristã (cf. CTI, 1997, n.88-92).
  6. f) Fenomenologia da interioridade humana: sistematizar o quanto as religiões registram sobre a interioridade humana (consciência, vontade, busca da verdade, memória, autoconhecimento, conversão) numa perspectiva comparada, para dialogar com a teologia da graça e a teologia espiritual (cf. Diálogo e anúncio n.15-18).
  7. g) Soteriologia: ponderar as linguagens de salvação do cristianismo (redenção, libertação, cura, nova criação, reconciliação, justificação, recapitulação) em diálogo com os conceitos e as linguagens de salvação das diversas religiões, como libertação/moksha, plenitude/nirvana, despertar/bodhi, benevolência divina/rahmat (Diálogo e anúncio n.29).
  8. h) Escatologia: aproximar a escatologia pascal cristã da perspectiva escatológica das religiões, considerando seus emblemas de mundo, suas doutrinas ecológicas e suas prospectivas quanto ao futuro e aos fins, seja do cosmos, seja da humanidade (cf. CTI, 1997, n.113).

Marcial Maçaneiro, PUC Paraná. Original em português.

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